Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O ANO LITÚRGICO – 1
J. López Martín
Uma das noções mais complexas e ricas que tem o homem, e pelo mesmo motivo uma
das mais difíceis de explicar, é o tempo. O tempo é a medida de todas as coisas quanto à sua
duração. Ele não é somente magnitude matemática expressa em horas, minutos e segundos, ou
em dias, meses e anos. Esse tempo homogêneo, marcado por ritmo e alternância, assinalado
por cronômetros ou pela posição dos astros, não passa de sinal ou referência do verdadeiro
tempo, a duração das coisas. No relógio todas as horas são iguais, no calendário não há
distinção entre os dias e os meses. Sucedem-se uns aos outros inexoravelmente. Tudo isso não
passa de uma dimensão, resultado de observação e cálculo; é o tempo matemático que,
enquanto baseado no movimento do universo, se chama tempo cósmico.
2
a) O tempo “interior”
b) O “tempo sagrado”
2. O tempo na Bíblia
“Uma das datas mais importantes da história da religião é a mudança das festas naturais
israelitas em comemorações de datas históricas que são também aparições do poder e ações de
Deus. Quando a antiga festa do passah, ligada aos tabus da festa lunar e da primavera, se
transformou na celebração da bondade de Deus na saída do Egito, começou algo totalmente
novo.” Produziu-se, com efeito, na história de Israel uma mudança na concepção do tempo
sagrado. Não só quanto à salvação ou incidência favorável ao homem do tempo sagrado, mas
também, sobretudo, no modo de conceber a realização da salvação nele. Como vimos, o
homem destrói e renova o cosmo mediante a evocação ritual do mito da cosmogênese,
sentindo-se protagonista e beneficiário desse processo regenerador do tempo ao imitar
4
ritualmente o fazer divino. Nesse aspecto produz-se inovação fundamental: o homem já não
imita a ação cosmogônica, mas submete-se à ação de Deus. Ou seja, sublinha-se a infinita
distância entre o homem e Deus, insiste-se na transcendência divina. Deus já não aparece
identificado com as origens das coisas e com o próprio tempo (concepção primitiva), mas está
fora dele, se bem que se manifeste atuando em seu interior. Assim, a chave interpretativa do
“tempo sagrado bíblico” não é a cosmogonia mas os acontecimentos históricos, e entre eles o
que é típico ou exemplar, a Páscoa, a libertação do Egito e a constituição de Israel como povo
eleito.
Portanto, estamos diante de um novo modo de entender a salvação, o dies fastus, no
tempo sagrado. Superou-se a idéia do tempo cíclico, do eterno retorno do tempo cósmico
inicial. O Deus de Israel já não se manifesta na cosmogonia evocada, mas na história e no
curso do tempo. Suas intervenções são “históricas”, não redutíveis a manifestações anteriores.
Por conseguinte, fazem história. O tempo sagrado resultante já não é uma hierofania repetida,
mas uma teofania, um sinal da ação pessoal de Deus em favor de seu povo. Daí não se deve
falar de concepção circular do tempo, mas de concepção linear, como afirma O. Cullmann.
Também é diferente, portanto, o conceito de eternidade com relação ao tempo. Para os gregos,
a eternidade opõe-se ao tempo, nela ele está ausente, ao passo que para a Bíblia a eternidade é
um “tempo infinito” ou, melhor, o que chamamos de tempo é uma fração da eternidade. Por
isso mesmo, o tempo sagrado já não representa o esforço humano para sair desse círculo
inexorável que o arrasta, retornando ao momento inicial, esforço inútil, aliás, uma vez que
tudo retorna e se repete indefinidamente.
O tempo sagrado bíblico leva o homem para a frente, para um futuro melhor. Não é
simplesmente evocação ou repetição, mas promessa e profecia. Cada acontecimento divino
salvador do homem é irrepetível e libertador, pois o homem caminha sempre para a frente. O
tempo histórico dos homens revela-se tempo histórico divino, ou seja, tempo salvífico ou
histórico-salvífico. A história humana em que Deus atua é interpretada religiosamente pelo
povo de Deus, por seus profetas, como história salvífica. O ponto de partida dessa história, o
desígnio de salvação de Deus, não é algo histórico pois pertence a Deus, mas se manifesta no
curso da história, na marcha do tempo. O mistério, que a concepção religiosa natural confunde
com o fazer divino, é agora um pensamento, um desígnio ou propósito de salvação escondido
em Deus e se desvela e se desdobra no tempo. A história, para a Bíblia, é o desdobramento do
mistério salvador no tempo.
Existe portanto na Bíblia uma visão religiosa-interpretativa do tempo e da história, uma
reflexão profética, tanto no âmbito cósmico como no coletivo ou pessoal. A história do
mundo, do povo e de suas instituições, de suas pessoas fez-se profecia à luz da especial e
singular relação de Israel com seu Deus: a eleição e a aliança. O tempo já não é o chronos
inexorável que devora os homens, mas o kairos, o tempo histórico carregado de
acontecimentos salvíficos. Assim, a plenitude dos tempos é o “tempo da realidade cumprida”,
no qual a promessa se fez realidade e o anúncio se verificou, tornando-se acontecimento.
Quando Deus, Emanuel, entra no tempo pela encarnação, inaugura-se um novo tempo, aquele
tempo (in illo tempore) da vida histórica de Jesus que nada tem a ver com o mito ou o tempo
primordial. O que ocorre em determinado momento de história (sub Pontio Pilato, como diz o
símbolo da fé), e em um conhecido espaço geográfico (Palestina) é acontecimento de
salvação; mais ainda, é o definitivo acontecimento salvador, mas com uma característica, a de
ser cphápax, ou seja, de uma vez para sempre, de uma vez por todas. Com Cristo a história da
salvação alcança seu aperfeiçoamento e consumação, sua realidade plena.
O tempo histórico salvífico, o tempo segundo a Bíblia, é uma linha contínua em que cada
acontecimento engloba o passado e o futuro, não como retorno mítico às origens, mas como
cumprimento e promessa de ulteriores aperfeiçoamentos. Isso leva a descobrir na Bíblia duas
fases ou momentos da única história salvífica: o anúncio e o cumprimento, a promessa e a
5
realidade, a profecia e a verificação. Essas duas grandes fases coincidem com o antes e o
depois de Cristo, com o Antigo e o Novo Testamento, mas sem nunca romper a unidade
incindível da aliança e da revelação divina e, por conseguinte, de toda a história da salvação
cujo eixo de atração e centro luminoso é Cristo. A chegada de Jesus significou nova dimensão
da presença de Deus no mundo, mas é antes de tudo descoberta do valor salvífico da história
inserida nele.
3. O tempo na liturgia
A santa mãe Igreja considera dever seu celebrar com sagrada recordação em
dias determinados ao longo do ano a obra salvífica de seu divino Esposo.
Cada semana, no dia que se chamou “do Senhor”, comemora sua
ressurreição, que também celebra uma vez por ano, juntamente com sua
santa paixão, na máxima solenidade máxima da Páscoa.
Desenvolve, de mais a mais, no ciclo do ano todo o mistério de Cristo, desde
a encarnação e a natividade até a ascensão, Pentecostes e a expectativa da
feliz esperança e vinda do Senhor (SC 102).
A liturgia celebra a salvação, realizada por Jesus “à medida do homem”, nas primeiras
condições histórico-temporais em que se realizou, ou seja, dentro do tempo. Sem essa
concreção no aqui e agora da vida dos homens, a obra salvífica de Cristo seria abstração ou
mera idéia. Para isso existem a Igreja e a liturgia (cf. SC 5-7). Mas será que a atualização da
obra salvífica de Cristo no aqui e agora dos homens se produz em todo tempo ou somente em
tempos determinados e sagrados? Que valor teriam esses dias e o próprio ciclo do ano? É
possível que a liturgia não tenha conseguido desembaraçar-se dos tempos celebrativos das
antigas religiões naturalistas?
O texto do Vaticano II reflete a situação de fato, ou seja, a existência do ano litúrgico e
dos dias em que tem lugar a celebração do mistério de Cristo. Mas deixa muito claro que essa
celebração constitui uma recordação sagrada, uma ação memorial e representativa dos
mistérios da redenção por via não do “eterno retorno” mas da reiteração mistagógica que é
uma forma de pedagogia suficientemente comprovada ao longo dos séculos. Portanto, a
determinação dos dias e dos tempos da celebração é fruto da própria tradição eclesial e da
história. No caso do domingo, o Vaticano II fala expressamente de tradição apostólica que
tem sua origem no próprio dia da ressurreição do Senhor (cf. SC 106).
Nesse sentido, os tempos litúrgicos fazem parte da estrutura organizadora da liturgia
para distribuir mistagogicamente os diversos aspectos do mistério de Cristo ao longo de um
ano. Essa estrutura, do ponto de vista exterior e funcional, parece idêntica aos calendários de
festas das religiões pré-cristãs e ao calendário litúrgico do antigo Israel. Contudo, o tempo
litúrgico é um sinal de salvação e um modo de presença de Cristo no tempo dos homens.
É aí e somente aí que repousa o valor dos tempos litúrgicos, verdadeiros “tempos de
graça e salvação” (cf. 2Cor 6,2). Voltaremos mais tarde a esse ponto. Mas é preciso explicar
antes a organização do tempo na liturgia, com base na atual configuração desse tempo, do ano
e do calendário litúrgicos.
Não se trata de fazer história dessa estrutura – exposta nos capítulos correspondentes a
cada tempo litúrgico. O que interessa é perceber que a configuração atual do ano litúrgico e
dos tempos da celebração é resultado da liberdade com que a Igreja, inserida nas diversas
6
a) O ritmo diário
O tempo se estrutura na liturgia segundo diversos ritmos: diário, semanal e anual. Além
disso, existem outros ritmos não direta nem propriamente litúrgicos, como o ano jubilar, os
aniversários de 25 e 50 anos, e os que a piedade popular determina e têm sua incidência na
liturgia: novenas, oitavas etc. o primeiro e fundamental ritmo da celebração é determinado
atualmente pelo dia natural, unidade básica de todas as ordenações do tempo litúrgico.
Com efeito, “cada dia é santificado pelas celebrações litúrgicas do Povo de Deus,
principalmente pelo sacrifício eucarístico e pelo ofício divino. O dia litúrgico começa à
meia-noite e estende-se até a meia-noite seguinte. Mas a celebração do domingo já começa
na tarde do dia precedente”. O dia litúrgico mede-se, portanto, da 0 às 23h, 59 minutos e 59
segundos de cada dia. É a forma moderna do antigo costume greco-romano de medir o dia de
meia-noite a meia-noite. Não obstante, os domingos e solenidades contam-se desde a tarde
precedente, reminiscência do modo judaico de indicar o começo do dia (cf. Gn 1,5). Esta
prática deu lugar às vésperas I e às vigílias e de certa forma justifica as missas vespertinas
válidas para cumprir o preceito dominical ou festivo do dia seguinte.
O centro do dia, não necessariamente matemático, é ocupado pela celebração eucarística
e, como uma projeção do restante das horas, o ofício divino. Cada celebração do ofício
chama-se hora, ainda que o Ofício da leitura continue tendo caráter noturno nos mosteiros, de
forma a evocar ainda a antiga denominação dos noturnos, momentos em que se dividia a
celebração da noite. A liturgia das horas conserva também, junto com os nomes tradicionais
de laudes e vésperas – oração da manhã e oração da tarde –, as denominações de hora
terceira, sexta e nona, chamadas hoje também de hora média ou inter-média.
b) O ritmo semanal
mês lunar. Essa contagem do tempo talvez seja a mais antiga da humanidade, conhecida
pelos povos acádico-sumérios e indo-iranianos, dos quais a tomaram os hebreus. Estes,
porém, prescindiram do significado naturalista das neomênias e fundamentaram a divisão das
semanas, especialmente o dia do descanso festivo, na narrativa da criação (cf. Gn 1,3-2.3; Ex
20,10-11; Dt 5,12-15). O sabat converteu-se na instituição mais característica da religião
mosaica.
No cristianismo, observou-se no princípio o sábado (cf. Mt 28,1; Jo 19,42; At 2,46a),
mas depois o primeiro dia da semana, recordação do início da criação, acabou suplantando o
sábado como dia festivo e centro da semana.
No mundo greco-romano conhecia-se também a semana – hebdomada em latim, grupo
de sete –, mas cada dia tinha nome próprio segundo a denominação dos astros conhecidos na
época. O primeiro dia da semana era o dia do Sol (cf. S. Justino, I Apol. 67), o segundo, o dia
da Lua etc. Assim nasceram os nomes atuais dos dias da semana na maioria das línguas
européias, ainda que o primeiro dia da semana tenha recebido o nome cristão de dia do
Senhor – domingo –, exceto nas línguas anglo-germânicas (Sunday, Sonntag).
A liturgia leva em conta o ritmo da semana, mas chama pelo nome somente o domingo,
designando curiosamente todos os outros dias como feriae (segunda-feira, terça-feira etc., e o
último dia como sábado). Feriae quer dizer “dias de festa”. Para a liturgia todo dia é festivo,
do ponto de vista da santificação do tempo pela presença permanente de Jesus ressuscitado
em sua Igreja (cf. Mt 28,20).
Na liturgia antiga gozaram de certa preeminência as quartas e sextas-feiras, dias de
jejum em todo o tempo exceto na quinquagésima pascal. Na origem desse jejum está a
recordação da paixão do Senhor, especialmente no que diz respeito à sexta-feira (cf. Jo 19,31)
e possivelmente também à quarta-feira, se dermos atenção a tradição coligida por santo
Epifânio no séc. V. Até inícios do séc. VI, não se tinha começado a celebrar a eucaristia nas
férias, costume que começou precisamente nas quartas e sextas-feiras da quaresma, até
preencher a semana inteira, mas unicamente nesse tempo e nas Têmporas.
A liturgia atual voltou a valorizar o domingo como centro e eixo da semana, de forma
que o concílio Vaticano II se comprometeu a defender firmemente o ritmo semanal e a
sucessão das semanas, na hipótese de um possível calendário perpétuo e universal (cf. SC,
Apêndice).
c) O ritmo anual
Após essa longa apresentação do tempo como esfera da celebração sob a formalidade da
fenomenologia religiosa e da teologia bíblica e litúrgica, impõe-se-nos também outro tema
que adquiriu enorme importância nos últimos anos e que não é alheio ao que acabamos de
expor: a festa, realidade humana que de fato é o tempo da celebração, mas com conotações
antropológicas específicas.
a) O que é a festa
Deram-se muitas definições de festa, detendo-se cada autor sobre determinado aspecto.
Para uns, ela se define pela dimensão do que é inútil, ou seja, que não se pode utilizar para
fins extrínsecos. A festa carece de objetivos, tem o fim em si mesma e movimenta a
capacidade festiva e lúdica do homem, sua atividade expressiva e contemplativa. É uma
espécie de jogo. Para outros, ela constitui imitação do fazer divino, atividade complacente,
gratuita e livre, como a da Sabedoria que atua na presença do Altíssimo e de cuja dança
brotam todas as coisas (cf. Pr 8,27-31). Celebrar festa é uma forma de glorificar e dar graças
ao Senhor.
A festa também se definiu como afirmação da vida e do mundo: a alegria, o regozijo, é
atitude festiva fundamental que impregna a existência inteira, é forma de exaltar a bondade
das coisas, e fazer festa nesse sentido é imitar o repouso divino do sétimo dia, ocasião em
que Deus viu que tudo o que tinha feito era muito bom. A festa torna-se assim encontro entre
o “tempo” divino e o tempo dos homens em benefício desses. É inegável essa sua dimensão
libertadora.
Outros autores preferiram defini-la justapondo-a ao tempo ordinário e não-festivo. É
certo que existe um forte contraste entre a festa e a vida do dia-a-dia, um choque entre a
realidade e a utopia, entre os convencionalismos e a natureza. A festa pode parecer
ressurgimento do caos inicial, um momento em que todos os instintos se liberam e se
permitem todos os excessos. Os sentimentos, que normalmente se reprimem ou se descuram,
deixam-se então em liberdade. Daí os excessos que implica viver a fundo a festa: comida,
gastos, vestes, relaxação dos costumes etc. Não importa o amanhã, é o hoje que conta, ainda
que não haja mais que um instante de fruição. A festa não suprime a tragédia da vida, mas a
assume e recompõe. É como voltar a começar.
Também não faltaram os que viram na festa expansão e dilatação do ser humano em
todas as direções, alargamento do campo da consciência ultrapassando a estreiteza da
realidade cotidiana e levando o homem a uma experiência mais totalizante. A festa assim
entendida entra no campo da mística, da exaltação da imaginação e da fantasia.
O que dissemos sobre a festa em geral se aplica também à festa cristã como ambiente de
celebração. Mas devemos destacar o que é específico da celebração festiva dentro do
cristianismo. O que vem a seguir não constitui apenas contribuições da fenomenologia, mas é
reflexão feita à luz da teologia litúrgica. Se a primeira dimensão é imprescindível por
constituir a base antropológica de aproximação da realidade festiva, é indispensável a
segunda. Esquecer-se disso é reduzir os tempos da celebração a meras representações formais
carentes de conteúdo soteriológico, ainda que carregadas de costumes e folclore religiosos. A
liturgia cristã é realidade divino-humana, constituída por elementos visíveis e invisíveis, mas
de tal forma que o humano e visível se ordena com relação ao divino e invisível (cf. SC 2).
Em outras palavras, a antropologia desvenda-nos apenas uma faceta da realidade, a
dimensão que, sendo fruto da cultura e criatividade dos homens, pode servir de veículo
12
necessário para expressar e manifestar o mistério; a teologia ajuda, sem descurar o dado
antropológico e apoiando-se nele, a penetrar no sentido salvífico das ações e formas rituais
oferecendo visão iluminadora a partir da fé e revelação. Esse esforço de esclarecimento
teológico leva inevitavelmente a apontar diferenças ou destacar peculiaridades. Não se trata
de fazer apologética mas de avançar no conhecimento e avaliação da realidade litúrgica do
tempo da celebração, realidade profundamente conexa, aliás, com outras formas de expressão
religiosa.
1) A primeira nota específica da festa cristã é ser sinal da presença do Senhor no meio
dos seus. O caráter lúdico, festivo e liberador de toda festa como epifania do poder divino e
do tempo sem fim atinge seu clímax nessa presença pessoal de Jesus entre os seus, e destes
nele. É a presença mútua prometida pelo Senhor, o Deus conosco (cf. Mt 1,23), o noivo que
se acha entre seus amigos (cf. Mt 9,15), o ressuscitado que sempre estará conosco (cf. Mt
28,30; 18,20).
Essa presença, de que é o portador Espírito Santo (cf. Jo 14,15-19; 20,19-22), constitui
a raiz última de toda eficácia santificadora e cultual da liturgia. Nada tem a ver com a
imitação ritual do agir divino que se reproduzia nas religiões primitivas, mas é dom gratuito
do Senhor, ator e autor invisível de toda celebração que se associa à Igreja e serve-se dela
como esposa e corpo sacerdotal a fim de ficar entre os filhos dos homens. A presença do
Senhor liga-se ao próprio fato de se reunir em assembleia litúrgica (cf. Mt 18,20; Jo 14,13-14)
e tem vários modos ou graus de realização (cf. SC 7).
2) Uma segunda característica teológica é seu valor prefigurativo e escatológico da
festa eterna do céu. As festas cristãs não são meras figuras imitativas e anunciadoras da festa
que não tem fim, mas são penhor e participação, velada ainda e imperfeita, da alegria celeste.
A grande característica da escatologia cristã é precisamente a de referir-se ao penhor do
Espírito (cf. 2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14) e aos céus novos e à terra nova que começaram com a
ressurreição de Jesus (cf. 2Pd 3,13; Ap 21,1-3).
As festas cristãs são o cumprimento da festa hebréia dos tabernáculos, a festa das festas
de Israel na qual o povo voltava a viver a experiência do deserto, quando Deus tinha a morada
de sua glória numa tenda entre as outras (cf. Lv 23,41-43; Os 12,10). Curiosamente, essa festa
não tem equivalente em nenhuma festa concreta do calendário cristão, mas acha-se diluída em
todas, porque a Palavra armou seu tabernáculo entre nós (cf. Jo 1,14) e Jesus já derramou seu
Espírito prometido no “último dia da festa (dos tabernáculos)” (Jo 7,37-38; 19,30.34; cf. Ez
47,1.10; Zc 14,6-16). O livro do Apocalipse descreve a liturgia celeste como a grande festa
dos tabernáculos (cf. Ap 7,9-17 etc.). Por isso, recorda o concílio Vaticano II que “na liturgia
terrena estamos em busca e participamos da liturgia celeste que se celebra na cidade santa de
Jerusalém, à qual nos dirigimos” (SC; cf. LG 49-50).
3) Uma terceira característica das festas cristãs enquanto ambiente da celebração é a
primazia da palavra de Deus proclamada, narrada, explicada, celebrada e atualizada na ação
ritual. Se as festas pré-cristãs giravam em torno do mito, e as de Israel convertem-se em
festas memoriais com base na palavra dos profetas e dos sábios, as festas cristãs acentuaram
essa última dimensão comemorativa e profética do sentido último da história e da existência
humana que se encerra na palavra de Deus. A novidade cristã, no entanto, da presença da
Palavra na festa está na referência de todas as Escrituras sagradas a Cristo e a seu mistério
pascal.
A Bíblia inteira, Antigo e Novo Testamentos, lida tal como a lê a Igreja na liturgia –
isto é, o Lecionário litúrgico da palavra de Deus –, desempenha, na comunidade que celebra a
festa, o papel de “patrimônio sagrado comum” que guarda a tradição histórica, espiritual,
catequética, mistagógica, pastoral etc. da Igreja. Acima e além dos costumes e manifestações
populares das festas cristãs, só haverá festa, que mereça esse nome, quando ressoar
13
Não estudaremos aqui sua história nem sua atual composição, mas apenas apontaremos
os diversos substratos em que se apóia. Aludimos, na seção dedicada ao tempo na liturgia, à
liberdade com que a Igreja retomou vários elementos celebrativos, entre os quais os tempos e
as festas. Com efeito, o calendário festivo cristão e o ano litúrgico em seu conjunto levaram
de alguma maneira em conta tanto o substrato humano-religioso dos tempos sagrados
enquanto fenômeno universal, como o substrato do calendário litúrgico hebreu. Isso quer
dizer que os tempos litúrgicos cristãos assumiram os mais nobres e profundos valores das
diferentes contribuições humanas à mística e vivência do tempo e da festa.
Nesse sentido, o cristão que observa os tempos festivos do calendário litúrgico e do ano
do Senhor, neles acha realizado tudo o que significavam e desejavam os tempos sagrados pré-
bíblicos e pré-cristãos. Mesmo ao crente da metrópole urbana, desnaturalizada e
desumanizada, os tempos festivos do calendário cristão ainda remetem à vida da natureza e
aos ciclos fundamentais da existência. Talvez ele não saiba ou não consiga perceber as
conexões das festas com o cosmo e com seu próprio mundo interior, mas a liturgia não deve
renunciar a essa mediação e a essa linguagem cunhadas pela experiência religiosa universal.
Será preciso aprender a ler o significado genuíno das festas e dos tempos da celebração, será
preciso fazer catequese oportuna sobre a história da salvação e os acontecimentos que neles se
comemoram, sem contudo destruir uma estrutura cuidadosamente elaborada pela experiência
mistagógica da Igreja.
os três momentos de orações diárias (cf. Sl 55,17-18; Dn 6,10), que também Jesus e seus
discípulos praticaram (cf. Mc 1,35; 6,46; Lc 6,12 etc.; At 3,1; 10,9; 16,25). Em segundo lugar,
existia o ritmo semanal, que descansava no repouso sabático, ou seja, no dia de dedicação
total ao Senhor. Jejuava-se, em vista do sábado, nas segundas e quintas-feiras, e depois do
exílio faziam-se celebrações na sinagoga no próprio sábado com leitura contínua da torá e do
resto das Escrituras em ciclos semicontínuos. Ambos os ritmos de celebração, o diário e o
semanal, deixaram suas pegadas na forma cristã de santificar o dia e a semana, mediante as
horas do ofício divino e a eucaristia, e o domingo, respectivamente.
Por último, existia o ritmo anual, estruturado nas três grandes festas de peregrinação, as
três vezes (shelosh regaliîm) em que os hebreus maiores de 13 anos deviam apresentar-se
perante o Senhor em Jerusalém: 14 de Nisan, a Páscoa; 50 dias depois, na festas de Shavû‘ôt
ou das Semanas; e no dia 15 do mês sétimo (Tishrî) para a festa dos tabernáculos (Sukkôt) (cf.
Ex 23,14-19). Havia, além dessas, outras festas: Rô‘sh ha-Shanah, o ano novo, o dia primeiro
do mês sétimo, o começo mais antigo do ano; o Yom-Kippurîm ou dia das expiações, dez dias
depois; Hanukkah ou aniversário da dedicação do templo na época dos Macabeus, 25 do mês
nove; e Pûrîm, as Sortes, comemorativas da salvação do povo pela rainha Ester nos tempos do
rei Assuero da Pérsia.
Todas as festas eram acompanhadas por dias de preparação e jejum, e sua maior
característica é serem, como se sabe, festas memoriais dos fatos de salvação acontecidos para o
povo de Deus (cf. Ex 12,14.24-27; Lv 23; Dt 26). Essa é a herança preciosa do ano litúrgico
hebreu que assume o ano litúrgico cristão. As festas de Israel deram ao povo de Deus um meio
rico e dinâmico de manter viva a memória comum de ser propriedade do Senhor e responder a
essa eleição caminhando em sua presença. Ainda que o conteúdo das festas cristãs seja novo e
de certo modo diverso do celebrado pelas festas de Israel, o dinamismo simbólico, profético e
soteriológico destas passou intacto para o ano litúrgico cristão. O exemplo mais característico e
que melhor resume a transição da antiga à nova aliança é a festa da Páscoa, tão central no
calendário hebreu quanto agora no calendário festivo cristão.
A Páscoa nasceu da transformação de um rito ancestral de povos nômades, como era
Israel antes de seu assentamento na terra da promessa. Quando Deus salvou Israel das mãos
dos egípcios (cf. Ex 12,1-14), aquele rito sangrento de exorcismo e de comunhão no quadro
do novilúnio da primavera, transformou-se em festa em honra do Senhor para todas as
gerações. Acrescentou-se posteriormente a comida dos pães ázimos durante oito dias, ritual
próprio dos povos sedentários e agricultores, mas também impregnado do conteúdo
fundamental da Páscoa. Nos tempos de Jesus, só se celebrava a festa em Jerusalém – exceto
pelos grupos sectários do judaísmo –, e compreendia ela dois momentos, o sacrifício e
preparação do cordeiro e o banquete pascal nas casas.
Têm lugar no quadro dessa festa os acontecimentos finais da vida de Jesus e de maneira
particular a instituição da nova Páscoa de sua morte e ressurreição proclamada na eucaristia
(cf. 1Cor 11,23-26 e par). Logo a comunidade primitiva reconhece em Cristo a realização de
tudo o que significou a Páscoa de Israel (cf. 1Cor 5,7; Jo 1,29; 13,1; etc.). Como diz a antiga
homilia pascal de Melitão de Sardes: “A lei fez-se evangelho, o antigo renovou-se, a figura
converteu-se em realidade, o cordeiro agora é o Filho”. A morte do Senhor unifica as duas
alianças, as duas Páscoas, os dois calendários festivos, o de Israel e o da igreja.
Todavia, do ponto de vista dos tempos da celebração, produz-se importante diferença
entre a Páscoa litúrgica cristã e o rito pascal judaico. Enquanto este ocorre uma vez no ano, ao
chegar o dia 14 de Nisan, os cristãos reúnem-se para celebrar a Páscoa do Senhor a cada oito
dias, no primeiro dia da semana que logo adquire o nome de domingo (cf. Jo 20,19-26; At
20,7; 1Cor 16,2; Ap 1,10). O domingo é a festa pascal semanal dos cristãos.
Mas muito brevemente, talvez antes do que cremos, nos ambientes judeu-cristãos
possivelmente, celebrou-se também a recordação anual da morte do Senhor com um ou vários
15
dias de jejum. A primeira referência é a Carta dos apóstolos, documento apócrifo do séc. II, à
qual seguem os testemunhos das homilias pascais e sobretudo a famosa questão pascal do
séc. II, recolhida por Eusébio de Cesaréia em sua célebre História eclesiástica. Essa primitiva
celebração anual da Páscoa, conhecida como Páscoa quartodecimana porque coincidia com a
festa judaica, desaparece sob a pressão da festa pascal “ocidental” (romano-alexandrina),
celebrada no dia seguinte ao da Páscoa judaica. O concílio de Nicéia sancionou essa
celebração, verdadeiro ponto de partida do ano cristão.
b) O substrato humano-religioso
Outra coisa foi, certamente, a celebração das festas no âmbito meramente popular. É aí
que se mesclam crenças e lendas, liturgia e folclore religioso, a fé e o obscuro mundo da
superstição. Em todo caso, as festas foram um desafio e um canal para a evangelização e
educação da fé dos povos nem sempre bem-aproveitado.
Também se relacionam com o substrato mais profundo das festas religiosas os
acontecimentos da vida humana que requerem tempos de celebração. Falamos dos tempos em
que o homem celebra o nascimento, a entrada na adolescência, o matrimônio e a morte. Ao
lado desses há outros tempos que também deixam pegadas, como a doença, a inauguração de
uma casa, a partida do lar paterno etc. Em certos casos atuam os chamados rituais de
passagem, que acham equivalente em alguns sacramentos cristãos, como o batismo e o
matrimônio, e em alguns sacramentais, como as exéquias, a consagração religiosa, as bênçãos
etc.
Não há dúvida acerca da força profunda dessas celebrações no âmbito das pessoas e das
famílias, e mesmo da sociedade sobretudo camponesa e rural. As celebrações litúrgicas
relacionadas com todos esses pequenos e grandes acontecimentos têm procurado acolher as
situações e os comportamentos humanos e religiosos dos que os protagonizam e vivem.
Novamente estamos diante de um desafio para a pastoral litúrgica em chave evangelizadora.
Resumindo, os tempos festivos do calendário cristão, ou os ritmos de celebração que o
ano litúrgico propõe, assumiram e deram nova forma às mais ricas e profundas aspirações que
encerra o tempo vivido como espaço em que o espírito se dilata e se abre à transcendência.
Cristo, Senhor da história, ao colocar o tempo dos homens sob seu domínio libertador, redime
o tempo fazendo dele meio de sua presença salvífica.
Para chegar a definir, ou melhor, descrever o que é o ano litúrgico, devemos verificar
antes de tudo o substrato comum, partilhado pelo Oriente e Ocidente cristãos, de uma teologia
bíblica da história e do tempo como esfera da salvação. Dessa perspectiva teológica, o ano
litúrgico é uma epifania da bondade de Deus que fez irrupção e manifestou-se no decorrer da
história da salvação. Mas é também resultado do empenho do povo de Deus de responder a
essa bondade na fé e na conversão, ou seja, caminhando na presença do Senhor para viver na
fidelidade à eleição de que foi objeto, ou seja, na comunhão da aliança.
17
uma das festas ou ciclos do ano litúrgico. O ano litúrgico é, por conseguinte, ano de Cristo,
ano cristão que vive de Cristo. O Senhor, em seu mistério supra-histórico, continua possuindo
o tempo e fazendo dele o âmbito de sua presença salvífica.
c) A imitação de Cristo
mediação de Jesus que, com a presença e o poder do Espírito, se serve do ministério da Igreja,
depositária e administradora da palavra e dos gestos salvíficos de Deus realizados em Jesus
Cristo. Portanto, é no seio da comunidade cristã, a Igreja congregada e reunida pela Palavra
divina e pela força do Espírito Santo, que Jesus fala, perdoa, batiza e alimenta, visando fazer
dos homens outros “cristos” ou “messias”, outros filhos de Deus e herdeiros da vida eterna.
Ora, uma vez que se realiza a configuração com Jesus mediante os sacramentos, que
papel desempenha o ano litúrgico em sua celebração e administração?
Continuando nossa exposição, constatamos que grande número de pastoralistas e
teólogos dos sacramentos se esquece da realidade viva que é práxis litúrgica da Igreja que,
sobretudo nos tempos antigos, nunca separou a vida sacramental da celebração do ano
litúrgico, mas sempre pôs aquela em estreita relação e dependência com este.
A imitação de Jesus Cristo, de que falamos antes, pedia que a imagem de Jesus
“historicizasse” a vida cristã, a participação litúrgica e a administração dos sacramentos. Ou
seja, que dessa presença vivida e celebrada do Senhor, de cada um de seus gestos salvíficos,
especialmente de sua morte e ressurreição, procedessem a explicação, a menção e a expressão
de cada um desses mistérios no tempo e na existência histórica dos cristãos. Não havia,
portanto, apenas razão histórica ou simplesmente catequética para que a Igreja antiga
celebrasse a iniciação cristã na noite pascal e para que mais tarde voltasse a recomendá-la
nessa mesma noite, e durante o período dos cinquenta dias seguintes fizesse os fiéis reviverem
a alegria e os outros sinais da presença do ressuscitado, do esposo que novamente se encontra
entre seus amigos. Também não se explica suficientemente pela história e pela pedagogia
cristã a organização da quaresma em função do catecumenato e do Ordo paenitentium. Por
que, afinal, gostavam tanto os santos Padres de dar suas catequeses sobre os sacramentos
sempre relacionando-as com momentos concretos da vida de Jesus?
Há mais que razões históricas e antropológicas em tudo isso. Não é em vão que se
encontram nas próprias páginas do Novo Testamento, como fruto da reflexão eclesial
primitiva sob a condução infalível do Espírito que introduz na verdade plena (cf. Jo 14,26;
16,23), tanto a aplicação a Jesus e à Igreja e a seus meios de santificação das figuras e
imagens do Antigo Testamento, como a referência das ações e fatos da vida de Jesus aos
sacramentos cristãos. Basta deter-se no capítulo 6 da carta aos Romanos, nas narrativas da
ceia, das multiplicações de pães e de outras refeições de Jesus com os discípulos, nas curas de
enfermos, no evangelho inteiro de João, todo ele impregnado pela concepção sacramental da
vida de Jesus e da Igreja sob a ação do Espírito.
A razão última, teológica, da relação entre vida sacramental e ano litúrgico está no fato
de a vida histórica de Jesus ser o único parâmetro e paradigma da vida cristã, sobretudo se a
entendemos como assimilação e conformação progressivas com o Filho de Deus pela força do
Espírito Santo que o Pai derramou em nossos corações quando fomos regenerados nas águas
do batismo. Jesus, portanto, é o único protagonista da salvação humana, e todos os seus atos,
gestos ou passos revelaram-se como portadores de determinado aspecto da salvação que Deus
opera nos homens. A liturgia, desdobrando a gama dos acontecimentos salvíficos da vida de
Jesus no decorrer do ano, está fazendo algo mais que propô-los como maravilhosos exemplos
para a meditação piedosa ou contemplação, por importante que seja esta. Está projetando
perante nosso olhar nossa própria história salvífica, a história dos fatos de salvação que passo
a passo a vão tecendo e que com nossas respostas de conversão e fé faz-nos sentir também
como seus sujeitos ativos, pela graça de Jesus e pelo poder do Espírito. Quando celebramos
uma festa, um domingo ou todo um ciclo litúrgico, não somente contemplamos Jesus
20
vencendo o mal por nós e em nós, mas nos vemos também a nós vencendo, pela virtude dos
sacramentos, por ele, com ele e nele nosso próprio pecado.
Nesse sentido as palavras de Paulo VI, que citamos a seguir, significam importante
avanço na doutrina pontifícia sobre o ano litúrgico na linha do Vaticano lI, sobretudo se as
comparamos com o que disse Pio XII na Mediator Dei. Diz Paulo VI:
Não há, com efeito, representação fria e inerte de fatos passados, mas também não há
recordação pura e simples de acontecimentos. A encíclica considera que os mistérios de Jesus
são “exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte das graças divinas pelos méritos e pela
intercessão do Redentor e porque perduram em nós por seu efeito”. Nesse sentido são causa
de nossa salvação e ainda continuam vivos para que os fiéis se ponham em contato com eles.
O mesmo ensinamento faz o concílio Vaticano II tomando as expressões da encíclica
Mediator Dei, mas reforçando-a com alusão ao poder santificador de Jesus (sua virtus divina)
que os fiéis podem tocar (cf. Lc 6,19; Mc 5,28-30). Segundo isso, a presença dos mistérios de
Jesus Cristo no ano litúrgico não é tampouco presença místico-espiritual, própria da
contemplação imaginativa e da meditação dos “exemplos ilustres de perfeição cristã”, como
dizia a encíclica, mas presença mistérico-sacramental, ou seja, na ação ritual, nos sinais e no
conjunto da celebração litúrgica. Casel não fez mais que trazer à luz a concepção paulina e
patrística do mistério de Jesus em sua atualização sacramental, ainda que possivelmente não
tenha acertado na metodologia ao relacionar a liturgia cristã com as religiões mistéricas.
Sendo assim, pode-se falar de uma presença de Cristo e de seus mistérios nos tempos
litúrgicos, nas festas e no ciclo anual, como o faz o Vaticano II em SC 102, ou seja,
concretizando esse modo de presença nas ações litúrgicas que a Igreja realiza em dias
determinados ao longo do ano para atualizar a obra de nossa salvação. Em definitivo, a
presença de Jesus nos tempos da celebração produz-se e expressa-se na assembléia reunida
para a festa, na proclamação da Palavra, nos atos sacramentais e sobretudo na eucaristia. Por
meio dessas celebrações, Jesus faz-se presente à sua Igreja e santifica os dias, as semanas e os
anos. Mas esses dias determinados, entre os quais sobressai o domingo, também são âmbito
da presença do Senhor do tempo e da história. Os cristãos que celebram o domingo e as festas,
os tempos e o ano litúrgico, estão conscientes de que é a totalidade do tempo festivo que está
inundada da presença de Jesus, não somente o momento da celebração. Por isso eles
“santificam” também o tempo ao referir ao Senhor toda a realidade humana, familiar, cultural,
desportiva etc., e é claro que toda atividade evangelizadora, caritativa, espiritual e pastoral a
que se dedicam nos “dias do Senhor”.
Assim como a assembléia litúrgica, o ministro sagrado, a Palavra proclamada, os atos
sacramentais e a eucaristia são sinais eficazes da presença de Jesus (cf. SC 7), assim também
os dias festivos e os tempos litúrgicos são sinais igualmente eficazes dessa presença. Cada um
segundo o grau e o modo que lhe é próprio. Nesse sentido o ápice estará sempre na celebração
eucarística e, de maneira mais concreta, nas espécies sacramentais e enquanto essas
subsistem. Mas os tempos litúrgicos dão fé de que Jesus Cristo entrou para sempre – ephápax
– no tempo para redimi-lo e transformá-lo em tempo de graça e salvação (cf. Rm 13,11-12;
2Cor 6,2). Na sinagoga de Nazaré Jesus declarou abertos para sempre os últimos tempos, o
permanente ano jubilar do Senhor (cf. Lc 4,19.21).
Nos dias determinados para a celebração, Jesus se manifesta como plenitude dos
tempos (cf. Gl 4,4), recapitulador de tudo o que existe (cf. Ef 1,9-11; Cl 1,18-19), o mesmo
“ontem, hoje e pelos séculos” (Hb 13,8). Nessa perspectiva da presença de Jesus nos tempos
da celebração, o dia e o ano litúrgico inserem-se no mistério de Jesus Cristo plenitude dos
22
tempos e Senhor da história. “O ano litúrgico é o gesto salvífico de Jesus Cristo que entrou no
tempo e nele permanece. É o mistério do tempo cristificado.”
Esposo permaneceria mera evocação subjetiva. Por isso não há domingo, nem festa, nem
solenidade alguma, sem eucaristia. E esta expressa a indissolúvel unidade de cada um dos
mistérios com o mistério pascal.
24
J. Aldazábal
O domingo tem suas raízes na primeira comunidade: “a Igreja, por tradição apostólica
25
que traz sua origem do próprio dia da ressurreição de Cristo, celebra o mistério pascal cada
oito dias, no dia que com razão se chama dia do Senhor ou domingo” (SC 106).
Os primeiros cristãos, muito embora, como judeus, tivessem muito arraigada em sua
vida a celebração do sábado como o dia de descanso e culto, escolheram desde o começo o
domingo como seu dia de reunião e de celebração da eucaristia. O motivo parece evidente:
nesse dia, o primeiro da semana, depois do sábado, Jesus ressuscitou, convertendo-o assim em
“o dia do Senhor” por excelência. Podiam ter escolhido a quinta-feira por suas reminiscências
eucarísticas, ou a sexta-feira como dia da morte salvadora, ou mesmo o sábado, com conteúdo
novo.
As várias passagens em que se fala desse dia nas páginas do NT ajudam-nos a entender
seus valores teológico-espirituais.
O episódio de Emaús (Lc 24,13-35) parece uma parábola em que Lucas gostaria de
ensinar-nos as riquezas que o domingo encerra para os cristãos de todos os tempos.
No “primeiro dia da semana” (Lc 24,1.13) os dois discípulos, sem esperança, “com os
olhos fechados” encontram-se com Jesus, o caminhante, sem reconhecê-lo. Explica-lhes
este as Escrituras para que compreendam o plano salvador de Deus que incluía a morte do
Messias. Convidam-no a cear e então o reconhecem na fração do pão, voltam correndo à
comunidade de Jerusalém, de que tinham fugido, e “encontraram reunidos os Onze e seus
companheiros que lhes disseram: É! O Senhor ressuscitou”. Em seguida se lhes aparece de
novo Jesus (v. 36) e fala-lhes, anima-os, come com eles e envia-os como testemunhas por
toda parte (v. 48).
Lucas parece querer dar-nos uma catequese do que representa esse “primeiro dia da
semana” para os cristãos, a experiência do encontro com o Ressuscitado, que se concretiza na
explicação ela palavra de Deus (“Não ardia em nós o nosso coração quando ele nos falava no
caminho e nos explicava as Escrituras?”), na eucarista (“reconheceram-no na fração do pão”)
e na comunidade reunida: os três sinais fundamentais pelos quais o Senhor se manifesta a nós,
que não tivemos a sorte, como a primeira geração, de vê-lo, ouvi-lo e tocá-lo em sua vida
mortal ou em suas aparições de ressuscitado.
Também João nos ajuda a entender o domingo a partir do que ocorreu no cenáculo no
“primeiro dia da semana” (Jo 20,19-29). De novo “aos oito dias”, portanto, também no
primeiro dia da semana, aparece-lhes Jesus. Aqui também encontramos os valores teológicos:
a reunião da comunidade, a presença do ressuscitado, a fé dos discípulos (a Tomé, ausente da
primeira vez, dizem: “Nós vimos o Senhor”, e logo o próprio Tomé exclamará: “Meu Senhor
e meu Deus”), a paz que o Senhor dá aos seus, a recordação da paixão (mostra-lhes suas
chagas), o envio missionário (“recebei o Espírito Santo”) e a tarefa da reconciliação (“a quem
perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados...”).
Em Trôade, Atos 20,7-12, Lucas fala-nos da reunião da comunidade com Paulo, “no
primeiro dia da semana, enquanto estávamos reunidos para partir o pão”. Relaciona-se esse
dia com a comunidade reunida e também com a eucaristia. Prossegue o relato com o longo
sermão de Paulo, o sono e a queda mortal do jovem, e algo que parece que Lucas também
quereria relacionar com a reunião eucarística do domingo: Paulo ressuscita o jovem, o que
enche de consolo a comunidade, em seguida celebra a eucaristia (“partiu o pão e comeu”).
Reunião, eucaristia, vida, consolo: traços de urna cena que não se narram sem intenção.
No fim da primeira carta aos Coríntios (1Cor 16,1-2) Paulo faz outra observação
interessante. Por ocasião da reunião semanal (“cada primeiro dia da semana”), os fiéis são
26
convidados a fazer uma coleta em favor dos santos, os cristãos pobres de Jerusalém. Aí a
caridade e a solidariedade fraterna relacionam-se com a celebração comunitária do domingo.
No Apocalipse (1,10) João diz que teve uma visão no “dia do Senhor” (“fui arrebatado pelo
espírito no dia do Senhor”, kyriaké hemera). É a primeira vez que se chama esse dia de “dia
do Senhor”, de dia pertencente ao Kyrios Jesus, o ressuscitado. É nesse dia precisamente que
o Espírito ilumina o apóstolo com visão dinâmica e pascal da história da Igreja.
Ainda na carta aos Hebreus (10,24-25) existe outra passagem que ilumina um dos
aspectos primordiais do domingo, porque o autor exorta os fiéis a não faltar à reunião
comunitária, para ajudar na esperança seus irmãos: “Velemos uns pelos outros, para nos
estimular à caridade e às boas obras. Não abandonemos nossas assembléias, como alguns
acostumaram-se a fazer, mas animemo-nos...” Já então constava a assistência à reunião
comunitária.
Esse conjunto de textos, que, aliás, não têm igual segurança quanto à sua exegese, nem
corresponde certamente à práxis unitária das diversas comunidades, sendo, contudo, o ponto
de partida para a compreensão que a Igreja foi amadurecendo ao longo dos séculos sobre os
valores do domingo.
O domingo, segundo essa perspectiva neotestamentária, é o dia em que celebramos a
vitória pascal de Jesus, o Senhor, e chama-se por isso “o dia do Senhor”; foi escolhido para a
reunião comunitária, em que se celebra sobretudo a fração do pão, ou a eucaristia; surge
também a proclamação da Palavra bíblica como parte da reunião e da experiência do encontro
com o Senhor; a recordação da paixão de Cristo (as chagas de suas mãos e de seu lado) indica
qual foi o caminho da vitória e de sua nova existência pascal; nesse dia que o Senhor
ressuscitado outorgou aos seus o dom de seu Espírito; e faz-se referência a outros valores da
comunidade: o perdão dos pecados, a caridade fraterna, a missão de testemunhas no meio do
mundo.
Todas essas direções partem do Senhor glorioso e concretizam-se em sua pessoa,
presente à sua comunidade, inundando-a de luz, verdade, consolo, vida, esperança e paz.
Ainda não se fala de descanso dominical, mas este dia já aparece claramente como a “Páscoa
semanal” em que a comunidade celebra a salvação de seu Senhor.
b) Os nomes do domingo
O dia que chamamos “domingo” foi descrito pelas primeiras gerações com vários
nomes, dos quais se deduzem as principais direções da compreensão que tinham dele.
Antes de tudo foi denominado de primeiro dia: “una sabbatorum”, “una sabbati”, o
primeiro dia depois do sábado que é o sétimo e o último dia da semana (cf. Mt 28,1; Mc 16,2;
Lc 24,1; Jo 20,1).
Esse nome deu ao domingo dupla ressonância: recorda-nos, por um lado, o começo da
criação do mundo, quando “o primeiro dia” Deus criou a luz (Gn 1,3-5), e por outro esse dia
ficou marcado pelo início da nova criação, a ressurreição de Jesus. Assim explicava são
Justino, no séc. II, a razão da escolha do domingo: “no primeiro dia, em que Deus,
transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e o dia também em que Jesus Cristo, nosso
Salvador, ressuscitou dentre os mortos” (Apologia I, 67).
Jesus, primogênito de toda a criação, inaugura a era definitiva da história, e o dia em
que ocorreu é assinalado com absoluta prioridade sobre os outros. Celebrando agora o
domingo, damos “sim” festivo à vida, ao mundo, à natureza cósmica, à obra maravilhosa de
Deus, e ao mesmo tempo damos “sim” ainda mais jubiloso à nova história que começou na
Páscoa de Jesus.
O mesmo Justino, que escreve a leitores pagãos, chama o domingo de dia do sol:
“celebramos uma reunião geral no dia do so1” (Apologia I, 67).
27
No sistema romano da semana, cada dia tinha o nome de um planeta. Eles conheciam
cinco, que junto com o sol e a lua deram nomes aos sete dias: Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter,
Vênus, Saturno e finalmente o Sol.
Esse nome não triunfou no uso cristão primitivo, ainda que pudesse perfeitamente ser
“batizado”, entendendo-se como referente o título do sol como referente a Jesus, a verdadeira
luz que enviou Deus à humanidade, o “Sol que vem do alto” (Lc 1,78).
Os escritores do primeiro século gostavam também de chamar o domingo de oitavo dia.
Os Padres, ao chamá-lo assim, queriam ressaltar que o dia sucede ao septenário, que o
transcende, que é o dia novo, incapaz de permanecer encerrado em nosso conceito de tempo.
O domingo torna-se imagem da marcha dinâmica rumo à escatologia, projetando nossa
história para adiante, como em espiral pela qual o tempo cristão de certa forma antecipa a
cada semana o reino definitivo.
“Oitavo dia” fala de plenitude e ao mesmo tempo de antecipação. Completa o
septenário da semana cósmica, mas tem também tom profético. J. Daniélou, que foi quem
mais estudou esse nome nos primeiros séculos, chega a afirmar que “a substituição do sétimo
dia pelo oitavo é a expressão simbólica e concreta a um só tempo da substituição do judaísmo
pelo cristianismo... A passagem da religião do sétimo dia à religião do oitavo devia
transformar-se no símbolo da passagem da lei ao evangelho”. São Jerônimo dirá que, ao se
cumprir o septenário da Lei judaica, passamos à “octôada”, ao oitavário da cristã (“septenario
numero expleto, postea per ogdoaden ad Evangelium scandimus”). São Justino explicava que
“o primeiro dia é também o oitavo, depois dos sete dias da semana, sem que por isso deixe de
ser o primeiro” (Diálogo com Trifão, 41,4).
Santo Agostinho apresenta repetidamente essa perspectiva: “na semana coincidem o
primeiro e o oitavo dia” (“idem primus qui octavus”). Transcorridos os sete dias, retorna-se ao
primeiro; concluído o sétimo dia, o Senhor sepultado, volta-se ao primeiro, o Senhor
ressuscitado. A ressurreição do Senhor significa para nós a promessa do dia eterno e a
consagração do domingo” (Sermão 169,3). “O dia oitavo e o primeiro identificam-se, mas o
primeiro desaparece quando chega o segundo. Aquele dia, ao invés, simbolizado pelo oitavo e
primeiro ao mesmo tempo, o domingo, é a eternidade primeira e também a última” (Sermão
260).
Para esse nome do “oitavo dia”, os Padres às vezes partiam da citação de João (“aos
oito dias” teve lugar outra aparição do Senhor: Jo 20,26); outras vezes do número de oito
pessoas salvas na arca de Noé (1Pd 3,20-21), ou então da circuncisão que se realizava no
oitavo dia, ou da semana inteira da Páscoa que, sobre todos os neófitos, concluíam no oitavo
dia deixando as vestes brancas. Mas o que sempre sublinhavam era esse aspecto de espera
escatológica e profecia da volta do Senhor e do dia definitivo e eterno do reino.
O nome mais especificamente cristão do domingo é o que encontramos no Apocalipse
(1,10): o dia senhorial ou o dia do Senhor (kyriaké hemera, dies dominica).
Com genitivo (dia “do Senhor”), a expressão significava no AT o dia de Iahweh, o dia
decisivo do juízo e da salvação. Com adjetivo (dia “senhorial”), expressa no NT a relação
com o Senhor ressuscitado. A mesma coisa ocorre com a expressão “ceia senhorial” (kiriakon
deipnon, cena dominica) que designa a eucaristia, intimamente relacionada com Jesus, que
com sua ressurreição manifestou em plenitude sua condição de Senhor/Kyrios glorioso.
Muito cedo o adjetivo (“senhorial”, “dominicus, dominica”) converter-se-á em
substantivo: dominica passou a designar o dia, ao passo que o neutro dominicum aplicou-se à
celebração eucarística do domingo. A Didaché afirma que a reunião acontece “cada domingo
do Senhor” (kata kyriaken tou Kyriou, in qualibet dominica Domini), ou seja, literalmente
“cada (dia) senhorial do Senhor”, com certo tom enfático de repetição.
Este nome, que refere diretamente o domingo ao Senhor ressuscitado, é o que vai ter
mais êxito e que se tornará a motivação não só da reunião eucarística nesse dia, mas de um
28
estilo cristão de vida. Santo Inácio de Antioquia, em fins do primeiro século ou começos do
segundo, diz aos cristãos de Magnésia que “os que abraçaram a nova esperança não mais
sabatizam, mas vivem segundo o domingo, no qual nasceu nossa vida esplendente por Ele e
por sua morte” (kata kyriaken zonte, secundum dominicam vivunt).
O domingo é dia cheio de sentido.
Chamá-lo de “primeiro dia” recorda-nos a criação e a redenção, e soa a gênese e
começo. Dizer que é “o oitavo dia” fala de marcha rumo à escatologia e ao domingo sem fim
da volta do Senhor. Mas o nome de “dia do Senhor” é o que nos assegura que a plenitude de
sua presença já está no “hoje” de nossa celebração e de nossa história. A recordação do
passado e profecia do futuro condensam-se na plenitude do presente, graças à presença
misteriosa do Senhor entre os seus. O domingo condensa em si mesmo toda a História da
salvação no “hoje” de cada semana.
c) Do sábado ao domingo
Não deixa de ser estranho que uma comunidade com raízes judaicas tão profundas não
tenha adotado o sábado como dia de culto, cristianizando-o com novo conteúdo cristológico,
como fizeram com a festa da Páscoa e Pentecostes.
Constata-se que no início havia comunidades cristãs em que coexistia o sábado com o
domingo: basta ver o comportamento de Jesus, dos apóstolos e de Paulo, com a observância
do sábado e a assistência ativa ao culto da sinagoga ou às orações do templo. Mas prevaleceu
logo o domingo, sobretudo nas comunidades de ambiente não-judaico.
Não foi simples transposição nem mera substituição de um dia por outro, por se ver que
não se podiam harmonizar suas características. Outra prova de que não se trata de mera
sucessão é que uma das características principais do sábado judaico, o descanso absoluto, não
passou ao domingo cristão.
Mas intui-se bem que já desde o princípio vai amadurecendo uma convicção que os
Padres logo expressarão mais explicitamente: o domingo é o “cumprimento” do sábado, que
se considera sua figura e profecia preparatória. Não se tratava de “imitar” o sábado, mas de
levá-lo à sua plenitude.
O domingo aparece com traços de novidade, ruptura e superação. Jesus surge no
evangelho como “senhor do sábado”: acumula sinais de poder messiânico precisamente neste
dia (cf. Jo 5,16-17 e 9,4). Mas logo ressuscita “no dia depois do sábado”, e a comunidade vê
este novo dia como marcado pela Páscoa de seu Senhor: o dia em que, ressuscitando dentre os
mortos, inaugura a nova criação. Assim como o templo foi superado e realizado mais
plenamente na pessoa de Jesus, assim também o sábado foi assumido e plenificado pelo
domingo.
Mas essa “superação” não deveria significar para os cristãos o esquecimento dos
grandes valores religiosos que o dia de sábado continha e continua contendo, os quais em
grande parte passaram a enriquecer o domingo cristão, pascal e cristologicamente
interpretado.
O sábado judaico, que os judeus continuam apreciando tanto quanto nós o domingo,
tem uma teologia muito rica e uma dinâmica de espiritualidade que seria interessante que nós,
os cristãos, aproveitássemos para potencializar todas as possibilidades de nosso domingo.
O sábado celebra o poder criador de Deus. O homem está satisfeito com seu trabalho e
avanços tecnológicos, mas o sábado lhe recorda que o dono e o criador do universo é Deus, e
que recebeu a incumbência de trabalhar como colaborador de Deus. O sábado dá ocasião ao
homem de meditar sobre si, sua vida e seu trabalho, e re-situar-se no posto que lhe
corresponde com referência ao cosmo e a Deus. E também lhe proporciona um dia de
encontro gozoso com a natureza e o cosmo como obra de Deus.
29
O sábado convida à festa e ao descanso. O homem tem direito ao trabalho, mas também
ao descanso. Deus descansou no sétimo dia. O homem imita a Deus em seu trabalho criador
mas também em seu descanso. O sábado judaico representa, desde há muitos séculos, reação
adequada ao excessivo desejo de trabalho e ganho, ou ao domínio do homem sobre o homem
(e inclusive sobre servos e animais). É dia em que se celebra de alguma maneira a liberdade
humana, participação na liberdade e no descanso do próprio Deus, diante do ritmo frenético
do trabalho e da escravidão da máquina. É a correção de toda desumanização.
O sábado também tem sentido social de fraternidade. Corrige de alguma maneira a
diferença entre homem e homem, entre rico e pobre, com trégua obrigatória na luta pela vida
e nas tensões que possam surgir entre o amo e o empregado. O homem é dono de si mesmo e
sem cessar tem de ir reconquistando a dignidade humana que lhe é própria. Deixam todos seu
trabalho, os donos e os filhos, os forasteiros e os criados, e até os animais. Na festa não há
horários, nem controle de trabalho, nem produção, nem horas extras. O descanso do sábado
convida à vida de família e à amizade.
O sábado é, sobretudo, o dia em que se atualiza a aliança pascal de Deus com seu
povo, aliança que ele realizou historicamente no êxodo do Egito e na doação da lei no Sinai.
O sábado é a recordação semanal de como Deus é Deus que salva e liberta (cf. Dt 5,14-15), o
sinal e o memorial da aliança.
Deus não só é Criador, mas também Libertador e Salvador: unem-se as duas dimensões
na celebração do sábado. Assim como o primeiro sábado foi “santificado” por Deus (cf. Gn
2,3; Ex 20,8-11), assim também o sábado semanal “santifica” todo o tempo e toda a história.
Não é de estranhar que esse dia seja instituição tão querida aos judeus e que estes o
considerem fato essencial de sua própria identidade. Chegam a dizer que não foi Israel que
conservou o sábado mas foi o sábado que conservou Israel acima das vicissitudes da história.
O domingo cristão leva à sua plenitude essas mesmas orientações do sábado judaico
pela novidade radical de seu conteúdo: Jesus Cristo, o Senhor ressuscitado. A abertura a Deus,
a alegria festiva: tudo isso se vê agora realizado não só na primeira criação cósmica ou na
primeira libertação pascal, que também se recordam e se celebram, mas sobretudo na nova
criação e na nova Páscoa de Jesus Cristo.
Outros autores do séc. II dão testemunho de seu apreço pelo domingo como o dia
oitavo, o dia do Senhor, o dia em que os cristãos vivem um estilo de vida centrado na Páscoa
de seu Senhor.
Diz Barnabé: “Celebramos como dia de festa alegre o oitavo dia, durante o qual Jesus
ressuscitou dentre os mortos e em que, depois de aparecer, subiu aos céus (Carta 15,9).
Santo Inácio de Antioquia: “Os que vivem segundo a antiga tradição voltam à nova
esperança, não guardando o sábado, mas o dia do Senhor (não “sabatizando”, mas vivendo
“segundo o domingo”), no qual nossa vida foi salva por Ele e por sua morte...” ( Ad Magn.
9,1).
São Justino, professor de filosofia, escrevendo ao imperador Antonino, descreve
amplamente a vida da comunidade cristã, por exemplo a eucaristia dominical:
A terminologia usada por são Justino é adequada ao entendimento dos romanos (“o dia
do sol”). É o dia da reunião comunitária e da celebração eucarística, que inclui a proclamação
e a escuta da palavra de Deus.
Nos séculos seguintes vamos encontrando testemunhos ainda mais explícitos. Afirma
Eusébio de Alexandria:
Ao longo dos vinte séculos de vida da Igreja, a partir do dado bíblico e da rica
sensibilidade das primeiras gerações, com as consequentes influências das diversas culturas e
tempos, chegamos à compreensão e à práxis atual do dia do Senhor.
Vale a pena examinar os textos mais importantes do magistério atual.
31
O Concílio Vaticano II (SC 106) definiu com linguagem nova o que é para nós o
domingo: A Igreja, por tradição apostólica que tem sua origem no próprio dia da ressurreição de
Cristo, celebra o mistério pascal cada oito dias (octava quaque die), no dia que se chama com razão
dia do Senhor ou domingo (dies Domini seu dies dominica). Neste dia, os fiéis devem reunir-se (in
unum convenire debent) a fim de que escutando a Palavra de Deus e participando da eucaristia
recordem a paixão, a ressurreição e a glória do Senhor Jesus e dêem graças a Deus que os fez
renascer à viva esperança pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (1Pd 1,3). Por isso o
domingo é a festa primordial (primordialis dies festus) que se deve apresentar e inculcar à piedade
dos fiéis de modo que seja também dia de alegria e de libertação do trabalho ( dies laetitiae et
vacationis ab opere). Não se lhe anteponham outras solenidades, a não ser que sejam de suma
importância, visto que o domingo é o fundamento e o núcleo de todo o ano litúrgico (fundamentum et
nucleus totius anni liturgici).
Aparece nesse texto uma descrição muito estudada das dimensões do domingo que
herdamos desde a primeira geração:
- o próprio fato de sua tradição a partir da comunidade apostólica, do primeiro dia da
primeira Páscoa
- o domingo celebra o mistério pascal a cada oito dias
- o nome que se prefere é o de “dia do Senhor”
- o dia da reunião dos fiéis da comunidade
- para escutar a palavra de Deus
- e celebrar a eucaristia
- e assim fazer memória do mistério da Páscoa do Senhor
- com a consequência de que o domingo seja para a comunidade cristã viva esperança,
festa primordial, dia de alegria e descanso
- mantendo assim sua prioridade sobre toda outra celebração
- porque é o fundamento e núcleo de todo o ano litúrgico.
O aspecto teológico fundamental do domingo, tanto nos testemunhos que vimos dos
primeiros séculos como nos atuais, consiste em ver nele o memorial sacramental da Páscoa do
Senhor: “a Igreja celebra o mistério pascal a cada oito dias no dia que é chamado com razão
de dia do Senhor ou domingo” (SC 106); “em cada semana o domingo rememora a
ressurreição do Senhor, que uma vez por ano, na grande solenidade da Páscoa, é celebrada
juntamente com sua santa paixão” (NU 1, citando SC 102); “hoje tua família celebra o
memorial do Senhor ressuscitado” (prefácio dominical X do missal).
É verdade que o Senhor ressuscitado está sempre presente à sua comunidade, mas desde
a primeira geração enfatiza-se sobretudo e de modo especial a força de sua presença no dia do
domingo, que se apresenta como o dia do encontro da comunidade cristã com seu Senhor.
Sobretudo nas aparições narradas por João (no primeiro dia da semana e, portanto, exatamente
aos oito dias), Jesus faz-se presente aos seus precisamente nesse dia.
Essa é a perspectiva radical do domingo, da qual derivam todas as outras: a cada oito
dias os cristãos celebram o memorial da vitória pascal de Jesus. Elevamos uma porção
semanal de nosso tempo à categoria de “sacramento da Páscoa do Senhor”, um dia que é
chamado com toda razão “dia do Senhor ressuscitado”. O memorial não é só uma recordação
de aniversário (“foi num dia corno hoje que o Senhor ressuscitou”), mas comporta a presença
do que se comemora: o Senhor glorioso continua presente com a mesma vivacidade com que
o fizera no dia da Páscoa, influindo em nossa história com a mesma força dinâmica como no
princípio. Inaugurou-se então a Páscoa: agora continua crescendo e desenvolvendo-se em e
por nós, sempre com a presença misteriosa do Senhor, sobretudo no domingo.
Seria talvez mais exato interpretar esse “dia do Senhor” não tanto como dia que
dedicamos a Jesus, mas como dia que ele dedica a nós. Assim como os judeus dizem de sua
Páscoa: “eis o dia que o Senhor fez: que Ele seja nossa felicidade e nossa alegria” (Sl 117),
assim também compreendemos nosso domingo como o dia em que a salvação “que Deus fez”,
a nova vida do ressuscitado, alcança-nos mais plenamente, como dom semanal que Deus nos
faz, como pausa que nos concede no correr do tempo. Cada domingo é ao mesmo tempo
memória da Páscoa inicial e profecia da Páscoa futura. Em cada domingo atualiza-se a
primeira e antecipa-se sacramentalmente a definitiva, enquanto a comunidade vai caminhando
e amadurecendo para o descanso eterno.
33
b) O dia da comunidade
c) A eucaristia do domingo
comunidade reunida faz a eucaristia, mas a eucaristia faz a Igreja e vai amadurecendo-a como
comunidade do Ressuscitado. “Nenhuma comunidade cristã edifica-se se não tem sua raiz e
eixo na celebração da santíssima eucaristia” (PO 6). A eucaristia dominical é privilegiada
realização histórica e visível do que a Igreja é como povo sacerdotal de Deus. É como a
regeneração constante de nossas raízes pascais, fazendo-nos assumir também a mesma atitude
de oblação de Jesus Cristo: “participando do sacrifício eucarístico, fonte e ápice de toda a vida
cristã, oferecem a Deus a vítima divina e oferecem-se a si mesmos juntamente com ela” (LG
11).
Mas, além disso, a eucaristia dominical lança-nos na missão que Jesus nos encomendou:
anunciar e realizar o projeto do evangelho em cada geração: “a renovação da aliança do
Senhor com os homens na eucaristia acende nos fiéis a caridade de Cristo que urge” (SC 10),
“a eucaristia deve conduzir tanto às várias obras de caridade e à ajuda mútua como à ação
missionária e às várias formas de testemunho cristão” (PO 6).
A eucaristia não é a única característica do domingo cristão, mas é a mais representativa
e a que encerra e expressa os valores mais importantes da comunidade cristã.
Quando uma comunidade, por falta de presbítero, tem de celebrar “só” a liturgia da
Palavra, ainda que termine na comunhão, tem de estar consciente de que, além de outros
valores que também nessas ocasiões se põem em evidência (a dignidade do povo cristão, a
centralidade do domingo, a força salvadora da Palavra, a importância da reunião, o papel
ministerial dos leigos) falta-lhe a mais importante, a celebração plena da eucaristia, para que
assim “a comunidade do Senhor” precisamente “no dia do Senhor” participe da “ceia do
Senhor”.
Nos primeiros séculos o domingo não se caracterizou pelo descanso do trabalho. Não só
porque socialmente era impossível por ser dia de trabalho como os demais, mas também
porque não deram importância a esse aspecto. Por mais que apreciassem o caráter pascal do
domingo, as primeiras gerações não relacionaram com ele o “descanso sabático” dos judeus,
nem quiseram que se relacionasse o terceiro mandamento com o domingo.
Mas já desde muito cedo os cristãos davam a esse dia um tom de celebração pascal, e
recomendava-se deixar os negócios temporais pelo menos para tornar possível a assistência da
eucaristia comunitária. Tertuliano (De oratione 23) convidava todos a deixar por algum tempo
as ocupações profanas (differentes negotia) para poder celebrar o dia do Senhor. E as
Constituições apostólicas (cap. 13) dizem: “não anteponhais vossos negócios temporais à
Palavra de Deus, mas, abandonando tudo no dia do Senhor, correi com diligência a vossas
igrejas”. Isso, porém, não implicava que no resto do dia não se trabalhasse.
O fato decisivo foi a iniciativa de Constantino, nos inícios do séc. IV: “estabeleceu que
um dia fosse especialmente destinado à oração, o dia que é o senhor e o primeiro dos dias,
porque é o dia do Senhor e da salvação, o dia ao qual o Senhor deu seu nome”, como escreve
Eusébio (Vida de Constantino, 4, 18). No ano de 321 veio o primeiro decreto: no domingo
(“venerabili die solis”) têm de descansar os juízes e as demais atividades civis. Curiosamente
não se proibiram os trabalhos do campo: um sinal a mais de que a origem do descanso
dominical não está em continuidade com o sabático, porque para os judeus as tarefas dos
camponeses também eram rigorosamente proibidas. Desde o princípio esse decreto foi
flexível: admitiam-se facilmente exceções. Se não se podia omitir trabalho sem prejuízo para
alguém, podia-se continuar (licet quod praetermissum noceret).
A decisão não parece ter despertado de imediato grande entusiasmo entre os pastores da
Igreja. Alguns consideraram-no providencial, porque permitia celebrar melhor o dia do
36
Senhor. Mas não se pode dizer que os Padres dos sécs. IV e V tenham demonstrado grande
apreço por esse aspecto do domingo.
Para santo Agostinho, por exemplo, o preceito do decálogo nesse sentido não tinha de
ser entendido ao pé da letra, como os outros. Os judeus, sim, tomaram esse descanso em
sentido material e não trabalhavam: “a ti se diz que observes o sábado espiritualmente, não
como os judeus, que o fazem com ócio corporal” (Sermão 9,3); “os judeus observam
servilmente o dia do sábado na folga... O cristão que se abstém de ações servis é quem
observa espiritualmente o sábado. O que é ação servil? O pecado” ( Com. a S. João 3,19). O
verdadeiro repouso do cristão é, antes de tudo, o do coração, o sabbatum cordis: “nós
descansamos das más obras; nosso sábado está dentro, no coração; nosso sábado é o gozo
do sossego de nossa esperança” (Enarr. in Ps 91,2). O descanso verdadeiro será a paz eterna
do céu, com Jesus Cristo, em Deus.
Mas, apesar dessa reticência dos Padres, não só se foi tornando cada vez mais geral o
descanso do trabalho no domingo, como também ocorreu nos sécs. V e VI uma evolução
muito notável rumo à sua interpretação rigorosa. Vários imperadores (Graciano, Valentiniano,
Teodósio) e os concílios regionais, sobretudo na França, foram detalhando e amplificando
esse repouso, fazendo-o obrigatório inclusive com penas civis se não se cumpria. O que tinha
começado com tom claramente pascal, como participação na vitória de Jesus Cristo, foi se
relacionando cada vez mais com o preceito do AT do descanso sabático: um processo de
“sabatização” que não fez muito bem ao dia do domingo. Em séculos seguintes, até nossos
dias, foi se entendendo o descanso dominical mais a partir do terceiro mandamento que a
partir da Páscoa de Jesus.
Em nossos dias, esse descanso constitui realidade social, verdadeira conquista para o
mundo trabalhador, descanso que envolve não só reparar as forças físicas depois da semana de
trabalho, mas também libertação psicológica, descanso que favorece a dignidade humana e a
regeneração da pessoa e seu equilíbrio interior.
Mas para nós, cristãos, é algo mais: esse descanso tem claro caráter pascal e é
entendido a partir do evento de Jesus ressuscitado. Se os judeus descansam no sábado em
memória do descanso de Deus criador e de sua libertação do Egito, nós nos abstemos de
nossos trabalhos corriqueiros no domingo porque é o dia da celebração pascal, a memória da
Páscoa de Jesus, nosso dia de festa por excelência. Sentimo-nos libertados por Jesus Cristo e
redimidos por sua Páscoa, “ressuscitamos” com ele. O festejar espontâneo no domingo é
como uma homenagem festiva que prestamos a Deus por nos ter salvo nesse dia.
O domingo é sinal de nossa liberdade humana e cristã. Ser libertados por Jesus em sua
Páscoa significa, entre outras coisas, que não somos escravos do trabalho, da máquina, da luta
contínua pela vida, mas donos de nós mesmos. O descansar no domingo, quando poderíamos
continuar “produzindo”, é gesto semanal de que não nos apetece ficar envoltos na idolatria do
material.
O concílio motiva esse descanso a partir da perspectiva da celebração pascal: “o
domingo é a festa primordial, que se deve apresentar e inculcar à piedade dos fiéis de modo
que seja também dia de alegria e libertação do trabalho” (SC 106).
O descanso dominical é gesto profético que fazemos cada semana para manifestar nossa
dignidade humana e cristã. Esse dia permite encontrar-nos com nosso próprio ser. Uma pessoa
que no domingo não vai ao trabalho, ainda que talvez lhe agradasse ir, está expressando que
em seu programa de vida há outros valores que também quer cultivar: sua família, por
exemplo, ou as diversas atividades culturais que a ajudam a realizar-se como pessoa, ou o
esporte, ou o encontro com os amigos, ou o contato com a natureza e, além disso, como
cristão, também a reunião comunitária, sobretudo a eucaristia. Também assim se vive o
encontro com o Senhor ressuscitado e se vive pascalmente “o dia do Senhor”. Dá à pessoa
serenidade e equilíbrio interior, de que todos têm necessidade no meio do ritmo vertiginoso a
37
que o mundo de hoje nos submete. Um domingo vivido assim ajuda-nos a redescobrir sem
cessar nossa relação com Deus, com a natureza, com a família, com a sociedade e com nosso
próprio ser.
Atualmente, não se põe tanta ênfase na casuística dos “trabalhos servis”, mas no espírito
pascal desse descanso. O Código (c. 1247) expressa-se assim: “no domingo e nos outros dias
de preceito os fiéis... se absterão de trabalhos e atividades que impeçam dar culto a Deus,
gozar da alegria própria do dia do Senhor, ou desfrutar o devido descanso da mente e do
corpo”. É linguagem nova, que parece pensar mais nos benefícios do descanso que nas faltas
que sua infração implicaria. O domingo tem em mira o culto a Deus, a alegria pascal, a
reunião comunitária e o descanso físico e psicológico do cristão.
e) A alegria do domingo
Não se trata só de deixar de trabalhar. É todo o dia do domingo que somos convidados a
viver em festa e em sentido pascal.
“O domingo é a festa primordial... dia de alegria e libertação do trabalho” (SC 106);
“no domingo abstenham-se os fiéis de trabalhos que impeçam... gozar da alegria própria do
dia do Senhor...” (CIC 1247).
Bastante antes de o domingo significar abstenção do trabalho, já era entendido pela
comunidade cristã como dia de alegria, alegria que consistia em celebrar comunitariamente a
eucaristia e viver o dia todo com tom pascal.
Tertuliano argumentava contra alguns que menosprezavam as festas pagãs: “os pagãos
têm uma festa anual, ao passo que para ti é festa a cada oito dias (tibi octavo quoque die)” (De
idol. 14). Para o Pseudo-Barnabé o domingo é “um dia todo ele passado em alegria” (15,9). As
Constituições apostólicas afirmam surpreendentemente: “o domingo é dia em que todos deveis
ficar alegres, porque quem se aflige em dia de domingo cometerá pecado” (20,11).
Por isso foi costume muito antigo que não se jejuasse nesse dia. Santo Ambrósio dava
a razão: “no domingo celebra-se a festa da ressurreição: não podemos jejuar nesse dia. Seria
não crer na ressurreição de Cristo se alguém quisesse jejuar no domingo” (Epist. 23). A
mesma motivação, e também o olhar escatológico voltado para a Páscoa futura, levou a não
rezar de joelhos no domingo. Essa postura era penitencial nessa época, e no domingo não
cabia essa atitude. Por exemplo, diz santo Agostinho: “todos os domingos oramos de pé
(stantes oramus), o que é sinal da ressurreição” (Epist. 55, 28). Santo Isidoro: “no dia do
Senhor oramos de pé como sinal da futura ressurreição: assim o faz toda a Igreja” (De eccl.
off. 1, 24). São Basílio une as duas motivações (a recordação e a espera da Páscoa): “De pé é
como fazemos a oração no primeiro dia da semana, mas nem todos sabem a razão disso. Não
é somente porque, ressuscitados com Cristo e devendo buscar as coisas do alto, tenhamos de
voltar à nossa memória, estando de pé quando rezamos, no dia consagrado à ressurreição,
mas porque aquele dia parece ser de alguma maneira a imagem do tempo vindouro” (Trat.
do Esp. santo 27).
O domingo é o dia pascal, com tudo o que comporta de alegria e vitória. A razão
profunda é que este Senhor Jesus continua vivo e está presente em nossa existência com
toda a sua força salvadora. Como os primeiros cristãos voltaram cheios de alegria depois da
ascensão (Lc 24,52s), assim também nós estamos convencidos da presença sempre viva de
Cristo e de que sua Páscoa é força dinâmica que continua transformando também nossa
história.
Nós, cristãos, fazemos da alegria do domingo um gesto profético no meio deste mundo:
é nosso ato de fé em Jesus Cristo e no que ele nos quer comunicar. Ter tempo para fazer festa e
viver com alegria consciente esse dia é demonstrar que entendemos nossa fé cristã não como
algo triste, mas como boa nova feita vida. Na verdade, o domingo é “o dia que o Senhor fez:
38
que Ele seja nossa felicidade e nossa alegria” (Sl 117,24). Mais que obra meritória de nossa
parte, é dom semanal que o Senhor ressuscitado nos faz, espaço de festa vivido cultualmente.
E, além disso, antecipação semanal da Páscoa futura e definitiva, que quer alimentar nossa
esperança.
O “dia do Senhor” não tem por que estar em inimizade com “o dia do homem”. Os
cristãos podem evangelizar sua alegria de fim de semana, dando-lhe seu sentido, pascal e
cristocêntrico. Dormir umas horas a mais, comer melhor, sair para passear a fim de gozar a
beleza do criado, passar mais horas com os amigos ou a família, dedicar tempo a nossos
hobbies culturais, musicais, desportivos, sair às montanhas ou à praia, junto com a
participação na eucaristia da comunidade cristã e em outras iniciativas próprias do domingo,
tudo isso constitui estilo pascal de viver o dia inteiro do domingo.
Ainda cabe colher, dos vários testemunhos antigos e modernos sobre o domingo, outras
riquezas que possam contribuir para dar-lhe em nossa vivência cor mais densa de Páscoa
semanal.
a) O domingo é o dia dos sacramentos. Não só a eucaristia adquire cor especial nesse
dia – ainda que já tenha bom sentido diariamente –, mas também o matrimônio ou a unção
comunitária dos enfermos ou os batismos e as primeiras comunhões.
Os sacramentos são os sinais privilegiados pelos quais o Senhor glorioso, a partir de sua
existência pascal, torna-se presente a nós e nos comunica sua graça, e por isso tem particular
relação com o dia pascal do domingo. A celebração do matrimônio, por exemplo, terá
significado adicional se ocorrer no domingo, o dia em que Jesus Cristo, tendo purificado sua
esposa a Igreja, ressuscitou para uma nova vida.
Vê-se claramente em particular a coerência dos sacramentos da iniciação com a
Páscoa e portanto com o domingo. Não é de estranhar que o ritual do batismo de crianças
diga que “para manifestar a índole pascal do batismo encarece-se a celebração desse
sacramento na vigília pascal ou no domingo, dia em que a Igreja comemora a ressurreição do
Senhor” (Prenotandos 46). O mesmo se poderia dizer da confirmação, que também se
vincula estreitamente com a Páscoa do Senhor e seu dom por excelência, o Espírito. Celebrar
esses sacramentos no domingo tem cunho de “exemplaridade simbólica”. Os sacramentos da
iniciação celebram precisamente nossa primeira participação e imersão na Páscoa de Jesus.
Por isso se explica também que o missal romano convide a que nos domingos, pelo menos
nos mais importantes do ano, a eucaristia não comece com ato penitencial, mas com a
recordação do batismo que é a aspersão.
O sacramento da reconciliação não parece ter muita relação com a festa dominical. Mas
se entendermos essa celebração não tanto como “penitencial” no sentido de tristeza mas de
“reconciliação” gozosa com o amor misericordioso de Deus, participando da vitória pascal de
Cristo sobre o pecado e o mal, veremos como esse sacramento pode ter sentido no encontro da
comunidade cristã com seu Senhor, o mesmo que, em sua aparição pascal a seus discípulos
(Jo 20,21s), confiou-lhes, como que o primeiro dom de seu Espírito, a faculdade de
perdoarem pecados. Celebrar no domingo (ou em sua preparação sabatina) o sacramento da
reconciliação é de alguma maneira mergulhar de cheio na Páscoa e deixar-se purificar pelo
Senhor, para que o encontro eucarístico se aproveite mais plenamente.
O domingo é o dia em que mais significativamente se leva a comunhão aos enfermos.
Ainda que seja precisamente o dia em que os ministros da comunidade têm mais trabalho, goza
de especial sentido o fato de a comunidade, lembrando-se de seus enfermos – pessoas que
durante anos frequentaram a assembleia e agora estão impedidas – e como prolongamento de
sua celebração, lhes envie, aproveitando se preciso o ministério extraordinário de leigos
39
autorizados, a comunhão. São Justino afirmava já no séc. II que os diáconos distribuíam aos
presentes “o pão e o vinho eucaristizados” e os levavam também aos ausentes (Apologia I,
65).
b) Além da eucaristia e dos eventuais sacramentos que se celebram, a comunidade
cristã teve longa tradição de outras convocações para a oração.
Antes de tudo a liturgia das horas, em suas horas básicas das laudes e das vésperas, às
quais são convidados particularmente os fiéis no domingo: “as horas principais, especialmente
as vésperas, celebrem-se comunitariamente na igreja nos domingos e festas mais solenes” (SC
100); “é sumamente conveniente que onde for possível se celebrem com a assistência do
povo, pelo menos as vésperas (do domingo)” (OGLH 207). O louvor eucarístico prolonga-se
assim no louvor dos salmos, hinos, orações e preces da oração oficial da Igreja, destinada
primordialmente para todo o povo, ainda que dentro dele os ordenados e os religiosos tenham
motivações especiais para celebrá-la.
Também cabem outras celebrações da palavra e outros modos de oração pessoal e
comunitária, também extralitúrgica, e não só onde falta o presbítero para poder celebrar a
eucaristia.
A adoração eucarística tem também especial sentido no domingo, prolongando a
meditação em torno do Senhor ressuscitado que se deu a nós como alimento eucarístico e
tirando desse gênero de oração cristã as evidentes vantagens que se podem derivar para nossa
espiritualidade e para o tom pascal de nossa existência.
Também se devem recordar aqui as celebrações dominicais na ausência do presbítero,
caso cada vez mais frequente não só em países de missão, mas também entre nós.
É todo um desafio para nossa geração o fato de que essas comunidades cheguem, apesar
de tudo, a celebrar o dia do Senhor o melhor que podem. O ideal continua sendo a celebração
eucarística, e a isso é preciso endereçar uma série de esforços. Mas às vezes não é possível e
então, sob a direção de leigos encarregados, a comunidade celebra a Palavra de Deus,
terminando sua oração com a comunidade.
c) Também as iniciativas de caridade podem contribuir para dar ao domingo cristão
sua verdadeira identidade.
A reunião comunitária e a celebração da eucaristia apontam não só para expressar a
fraternidade nesse momento, mas também para prolongar sua atitude e alimentá-la também
fora da celebração litúrgica. Prolongar a atitude de caridade fraterna fora da eucaristia é dar ao
domingo a plenitude do que este significa como dia do Senhor – o Senhor que se deu a si
mesmo pelos outros.
Paulo pedia aos cristãos de Corinto: “Para a coleta em favor dos santos... No primeiro
dia da semana, cada um porá de lado o que tiver conseguido poupar” (1Cor 16,1-2). São
Justino, em sua descrição da liturgia dominical, por duas vezes diz que os que dela participam
sentem-se obrigados a realizar iniciativas de caridade nesse dia: “nós, depois disso,
recordamos sempre essas coisas entre nós, e nós, que temos, socorremos a todos os
abandonados, e sempre estamos unidos uns aos outros... Os ricos, cada um segundo sua
vontade, dão o que lhes parece, e o que se reúne se põe à disposição do que preside e ele
socorre os órfãos e as viúvas” (Apologia I, 67).
O domingo, além da eucaristia, pede atitude de alegria e festa, mas também de caridade:
maior proximidade com relação às pessoas, aos familiares e amigos; um dia em que
cultivamos a fraternidade ou em que decidimos visitar algum parente ou conhecido doente ou
abandonado, um dia em que nos lembramos de detalhes humanos para com os demais, um dia
em que decidimos ser mais amáveis e otimistas: tudo entra nesse clima pascal do dia do
Senhor, em que nossa melhor homenagem é imitar sua atitude de entrega aos outros, que
culminou precisamente na Páscoa cuja memória é o domingo.
40
3 – O TRIDUO PASCAL
E. Aliaga
Os primeiros cristãos identificaram o mistério pascal com o de Jesus, mas ainda não
existe essa síntese nos escritos do NT. A expressão “mistério pascal” (paschale sacramentum)
não se encontra, com efeito, nos escritos neotestamentários; é, antes, fruto de progressivo
amadurecimento que começa a surgir nos albores do séc. II, tornando-se desde então
conquista definitiva para a teologia de todos os tempos. Os textos bíblicos constituem, na
verdade, base e premissa para se chegar à formulação da síntese agostiniana que salvaguarda
plenamente tanto o valor da “Páscoa-paixão” como o da “Páscoa-passagem”: contempla-se a
Páscoa como transitus per passionem. Levou-se, com a síntese do bispo de Hipona, a feliz
termo o processo da cristianização da Páscoa antiga, reconhecendo plenamente o caráter
pascal não só da imolação de Jesus, mas também de sua ressurreição: “paixão e ressurreição:
eis a Páscoa verdadeira”.
O Vaticano II recuperou em seu magistério essa síntese como dado adquirido pela fé da
Igreja que imerge suas raízes na palavra revelada e na reflexão dos primeiros séculos do
cristianismo. Essa visão teológica do mistério pascal reflete-se na liturgia renovada a partir
dos documentos conciliares, mas vai mais além porque deve animar toda a vida da Igreja,
nascida da Páscoa, não só para anunciá-la e celebrá-la ritualmente, mas também e sobretudo
para vivê-la.
Essa visão teológica do mistério pascal é indispensável, ademais, para compreender o
conteúdo e a estrutura da celebração anual da Páscoa. Da unidade desse mistério depende
também o sentido unitário da celebração do tríduo pascal. Esse tríduo é a própria realidade da
Páscoa do Senhor celebrada sacramentalmente em três dias, cujo centro de gravitação se acha
obviamente na vigília pascal com sua celebração eucarística. As Normas gerais sobre o ano
litúrgico precisam (n. 19), com efeito, que “o tríduo pascal da paixão e ressurreição do Senhor
tem seu início na missa da ‘Ceia do Senhor’, seu ápice na vigília pascal e seu termo nas
vésperas do domingo da ressurreição”.
1. Perspectivas histórico-pastorais
Na pesquisa sobre as origens litúrgicas cristãs não basta referir-se apenas a documentos
explícitos que obviamente são esporádicos; principalmente se consideramos que a tradição só
nos legou referências litúrgicas ocasionais. Esse princípio, que tem valor geral, aplica-se
também a tudo o que diz respeito à celebração pascal da Igreja primitiva. Por isso importa
muito fixar a atenção no ambiente espiritual em que se desenvolveram as comunidades
primitivas e no exato contexto histórico contemporâneo à redação dos escritos do Novo
Testamento.
a) A celebração da Páscoa: do AT ao NT
A Páscoa não era, no hebraísmo palestinense da época de Jesus, apenas uma festa anual
israelita como as outras, mas sublinhava-se seu peculiar valor escatológico de libertação
definitiva. Já nos profetas antigos percebe-se tanto o desejo veemente de aproximar a alegria
da libertação à própria Páscoa (Is 30,29) como a coincidência propositada da própria
libertação com o dia exato da Páscoa (Jr 31,7; 38,2).
Fica bem manifesto, de outro lado, que a promessa da libertação escatológica pascal se
vinculava com a aparição do Messias (= Cristo), fato que podemos comprovar no próprio rito
42
pascal hebreu, no Poema das quatro noites, e em toda a tradição midráshica da qual o poema
mencionado é um exemplo entre tantos.
Encontramos, como se sabe, a origem da celebração da Páscoa no AT e nomeadamente
em dois textos: Ex 12 e Dt 16. O primeiro apresenta-nos o sentido teológico da Páscoa,
sublinhando sobretudo a ação salvífica de Deus que “passa” para ferir os egípcios e salvar
Israel. Páscoa é “Deus que passa”. No segundo – assim como nos capítulos 13-14 do Êxodo –
sobressai, porém, mais “o homem salvo”, sua passagem da escravidão à liberdade.
Foram se afirmando na celebração dois aspectos do conteúdo do evento pascal: de um
lado, a imolação-comida do cordeiro e, de outro, a saída do Egito como passagem da
escravidão à liberdade. E o judaísmo palestinense vai se esforçar para manter e aprofundar a
um só tempo o conteúdo teológico da Páscoa e seu caráter ritual de sacrifício.
A celebração pascal inicialmente era feita no seio familiar e tinha como vítima uma
cabeça de gado miúdo, mas logo se passou a uma celebração realizada por Israel em um único
sacrifício cultual centralizado em Jerusalém tendo um cordeiro ou mesmo um touro como
vítima (cf. Dt 16).
No judaísmo da diáspora helenística, porém, uma vez que não se podia celebrar a
Páscoa em Jerusalém, desdobrou-se, por obra de Fílon de Alexandria, o aspecto moral e
espiritual da Páscoa que acabou significando quase exclusivamente a passagem da pessoa dos
vícios à virtude.
Agora, se, à luz dos fatos que mencionamos, voltarmos o olhar para as fontes cristãs –
como o são os próprios evangelhos – perceberemos facilmente que surge o evento Cristo (= o
Messias) intimamente ligado, e até mesmo em coincidência, com a celebração pascal. Dá-se,
com efeito, a coincidência cronológica de ter morrido o próprio Jesus durante a celebração da
festa pascal hebréia.
Nos sinóticos, tendo em conta as peculiaridades e diferenças próprias de cada
evangelista, salta à vista que a libertação prometida no Antigo Testamento acaba sendo a
realidade consumada na pessoa e ação de Jesus, a quem se apresenta como o acontecimento
por antonomásia do reino de Deus que tem seu marco expressivo entre o batismo e a subida a
Jerusalém para aí celebrar a Páscoa e morrer (Mt 26,2; Lc 22,15), ou, usando expressão mais
radical, para celebrar a Páscoa com sua morte.
Esse trânsito, que leva Jesus ao longo de três anos do rio Jordão a Jerusalém, lugar
privilegiado da celebração pascal, evidencia que ele viera para dar pleno cumprimento não
somente à “passagem” dos hebreus pelo mar Vermelho e pelo Jordão, mas também ao rito que
dela se celebrava em Jerusalém.
A centralidade pascal no cristianismo apostólico fica comprovada pelo evangelho de
João, em particular pela singular ênfase que concede às três últimas Páscoas de Jesus (Jo
2,13.23; 6,4; 13,1). A afirmação de Jo 1,19-28 com sua referência a Elias, ao profeta, a Cristo
e ao batismo que se devia ministrar nesses dias, introduz-nos num messianismo
declaradamente pascal, concebido como libertação do pecado por obra de Jesus e apresentado
na perspectiva pascal do cordeiro. Jesus identifica-se com o pão pascal (= verdadeiro maná)
que o Pai oferece para a vida eterna (6,31ss), e o que Jesus apresenta nesse pão é seu corpo
sacrificado “para que o mundo tenha a vida” (Jo 6,51) na linha da equivalência “pão-cordeiro”
presente no próprio rito pascal. E mais: vê-se a morte de Jesus na cruz, no dia e hora em que
no templo vizinho se ofereciam os cordeiros, como o verdadeiro cumprimento do sentido
profético desse rito (Jo 19,34-37).
Acrescentem-se a esse conjunto de sugestões evangélicas a referência explicitamente
pascal de 1Cor 5,7 e outro texto, não menos claro, de 1Pd 1,18-21, que interpreta a morte de
Cristo em chave pascal.
Com essas breves referências aos textos principais do Novo Testamento que tratam da
temática Cristo-Páscoa, queremos indicar a importância não só do evento pascal na Igreja
43
primitiva, mas também de sua atualização “ritual” na ceia do Senhor, celebrada precisamente
“em memória da morte do Senhor” (1Cor 11,23.26).
É óbvio que essa centralidade do evento pascal de Jesus conferiu à nova comunidade
dos cristãos a consciência de ser o verdadeiro Israel de Deus (Gl 6,16), no qual se cumpriu a
verdadeira libertação que o converteu em “o povo conquistado por Deus Pai” (1Pd 2,9); mas,
além disso e precisamente pela mesma razão, distingue-se a Igreja do resto do hebraísmo
levando-a a celebrar não mais a Páscoa “figurativa” (= recordação dos fatos do Êxodo), mas a
Páscoa da libertação que se realizou no Messias Jesus.
A perspectiva pascal, na qual se encerra e se resume todo o mistério de Cristo, fez que
a Igreja primitiva não conhecesse outra celebração senão a pascal. Somente em um segundo
momento o “mistério” de Cristo se desdobrará e se contemplará por meio de seus
“mistérios”, cada um em particular, obtendo-se assim visão pormenorizada do mistério
global de Jesus. Vamos assistir então, com o passar do tempo, à celebração de um ciclo
pascal propriamente dito, e outro ciclo natalício referente aos mistérios da encarnação vista
em seu momento inicial.
Não existem documentos explícitos que falem de celebracão pascal anual cristã no
tempo apostólico. Essa afirmação pode parecer estranha, mas não se deve esquecer que em
seus inícios o cristianismo continua parte integrante – e acha-se inclusive no mesmo sulco –
da tradição judaica, na qual a festa da Páscoa era fato estabelecido.
O livro dos Atos dos apóstolos fala-nos em duas ocasiões da Páscoa (12,3-5 e 20,6).
Mas tudo faz pensar que o autor não nos queria fornecer data de calendário, ainda que não
seja menos verdade que situa as duas cenas no quadro de uma festa notável e conhecida
inclusive por cristãos de proveniência pagã. Isso poderia fazer pensar em uma celebração
pascal cristã, se bem que ambientada, pela data e terminologia, em sua celebração judaica
homônima. Isso vale principalmente para o segundo caso, em que se indica que a viagem de
Paulo começa depois das festas dos Ázimos.
Paulo também nos oferece um texto bastante claro sobre a Páscoa cristã (1Cor 5,7-8).
Ele quer explicar o sentido da festa pascal, se bem que não contenha nenhuma indicação clara
de que Jesus substituiu o cordeiro pascal judaico. Pode-se afirmar, é claro, que deparamos
nessa passagem com um testemunho confiável da transição da celebração judaica para outra
de cunho claramente cristão. Pois, uma vez admitido que a imolação do cordeiro era
celebração anual, e que a imolação de Jesus substituíra a do cordeiro, era lógico admitir que a
imolação de Jesus também se celebrava anualmente. É justo desenvolver raciocínio paralelo
com referência à interpretação que Paulo faz da Páscoa referindo-a à imolação de Jesus, muito
embora no quadro da celebração hebréia.
Enfim, são sem dúvida muitos os autores que deduzem a existência de uma Páscoa
cristã nos tempos apostólicos a partir das narrativas da última ceia. Percebe-se nelas a
presença de fórmulas litúrgicas próprias da celebração eucarística em uso. Assinalamos
sobretudo o interesse manifesto em sublinhar que Cristo, longe de abolir a Páscoa, atribuiu-
lhe outro rito e outro conteúdo: o pão e o vinho, por um lado, e a salvação escatológica
mediante a morte de Jesus, por outro. Fica claro, portanto, que os cristãos da época
redacional sinótica já possuem sua Páscoa cristã própria.
A Páscoa cristã caracteriza-se nesse período por dois ou três dias de jejum que
naturalmente se concluía com a celebração de um culto litúrgico. O caráter penitencial da
44
Páscoa vincula-se com seu significado, ou seja, refere-se à paixão e morte do Senhor. Essa
dimensão não era estranha à própria Páscoa hebréia que se expressava com o simbolismo das
ervas silvestres e dos pães ázimos que se chamavam com razão de “pães da aflição” (Dt 16,3).
Assinale-se, todavia, que existe diversidade no cômputo dos dias de acordo com duas
correntes. A primeira corrente refere-se à célebre questão dos “quatuordecimanos”, de que
muitas vezes se tem idéia sumária e superficial, segundo a qual alguns, nomeadamente os
“quatuordecimanos”, celebravam a Páscoa na Sexta-Feira Santa (da mesma forma que os
hebreus que a celebravam no dia 14 de Nisan), sendo que os outros (a segunda corrente) a
celebravam no domingo seguinte. Estes inseriam a celebração da ressurreição no quadro da
Páscoa. Os primeiros, porém, somente se detinham na dimensão da paixão e morte.
Esse tipo de explicação é falso porque a Páscoa era, para uns e outros, sobretudo a
paixão do Senhor, e tanto uns como outros a concluíam com a celebração da ressurreição,
ainda que de maneira diversa.
a) A corrente oriental. Representam os “quatuordecimanos” um costume oriental que
parece ter suas origens no apóstolo João. Insistem, a exemplo de João em seu evangelho, no
dia, hora e modalidade da morte de Jesus: ele morreu na sexta-feira, às 3 horas da tarde, e
como o cordeiro, figura que se aplica explicitamente a Jesus: “não quebrareis os ossos do
cordeiro”. Firmando-se nesses detalhes, e convencidos de que a morte de Jesus substituíra a
Páscoa hebreia, celebravam a Páscoa cristã jejuando durante toda a sexta-feira e terminavam o
jejum com a celebração eucarística ao cair da tarde desse dia.
b) A corrente ocidental. Os outros cristãos, firmando-se em tradição mais geral e menos
restrita a umas poucas Igrejas da Ásia Menor, opunham que se devia manter o jejum durante
todo o dia do sábado e iniciar a celebração da eucaristia, ou seja, o sacramento da Páscoa,
propriamente nas primeiras horas do domingo, na hora em que se dera a ressurreição. Não era
concebível, argumentavam, que se fizesse festa rompendo o jejum enquanto o Senhor jazia
morto no sepulcro. Isso naturalmente implicava que não se celebrava a Páscoa (= a morte de
Jesus no sacramento) no mesmo dia e hora que Jesus morreu, ou seja, na Sexta-Feira Santa.
Tudo isso deu origem a uma longa controvérsia que atingiu a máxima virulência nos
tempos de Policarpo, oriental “quatuordecimano”, e do papa Aniceto. Aquele chegou até a
viajar a Roma por causa dessa questão, mas sem alcançar o consenso desejado. Mais tarde,
pelos fins do séc. II, o papa Vítor quis esclarecer a questão, e fez convocar sínodos locais por
toda a cristandade, inclusive da esfera da tradição joanina. Após inflamadas idas e vindas,
impôs-se o uso romano, ou seja, que só se devia celebrar no domingo o mistério da
ressurreição do Senhor, não se podendo interromper o jejum pascal até esse dia. Não obstante,
permaneceram as divergências no modo de calcular as incidências da data lunar de 14 de
Nisan no calendário solar. Foi preciso esperar ano de 325, quando o concílio de Nicéia
exortou todas as Igrejas a aceitar o costume alexandrino de celebrar a Páscoa no domingo
seguinte à lua cheia do equinócio da primavera, ou seja, entre 22 de março e 25 de abril.
Parece que se encontra no fundo de toda essa luta contra os “quatuordecimanos” a
vontade decidida dos ocidentais de empenhar todas suas forças para se desvincular dos
costumes judaicos.
O costume ocidental, mantido substanciamente durante séculos e novamente sancionado
hoje, de fazer da Sexta-Feira Santa e do sábado santo dias alitúrgicos, ou seja, sem celebração
da eucaristia, reproduz o sentido primitivo da Páscoa cristã que é a celebração penitencial da
morte do Senhor. É preciso, de mais a mais, assinalar que a celebração da eucaristia nas
primeiras horas do domingo põe em primeiro plano a unidade do mistério pascal que
compreende de modo indissolúvel a morte e a ressurreição de Jesus.
Observe-se, no entanto, que se vai romper paulatinamente essa unidade no decorrer dos
tempos, quando passa a prevalecer o desejo de ressaltar cada um dos aspectos do mistério em
45
particular. Toda essa diversificação teve início a partir do fim do séc.VI; assinale-se ainda que
esse processo é mais demorado no Oriente que no Ocidente.
A celebração dos dias santos sob a denominação global de “tríduo pascal” constituiu
novidade na linguagem oficial eclesiástica. Assim denomina, com efeito, o missal de Paulo VI
(1970) a celebração desses dias. Não é, porém, expressão que se tenha cunhado na
Antiguidade. Mas é certo que santo Ambrósio alude já no séc. IV a um “triduum sacrum”
referindo-se aos dias em que a Igreja celebra a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus.
Antes, referia-se Tertuliano à sexta-feira de Parasceve e ao domingo; Orígenes dizia que a
sexta-feira era dedicada à lembrança da paixão, o sábado à recordação da descida aos infernos
e o domingo à memória da ressurreição. Um pouco mais tarde, o próprio Agostinho evoca o
“sacratissimum triduum” do crucificado, morto e sepultado. E Leão Magno em muitas
ocasiões nos fala da “paschalis festivitas” e do “sacramentum paschale”.
E evidente que se vai generalizando a partir do séc. IV a tendência a historicizar os
relatos evangélicos, e ela se institucionaliza rapidamente em Jerusalém por razões óbvias.
Egéria descreve toda essa semana que se baseava em reconstrução fiel dos últimos dias da
vida terrena de Jesus. Esses ritos, levados a cabo nos mesmos lugares da paixão, tiveram
notável influência no enfoque das celebrações, inclusive fora de Jerusalém. Muito cedo,
porém, o que parecia enriquecimento terminou transformando-se em fator que não apenas
desagregava a unidade do mistério pascal mas também desviava a atenção do que lhe era
nuclear.
A ênfase dada à instituição da eucaristia na quinta-feira santa fez desviar a atenção do
verdadeiro ápice da Páscoa constituído pela eucaristia da vigília pascal. Além disso, a
memória de sua instituição assume pouco a pouco relevo tal que chega a romper
definitivamente a própria unidade do tríduo, que já não ficaria constituído por sexta-feira,
sábado e domingo, mas por Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo, porque na
contagem dos três dias santos entrará a celebração da instituição eucarística.
Com o passar do tempo dois ritos vão acrescentar-se à liturgia eucarística da quinta-
feita santa: a transladação solene da reserva eucarística e o despojo e desnudação dos altares.
O primeiro constitui um gesto prático que se desenrola sobretudo a partir dos sécs. XIII-XIV
em concomitância com a devoção “visiva” da hóstia consagrada e consiste em levar a lugar
determinado o pão eucarístico que sobrou. O segundo é gesto funcional, como o era ainda no
séc. VII, quando se adornava o altar com toalhas somente para a celebração da eucaristia; não
tardará a tornar-se um gesto simbólico, sendo às vezes dramatizado em memória da
desnudação de Jesus de suas vestes.
Finalmente, o “lava-pés” na quinta-feira santa – que já se atesta em meados do séc. V
em Jerusalém – difundiu-se por todo o Oriente e Ocidente. Assinale-se que esse rito não tinha
lugar no quadro da eucaristia. Inscreve-se, como é óbvio, na linha das “comemorações
históricas” dos acontecimentos de Jesus.
A Sexta-Feira Santa correu e corre o risco de se entender exclusivamente como dia da
recordação da morte sem referência à ressurreição de Jesus. A liturgia da Palavra no início
ocupava o primeiro plano da celebração juntamente com as orações, como na tradição
sinagogal. Depois, e a exemplo da “adoração da cruz” feita em Jerusalém, difundiu-se em
muitos lugares a entrada solene da cruz com a exclamação: “Eis a árvore da cruz...” A
analogia com a “luz de Cristo” da vigília pascal prestar-se-á para frisar os elementos mais
visíveis da morte e ressurreição. Com isso ficaria menos evidenciado o núcleo central: passar-
se-á facilmente da contemplação do mistério – fundada na liturgia da Palavra – a uma espécie
de representação visível, que acabará sobrepondo-se chegando à devoção popular da “via
46
O dia da quinta-feira santa faz parte dos tempos litúrgicos diferenciados: até a hora das
vésperas é o último dia da quaresma; com a “missa na Ceia do Senhor”, abre-se o tríduo
pascal; assim o estabelece a reforma do missal e do ano litúrgico decidida pelo Vaticano II.
Ficam então inalterados em seus termos os “três dias”, que nos apresentam os limites do
tempo em que se realizou o mistério redentor, sem incluir a quinta-feira santa. Esse dia
oferece-nos, com efeito, o momento sacramental do próprio mistério, ou seja, atualiza e torna
presente a realidade pascal ao longo de todos os séculos. Assim, ao passo que no “tríduo”
apresenta-se a nós a realidade do mistério pascal único e unitário em sua dimensão histórica, a
“quinta-feira santa” no-lo transmite em sua forma ritual permanente.
No rito da Ceia, que Jesus nos mandou celebrar em sua memória, deu-nos ele seu
sacrifício pascal. A Igreja repete a Ceia para perpetuar a Páscoa. Celebrar a Páscoa significa
fundamentalmente celebrar o rito eucarístico. Com efeito, para ser exatos, devemos considerar
quatro Páscoas na história da salvação: a do Senhor, ou seja, a passagem salvífica de Iahweh
na noite da saída do Egito; a dos judeus, ou seja, a celebração do memorial ou memória
objetiva realizada com o rito da ceia pascal (cf. Ex 12,14; 13,8-9); a de Jesus, ou seja, sua
imolação na cruz, sua “passagem deste mundo ao Pai” (Jo 13,1) por meio de sua paixão e
47
O motivo da ação de graças, que reflete o prefácio, é o sacerdócio eterno assim com
também o sacrifício de Jesus com seu sacramento: a própria eucaristia que perpetua seu
memorial até sua vinda. Ressalta-se assim o caráter sacramental, sacrificial e escatológico
próprio de toda celebração eucarística (cf. 1Cor 11,26).
Mais, porém, que os novos textos, há na reforma recente dois ritos que, sem ser
específicos da quinta-feira santa, podem modificar profundamente sua celebração: a
concelebração de todos os sacerdotes da paróquia ou da região, e a possibilidade oferecida aos
fiéis de comungar do cálice do Senhor, como fizeram os próprios apóstolos.
c) A adoração da eucaristia: o Monumento. Dado que a Sexta-Feira Santa foi – e
continua sendo – dia alitúrgico, sem celebração de missa, mas dia em que se comungava, era
preciso guardar na quinta-feira santa o Sacramento para o dia seguinte. No princípio não se
sentia essa necessidade, pois os fiéis costumavam levar para casa parte do Sacramento que
consumiam na Sexta-Feira Santa antes de quebrar o jejum. Mas depois decaiu o uso da
comunhão privada, começando-se então a conservar o Sacramento na Igreja – mais
exatamente na sacristia – para a comunhão de todos. O fato não se revestia de nenhum caráter
particular, e, portanto, a cerimônia de levar a eucaristia para a sacristia não era marcada por
solenidade especial, nem tampouco na Sexta-Feira Santa quando era levada ao altar.
Começa, todavia, a delinear-se nos inícios do séc. XI o costume de organizar, para essa
transladação do Sacramento, uma procissão com velas, incenso e acompanhamento de cantos;
o final da procissão era uma capela da Igreja ou anexa a ela. Começou-se a explicar esse rito
como “sepultura” do Senhor velada pelos cristãos. Muito cedo, porém, passou-se do
significado simbólico à representação realista: erigia-se na própria capela um túmulo e, em
alguns casos, punha-se a figura de Jesus deitado; além disso, em alguns lugares apareciam de
ambos os lados duas estátuas de soldados em guarda, imagens das santas mulheres e de são
João, e até mesmo motivos mortuários. Essa idéia da “sepultura” esteve de tal modo arraigada
em alguns lugares, que não era raro guardar duas hóstias consagradas: uma para consumir na
Sexta-Feira Santa e a outra para mantê-la “sepultada” todo o sábado santo e fazê-la
“ressuscitar” na celebração eucarística da ressurreição.
Na reforma atual a Igreja quer que se evite toda ideia de sepulcro e se faça a adoração
da eucaristia somente até a meia-noite em ação de graças pelos dons concedidos pelo Senhor,
devendo-se depois dar lugar ao pensamento da paixão, logo que começar a meia-noite, ou
seja, a Sexta-Feira Santa. Essa disposição é certamente elogiável como reação à falsa ideia do
“sepulcro” em que estaria encerrado o corpo de Jesus. Mas diga-se também que a própria
disposição ainda repousa sobre uma compreensão distorcida da eucaristia. Com efeito, na
primeira parte da adoração, caracterizada por luzes e flores, enfatiza-se justamente o dom do
Senhor, mas pode-se não perceber que se trata do “dom da Páscoa”, ou seja, do “dom do
sacrifício pascal”, que é precisamente o mistério da morte de Jesus. A quinta-feira santa não é
só dia do “corpo do Senhor”, mas também dia do “corpo do Senhor oferecido e de seu sangue
derramado em sacrifício”; é, na verdade, dia do memorial de sua morte pascal.
À meia-noite começa o “tríduo” da Páscoa de Jesus, tríduo que quer salientar a
realização temporal da redenção operada pelo Senhor.
A Sexta-Feira Santa, que a Igreja celebra hoje, é uma composição de vários elementos
de estilo e procedência bem diversos. A Igreja não vê esse dia como de pranto e luto, mas
como dia de amorosa contemplação do sacrifício cruento de Jesus, fonte de nossa salvação.
Ela não faz na Sexta-Feira Santa um funeral, mas celebra a morte vitoriosa do Senhor. Por
isso, fala-se de paixão “beata” e “gloriosa”.
49
b) A adoração da cruz
50
c) O rito da comunhão
d) o jejum pascal
Como sinal exterior da participação interior do sacrifício de Jesus (2Cor 4,11), e como
sinal de que chegamos aos dias em que nos tiraram o Esposo (cf. Lc 5,33-35), a Sexta-Feira
Santa é dia de jejum.
A tradição do jejum pascal é antiquíssima. Tertuliano e Hipólito atestam que em Roma
a celebração anual de Páscoa começava com o jejum da Sexta-Feira Santa que se prolongava
51
por todo o sábado até a celebração da eucaristia da vigília pascal na noite do sábado para o
domingo. A duração de jejum nessa época restringia-se no tempo a dois dias somente, mas
entendia-se e praticava-se de forma muito rigorosa.
A constituição sobre a liturgia do Vaticano II (SC 110) ratifica a prática primitiva para a
Sexta-Feira Santa e aconselha-a para o sábado. Esse jejum chama-se pascal para que nos faça
perceber o “transitus”, a passagem da paixão à alegria da ressurreição. Compreende-se, por
isso, que não se tenha o jejum pascal como elemento secundário mas como parte integrante da
celebração do tríduo sacro.
O sábado santo foi sempre – pelo menos desde o séc. II, ou seja, desde a época dos
“quatuordecimanos” – dia de jejum pleno e, portanto, dia alitúrgico. Terminava com uma
função de vigília que desembocava na madrugada do domingo com a celebração da eucaristia.
No começo o rito não se diferenciava em nada na prática dos outros sábados ordinários,
tendo em vista que a vigília pascal foi inicialmente a primeira celebração litúrgica cristã. É
nesse sentido que se deve tomar a expressão de santo Agostinho em que ele diz que “a Noite
santa é a mãe de todas as vigílias”. Percebem-se, não obstante, algumas peculiaridades. Não
se tardou, com efeito, a venerar nesse dia o repouso de Jesus no sepulcro e sua descida aos
infernos, assim como também seu misterioso encontro com todos os que esperavam que se
abrissem as portas do céu, como indica a carta do apóstolo Pedro (1Pd 3,19-20; 4,6). Por tudo
isso dizemos que muito cedo se vai abrindo passagem à consideração desse dia como dia de
paz e espera.
Antigamente, tanto em Roma como no Oriente, dedicava-se o dia ao último dos
escrutínios dos “electi” que receberiam o batismo na noite seguinte. Sabemos pela Traditio
apostolica que, desde tempos pré-nicenos, revestia-se de particular importância a reunião
alitúrgica em que os batizandos eleitos realizavam os atos definitivos pelos quais expressavam
sua separação da idolatria e simultânea adesão a Jesus. Ninguém podia faltar. Em Roma, o
próprio papa presidia a função no Laterano.
O Ordo XI, que reflete os usos romanos do séc. VI, descreve-nos os ritos que se faziam
nessa assembleia matutina (das 9 às 12 horas) com a participação inclusive dos fiéis: o último
exorcismo com o rito do éffeta; a unção com o óleo dos catecúmenos, a tríplice renúncia a
Satanás; a redditio symboli, ou seja, a recitação do credo apostólico que fora “entregue” aos
catecúmenos no escrutínio do sábado “in mediana”.
Não se esqueça que inclusive atualmente, em que há adultos para batizar, observam-se
as indicações do Ritual da iniciação cristã de adultos, que recomenda fazer coincidir o tempo
da purificação e da iluminação com a quaresma, e a “mistagogia” com o tempo pascal, de
forma que toda a iniciação revele claramente seu caráter pascal.
Sendo assim, os ritos da iniciação cristã já não ficam na mera recordação histórica, mas
são também realidade atual que tanto a pastoral geral como a litúrgica em particular deveriam
levar adequadamente em conta. O Vaticano II reatualizou o catecumenato, e o rito da
iniciação cristã de adultos é seu fruto mais precioso.
Além disso, a Igreja jamais quis estabelecer ofício particular para celebrar o fato da
sepultura de Jesus. Infelizmente a antecipação progressiva da vigília pascal acabaria
eliminando o silêncio solene do sábado, perdendo assim esse dia seu significado primitivo.
Finalmente, em 1642, Urbano VIII eliminou os dias santos da lista das festas de preceito.
Voltamos a nos encontrar no missal de Paulo VI, de 1970, com o restabelecimento dos
elementos mais nobres da história da celebração cristã da vigília pasca1. O sábado santo
apresenta-se da maneira seguinte: nesse dia “a Igreja permanece ao lado do sepulcro do
52
Senhor, meditando sua paixão e morte, abstendo-se da missa (a mesa fica sem toalhas e
ornamentos) até a solene vigília ou espera noturna da ressurreição”.
Em vista de esse dia ser alitúrgico, o missal se limita a recordar esse fato, convocando
ao mesmo tempo para a liturgia das horas, diversamente da Igreja antiga que não se
congregava nesse dia nem sequer para a oração.
Poucas celebrações litúrgicas são tão ricas de conteúdo e simbolismo como a da vigília
pascal. O núcleo de todo o ano litúrgico, de que nasce qualquer outra celebração, é essa vigília
que culmina na oferenda do sacrifício pascal de Cristo. Nessa noite santa a Igreja celebra, do
modo sacramental mais pleno, a obra da redenção e da perfeita glorificação de Deus como
memória, presença e espera.
O ritual romano da vigília pascal foi enriquecendo-se, com o passar do tempo, com
elementos de origem não-romana. Sempre foi, todavia, celebração de vigília declaradamente
noturna, na qual adquirem pleno sentido os diversos elementos simbólicos que a integram.
O missal de Paulo VI recorda que, “segundo antiquíssima tradição, essa é uma noite de
vigília em honra do Senhor (Ex 12,42). Os fiéis, tal como recomenda o evangelho (Lc
12,35ss), devem assemelhar-se aos servos que, com lamparinas acesas nas mãos, esperam o
retorno do seu Senhor, para que quando chegar os encontre em vigília e os convide a sentar-se
à sua mesa”.
Nà Páscoa judaica já se fazia presente a motivação da vigília em que se celebrava o rito
pascal (Ex 12,42): tratava-se de memória eficaz dos eventos da salvação que se celebrava
durante uma vigília. Nos textos do judaísmo contemporâneo de Jesus, a teologia da Páscoa
acentuava também o aspecto escatológico. No Poema das quatro noites, a descrição da “quarta
noite” sanciona a tradição que fora se desenvolvendo no judaísmo pós-exílio e que estava
muito viva na época do Novo Testamento, segundo a qual aconteceriam a aparição do
Messias e a inauguração do mundo novo em noite de Páscoa. Advirtamos, além disso, que a
vigília pascal dos judeus – após a destruição do templo – terminava com um “adeus”
carregado de esperança temporal: No ano que vem, em Jerusalém!
Na Páscoa cristã não se muda a estrutura teológica da vigília pascal (memória-presença-
espera), sendo ela antes enriquecida com a “realidade” de Cristo, o crucificado-ressuscitado:
ele é “a Páscoa de nossa salvação”. Os cristãos “velam” na noite de Páscoa para celebrar toda
a economia salvífica com visão unitária e contínua da criação à parusia. A memória-presença
do mistério de Cristo – que com a ressurreição vence a morte – torna-se espera de acordo com
a exortação evangélica: “Permanecei em trajes de trabalho e guardai vossas lâmpadas acesas”
(Lc 12,35-36).
Desde o séc. II o conteúdo do ano litúrgico e teológico da Páscoa cristã tem caráter
abertamente comemorativo e soteriológico. Agostinho, em memorável sermão para a noite de
Páscoa, resumiu toda a tradição bíblica e patrística sobre a vigília como “memória e espera”.
A esperança da Igreja – na noite pascal – funda-se nas promessas de Deus e reaviva-se pelas
leituras dessas promessas na liturgia da Palavra, pelos textos que falam de Abraão, do êxodo e
da terra prometida, antes de se fazer o anúncio da ressurreição.
A vigília alcança, nesse clima, valor simbólico de espera da vinda do Senhor de maneira
típica que o cristão deve distinguir. Funda-se no passado – que se torna presente
sacramentalmente – a promessa do futuro. Dessa realidade viva e atual nasce a alegria pascal.
O sentido mais autêntico dessa vigflia é o fato de estarmos vivendo a Páscoa que celebramos
no rito; celebramo-la para que opere cada vez mais profundamente em nós a espera da Páscoa
eterna (1Cor 5,7; Rm 12,12-24).
53
A primeira parte da vigília celebra a luz do mundo que é Jesus na glória de sua
ressurreição (cf. Jo 1,9; 9,12; 12,35-36). Também nós, que participamos de seu mistério pelos
sacramentos da iniciação cristã, somos, por nossa vez, “luz no Senhor” (Ef 5,8).
Esse rito deve criar tal clima de júbilo que invada a celebração inteira. Mas nesse rito
inicial (e advirta-se que não passa de “rito inicial”, razão pela qual não deve ser
supervalorizado) fixa-se a atenção não na bênção do fogo em si mesma, mas no significado
pascal da luz que surge nas trevas. O sinal principal é o círio da Páscoa.
O uso da bênção do fogo é de origem irlandesa, sendo talvez resultado de
cristianização de uso pagão. No séc. VIII, entrou na Alemanha, como sabemos, por consulta
de são Bonifácio ao papa Zacarias (741-752), que atesta que em Roma o “fogo novo se toma
das lamparinas grandes que se conservam acesas na parte mais escondida de Igreja”.
Praticamente, para Roma, o “fogo novo” não será outra coisa senão a “luz” do círio pascal, e
não um rito especial do fogo. Temos de esperar o séc. XII para encontrar atestado esse rito,
mas ainda então predomina a dimensão folclórico-religiosa que já tinha nos países do norte,
visto que o povo tomava brasas desse fogo e as levava às próprias casas para acender de
novo o fogo que antes se apagara.
A reforma da semana santa – levada a cabo sob o pontificado de Pio XII (1955) –
restabelece esse uso incorporando-o plenamente à celebração dessa solene vigília.
Reunido o povo fora do templo, ao redor do fogo, o presidente da assembleia explica o
sentido de toda a vigília: trata-se de ficar em vigília orando e reviver a Páscoa do Senhor na
escuta da palavra e na participação dos sacramentos; e Jesus Cristo ressuscitado confirmará a
esperança de participar de sua vitória gloriosa sobre a morte e de viver com ele em Deus.
O fogo benze e acende o círio pascal que evoca a luz de Jesus que ressuscita em sua
glória. A procissão até o altar é presidida pelo diácono, que carrega o círio aceso e canta por
três vezes: “A luz de Cristo”, a que o povo responde: “Demos graças a Deus”. Essa procissão
evoca o caminhar do povo hebreu no deserto à luz da coluna de fogo, mas evoca sobretudo
palavras do próprio Jesus: “Eu sou a luz do mundo, aquele que vem em meu seguimento não
andará nas trevas; ele terá a luz que conduz à vida” (Jo 8,12). o sentido pascal e escatológico
dessa procissão aparece com evidência: somos o novo povo de Deus nascido da Páscoa;
peregrinos, seguimos Jesus ressuscitado – a um só tempo nossa cabeça e luz do mundo –
através do deserto da vida presente até a pátria celeste.
Coloca-se o círio no presbitério, e ele domina a assembleia. Então o diácono proclama
solenemente – na alegria da luz de Jesus ressuscitado as festas pascais.
O “pregão pascal” é o novo nome, que de novo se retomou da Antiguidade, do rito
chamado “bênção do círio”. Em Roma estava em relação com o “novo fogo”, ou seja,
acendia-se como “luz renovada” das lamparinas deixadas acesas na quinta-feira anterior. Mas
logo aparecem testemunhos de uma “laus cerei” entre os autores ocidentais.
Não obstante, o primeiro documento litúrgico, que nos informa da existência do rito em
Roma, é o Sacramentário gelasiano, ou seja, um documento dos sécs. VII-VIII que,
entretanto, não alude ao louvor ao círio.
54
c) A liturgia batismal
Parece que não existe testemunho de rito batismal na noite da Páscoa que nos leve além
do séc. III; mas a própria universalidade do rito poderia levar a concluir que se trata de
tradição inclusive apostólica.
Encontramos profunda e sugestiva teologia batismal-pascal fundamentada inicialmente
no texto paulino que apresenta o batismo como imersão na morte de Cristo (Rm 6,3-4).
Todavia, Paulo, prolongando o paralelismo, contempla também a outra dimensão, falando de
ressuscitar à vida juntamente com Jesus. O aprofundamento nos vários aspectos da teologia
paulina ocorreu progressivamente. Teremos de esperar as catequeses mistagógicas de Cirilo de
Jerusalém, de Gregório de Nazianza e de Ambrósio de Milão para deparar com um
desenvolvimento harmonioso dessa teologia. Os autores do séc. II ainda ignoram a tipologia
batismal fundada na relação: passagem pelo mar Vermelho e morte-ressurreição de Jesus;
estão mais atentos a outra tipologia batismal, a do “batismo-banho nupcial” (cf. Ef 5,25.27), na
qual – sobretudo os “quatuordecimanos” – encontram perfeita convergência com João quando
este apresenta Jesus crucificado de cujo lado manam sangue e água, banho purificador da
Igreja (Jo 19,34). Esse simbolismo, diversamente do outro, põe mais em relevo o caráter
eclesial do batismo, sacramento das bodas com Cristo. Portanto, nas catequeses mais antigas
(séc. II), o batismo é sacramento “pascal” porque é o sacramento da ressurreição. A catequese
pascal e a batismal sem dúvida levam os sinais de clara evolução que se verificou no decorrer
dos tempos da Igreja. E não se esqueça que – nas primeiras catequeses – o binômio batismo-
paixão se associava com frequência ao outro batismo-martírio, a ponto de se denominarem
ambos “batismos”: batismo de água e batismo de sangue.
No missal de Paulo VI, e com a liturgia batismal, desloca-se a atenção da assembleia
para a fonte batismal como o lugar onde se faz nossa a Páscoa de Jesus no sinal da água e na
55
d) A liturgia eucarística
Eis-nos no cerne da vigília pascal: são os primeiros momentos do grande dia esperado,
o dia que fez o Senhor, a alvorada do dia que contemplou Jesus ressuscitado. Tudo o que a
Igreja realiza durante todo o ano litúrgico converge para essa eucaristia pascal e parte dela.
A iniciação cristã, ou seja, a participação nos mistérios – desde os primeiros séculos
cristãos –, começava com o batismo e a confirmação, e completava-se com a oferenda do
sacrifício. Revestidos com as vestes brancas, com o círio aceso na mão, os neófitos entravam
na Igreja cantando o salmo 42, cujo estribilho era precisamente: “Aproximar-me-ei do altar de
Deus.” Era a primeira vez que os eleitos participavam da liturgia eucarística. Mas
participavam ainda não instruídos sobre seu pleno sentido, o que lhes era explicado na semana
seguinte, chamada “in albis”. Sua participação ficava, em consequência, um tanto restrita:
nem sequer na oblação que, em seu lugar, faziam seus padrinhos; recitavam-se, porém, seus
nomes na própria celebração da eucaristia antes da consagração.
Antigamente, a missa papal começava com o ofertório, mas já nos sécs. IV-V começava
com o glória e as leituras. Ainda hoje essa eucaristia distingue-se por seu caráter arcaico: não
se canta a antífona introdutória, nem o credo, nem a antífona do ofertório, o cordeiro de Deus,
a antífona da comunhão, nem se dá o beijo da paz. Mas na última reforma se restabeleceram
alguns desses elementos. Os medievais tentaram encontrar razões simbólicas para essas
omissões. Na verdade não são mais que vestígios do rito eucarístico antes de se começarem a
introduzir nos sécs. IV-V semelhantes cantos.
56
Com o canto repetido do “aleluia”, o presidente despede o povo e expressa sua alegria e
júbilo. E concluímos com Odo Casel: “Este é o momento em que nasceu a verdadeira
eucaristia: a Páscoa! Por isso o mistério da noite pascal culmina na eucaristia, que já não
oferece Jesus sozinho, mas em companhia de sua ekklesia. Ela entra com ele em sua eucaristia,
e essa eucaristia inaugura a grande festa de Pentecostes, dos cinquenta dias nos quais a
ekklesia libertada dá graças ininterruptas ao Pai com seu Filho”.
4 – A QUINQUAGESIMA PASCAL
J. Bellavista
1. Evolução histórica
Pentecostes. Um processo evolutivo, em que se nota a influência do livro dos Atos dos
Apóstolos, levará pouco a pouco a festejar com ênfase particular o dia da conclusão desses
cinquenta dias como o dia da vinda do Espírito Santo. No séc. IV, Igrejas como as de
Constantinopla, de Roma, de Milão e da Península Ibérica começam a celebrar esse aspecto
da salvação pascal.
A resposta do papa Sirício à carta do bispo Himério de Tarragona no ano de 385 seria,
se fosse clara, o primeiro documento em que se constaria que a Igreja de Roma começa a
celebrar o dia quinquagésimo como especial. A carta diz, com efeito, que para essa Igreja só
constituem dias de batismo o domingo de Páscoa e seu Pentecostes. Não fica inteiramente
claro no texto se Pentecostes é somente um dia ou o período de cinquenta dias, o que,
porém, já o é em um escrito contemporâneo. O texto, de autêntico sabor pascal, permite-nos
saber que a Igreja de Roma ainda celebra a quinquagésima visto que Páscoa e Pentecostes
constituem um princípio e um termo, que adquire significado especial pela vinda do Espírito
Santo. O concílio de Elvira em terras hispânicas apresenta por volta do ano 300 testemunho
semelhante.
Os três primeiros sermões do Papa Leão († 461) para esse dia pronunciam-se ainda no
quadro da quinquagésima, mas se precisa que efetivamente se passaram cinquenta dias depois
da Páscoa e dez depois da ascensão. O mesmo acontece na Hipona de santo Agostinho. Da
mesma forma em Roma, que celebra Pentecostes comemorando a vinda do Espírito Santo com
singular relevo. Aos testemunhos ocidentais de Leão e Agostinho podemos acrescentar para o
Oriente os de Gregório Niceno e de João Crisóstomo para os quais o dia quinquagésimo de
Pentecostes também se caracteriza como a festa da vinda do Espírito Santo. Não resta dúvida
de que, no fim do séc. V ou no séc. VI para todas as Igrejas, Pentecostes perdera seu caráter de
conclusão da Páscoa, passando a ser uma grande festa do ano litúrgico, mas não sem
vacilações como se nos torna claro pelo nascimento da festa da ascensão.
A ascensão. Ainda que a unidade indiferenciada da quinquagésima nos três primeiros
séculos tenha resistido bem, ia ganhando terreno a quadragésima para impor-se como
aniversário da ascensão, como um pouco antes o fizera Pentecostes com relação à vinda do
Paráclito. Em um e outro caso, os primeiros ensaios de celebração autônoma de início não
foram contrários à unidade do spatio Pentecostes.
Sabemos, pelo relato da peregrina Egéria das últimas décadas do séc. IV, que não havia
rito especial da ascensão no quadragésimo dia. Lia-se o relato da ascensão, segundo a letra
dos Atos dos Apóstolos ou do evangelho, no dia quinquagésimo no lugar em que ocorrera o
acontecimento salvador. Anteriormente, Eusébio de Cesaréia, depois do ano de 332, conhece
uma festa semelhante à da ascensão em Pentecostes. Ele escreve no De solemnitate paschali
que Pentecostes é o dia soleníssimo em que Cristo foi recebido no céu, resultando assim que a
ascensão seja o “selo” da quinquagésima pascal. Por singular que pareça a ideia, não faltam
outros testemunhos orientais para corroborá-la, como o apócrifo Doctrina apostolorum ou um
lecionário siríaco do séc. V. Se bem que difícil de explicar, parece que não se pode negar que
Máximo de Turim conhecia em pleno séc. V a prática oriental da ascensão no dia
quinquagésimo, como se deduz do conteúdo de seus sermões para esse dia.
A evolução começou não esquecendo dentro de Pentecostes o dia quadragésimo, ainda
que não se tenha celebrado em uma primeira fase como festa própria. Assim foi até
aproximadamente meados do séc. IV. Daí era curto o caminho para uma festa autônoma. Já
60
Os elementos para a reflexão teológica sobre o período dos cinquenta dias partem
necessariamente dos dados bíblicos em que se funda e da própria celebração da Igreja tanto de
hoje como de ontem. Para isso destacaremos em primeiro lugar alguns aspectos da tradição
bíblica e patrística, depois estudaremos a própria celebração litúrgica.
Este não é o lugar para repetir a teologia litúrgica da Páscoa. Limitar-nos-emos ao
tempo pascal, objeto de nossa exposição.
Os dados que a evolução histórica do Pentecostes judaico nos oferece podem ser
consideradas pelo menos referências que de alguma maneira a reflexão cristã que recebeu sua
influência deve levar em conta.
A progressiva espiritualização da festa configurará uma celebração ao fim de sete
semanas, contando cinquenta dias depois da Páscoa até o dia seguinte ao sétimo, segundo Lv
23,15-16. O calendário litúrgico que contém o capítulo 23, incluído na seção do código de
santidade de origem sacerdotal, é, uma espiritualização do tempo, elaborada depois do exílio,
em que se volta o interesse menos para o tempo da colheita que para o espaço de cinquenta
dias compreendido entre Páscoa e Pentecostes. Os laboriosos cálculos para fixar o calendário
deram por resultado que a festa das semanas para os fariseus, com a oposição dos saduceus,
61
ficou fixada no “dia seguinte ao sábado”, ou seja, domingo. Sete vezes sete dias mais um
(cinquenta) constituem símbolo de plenitude.
Ao fazer a reflexão cristã sobre o tempo pascal, não se deve esquecer de outros dados
importantes, como podem ser o sentido da festa da aliança e do dom da Lei originalmente
vinculado ao Pentecostes judaico. Essa referência explicará a importância que a festa tinha
para Qumran, “comunidade da aliança”, para renovar a aliança. Fazê-lo, com referência à
Páscoa da libertação, equivale à rejeição da escravidão. Pentecostes é solidário da Páscoa e
não deixa de ter para os cristãos o sentido de “inclusão” que lhe davam os rabinos. Entende-
se, enquanto festa da primavera, a repercussão cósmica e de vida nova que tem implícita.
Apoiados no Novo Testamento, vamos nos fixar unicamente nos dados que nos oferece
sobre o período dos cinquenta dias e da celebração dos grandes acontecimentos que lhe são
característicos como base das unidades celebrativas que foram se configurando em seu
interior.
Comecemos pela cronologia. Sabe-se, quanto ao sentido do tempo da ressurreição, que
Lucas apresenta uma versão nos Atos dos Apóstolos e outra diferente em seu evangelho. O
final de Lc 24,36-53 situa os fatos do tempo que transcorre até a ascensão como se todos se
dessem no dia da Páscoa. Se bem que um estudo literal do texto obriga a reconhecer que não
podem caber em um só dia de vinte e quatro horas. Para o autor dos Atos, entre a ressurreição
e a subida ao céu, transcorrem vários dias (At 1,2-3.22). A vinda do Espírito Santo só ocorre
no dia de Pentecostes (At 2,1).
Para o quarto evangelho, liga-se a efusão do Espírito à glorificação (Jo 7,39). A
ascensão, embora distinta da ressurreição, também teria lugar no dia da Páscoa, que por outro
lado é o dia em que Jesus transmite o Espírito a seus discípulos (Jo 20,17.22). Mateus e
Marcos parecem situar também a ascensão na tarde do dia da ressurreição.
As diferenças indicam sem dúvida a pouca importância que atribuem ao sentido preciso
da cronologia. Tratar-se-ia antes de duas tradições distintas, acentuando cada uma diversos
aspectos do mistério salvador. Em todo caso, o tempo tem valor simbólico.
A semana da Páscoa. A primeira semana da Páscoa, ao se estabelecerem formulários
próprios para a celebração diária da eucaristia, recebeu como textos evangélicos os relatos das
aparições do ressuscitado. A forma atual parte dos mesmos critérios já tradicionais, embora a
distribuição das perícopes não coincida com os mesmos dias do missal romano anterior ao
concílio Vaticano II.
Mateus fala de duas aparições, uma às mulheres junto ao túmulo e outra aos doze (Mt
28,9-10 e 16-20). Lucas também narra duas, uma aos discípulos de Emaús e outra aos onze e
seus companheiros (Lc 24,13-35 e 36-53). João transcreve quatro, uma a Maria Madalena,
outra aos discípulos sem Tomé, outra com ele e a última com os discípulos junto ao mar da
Ga1ileia. Deixemos de lado o testemunho de Marcos em vista da discutida forma original da
conclusão de seu evangelho.
Costuma-se distinguir entre as aparições de Jesus na Galileia e as ocorridas em
Jerusalém. Para o estudo bíblico-litúrgico, talvez nos interesse mais a distinção entre
cristofanias apostólicas e cristofanias pessoais. O interesse dessa distinção está no fato de
corresponder à forma literária ao mesmo tempo que ao conteúdo e à função das narrações. As
aparições apostólicas permitem conhecer mais a experiência religiosa que as aparições
privadas. As primeiras, mais oficiais, possibilitam descobrir melhor a mensagem da Páscoa e
seu alcance.
A liturgia lê também, no segundo e terceiro domingo da Páscoa, os evangelhos das
aparições do ressuscitado.
Os cristãos, que celebram essa manifestação do Senhor da vida, são os batizados que
receberam e renovaram pela Páscoa sua incorporação ao ressuscitado como Senhor da vida e
da morte que abre a vida ao mundo futuro e definitivo em Jesus Cristo.
62
realidade. Só sabemos que a Escritura distingue, para nossa instrução, etapas na economia e
na revelação do mistério. Para João, a cena de Páscoa e a aparição pública aos discípulos ao
longo de oito dias representam a última etapa dessa revelação progressiva. Será a última
manifestação visível de Jesus que sobe ao Pai (Jo 20,17).
Lucas relaciona o dom do Espírito com o sentar-se de Cristo à direita do Pai (At 2,33).
Mas, em ambos os casos, trata-se de resultado da glorificação de Jesus, com o que se inaugura
o tempo da Igreja.
O ruído, vindo do céu como vento forte, e as chamas de fogo são traços semelhantes aos
que ocorrem no momento da aliança no Sinai aonde subira Moisés, como se lê na segunda
leitura da missa vespertina desse domingo. Lucas inclina-se por essa perspectiva que lhe
permite iluminar melhor como o Triunfador da morte e Senhor da vida comunica, a partir da
ascensão, o Espírito da nova aliança.
A força do ressuscitado, que comunica o Espírito à comunidade nascida da Páscoa,
surge como linha convergente nas leituras dominicais do tempo pascal. Se, por um lado, o
Espírito é a força da missão, tem-se também clara consciência de que o progresso da
comunidade é a um só tempo obra do Espírito Santo e dos apóstolos. Daí a afirmação de que a
Igreja, por toda a Judeia, Galileia e Samaria, gozava de paz e fortelecia-se cheia dos consolos
do Espírito (At 9,31).
A glória do Senhor Jesus. O lecionário dominical dos evangelhos para as missas do
tempo da Páscoa apresenta as bases para o aprofundamcnto do mistério que a Igreja celebra
nesses cinquenta dias. Já vimos como os três primeiros domingos concentram-se nas
aparições de Jesus ressuscitado; o predomínio do evangelho de João é claro.
A partir do quarto domingo, os trechos evangélicos procedem do quarto evangelho.
Com razão se fala do ciclo de João. Do quarto evangelho lê-se o capítulo décimo inteiro. No
quinto e sexto, lêem-se passagens do discurso de despedida.
Tendo em vista a necessidade de seleção para nos mantermos nos limites de espaço que
se nos concede, vamos nos deter brevemente no capítulo 17, que a liturgia lê no sétimo
domingo ou, se se preferir, no sexto, no caso de se transladar a festa da ascensão ao domingo
anterior à conclusão da Páscoa.
Por sua unidade e coerência, constitui excelente síntese do mistério pascal. É impossível
reduzir a um só denominador a tradicionalmente chamada “oração sacerdotal”, conteúdo deste
capítulo. Outros preferem chamá-la de oração pela unidade dos cristãos ou de outro modo.
Em todo caso, é verdade que a função sacerdotal de Cristo aparece nela com força singular,
sobretudo pela mediação que expressa como orante universal e com valor de eternidade.
Transcende o tempo e tem sua continuação na história da Igreja. Realiza, de certa maneira, a
ascensão de Jesus ao Pai. É a “hora”, tão repetida no quarto evangelho, que culmina nesse
momento de sua morte e ressurreição, ou seja, de sua glorificação e exaltação na cruz (Jo
3,14; 8,28; 12,32-34). É ao mesmo tempo a hora da Igreja na qual é o Senhor ressuscitado
intercessor universal e único mediador.
A oração de Jesus começa com a referência a essa “hora”. Jesus revela, situando-se na
conjunção do tempo com a eternidade, a densidade de seu momento vital e a importância do
momento vital da Igreja. A hora da passagem ao Pai (Jo 13,1) estrutura por sua vez toda a
vida dos cristãos. Nela o Pai glorifica o Filho a fim de que Filho o glorifique (Jo 17,2). A
morte de Jesus que inaugura sua glorificação altera e transforma a vida do homem, visto que
lhe permite descobrir o Pai como fonte de plenitude existencial.
Aparece pelo menos sete vezes nesse capítulo a palavra “glória” ou “glorificar”, na
qual encontramos o sentido da Páscoa de Jesus. Ele, que ocultara sua glória no mistério da
encarnação, agora a recuperará para sua humanidade e para os homens (Jo 17,5). A
finalidade da obra de Jesus era levar a termo a glorificação do Pai (Jo 17,4). O bem dos
65
discípulos, objeto da oração de Jesus, é também em última instância glorificação para ele
próprio (Jo 17,11).
A oração de Jesus começa pedindo a glorificação como fonte de vida para os seus; a
vida eterna é “que eles te conheçam a ti, o único verdadeiro Deus e àquele que enviaste, Jesus
Cristo” (Jo 17,3).
A glória, enfim, desdobra todo o seu sentido à luz da unidade divina, fundamento da
unidade dos crentes. A partir do v. 20 os fiéis entram como parte integrante da oração, graças
à revelação do amor conforme narra o v. 23. A fé também integra esse conjunto. Os versículos
anteriores e os incluídos entre os dois apresentam a fé dos discípulos como fundamento da fé
para o mundo.
Não é este lugar de fazer teologia, mas de introduzir na celebração pascal. O
conhecimento dos textos é requisito necessário para apreender o que se celebra. Poder-se-ia
dizer que a oração de Jesus prolonga pelos séculos a dimensão eucarística da presença do
ressuscitado em sua Igreja e no mundo. Porventura não é na eucaristia que o espírito de amor,
forjador da comunidade eclesial, faz entrar os humanos em comunhão com a unidade do
Amor divino, revelado pela morte e ressurreição de Jesus?
A quinquagésima na literatura cristã antiga. A literatura das origens que citávamos no
começo da exposição ajudados por numerosos estudos a ela dedicados é a base para responder
à pergunta se podemos falar de uma teologia de Pentecostes e de qual seja seu conteúdo no
cristianismo dos primeiros séculos.
É fato que os cristãos deram atenção muito cedo aos cinquenta dias da Páscoa.
Influenciaram nisso o Pentecostes judaico e em grau menor o acontecimento da salvação
ocorrido no dia quinquagésimo: a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja nascente. É
significativo que não tiveram preferência os quarenta dias dos encontros do ressuscitado com
seus discípulos. Esses sete dias por sete, como o quinquagésimo por coroamento, pareceu-lhes
como a perfeição mais completa imaginável.
Assim se explica, como já indicamos em outro lugar, que os testemunhos ocidentais e
orientais, tanto do Egito como da Ásia menor, dos fins do séc. II e primeira parte do séc. III
sejam unânimes em aceitar que a Páscoa é tempo de festa que se estende ao longo de sete
semanas. A concepção unitária da Páscoa, que tem Jesus como protagonista principal, é mais
primitiva. As conhecidas controvérsias sobre o dia em que se devia celebrar a festa e sobre
quando devia cessar o jejum dividiram grande parte das Igrejas das origens. A outra tradição
pascal nasce em Alexandria nos inícios do séc. III com Clemente e Orígenes, que em vez de
acentuar a paixão gloriosa do Senhor, como era o caso anterior, preferem acentuar o plano
espiritual e moral da passagem ou trânsito. Essa idéia insiste mais na “Páscoa contínua” que
no “aniversário” e, por isso, favorece mais a teologia de Pentecostes.
Para a tradição que comentamos, Pentecostes não consiste num conteúdo histórico-
trinitário (festa do Espírito Santo etc.), mas no cristológico original que celebra a presença de
Jesus entre os seus depois da ressurreição em perspectiva escatológica. A rejeição da festa do
Espírito Santo, inspirada nos Atos dos Apóstolos, está presente na literatura pelo menos até o
início do séc. III, assim como por outra parte o componente cristológico está presente na festa
de Pentecostes do séc. IV, por exemplo em Teófilo de Alexandria e em Ambrósio. Nesse
caso, Pentecostes não se configura como um significado distinto do outro, mas como relação
entre os dois. Semelhante ligação entre Páscoa e Pentecostes é bem compreensível enquanto
predominou na última o componente cristológico, que celebrava a ressurreição prolongada no
tempo como uma espécie de Grande domingo, segundo a expressão feliz de Atanásio.
Essa idéia do espaço de Pentecostes adornado com todas as prerrogativas do domingo,
Magna dominica, é surpreendente por sua unanimidade; assim como se excluía a penitência
no domingo por ser o dia da ressurreição, assim também ela será excluída em todo o tempo
pentecostal, segundo testemunhos, inclusive tardios, como o de Hilário de Poitiers. Esses
66
sabbata Sabbatorum são para ele, como na Antiguidade, o tempo da alegria. Segundo ele,
“foram religiosamente celebrados pelos apóstolos, a ponto de não se permitir a ninguém
adorar com corpo prostrado na terra, nem preparar-se pelo jejum a festividade dessa bem-
aventurança espiritual”.
O mesmo Hilário observa que o “uno” da quinquagésima supera os sete por sete, o que
lhe permite introduzir o tema da octôada, contando esse “uno” na última semana como oitava
e com isso implicando a idéia de plenitude evangélica. O raciocínio é claro. O simbolismo do
“oitavo dia” (sete mais um), característico do domingo como plenitude segundo os Padres,
leva-nos ao número cinquenta (sete vezes sete mais um). Já o Antigo Testamento conhecia
essa amplificação do sábado (Lv 25,3-4; etc.). Assim como o domingo supera o sábado, assim
também Pentecostes sobrepassa as sete semanas bíblicas enquanto a celebração mais solene
do “oitavo dia”. Esse dia, que é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo, a octôada, é para
Basílio a plenitude escatológica.
A mística dos números, que estimava, como consumação e nova era, o dia
quinquagésimo, à maneira de dia oitavo depois da semana, teve decidida influência na visão
de Pentecostes como cinquenta dias. Que não atuasse como primeiro termo a vinda do
Espírito Santo fica claro pelo fato de se celebrar nesse dia também a ascensão como selo da
quinquagésima.
A idéia da grande alegria, alheia às práticas penitenciais, mantida universalmente como
inerente aos cinquenta dias, adequava-se bem ao período que era ao mesmo tempo “o grande
domingo”, “a semana das semanas”, “o selo da quinquagésima”, o “oitavo dia”. A esses se
acrescentavam outros elementos, que qualificam o espaço sagrado de Pentecostes com
componentes teológicos, que aqui só podemos enumerar.
Entre eles cabe contar, de acordo com o testemunho de Eusébio de Cesaréia, Máximo
de Turim e outros, o jejum dos amigos do esposo que não podem jejuar enquanto este está
presente. Assim se interpretava Mt 9,15. A ideia das primícias do Pentecostes antigo como a
colheita dos povos enfeixados em uma única Igreja da catolicidade pela foice espiritual dos
apóstolos, segundo expressa também Eusébio, não era alheia à festa. Jesus introduz, com
efeito, em seu corpo glorificado, no céu os primeiros frutos da humanidade redimida.
Simplificando, poderíamos dizer que é o tempo em que se celebrava toda a salvação de Deus
em Jesus Cristo, uma vez que o mistério pascal é definitivamente o que a totaliza.
Uma vez que o simbolismo bíblico dos quarenta dias da preparação está fora de dúvida,
o futuro deveria empenhar-se em redescobrir os cinquenta da celebração.
Se a fixação da festa da ascensão no meio da quinquagésima, ou da própria oitava da
Páscoa, fraciona esse espaço sagrado, uma tradição bíblica, distinta dos Atos dos Apóstolos,
assegura-nos que nem as aparições do ressuscitado nem a vinda do Espírito Santo estão
ligados a esses espaços de tempo precisos.
Semelhante procedimento deverá ser seguido com a quinquagésima cristã. Ao
aprofundar o conceito de Páscoa, seu conteúdo exigirá longo período para que se passe à sua
celebração consciente. Com efeito, como vai ser possível ir interpretando essa Passagem de
Jesus ao Pai, como cabeça de todo o povo, por uma paixão salvadora que mereça a vitória
sobre o inimigo e sobre a morte, e culmine na glorificação e no senhorio universal? O que se
realizou de uma vez para sempre vem a ser vivido permanentemente pelo cristão mediante a
celebração repetida do sacramento. A teologia bíblica do mistério pascal vai descobrindo
como este não se restringe aos relatos bíblicos do ressuscitado, mas é o ponto de
convergência de todas as páginas sagradas. Essas farão o fiel compreender melhor como
67
Domingos de Páscoa. Para o primeiro domingo de Páscoa, os três anos têm as mesmas
leituras, embora se possa mudar a segunda pela que antes esse dia tinha tido. Se se preferir,
deixa-se a possibilidade, para o evangelho, de repetir o da vigília. Não se vê que vantagem
tem isso, a não ser para os que não participaram da eucaristia da noite, e mesmo isso é
duvidoso.
A impossibilidade de leituras tão adequadas para cada ciclo ocasionou essa fixação.
Não parece que se tenha de pensar que seja inconveniente. Na primeira, o testemunho de
Pedro sobre Jesus de Nazaré ressuscitado, com quem comeu e bebeu, é bastante eloquente.
Esse anúncio aos pagãos constitui formulação muito precisa e rica sobre o dinamismo interno
do evento pascal.
O querigma que anuncia já foi testemunhado pelos profetas e deve-se anunciar ao
mundo inteiro, visto que somente nele se acha a salvação.
A epístola proclama como a carne pecadora entra pelo batismo na esfera do divino em
comunhão com a humildade glorificada do Senhor.
O evangelho sublinha o fato que teve lugar precisamente na madrugada do “grande
domingo”. Maria Madalena é a primeira a se apressar. Depois Pedro e João constatam o fato.
É o momento em que, segundo as Escrituras, Jesus havia de ressuscitar dentre os mortos.
Pode-se ler, na missa vespertina, o evangelho que narra o acontecimento ocorrido na
tarde daquele domingo, a caminho de Emaús. Quis-se manter, com essa possibilidade,
caminho aberto para os que preferem marcar o momento da jornada pela referência à
“madrugada” e ao “entardecer”.
c) Domingo de Pentecostes
Este domingo é outro desses dias que têm formulários únicos para os três ciclos, o
mesmo para a missa da vigília e a do dia. As razões são as mesmas que para o primeiro
domingo.
Embora lhe seja atribuído o sentido de festa do Espírito Santo, não se deixa de acentuar
seu caráter de conclusão da Páscoa. É esse o aspecto a ressaltar. Na medida em que assim o
apresentarmos, seremos fiéis à teologia do Espírito como dom que faz o ressuscitado à sua
Igreja, em conformidade com o evangelho da vigília (Jo 7,37-39). Tudo isso se significa pelo
nome tradicional que se lhe dá nos livros litúrgicos de outrora e de hoje, ao se chamar esse
domingo de “domingo de Pentecostes” e não de festa de Pentecostes. O próprio evangelho
desse domingo apresenta sob essa perspectiva o Espírito Santo; e certamente será essa a razão
de ser o mesmo para os três anos: quem doa o Espírito é o Senhor glorificado. Essa perícope
permite não repetir, quase com idêntica apresentação, o que se leu na primeira leitura. A
Igreja é a antibabel enquanto reunião em Cristo e no Espírito dos homens divididos (1ª leit.);
Pentecostes é a promulgação da nova lei (2ª leit.); o Espírito levanta dentre os mortos o novo
povo de Deus (3ª leit.). Com as palavras de Joel, Pedro se dirige ao povo no dia de
Pentecostes (4ª leit.).
d) Ascensão do Senhor
e) Os domingos de Páscoa
Compreende-se assim que cada domingo desse período não passa de determinado
domingo de depois da Páscoa dentro da unidade que forma o tempo pós-pascal. E essa Páscoa
continuada, uma vez que seus celebrantes são também peregrinos, só pode desembocar na
Páscoa escatológica. Todo tempo pascal tem leituras e orações próprias para cada dia, ao
passo que antes só as tinham os dias da oitava. Os cinco prefácios próprios são outra riqueza
que não se deve negligenciar, com um corpo muito definido que sublinha determinado
aspecto do mistério pascal, e com um princípio e conclusão de expressão pascal comum a
todos.
A eucologia da liturgia das horas é suficientemente eloquente por si mesma: hinos,
responsórios, orações de louvor e intercessão. As leituras patrísticas transmitem-nos toda a
riqueza da fé da Igreja na Páscoa. Quanto às leituras bíblicas, note-se a leitura semicontínua
dos Atos dos Apóstolos durante todo o tempo pascal para o segundo ano do lecionário bienal.
Trata-se, enfim, de história, teologia e pastoral muito bem assumidas pela reforma
litúrgica do concílio Vaticano II, que afirma com referência ao tempo pascal: “Os cinquenta
dias que vão desde o domingo da ressurreição até o domingo de Pentecostes devem ser
celebrados com alegria e exultação, como se se tratasse de um só e único dia festivo, e mais
ainda, como um grande domingo”.