Você está na página 1de 70

1

O ANO LITÚRGICO – 1

1 – TEMPO SAGRADO, TEMPO LITÚRGICO E MISTÉRIO DE CRISTO

J. López Martín

Todo ato humano se realiza no âmbito de duas coordenadas essenciais, o tempo e o


espaço. A celebração da Igreja também se insere nessas coordenadas, mas com a
particularidade de influir de certa forma sobre elas. O tempo e o espaço destinados à
celebração têm o valor simbólico e manifestativo de todos os sinais da liturgia. Têm inclusive
valor prefigurativo e profético, pois em toda celebração, sobretudo na eucaristia, estamos em
busca do “tempo” de Deus e tomamos parte na liturgia celestial que se celebra na cidade
santa de Jerusalém para a qual nos dirigimos (cf. SC 8).
O mistério salvífico celebrado na liturgia impregna de santidade – sacralidade cristã – o
tempo e o espaço da celebração, independentemente dos motivos concretos que determinaram
a escolha do momento e do lugar em que se reúne a assembléia para celebrar. O mistério
acontece dentro das coordenadas históricas da comunidade congregada.
No primeiro volume desta obra já se deram pinceladas sobre o tempo e o lugar da
celebração. Trata-se agora de expor a teologia do tempo da celebração e do ano litúrgico,
como tema prévio aos diversos ciclos e festas que o integram.
Escolhe-se o tempo da celebração de acordo com o calendário litúrgico da Igreja, seja
no âmbito geral do rito romano ou de outro rito seja no campo particular de determinada
diocese ou família religiosa. O calendário baseia-se na sucessão natural dos dias, semanas e
meses, expressando porém os dias determinados em que a comunidade cristã celebra com
sagrada recordação a obra salvífica de Cristo (cf. SC 102). Nesse sentido, constitui
expressão organizada do ano litúrgico, de maneira que nele se assinalam antes de tudo os
domingos e a máxima solenidade da Páscoa, e todas as restantes solenidades, festas e
memórias, os ciclos litúrgicos, os aniversários da Igreja e do bispo e as férias.
Existem ademais outros ritmos de celebração, marcados pela história e pela tradição
popular de cada lugar, como as festas dos padroeiros, os dias de romaria e peregrinação etc.,
e obviamente pela vida da comunidade e de seus membros: batismo, matrimônio,
consagração religiosa, bênçãos, exéquias. Mas esse segundo calendário de celebração deve
levar em conta o primeiro, que garante a união com toda a comunidade eclesial e constitui a
referência aos dias e tempos determinados pela Igreja para tornar presente o mistério de
Cristo nas comunidades e levar a cabo a progressiva introdução de todos os seus membros na
vida divina (mistagogia).

1. O tempo como realidade significativa

Uma das noções mais complexas e ricas que tem o homem, e pelo mesmo motivo uma
das mais difíceis de explicar, é o tempo. O tempo é a medida de todas as coisas quanto à sua
duração. Ele não é somente magnitude matemática expressa em horas, minutos e segundos, ou
em dias, meses e anos. Esse tempo homogêneo, marcado por ritmo e alternância, assinalado
por cronômetros ou pela posição dos astros, não passa de sinal ou referência do verdadeiro
tempo, a duração das coisas. No relógio todas as horas são iguais, no calendário não há
distinção entre os dias e os meses. Sucedem-se uns aos outros inexoravelmente. Tudo isso não
passa de uma dimensão, resultado de observação e cálculo; é o tempo matemático que,
enquanto baseado no movimento do universo, se chama tempo cósmico.
2

a) O tempo “interior”

No entanto, no homem há uma espécie de tempo “interior”, uma autoconsciência reflexa


do devir de sua existência, que não coincide com o ritmo e a velocidade marcados pelo tempo
cósmico. Todo mundo experimenta, com o passar dos anos, a impressão de que estes
transcorrem mais depressa. Diz-se também que o tempo mais “longo” da vida do homem é o
de sua infância, sobretudo o de sua primeira infância: até os dois ou três anos de vida. Mas não
se esgota aí a sensação que se tem do tempo. Para o homem que vive mergulhado no universo,
sem ainda ter rompido os laços com a natureza e com a essência das coisas, o tempo possui
dimensões diferentes, tendo cada instante valor distinto e próprio. Assim as horas do dia têm
cada uma seu rosto: “Cada hora do dia tem sua tonalidade própria. Três delas, porém, nos
olham com rosto particularmente claro: a manhã, a noite e o meio-dia. São todas elas
consagradas. A manhã é um princípio, o mistério da noite é a morte, a metade do dia é o duro
presente. Tu te deténs, e o tempo inteiro se afunda. A eternidade te contempla. Fala a
eternidade em todas as horas, mas é vizinha do meio-dia. Aí o tempo espera e se abre”.
O mesmo se pode dizer dos dias, dos meses e do decorrer das estações. Cada um tem
sua própria importância e reflete um momento e uma etapa da existência humana e da vida
das coisas. O homem não permanece indiferente diante do curso do tempo: uns dias lhe são
favoráveis e outros desfavoráveis, “fastos” ou “nefastos”. Desde as pessoas que só se
ocupam com os aspectos comerciais do tempo (vencimentos, prazos etc.) ou com os aspectos
climáticos (se vai fazer frio ou chover etc.) até as que ficam dependentes de seu horóscopo,
cada qual tem sua forma particular de acusar a passagem do tempo e prevenir o que pode
acontecer. Nisso o homem da grande cidade não se distingue do camponês, nem o cientista
do semicivilizado. O homem sempre pretendeu delimitar, conhecer na medida do possível e
enfrentar o tempo que está por vir, em que algo acontecerá. Surge então uma noção nova do
tempo, uma característica de determinados tempos ou momentos, algo que faz distinguir as
porções do tempo em que acontece algo daquelas em que não acontece nada. Surge aí a idéia
de tempo sagrado em contraposição ao tempo ordinário e profano. Um e outro não saem do
tempo cósmico, mas tem-se a impressão de que o tempo sagrado é um espaço circunscrito,
um parêntese, uma incisão no devir das coisas, um instante subtraído à passagem inexorável
da existência.

b) O “tempo sagrado”

O homem experimenta então que se detém no meio do tempo, situando-se sob a


influência favorável e benéfica de um poder superior a ele que se manifesta nesse parêntese.
O tempo sagrado significa o esforço do homem para romper a espiral inexorável que o
envolve e ameaça engoli-lo na morte. Apropria-se então do “tempo dos deuses”, da
eternidade, que não é tanto um tempo indefinido, quanto a seu princípio e fim, como um
tempo “maior”. O tempo sagrado é como uma imersão do homem nesse tempo divino no
qual vivem os deuses e criam o mundo. O tempo sagrado divino transforma-se em hierofania
da atividade divina, que consiste na renovação e repetição de um acontecimento místico,
singularmente da cosmogênese ou princípio do mundo. Por isso o tempo sagrado procurará
reproduzir mediante ritos de todo tipo o mito original, e marcará ao mesmo tempo a
passagem do tempo ordinário ao tempo hierofânico.
O tempo sagrado, portanto, carrega consigo uma interpretação religiosa do tempo
cósmico, interpretação ligada, numa primeira fase, à evolução cíclica da natureza, a partir do
significado mítico do renascer e renovar-se da natureza na primavera, e, numa segunda que
não anula a primeira, à recordação de determinados fatos históricos e lendários. Dessa
maneira surgiram os calendários, não o modelo que conhecemos mas de formas mais simples,
3

acolhendo unicamente os tempos festivos que enquadram os diversos trabalhos do campo: a


semeadura, o começo e o fim da ceifa, a colheita dos frutos. O calendário primitivo não é o
medidor do tempo, mas o indicador do poder que se manifesta nele. Por isso, os calendários
primitivos eram simplesmente calendários das festas e dos tempos propícios para o homem,
de acordo com o ritmo da natureza e a passagem das estações.
O tempo sagrado aparece como tempo “que retorna” a cada ano, ao contrário do
ordinário que se desvanece. É reversível, circular, recuperável cada vez com sua carga
idêntica de poder e hierofania. Só aparentemente é interrompido pelo tempo ordinário, mas
cada tempo sagrado é solidário de outro. Assim, ao longo dos anos, continuam os momentos
hierofânicos e constituem um contínuo retorno.
Mas há outro significado na reiteração dos tempos sagrados: seu significado de
renovação, de começo e de retorno à origem, ao tempo divino e primordial onde vivem e
trabalham os deuses. Note-se que não é uma volta à eternidade mas ao começo do tempo do
mundo e do homem, do cosmo, ao primeiro instante real do tempo. Esse significado está
presente em todo ternpo sagrado, mas há uma festa em que ficam mais claros esses aspectos.
Falo da festa do ano novo, na qual se renova o mundo e se reencontram a pureza e a força
original de todas as coisas. Cada ano novo traz consigo um tempo novo, um cosmo novo. Por
isso, por ocasião dessa festa, recordam-se os mitos cosmogônicos da origem do mundo e com
diversas cerimônias tenta-se reatualizar o sagrado tempo dos inícios. O homem quer assim
situar-se de novo naquele tempo criador e por isso realiza um ritual de destruição e de
renovação, de morte e de vida. “É fácil compreender por que a recordação desse tempo
prestigioso obcecava o homem religioso, por que este se esforçava periodicamente para
incorporar-se nele: in illo tempore mostraram os deuses o apogeu de seu poderio. A
cosmogonia é a suprema manifestação divina, o gesto exemplar de força, superabundância e
criatividade. O homem religioso está sedento do real. Por todos os meios esforça-se para
instalar-se na frente da realidade primordial, quando estava o mundo in statu nascendi.
A concepção primitiva do tempo-cosmo inclui, portanto, a idéia da regeneração do
tempo, do eterno “retorno”, da eterna repetição do ritmo fundamental do universo: destruição
(caos) e criação (ordem). Essa idéia primitiva contém uma visão circular do tempo, conhecida
também pela cultura grega: “Segundo a célebre definição platônica, o tempo que determina e
mede a revolução das esferas celestes é a imagem móvel da eternidade imóvel, que imita
desenvolvendo-se em círculo. Por conseguinte, o devir cósmico em sua totalidade e, portanto, a
duração deste nosso mundo de geração e corrupção se desenvolverá em círculo ou segundo
uma sucessão indefinida de ciclos em cujo transcurso a própria realidade se faz e se desfaz,
conforme lei e alternativas imutáveis... Nenhum acontecimento é único nem se apresenta uma
só vez (por exemplo, a condenação e morte de Sócrates), mas se apresentou e se apresentará
perpetuamente; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e reaparecerão a cada volta do
círculo sobre si mesmo. A duração cósmica é repetição e anakiklésis, eterno retorno”.

2. O tempo na Bíblia

“Uma das datas mais importantes da história da religião é a mudança das festas naturais
israelitas em comemorações de datas históricas que são também aparições do poder e ações de
Deus. Quando a antiga festa do passah, ligada aos tabus da festa lunar e da primavera, se
transformou na celebração da bondade de Deus na saída do Egito, começou algo totalmente
novo.” Produziu-se, com efeito, na história de Israel uma mudança na concepção do tempo
sagrado. Não só quanto à salvação ou incidência favorável ao homem do tempo sagrado, mas
também, sobretudo, no modo de conceber a realização da salvação nele. Como vimos, o
homem destrói e renova o cosmo mediante a evocação ritual do mito da cosmogênese,
sentindo-se protagonista e beneficiário desse processo regenerador do tempo ao imitar
4

ritualmente o fazer divino. Nesse aspecto produz-se inovação fundamental: o homem já não
imita a ação cosmogônica, mas submete-se à ação de Deus. Ou seja, sublinha-se a infinita
distância entre o homem e Deus, insiste-se na transcendência divina. Deus já não aparece
identificado com as origens das coisas e com o próprio tempo (concepção primitiva), mas está
fora dele, se bem que se manifeste atuando em seu interior. Assim, a chave interpretativa do
“tempo sagrado bíblico” não é a cosmogonia mas os acontecimentos históricos, e entre eles o
que é típico ou exemplar, a Páscoa, a libertação do Egito e a constituição de Israel como povo
eleito.
Portanto, estamos diante de um novo modo de entender a salvação, o dies fastus, no
tempo sagrado. Superou-se a idéia do tempo cíclico, do eterno retorno do tempo cósmico
inicial. O Deus de Israel já não se manifesta na cosmogonia evocada, mas na história e no
curso do tempo. Suas intervenções são “históricas”, não redutíveis a manifestações anteriores.
Por conseguinte, fazem história. O tempo sagrado resultante já não é uma hierofania repetida,
mas uma teofania, um sinal da ação pessoal de Deus em favor de seu povo. Daí não se deve
falar de concepção circular do tempo, mas de concepção linear, como afirma O. Cullmann.
Também é diferente, portanto, o conceito de eternidade com relação ao tempo. Para os gregos,
a eternidade opõe-se ao tempo, nela ele está ausente, ao passo que para a Bíblia a eternidade é
um “tempo infinito” ou, melhor, o que chamamos de tempo é uma fração da eternidade. Por
isso mesmo, o tempo sagrado já não representa o esforço humano para sair desse círculo
inexorável que o arrasta, retornando ao momento inicial, esforço inútil, aliás, uma vez que
tudo retorna e se repete indefinidamente.
O tempo sagrado bíblico leva o homem para a frente, para um futuro melhor. Não é
simplesmente evocação ou repetição, mas promessa e profecia. Cada acontecimento divino
salvador do homem é irrepetível e libertador, pois o homem caminha sempre para a frente. O
tempo histórico dos homens revela-se tempo histórico divino, ou seja, tempo salvífico ou
histórico-salvífico. A história humana em que Deus atua é interpretada religiosamente pelo
povo de Deus, por seus profetas, como história salvífica. O ponto de partida dessa história, o
desígnio de salvação de Deus, não é algo histórico pois pertence a Deus, mas se manifesta no
curso da história, na marcha do tempo. O mistério, que a concepção religiosa natural confunde
com o fazer divino, é agora um pensamento, um desígnio ou propósito de salvação escondido
em Deus e se desvela e se desdobra no tempo. A história, para a Bíblia, é o desdobramento do
mistério salvador no tempo.
Existe portanto na Bíblia uma visão religiosa-interpretativa do tempo e da história, uma
reflexão profética, tanto no âmbito cósmico como no coletivo ou pessoal. A história do
mundo, do povo e de suas instituições, de suas pessoas fez-se profecia à luz da especial e
singular relação de Israel com seu Deus: a eleição e a aliança. O tempo já não é o chronos
inexorável que devora os homens, mas o kairos, o tempo histórico carregado de
acontecimentos salvíficos. Assim, a plenitude dos tempos é o “tempo da realidade cumprida”,
no qual a promessa se fez realidade e o anúncio se verificou, tornando-se acontecimento.
Quando Deus, Emanuel, entra no tempo pela encarnação, inaugura-se um novo tempo, aquele
tempo (in illo tempore) da vida histórica de Jesus que nada tem a ver com o mito ou o tempo
primordial. O que ocorre em determinado momento de história (sub Pontio Pilato, como diz o
símbolo da fé), e em um conhecido espaço geográfico (Palestina) é acontecimento de
salvação; mais ainda, é o definitivo acontecimento salvador, mas com uma característica, a de
ser cphápax, ou seja, de uma vez para sempre, de uma vez por todas. Com Cristo a história da
salvação alcança seu aperfeiçoamento e consumação, sua realidade plena.
O tempo histórico salvífico, o tempo segundo a Bíblia, é uma linha contínua em que cada
acontecimento engloba o passado e o futuro, não como retorno mítico às origens, mas como
cumprimento e promessa de ulteriores aperfeiçoamentos. Isso leva a descobrir na Bíblia duas
fases ou momentos da única história salvífica: o anúncio e o cumprimento, a promessa e a
5

realidade, a profecia e a verificação. Essas duas grandes fases coincidem com o antes e o
depois de Cristo, com o Antigo e o Novo Testamento, mas sem nunca romper a unidade
incindível da aliança e da revelação divina e, por conseguinte, de toda a história da salvação
cujo eixo de atração e centro luminoso é Cristo. A chegada de Jesus significou nova dimensão
da presença de Deus no mundo, mas é antes de tudo descoberta do valor salvífico da história
inserida nele.

3. O tempo na liturgia

A natureza da liturgia cristã, presença de salvação que se realizou no tempo e deve


continuar realizando-se na mesma esfera em que vivem os homens, dá ao tempo significado
particular que vai além da mera referência ao sagrado que ele tem nas religiões. O concílio
Vaticano II expressou-o desta maneira:

A santa mãe Igreja considera dever seu celebrar com sagrada recordação em
dias determinados ao longo do ano a obra salvífica de seu divino Esposo.
Cada semana, no dia que se chamou “do Senhor”, comemora sua
ressurreição, que também celebra uma vez por ano, juntamente com sua
santa paixão, na máxima solenidade máxima da Páscoa.
Desenvolve, de mais a mais, no ciclo do ano todo o mistério de Cristo, desde
a encarnação e a natividade até a ascensão, Pentecostes e a expectativa da
feliz esperança e vinda do Senhor (SC 102).

A liturgia celebra a salvação, realizada por Jesus “à medida do homem”, nas primeiras
condições histórico-temporais em que se realizou, ou seja, dentro do tempo. Sem essa
concreção no aqui e agora da vida dos homens, a obra salvífica de Cristo seria abstração ou
mera idéia. Para isso existem a Igreja e a liturgia (cf. SC 5-7). Mas será que a atualização da
obra salvífica de Cristo no aqui e agora dos homens se produz em todo tempo ou somente em
tempos determinados e sagrados? Que valor teriam esses dias e o próprio ciclo do ano? É
possível que a liturgia não tenha conseguido desembaraçar-se dos tempos celebrativos das
antigas religiões naturalistas?
O texto do Vaticano II reflete a situação de fato, ou seja, a existência do ano litúrgico e
dos dias em que tem lugar a celebração do mistério de Cristo. Mas deixa muito claro que essa
celebração constitui uma recordação sagrada, uma ação memorial e representativa dos
mistérios da redenção por via não do “eterno retorno” mas da reiteração mistagógica que é
uma forma de pedagogia suficientemente comprovada ao longo dos séculos. Portanto, a
determinação dos dias e dos tempos da celebração é fruto da própria tradição eclesial e da
história. No caso do domingo, o Vaticano II fala expressamente de tradição apostólica que
tem sua origem no próprio dia da ressurreição do Senhor (cf. SC 106).
Nesse sentido, os tempos litúrgicos fazem parte da estrutura organizadora da liturgia
para distribuir mistagogicamente os diversos aspectos do mistério de Cristo ao longo de um
ano. Essa estrutura, do ponto de vista exterior e funcional, parece idêntica aos calendários de
festas das religiões pré-cristãs e ao calendário litúrgico do antigo Israel. Contudo, o tempo
litúrgico é um sinal de salvação e um modo de presença de Cristo no tempo dos homens.
É aí e somente aí que repousa o valor dos tempos litúrgicos, verdadeiros “tempos de
graça e salvação” (cf. 2Cor 6,2). Voltaremos mais tarde a esse ponto. Mas é preciso explicar
antes a organização do tempo na liturgia, com base na atual configuração desse tempo, do ano
e do calendário litúrgicos.
Não se trata de fazer história dessa estrutura – exposta nos capítulos correspondentes a
cada tempo litúrgico. O que interessa é perceber que a configuração atual do ano litúrgico e
dos tempos da celebração é resultado da liberdade com que a Igreja, inserida nas diversas
6

regiões geográficas em que se implantou e em contato com as diversas culturas, tomou os


elementos celebrativos que mais serviam à sua missão. Os tempos sagrados e as festas que
constituem fenômeno universal não são exceção. Desse modo, a liturgia pode conectar-se com
o substrato humano mais profundo do homem e da sociedade, que é o fato religioso, ao
mesmo tempo que se expressa e se manifesta na linguagem e com os meios mais
significativos da experiência espiritual dos povos.
Leve-se também em conta que esse fenômeno da apropriação das estruturas humano-
religiosas dos tempos da celebração por parte da liturgia produz-se sempre a partir do que é
peculiar e próprio da fé bíblica e da revelação dada por Deus ao povo da aliança antiga. As
Igrejas cristãs jamais perderam de vista a instância crítica da Palavra divina que se manifesta
na história para transformá-la em canal de salvação. Foi já o próprio povo de Israel que
rompeu, a partir de sua fé histórica e profética, e por isso mesmo litúrgica e comemorativa,
com a relação que as religiões dos povos vizinhos estabeleciam com seus falsos deuses por
meio das festas. As Igrejas cristãs seguiram nisso o exemplo do Israel bíblico. Esquecer esse
aspecto da história da liturgia cristã é o modo mais fácil de ver nas festas do calendário cristão
apenas uma forma atualizada de velhos mitos pagãos.
Por outro lado, dentro do cristianismo produz-se também vigorosa relativização de todos
os elementos religiosos e festivos. A consciência do que representa o senhorio de Jesus sobre
tudo o que existe, e a atitude que devem adotar os cristãos, libertados para sempre pelo seu
Senhor, fazem que considerem o homem acima das estruturas celebrativas (cf. Mc 2,27-28) e
se fixem antes de tudo no que há de vir, quando se trata das festas (cf. Cl 2,16; Gl 4,10).

a) O ritmo diário

O tempo se estrutura na liturgia segundo diversos ritmos: diário, semanal e anual. Além
disso, existem outros ritmos não direta nem propriamente litúrgicos, como o ano jubilar, os
aniversários de 25 e 50 anos, e os que a piedade popular determina e têm sua incidência na
liturgia: novenas, oitavas etc. o primeiro e fundamental ritmo da celebração é determinado
atualmente pelo dia natural, unidade básica de todas as ordenações do tempo litúrgico.
Com efeito, “cada dia é santificado pelas celebrações litúrgicas do Povo de Deus,
principalmente pelo sacrifício eucarístico e pelo ofício divino. O dia litúrgico começa à
meia-noite e estende-se até a meia-noite seguinte. Mas a celebração do domingo já começa
na tarde do dia precedente”. O dia litúrgico mede-se, portanto, da 0 às 23h, 59 minutos e 59
segundos de cada dia. É a forma moderna do antigo costume greco-romano de medir o dia de
meia-noite a meia-noite. Não obstante, os domingos e solenidades contam-se desde a tarde
precedente, reminiscência do modo judaico de indicar o começo do dia (cf. Gn 1,5). Esta
prática deu lugar às vésperas I e às vigílias e de certa forma justifica as missas vespertinas
válidas para cumprir o preceito dominical ou festivo do dia seguinte.
O centro do dia, não necessariamente matemático, é ocupado pela celebração eucarística
e, como uma projeção do restante das horas, o ofício divino. Cada celebração do ofício
chama-se hora, ainda que o Ofício da leitura continue tendo caráter noturno nos mosteiros, de
forma a evocar ainda a antiga denominação dos noturnos, momentos em que se dividia a
celebração da noite. A liturgia das horas conserva também, junto com os nomes tradicionais
de laudes e vésperas – oração da manhã e oração da tarde –, as denominações de hora
terceira, sexta e nona, chamadas hoje também de hora média ou inter-média.

b) O ritmo semanal

A semana é o período de sete dias que se origina do calendário lunar, ou seja, da


divisão do tempo baseada nas fases da lua, equivalendo a uma das fases e à quarta parte do
7

mês lunar. Essa contagem do tempo talvez seja a mais antiga da humanidade, conhecida
pelos povos acádico-sumérios e indo-iranianos, dos quais a tomaram os hebreus. Estes,
porém, prescindiram do significado naturalista das neomênias e fundamentaram a divisão das
semanas, especialmente o dia do descanso festivo, na narrativa da criação (cf. Gn 1,3-2.3; Ex
20,10-11; Dt 5,12-15). O sabat converteu-se na instituição mais característica da religião
mosaica.
No cristianismo, observou-se no princípio o sábado (cf. Mt 28,1; Jo 19,42; At 2,46a),
mas depois o primeiro dia da semana, recordação do início da criação, acabou suplantando o
sábado como dia festivo e centro da semana.
No mundo greco-romano conhecia-se também a semana – hebdomada em latim, grupo
de sete –, mas cada dia tinha nome próprio segundo a denominação dos astros conhecidos na
época. O primeiro dia da semana era o dia do Sol (cf. S. Justino, I Apol. 67), o segundo, o dia
da Lua etc. Assim nasceram os nomes atuais dos dias da semana na maioria das línguas
européias, ainda que o primeiro dia da semana tenha recebido o nome cristão de dia do
Senhor – domingo –, exceto nas línguas anglo-germânicas (Sunday, Sonntag).
A liturgia leva em conta o ritmo da semana, mas chama pelo nome somente o domingo,
designando curiosamente todos os outros dias como feriae (segunda-feira, terça-feira etc., e o
último dia como sábado). Feriae quer dizer “dias de festa”. Para a liturgia todo dia é festivo,
do ponto de vista da santificação do tempo pela presença permanente de Jesus ressuscitado
em sua Igreja (cf. Mt 28,20).
Na liturgia antiga gozaram de certa preeminência as quartas e sextas-feiras, dias de
jejum em todo o tempo exceto na quinquagésima pascal. Na origem desse jejum está a
recordação da paixão do Senhor, especialmente no que diz respeito à sexta-feira (cf. Jo 19,31)
e possivelmente também à quarta-feira, se dermos atenção a tradição coligida por santo
Epifânio no séc. V. Até inícios do séc. VI, não se tinha começado a celebrar a eucaristia nas
férias, costume que começou precisamente nas quartas e sextas-feiras da quaresma, até
preencher a semana inteira, mas unicamente nesse tempo e nas Têmporas.
A liturgia atual voltou a valorizar o domingo como centro e eixo da semana, de forma
que o concílio Vaticano II se comprometeu a defender firmemente o ritmo semanal e a
sucessão das semanas, na hipótese de um possível calendário perpétuo e universal (cf. SC,
Apêndice).

c) O ritmo anual

O ano = primárias do tempo que têm fundamento astronômico, ainda que


provavelmente a comprovação da existência do ano se tenha ligado primitivamente ao fluxo
das estações. O cálculo do ano com base no movimento da lua deu lugar ao chamado ano
lunar, que compreende doze períodos completos de lunação – os meses – e tem duração exata
de 354 dias, 8 horas e 45 segundos. Apoiando-se no movimento do sol, o homem antigo
descobriu o ano solar, base ainda do ano civil. Sua duração é de 365 dias, 5 horas, 48 minutos
e 46 segundos. Essas frações que equivalem à quarta parte de um dia deram lugar aos anos
bissextos, com 366 dias a cada quatro anos.
O ano tem valor simbólico particularmente expressivo ao evocar o curso da vida
sobretudo no fluxo das estações, como o enfatizaram poetas e artistas de todos os tempos.
Assim, é período bastante adequado para evocar o conjunto do mistério de Cristo e sua ação
salvífica para conosco, desdobrando cada um de seus aspectos, da encarnação e nascimento
do Senhor à sua glorificação e espera de sua última vinda, tudo isso no ciclo do ano (cf. SC
102).
O ano civil começa no dia primeiro de janeiro, mas a liturgia conheceu diversos
começos de ano, sendo possivelmente o mais significativo o que encontramos nos antigos
8

sacramentários gelasiano e gregoriano. Para esses, o ano litúrgico começa precisamente na


solenidade do nascimento do Senhor. Na realidade, o tempo do advento, com que começamos
atualmente o ano litúrgico, acusa sua origem primitiva nas últimas semanas do ano litúrgico
que propõem à consideração a espera da última vinda de Jesus. No mundo bíblico, o ano
começava com a primavera (cf. Ex 12,2), ainda que tenha existido outro começo no mês de
setembro, base da atual festa do ano novo judaico (Rosh ha-shanah).
O ano litúrgico, enquanto unidade de celebração, tem seu centro na solenidade da
Páscoa, como também acontecia no ano festivo hebreu. Contudo, desde as origens da festa
cristã da Páscoa, sempre existiu o problema de sua fixação. Primeiro foi o desejo de celebrá-la
no domingo e não no mesmo dia dos judeus, o dia 14 de Nisan. Depois foram as dificuldades
para fazer o cálculo, se bem que até o ano de 1582 a maioria das Igrejas do Oriente e todas as
do Ocidente celebravam a Páscoa no mesmo dia. Nesse ano, o papa Gregório XIII reformou o
calendário para recuperar os 10 dias de defasagem que se introduziram no calendário desde o
início da era cristã como consequência das seis horas a mais que tem o ano solar, as quais
ocasionam os anos bissextos. As Igrejas do Oriente não aceitaram essa disposição, de modo
que continuam seguindo o chamado calendário juliano e celebram a Páscoa em dias
diferentes das Igrejas católica e reformada. Em 1977, esteve-se a ponto de conseguir um
acordo entre o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras para todas as Igrejas celebrarem a
Páscoa no mesmo dia, mas isso não foi possível.
Segundo as prescrições do concílio de Nicéia, deve-se celebrar a Páscoa no domingo
seguinte ao plenilúnio da primavera. Essa prescrição faz que a data oscile no arco de um
mês, ou seja, no período de uma lunação completa, dado o desajuste entre os calendários
lunar e solar. A oscilação produz-se exatamente entre 22 de março e 25 de abril. Desde a
reforma por Gregório XIII, a Páscoa caiu no dia 22 de março nos anos de 1693, 1761 e 1818,
e no dia 25 de abril em 1666, 1734, 1886 e 1943. A festa da Páscoa movimenta consigo todo
o ciclo pascal, ou seja, a quaresma, o tríduo pascal e a quinquagésima, assim como algumas
solenidades do Senhor, por exemplo a Santíssima Trindade, Corpus Christi e o Coração de
Jesus.
A solenidade do Natal do Senhor ocupa como que um segundo epicentro no ano. É
festa fixa, marcada para o dia 25 de dezembro. Precede-a o tempo do advento e seguem-na as
solenidades e os outros dias que compõem o ciclo do Natal à epifania. Já indicamos que o
Natal era a festa que abria o ano litúrgico nos antigos sacramentários romanos. Na realidade
já encabeçava, desde o testemunho mais remoto conhecido dessa festa, o calendário
filocaliano de 336, a lista dos santos mártires venerados pela Igreja de Roma. Por isso, pode-
se considerar celebração fundamental de todo o santoral cristão. O Natal, porém, encontra-se
hoje na parte dos livros litúrgicos que compõe o chamado Próprio do tempo ou ciclo do
mistério de Cristo. Ele é, depois da Páscoa, a maior solenidade cristã.
No decorrer do ano inscreviam-se também as quatro têmporas, dias penitenciais ligados
às quatro estações, instituídas pelo papa Sirício (384-399). Atualmente reduzem-se a alguns
dias de petição e ação de graça, cuja fixação no calendário cabe às Conferências episcopais.
Na Espanha, foram fixados os dias 5, 6 e 7 de outubro.
O ano, enquanto quadro unitário da celebração, caracteriza-se, como pudemos ver, pelo
desdobramento do mistério de Cristo em cada um de seus aspectos. Nesse sentido é ano do
Senhor (cf. Lc 4,19), ano cristão e ano litúrgico (cf. SC 102). Mas também inscrevem-se no
mesmo ciclo anual as comemorações de Nossa Senhora e dos Santos, testemunhas do mistério
pascal realizado em suas vidas (cf. SC 103-104). Aqui, pode-se falar de ano mariano, não
porque a memória de Maria santíssima constitua ano litúrgico paralelo ao ano do Senhor, mas
porque o ano litúrgico e cada um de seus tempos se acham marcados por uma nota ou matiz
mariológico, dada a especialíssima presença de Maria no mistério de Cristo e na obra da
salvação.
9

4. O valor sacramental do tempo litúrgico

Os tempos e ritmos da celebração têm valor significativo não só do ponto de vista da


fenomenologia religiosa, mas também no contexto da economia da salvação. Isso quer dizer
que o tempo litúrgico é sinal portador de certa eficácia salvífica, em virtude de sua instituição
pela Igreja, que quer multiplicar na existência dos homens meios e modos de presença do
Senhor. Aludimos antes ao ano como símbolo da vida que transcorre e quadro unitário da
evocação santificadora do mistério de Cristo.
De fato, todo tempo delimitado com vistas à existência humana tem valor simbólico,
particularmente quando essa delimitação tende a criar espaço diferente daquele em que
transcorre a monotonia da vida. Nada há de estranho que os tempos adquiram dimensão
hierofânica e transcendente e se vivam como revelações ou inserções do poder divino na
esfera da existência das famílias e dos povos. Pena que o homem da cultura secular e
tecnológica não seja capaz de captar essas dimensões profundamente humanas do tempo da
celebração. Interrompe-se o trabalho ao chegar o fim da semana, e não é para fazer festa e
gozar da beleza do mundo e das coisas, mas para recuperar energias, evadir-se e fugir não se
sabe para onde e passar o tempo.
Ainda que haja muito a purificar na visão sacralizada do tempo, é certo que o tempo da
celebração ainda encerra valores profundamente espirituais de libertação e esperança para os
homens. O povo de Israel transformou os tempos das festas pagãs de pastores e agricultores
em tempos memoriais dos acontecimentos salvíficos operados por Deus, sem eliminar, porém,
os aspectos lúdicos, comunitários e folclóricos desses dias. No húmus humano-religioso e
social-significativo do tempo da celebração, a Igreja introduziu a recordação santa da obra de
salvação realizada por Cristo. A liturgia não fez senão assumir esse meio universal e
simbólico, para torná-lo portador da graça de Jesus, de maneira semelhante ao que ocorreu
com os grandes sacramentos instituídos pelo próprio Salvador. Se as Igrejas formaram o ano
litúrgico e seu próprio calendário festivo, foi porque já existiam essas realidades humanas
carregadas de sentido e referências salvíficas para o homem. Ainda que, ao assumir essas
realidades, as tenham também purificado, elas não duvidaram em nelas encontrar a presença e
o poder libertadores de Jesus ressuscitado.
Os tempos de celebração dos homens são, na esfera da liturgia cristã, verdadeiros kairoi
ou tempos de graça e salvação em que verdadeiramente acontece o mistério de Cristo Senhor
da história humana (cf. Hb 13,8; Ap 1,17).
Nesse sentido, os tempos litúrgicos são sinais litúrgicos peculiares, visto que sua
concreção como significantes ou realidades simbólicas não depende apenas do fato de
figurarem no calendário mas de serem deveras celebrados e vividos. Ou seja, os tempos
litúrgicos devem ser vistos não como meros dias carentes de sentido, mas como esferas da
presença e ação de Jesus na história humana.
Se todo sinal litúrgico tem dimensão rememorativa da realidade santa e invisível e ao
mesmo tempo dimensão profética e prefigurativa das coisas futuras, o tempo na liturgia não
se acha isento dessas dimensões. E mais, ele as ressalta, se for o caso, ainda com maior força
e clareza, pelo fato de se inscrever na dinâmica da história da salvação, cujo desdobramento
linear sempre para a frente caracteriza-se precisamente pela conjunção dessas dimensões com
um presente de graça e salvação. Sendo assim, o tempo litúrgico é tempo representativo, e
não só simbólico, dos tempos em que ocorreram os eventos salvíficos, especialmente a vida
histórica de Jesus e seu mistério pascal. O tempo litúrgico é novo kairos.
Os tempos litúrgicos são por conseguinte o quadro da presença atual da salvação no
aqui e agora do existir humano. Não são mera evocação ou recordação, nem sequer simples
circunstância da apresentação, aos olhares dos fiéis, os acontecimentos da vida de Jesus como
exemplos morais a imitar ou convite a identificar-se com eles na vida. A liturgia representa,
10

ou melhor, presencializa de outra maneira. A liturgia torna presentes os mistérios da vida de


Jesus nos tempos que seguem sua glorificação, uma vez que o Senhor ressuscitado superou as
leis e limitações do tempo.

5. A festa, tempo privilegiado

Após essa longa apresentação do tempo como esfera da celebração sob a formalidade da
fenomenologia religiosa e da teologia bíblica e litúrgica, impõe-se-nos também outro tema
que adquiriu enorme importância nos últimos anos e que não é alheio ao que acabamos de
expor: a festa, realidade humana que de fato é o tempo da celebração, mas com conotações
antropológicas específicas.

a) O que é a festa

Deram-se muitas definições de festa, detendo-se cada autor sobre determinado aspecto.
Para uns, ela se define pela dimensão do que é inútil, ou seja, que não se pode utilizar para
fins extrínsecos. A festa carece de objetivos, tem o fim em si mesma e movimenta a
capacidade festiva e lúdica do homem, sua atividade expressiva e contemplativa. É uma
espécie de jogo. Para outros, ela constitui imitação do fazer divino, atividade complacente,
gratuita e livre, como a da Sabedoria que atua na presença do Altíssimo e de cuja dança
brotam todas as coisas (cf. Pr 8,27-31). Celebrar festa é uma forma de glorificar e dar graças
ao Senhor.
A festa também se definiu como afirmação da vida e do mundo: a alegria, o regozijo, é
atitude festiva fundamental que impregna a existência inteira, é forma de exaltar a bondade
das coisas, e fazer festa nesse sentido é imitar o repouso divino do sétimo dia, ocasião em
que Deus viu que tudo o que tinha feito era muito bom. A festa torna-se assim encontro entre
o “tempo” divino e o tempo dos homens em benefício desses. É inegável essa sua dimensão
libertadora.
Outros autores preferiram defini-la justapondo-a ao tempo ordinário e não-festivo. É
certo que existe um forte contraste entre a festa e a vida do dia-a-dia, um choque entre a
realidade e a utopia, entre os convencionalismos e a natureza. A festa pode parecer
ressurgimento do caos inicial, um momento em que todos os instintos se liberam e se
permitem todos os excessos. Os sentimentos, que normalmente se reprimem ou se descuram,
deixam-se então em liberdade. Daí os excessos que implica viver a fundo a festa: comida,
gastos, vestes, relaxação dos costumes etc. Não importa o amanhã, é o hoje que conta, ainda
que não haja mais que um instante de fruição. A festa não suprime a tragédia da vida, mas a
assume e recompõe. É como voltar a começar.
Também não faltaram os que viram na festa expansão e dilatação do ser humano em
todas as direções, alargamento do campo da consciência ultrapassando a estreiteza da
realidade cotidiana e levando o homem a uma experiência mais totalizante. A festa assim
entendida entra no campo da mística, da exaltação da imaginação e da fantasia.

b) Estrutura religiosa da festa

A história da humanidade conhece grande variedade de festas, mas em todas encontra-se


um denominador comum: a atmosfera que envolve e caracteriza a celebração da festa e cada
um de seus momentos. A fenomenologia demonstra que a festa não passa de uma forma de
viver o tempo, determinada manifestação do tempo; com certeza, do tempo como realidade
simbólica e sacral, religiosa. Condensa-se nela o tempo sagrado abrindo ao homem a
dimensão transcendente do tempo divino. Dessa forma vive-se a festa como dom e graça,
11

como possibilidade de liberação total, gerando a crise do tempo ordinário e da existência do


dia-a-dia. O homem recupera na festa sua referência ao divino, sua relação com o mistério,
por meio das ações simbólicas e festivas da celebração que o abrem à festa que não acaba, à
eternidade sem fim.
Não têm outro sentido as proibições de trabalho na festa, os ritos ou atos de entrada, a
própria ruptura de nível, as diversas formas de sublinhar o contraste com o tempo ordinário.
Importa romper com o passado, ainda que seja retornando ao caos inicial para ressurgir depois
ao cosmo ordenado. Por isso a atividade festiva por excelência é o culto a Deus, em que
culmina toda a celebração da festa. Sem esse elemento de comunicação com o mundo divino,
com a transcendência, a festa não atinge seus níveis mais profundos de liberação e expansão da
consciência. Deixar trabalho, negócios, assuntos humanos, para dedicar-se melhor à atividade
gratuita, liberadora e transcendente do culto a Deus é condição indispensável. Infelizmente,
isso teve de ser imposto por preceito, perdendo-se a razão da exigência da festa. Mas,
naturalmente, é preciso haver motivo para fazer festa. E não se creia que já não haja outra razão
para ela que a força do hábito social e coletivo, o que podemos chamar o peso da tradição.
Certamente isso é muito importante. E mais, é possível que muitos dos que celebram festa não
saibam evocar outra razão que o costume, apelando a uma recordação imemorial.
É preciso aprofundar mais, investigar o subconsciente popular para descrever a lenda, o
relato épico ou milagroso, ou simplesmente o acontecimento histórico que com o passar do
tempo se distorceu e se desfigurou. No fundo de toda celebração festiva existe um
acontecimento mítico ou histórico-salvífico, segundo a esfera em que nos movamos. Ou seja,
segundo se trate de analisar uma festa na esfera das religiões reveladas, sobretudo bíblicas
(judaísmo, cristianismo). O mito ou o fato histórico-salvífico constituem a razão de ser, a
justificação e o objeto central das festas. Nem sequer os ritos e as ações simbólicas destinados
a evocá-lo ou a atualizá-lo constituem essa razão última, ainda que marquem o momento
culminante da celebração festiva.
A festa possibilita a celebração, que a reveste e concretiza no tempo ou nos tempos
litúrgicos. Ela certamente coincide com o dia, a unidade principal do tempo cósmico, mas não
se circunscreve somente a essa unidade. Há festas que duram vários dias, como toda oitava e
também a quinquagésima pascal que compreendem oito ou cinquenta dias respectivamente.
Ademais, a forma oriental ou semita de contar o tempo – do meio da tarde ao meio da tarde (I
vésperas), em vez de contá-lo de meia-noite a meia-noite – está mais em consonância com o
próprio espírito festivo que exige transição, preparação, momento de passagem do tempo
ordinário ao tempo festivo. A véspera da festa tem tanta importância quanto a própria festa:
algo flutua no ar e no ambiente, já se começa a perceber a atmosfera festiva, a festa é, em si
mesma, celebração.

c) Características da festa cristã

O que dissemos sobre a festa em geral se aplica também à festa cristã como ambiente de
celebração. Mas devemos destacar o que é específico da celebração festiva dentro do
cristianismo. O que vem a seguir não constitui apenas contribuições da fenomenologia, mas é
reflexão feita à luz da teologia litúrgica. Se a primeira dimensão é imprescindível por
constituir a base antropológica de aproximação da realidade festiva, é indispensável a
segunda. Esquecer-se disso é reduzir os tempos da celebração a meras representações formais
carentes de conteúdo soteriológico, ainda que carregadas de costumes e folclore religiosos. A
liturgia cristã é realidade divino-humana, constituída por elementos visíveis e invisíveis, mas
de tal forma que o humano e visível se ordena com relação ao divino e invisível (cf. SC 2).
Em outras palavras, a antropologia desvenda-nos apenas uma faceta da realidade, a
dimensão que, sendo fruto da cultura e criatividade dos homens, pode servir de veículo
12

necessário para expressar e manifestar o mistério; a teologia ajuda, sem descurar o dado
antropológico e apoiando-se nele, a penetrar no sentido salvífico das ações e formas rituais
oferecendo visão iluminadora a partir da fé e revelação. Esse esforço de esclarecimento
teológico leva inevitavelmente a apontar diferenças ou destacar peculiaridades. Não se trata
de fazer apologética mas de avançar no conhecimento e avaliação da realidade litúrgica do
tempo da celebração, realidade profundamente conexa, aliás, com outras formas de expressão
religiosa.
1) A primeira nota específica da festa cristã é ser sinal da presença do Senhor no meio
dos seus. O caráter lúdico, festivo e liberador de toda festa como epifania do poder divino e
do tempo sem fim atinge seu clímax nessa presença pessoal de Jesus entre os seus, e destes
nele. É a presença mútua prometida pelo Senhor, o Deus conosco (cf. Mt 1,23), o noivo que
se acha entre seus amigos (cf. Mt 9,15), o ressuscitado que sempre estará conosco (cf. Mt
28,30; 18,20).
Essa presença, de que é o portador Espírito Santo (cf. Jo 14,15-19; 20,19-22), constitui
a raiz última de toda eficácia santificadora e cultual da liturgia. Nada tem a ver com a
imitação ritual do agir divino que se reproduzia nas religiões primitivas, mas é dom gratuito
do Senhor, ator e autor invisível de toda celebração que se associa à Igreja e serve-se dela
como esposa e corpo sacerdotal a fim de ficar entre os filhos dos homens. A presença do
Senhor liga-se ao próprio fato de se reunir em assembleia litúrgica (cf. Mt 18,20; Jo 14,13-14)
e tem vários modos ou graus de realização (cf. SC 7).
2) Uma segunda característica teológica é seu valor prefigurativo e escatológico da
festa eterna do céu. As festas cristãs não são meras figuras imitativas e anunciadoras da festa
que não tem fim, mas são penhor e participação, velada ainda e imperfeita, da alegria celeste.
A grande característica da escatologia cristã é precisamente a de referir-se ao penhor do
Espírito (cf. 2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14) e aos céus novos e à terra nova que começaram com a
ressurreição de Jesus (cf. 2Pd 3,13; Ap 21,1-3).
As festas cristãs são o cumprimento da festa hebréia dos tabernáculos, a festa das festas
de Israel na qual o povo voltava a viver a experiência do deserto, quando Deus tinha a morada
de sua glória numa tenda entre as outras (cf. Lv 23,41-43; Os 12,10). Curiosamente, essa festa
não tem equivalente em nenhuma festa concreta do calendário cristão, mas acha-se diluída em
todas, porque a Palavra armou seu tabernáculo entre nós (cf. Jo 1,14) e Jesus já derramou seu
Espírito prometido no “último dia da festa (dos tabernáculos)” (Jo 7,37-38; 19,30.34; cf. Ez
47,1.10; Zc 14,6-16). O livro do Apocalipse descreve a liturgia celeste como a grande festa
dos tabernáculos (cf. Ap 7,9-17 etc.). Por isso, recorda o concílio Vaticano II que “na liturgia
terrena estamos em busca e participamos da liturgia celeste que se celebra na cidade santa de
Jerusalém, à qual nos dirigimos” (SC; cf. LG 49-50).
3) Uma terceira característica das festas cristãs enquanto ambiente da celebração é a
primazia da palavra de Deus proclamada, narrada, explicada, celebrada e atualizada na ação
ritual. Se as festas pré-cristãs giravam em torno do mito, e as de Israel convertem-se em
festas memoriais com base na palavra dos profetas e dos sábios, as festas cristãs acentuaram
essa última dimensão comemorativa e profética do sentido último da história e da existência
humana que se encerra na palavra de Deus. A novidade cristã, no entanto, da presença da
Palavra na festa está na referência de todas as Escrituras sagradas a Cristo e a seu mistério
pascal.
A Bíblia inteira, Antigo e Novo Testamentos, lida tal como a lê a Igreja na liturgia –
isto é, o Lecionário litúrgico da palavra de Deus –, desempenha, na comunidade que celebra a
festa, o papel de “patrimônio sagrado comum” que guarda a tradição histórica, espiritual,
catequética, mistagógica, pastoral etc. da Igreja. Acima e além dos costumes e manifestações
populares das festas cristãs, só haverá festa, que mereça esse nome, quando ressoar
13

verdadeiramente a palavra divina na comunidade e nos que participam da festa. Nunca se


insistirá suficientemente na importância da Palavra divina para toda ação litúrgica.
4) Por último, a festa cristã se caracteriza também por ter seu centro na ação eucarística,
ou seja, na celebração do memorial do Senhor. A eucaristia, segundo a unidade indissolúvel da
liturgia da Palavra e do sacrifício (cf. SC 56), é síntese de toda a história da salvação e
atualização eficaz do mistério pascal de Jesus Cristo (cf. 1Cor 11,26). Assume também a
resposta agradecida da fé dos que querem unir-se ao sacrifício de Cristo para oferecer-se como
hóstias vivas e espirituais (cf. Rm 12,1; 1Pd 2,5). Jesus nos deu na eucaristia a plenitude do
culto verdadeiro (cf. SC 5), de modo que nela o homem pode e deve realizar todas as
aspirações e disposições de seu espírito religioso e, ao mesmo tempo, encontrar a fonte de que
emana a vida divina que santifica tudo o que existe (cf. SC 10; LG 11).
A eucaristia está estruturada de maneira que nela encontram canal de expressão a bênção
e a súplica, a conversão e a adoração, a memória (anámnesis) e a oferenda (prosphorá), a
petição (epiclesis) e a intercessão, o louvor (doxologia) e a comunicação de todos os bens etc.
Assim como não há festa sem o rito – chame-se banquete, ou gesto coletivo, ou oferenda
pessoal –, assim também a festa cristã só tem sentido com a participação na eucaristia, fonte e
ápice de toda a celebração festiva e centro verdadeiro da festa.
Nesse sentido, o protótipo da festa cristã integral é a celebração do domingo, o dia do
Senhor, dia da Igreja, dia da Palavra e da Eucaristia, Oitavo dia.

6. O calendário festivo cristão

Não estudaremos aqui sua história nem sua atual composição, mas apenas apontaremos
os diversos substratos em que se apóia. Aludimos, na seção dedicada ao tempo na liturgia, à
liberdade com que a Igreja retomou vários elementos celebrativos, entre os quais os tempos e
as festas. Com efeito, o calendário festivo cristão e o ano litúrgico em seu conjunto levaram
de alguma maneira em conta tanto o substrato humano-religioso dos tempos sagrados
enquanto fenômeno universal, como o substrato do calendário litúrgico hebreu. Isso quer
dizer que os tempos litúrgicos cristãos assumiram os mais nobres e profundos valores das
diferentes contribuições humanas à mística e vivência do tempo e da festa.
Nesse sentido, o cristão que observa os tempos festivos do calendário litúrgico e do ano
do Senhor, neles acha realizado tudo o que significavam e desejavam os tempos sagrados pré-
bíblicos e pré-cristãos. Mesmo ao crente da metrópole urbana, desnaturalizada e
desumanizada, os tempos festivos do calendário cristão ainda remetem à vida da natureza e
aos ciclos fundamentais da existência. Talvez ele não saiba ou não consiga perceber as
conexões das festas com o cosmo e com seu próprio mundo interior, mas a liturgia não deve
renunciar a essa mediação e a essa linguagem cunhadas pela experiência religiosa universal.
Será preciso aprender a ler o significado genuíno das festas e dos tempos da celebração, será
preciso fazer catequese oportuna sobre a história da salvação e os acontecimentos que neles se
comemoram, sem contudo destruir uma estrutura cuidadosamente elaborada pela experiência
mistagógica da Igreja.

a) O substrato judaico: da antiga à nova Páscoa

Trata-se do substrato mais próximo do calendário festivo e do ano litúrgico cristão.


Entre os ritmos de celebração da religião hebreia e os de celebração cristã, existem mais
coincidências do que parece à primeira vista.
O tempo litúrgico hebreu compreendia, em primeiro lugar, um ritmo diário baseado em
orações e nos sacrifícios da manhã e da tarde. As horas principais eram a terça e a nona, às
quais se acrescentou a hora do “encerramento”, no fim do dia. Todo judeu piedoso observava
14

os três momentos de orações diárias (cf. Sl 55,17-18; Dn 6,10), que também Jesus e seus
discípulos praticaram (cf. Mc 1,35; 6,46; Lc 6,12 etc.; At 3,1; 10,9; 16,25). Em segundo lugar,
existia o ritmo semanal, que descansava no repouso sabático, ou seja, no dia de dedicação
total ao Senhor. Jejuava-se, em vista do sábado, nas segundas e quintas-feiras, e depois do
exílio faziam-se celebrações na sinagoga no próprio sábado com leitura contínua da torá e do
resto das Escrituras em ciclos semicontínuos. Ambos os ritmos de celebração, o diário e o
semanal, deixaram suas pegadas na forma cristã de santificar o dia e a semana, mediante as
horas do ofício divino e a eucaristia, e o domingo, respectivamente.
Por último, existia o ritmo anual, estruturado nas três grandes festas de peregrinação, as
três vezes (shelosh regaliîm) em que os hebreus maiores de 13 anos deviam apresentar-se
perante o Senhor em Jerusalém: 14 de Nisan, a Páscoa; 50 dias depois, na festas de Shavû‘ôt
ou das Semanas; e no dia 15 do mês sétimo (Tishrî) para a festa dos tabernáculos (Sukkôt) (cf.
Ex 23,14-19). Havia, além dessas, outras festas: Rô‘sh ha-Shanah, o ano novo, o dia primeiro
do mês sétimo, o começo mais antigo do ano; o Yom-Kippurîm ou dia das expiações, dez dias
depois; Hanukkah ou aniversário da dedicação do templo na época dos Macabeus, 25 do mês
nove; e Pûrîm, as Sortes, comemorativas da salvação do povo pela rainha Ester nos tempos do
rei Assuero da Pérsia.
Todas as festas eram acompanhadas por dias de preparação e jejum, e sua maior
característica é serem, como se sabe, festas memoriais dos fatos de salvação acontecidos para o
povo de Deus (cf. Ex 12,14.24-27; Lv 23; Dt 26). Essa é a herança preciosa do ano litúrgico
hebreu que assume o ano litúrgico cristão. As festas de Israel deram ao povo de Deus um meio
rico e dinâmico de manter viva a memória comum de ser propriedade do Senhor e responder a
essa eleição caminhando em sua presença. Ainda que o conteúdo das festas cristãs seja novo e
de certo modo diverso do celebrado pelas festas de Israel, o dinamismo simbólico, profético e
soteriológico destas passou intacto para o ano litúrgico cristão. O exemplo mais característico e
que melhor resume a transição da antiga à nova aliança é a festa da Páscoa, tão central no
calendário hebreu quanto agora no calendário festivo cristão.
A Páscoa nasceu da transformação de um rito ancestral de povos nômades, como era
Israel antes de seu assentamento na terra da promessa. Quando Deus salvou Israel das mãos
dos egípcios (cf. Ex 12,1-14), aquele rito sangrento de exorcismo e de comunhão no quadro
do novilúnio da primavera, transformou-se em festa em honra do Senhor para todas as
gerações. Acrescentou-se posteriormente a comida dos pães ázimos durante oito dias, ritual
próprio dos povos sedentários e agricultores, mas também impregnado do conteúdo
fundamental da Páscoa. Nos tempos de Jesus, só se celebrava a festa em Jerusalém – exceto
pelos grupos sectários do judaísmo –, e compreendia ela dois momentos, o sacrifício e
preparação do cordeiro e o banquete pascal nas casas.
Têm lugar no quadro dessa festa os acontecimentos finais da vida de Jesus e de maneira
particular a instituição da nova Páscoa de sua morte e ressurreição proclamada na eucaristia
(cf. 1Cor 11,23-26 e par). Logo a comunidade primitiva reconhece em Cristo a realização de
tudo o que significou a Páscoa de Israel (cf. 1Cor 5,7; Jo 1,29; 13,1; etc.). Como diz a antiga
homilia pascal de Melitão de Sardes: “A lei fez-se evangelho, o antigo renovou-se, a figura
converteu-se em realidade, o cordeiro agora é o Filho”. A morte do Senhor unifica as duas
alianças, as duas Páscoas, os dois calendários festivos, o de Israel e o da igreja.
Todavia, do ponto de vista dos tempos da celebração, produz-se importante diferença
entre a Páscoa litúrgica cristã e o rito pascal judaico. Enquanto este ocorre uma vez no ano, ao
chegar o dia 14 de Nisan, os cristãos reúnem-se para celebrar a Páscoa do Senhor a cada oito
dias, no primeiro dia da semana que logo adquire o nome de domingo (cf. Jo 20,19-26; At
20,7; 1Cor 16,2; Ap 1,10). O domingo é a festa pascal semanal dos cristãos.
Mas muito brevemente, talvez antes do que cremos, nos ambientes judeu-cristãos
possivelmente, celebrou-se também a recordação anual da morte do Senhor com um ou vários
15

dias de jejum. A primeira referência é a Carta dos apóstolos, documento apócrifo do séc. II, à
qual seguem os testemunhos das homilias pascais e sobretudo a famosa questão pascal do
séc. II, recolhida por Eusébio de Cesaréia em sua célebre História eclesiástica. Essa primitiva
celebração anual da Páscoa, conhecida como Páscoa quartodecimana porque coincidia com a
festa judaica, desaparece sob a pressão da festa pascal “ocidental” (romano-alexandrina),
celebrada no dia seguinte ao da Páscoa judaica. O concílio de Nicéia sancionou essa
celebração, verdadeiro ponto de partida do ano cristão.

b) O substrato humano-religioso

O calendário festivo cristão e o ano litúrgico em seu conjunto possuem também um


substrato ainda mais profundo que o substrato judaico. É o substrato descoberto quando se
observa a situação da maioria das festas cristãs no curso do ano natural – tempo cósmico – e
sua analogia com o significado humano e religioso das festas pré-cristãs.
Com efeito, as principais solenidades e festas do calendário cristão como Páscoa,
Pentecostes, o corpo e sangue de Cristo, Natal, epifania etc. coincidem com os principais
tempos festivos das civilizações antigas que povoaram a área mediterrânea e, em geral, o
hemisfério norte. Ao lado das festas do Senhor, estão também as de Nossa Senhora e de alguns
santos, que, sem ser objetivamente importantes como as primeiras, alcançam grande
popularidade graças precisamente à sua situação estratégica no ano. Assim, por exemplo, a
festa de alguns santos protetores entre janeiro e fevereiro, a festa da Candelária (nome popular
da Apresentação do Senhor), São Marcos (25 de abril) etc., São João Batista (24 de junho), a
Assunção (15 de agosto), a Natividade de Nossa Senhora (8 de setembro), São Mateus (21 de
setembro), São Miguel (29 do mesmo mês), São Martinho (11 de novembro) etc.
Não é difícil perceber a coincidência das festas de maior peso litúrgico e popular com
os primitivos tempos pré-bíblicos e pré-cristãos. Por um lado, temos o ciclo, que poderíamos
denominar cósmico-astronômico, em que se situam certamente o Natal e São João Batista, nos
solstícios de inverno e de verão, respectivamente; Páscoa e são Mateus, nos equinócios da
primavera e do outono. Com esse ciclo estariam em relação também algumas festas que
guardam ou guardavam entre si períodos de 40 dias, como a candelária com respeito ao Natal,
as rogativas da ascensão com respeito à Páscoa, São Martinho com respeito a São Mateus etc.
Temos, por outro lado, festas típicas do inverno, como a dos santos protetores em janeiro e
fevereiro, da primavera e das outras estações. Outras festas ocupam hoje o lugar do começo e
do fim dos trabalhos agrícolas, como Páscoa e Pentecostes, que, segundo os lugares, assi-
nalam o princípio e o fim da colheita; São Miguel, começo da semeadura etc.
Como interpretar esse fato? Quer dizer, como às vezes se afirma, que as festas do
calendário cristão são as mesmas de sempre, recuperadas depois de adequada purificação ou
batismo? A primeira coisa a dizer é que o cristianismo já deparou com um processo de
transformação das festas naturalísticas em festas comemorativas de acontecimentos de
salvação no calendário festivo de Israel. Isso afeta sobretudo as festas da Páscoa e de
Pentecostes. Mas, além disso, criou outras festas aproveitando as pegadas que na linguagem
e nos costumes dos povos recém-convertidos as antigas festas pré-cristãs tinham deixado.
Esse é o caso, provavelmente, do Natal e de outras festas de que é possível demonstrar
ascendência mais remota quanto à própria data. O certo é que a Igreja nunca deixou de expor
e apresentar aos fiéis o conteúdo genuinamente cristão das festas, servindo-se das referências
cósmico-naturalísticas e antropológico-culturais que existiam na situação concreta das festas
no calendário. As homilias e catequeses dos santos Padres sobre as festas seriam
incompreensíveis sem essa referência, tão utilizada por eles como as referências à Bíblia e à
história da salvação.
16

Outra coisa foi, certamente, a celebração das festas no âmbito meramente popular. É aí
que se mesclam crenças e lendas, liturgia e folclore religioso, a fé e o obscuro mundo da
superstição. Em todo caso, as festas foram um desafio e um canal para a evangelização e
educação da fé dos povos nem sempre bem-aproveitado.
Também se relacionam com o substrato mais profundo das festas religiosas os
acontecimentos da vida humana que requerem tempos de celebração. Falamos dos tempos em
que o homem celebra o nascimento, a entrada na adolescência, o matrimônio e a morte. Ao
lado desses há outros tempos que também deixam pegadas, como a doença, a inauguração de
uma casa, a partida do lar paterno etc. Em certos casos atuam os chamados rituais de
passagem, que acham equivalente em alguns sacramentos cristãos, como o batismo e o
matrimônio, e em alguns sacramentais, como as exéquias, a consagração religiosa, as bênçãos
etc.
Não há dúvida acerca da força profunda dessas celebrações no âmbito das pessoas e das
famílias, e mesmo da sociedade sobretudo camponesa e rural. As celebrações litúrgicas
relacionadas com todos esses pequenos e grandes acontecimentos têm procurado acolher as
situações e os comportamentos humanos e religiosos dos que os protagonizam e vivem.
Novamente estamos diante de um desafio para a pastoral litúrgica em chave evangelizadora.
Resumindo, os tempos festivos do calendário cristão, ou os ritmos de celebração que o
ano litúrgico propõe, assumiram e deram nova forma às mais ricas e profundas aspirações que
encerra o tempo vivido como espaço em que o espírito se dilata e se abre à transcendência.
Cristo, Senhor da história, ao colocar o tempo dos homens sob seu domínio libertador, redime
o tempo fazendo dele meio de sua presença salvífica.

7. Teologia do ano litúrgico

Nessa última parte queremos concretizar o que dissemos do tempo da celebração e da


festa em geral para aplicá-lo à realidade que chamamos ano litúrgico.
O ano litúrgico é muito mais que um conjunto de ciclos e tempos de celebração com
seus ritmos próprios. Em todo caso, tal é o calendário litúrgico, expressão visível e
estruturada do ano litúrgico. O ano litúrgico, que hoje marca cada vez mais as atividades
pastorais das comunidades cristãs, é um sinal sagrado da liturgia, fruto não de ideia
preconcebida nem resultado do trabalho de alguns especialistas de gabinete dessa ou daquela
época da história da liturgia. O que sabemos do ano litúrgico corresponde ao ponto de
chegada de um longo caminho que cada rito particular da Igreja percorreu, de acordo com sua
visão e celebração do mistério de Jesus Cristo na história e nos lugares onde se assentou,
ainda que existam coincidências fundamentais no ano litúrgico dos diversos ritos. Realmente
o ano litúrgico nasceu e se desenvolveu no Oriente e no Ocidente respondendo às mesmas
exigências e aos mesmos imperativos: recordar e viver o mistério de Cristo para torná-lo
presente e atual no tempo dos homens. Na terra fértil da fé, à luz da palavra de Deus e sob a
inspiração do Espírito, as Igrejas deram forma ao que hoje chamamos ano litúrgico.

a) O que é o ano litúrgico

Para chegar a definir, ou melhor, descrever o que é o ano litúrgico, devemos verificar
antes de tudo o substrato comum, partilhado pelo Oriente e Ocidente cristãos, de uma teologia
bíblica da história e do tempo como esfera da salvação. Dessa perspectiva teológica, o ano
litúrgico é uma epifania da bondade de Deus que fez irrupção e manifestou-se no decorrer da
história da salvação. Mas é também resultado do empenho do povo de Deus de responder a
essa bondade na fé e na conversão, ou seja, caminhando na presença do Senhor para viver na
fidelidade à eleição de que foi objeto, ou seja, na comunhão da aliança.
17

Partindo da plataforma herdada da liturgia judaica, em particular do ano litúrgico


hebreu, a Igreja cristã – as comunidades primitivas e, mais tarde, as Igrejas locais mais
estruturadas – organizou e formalizou sua contemplação e vivência do mistério de Jesus que
se realiza na vida de cada um dos fiéis e acha expressão e atualização adequadas na liturgia. A
leitura e proclamação da palavra de Deus, a reflexão catequética vivencial e existencial
orientada para a participação sacramental e litúrgica, o esforço para realizar na boa conduta as
exigências que a participação nos divinos mistérios acarreta foram outros tantos fatores que,
unidos ao gênio espiritual e cultural de cada tempo e lugar, deram origem ao ano litúrgico e o
configuraram como realidade simbólica e salvífica na linha das obras realizadas em Jesus
Cristo e atualizadas pela Igreja. Nesse sentido a liturgia, fiel intéprete do que se acha revelado
na Escritura, não fez senão multiplicar as formas de inserção da presença salvadora de Jesus
no tempo e na história. O ano litúrgico é uma dessas formas, e não a menos importante, por
meio das quais Jesus continua atuando sem cessar no tempo, facultando-nos a entrar em
contato com todos e cada um dos acontecimentos salvíficos de sua existência histórica, que
são para nós fonte e causa da vida divina e da graça.
Dois fatores ou idéias fundamentais guiaram, simultânea e coincidentemente no Oriente
e no Ocidente, a tarefa da organização do ano litúrgico e impulsionaram seu desenvolvimento:
trata-se, por um lado, do protagonismo de Jesus no ano litúrgico e, por outro, da necessidade
de “imitar” o mistério pascal da bem-aventurada paixão e gloriosa ressurreição do Senhor
como fruto da vocação cristã marcada pelos sacramentos da iniciação.

b) O protagonismo de Jesus no ano litúrgico

O protagonismo de Jesus no conjunto e em cada uma das celebrações do ano litúrgico


parte da consciência viva da Igreja apostólica que viu em Jesus de Nazaré o Messias e Filho
de Deus, aquele que em sua vida e obras realizou perfeitamente o que anunciavam,
prefiguravam e significavam as antigas festas de Israel e em geral toda a história do povo de
Deus anterior a ele.
Dos Sinóticos a João, dos Atos ao Apocalipse, Jesus surge como o verdadeiro
protagonista das festas do ano 1itúrgico hebreu: da Páscoa, porque ele é o Cordeiro de Deus
que tira o pecado do mundo, “nossa Páscoa imolada”, como dirá Paulo (1Cor 5,7); de
Pentecostes, porque subiu aos céus para receber do Pai e derramar sobre os homens a nova
Lei do Espírito, como primícias da salvação escatológica; dos tabernáculos, porque é a fonte
da água viva do Espírito e, como Luz do mundo, enche com sua presença a terra inteira; da
expiação, porque entrou de uma vez para sempre no tabernáculo eterno com seu sangue que
obteve a purificação dos homens; do ano novo, porque ele, novidade absoluta, inaugurou uma
nova era, um ano de graça e anistia que não terá fim; da dedicação, porque ele é o novo
templo onde se dará culto ao Pai em Espírito e verdade; das sortes porque ele é o primogênito,
vencedor da morte e restaurador da vida; do sábado, porque é seu senhor e dono ao cumprir
as obras do Pai aceitando a morte para regenerar o homem e restituir-lhe a imagem e
semelhança divina com que foi criado.
Desse feixe de festas litúrgicas, que já tinham dado ao povo de Deus poderoso
instrumento sacramental e incoercível ritmo de crescimento na fidelidade ao espírito da
aliança, a Igreja antiga foi tomando com liberdade e discernimento muitos elementos que
vieram a integrar o ano litúrgico cristão. À luz do Mistério pascal, sob a poderosa assistência
do Espírito que confere a inteligência das Escrituras, e dentro da perene experiência de fé no
Senhor ressuscitado e, consequentemente, em sua presença prometida entre os seus, a liturgia
cristã organizou, sem poupar esforços, seu próprio ciclo festivo, destacando ora um aspecto
ora outro, sem deixar de enfatizar todos os mistérios da vida de Jesus. Dessa forma reafirma
também o senhorio de Jesus sobre a história e de novo o faz protagonista e centro de cada
18

uma das festas ou ciclos do ano litúrgico. O ano litúrgico é, por conseguinte, ano de Cristo,
ano cristão que vive de Cristo. O Senhor, em seu mistério supra-histórico, continua possuindo
o tempo e fazendo dele o âmbito de sua presença salvífica.

c) A imitação de Cristo

A segunda idéia fundamental da formação do ano litúrgico é, como dissemos, a


necessidade de os cristãos não só celebrarem Jesus Cristo, mas também de se conformarem ou
serem conformados com ele. Trata-se de uma das características fundamentais do culto da
nova aliança: a existência de santidade interior, a necessidade de que o gesto externo, seja
qual for, acompanhe a atitude do coração e o obséquio da vontade. “Sede santos, porque ele é
Santo” (Mt 5,48; etc.) é a norma suprema da vida de perfeição anunciada por Jesus. Se a
aliança antiga já implicava, como recordavam sem cessar os profetas, o sacrifício do coração
humilhado e contrito, a nova, baseada no amor do Pai, promulgada pelo sangue de Jesus e
selada pelo dom do Espírito, exige de modo absoluto a verdade do culto interno. Por isso o
ano litúrgico, proposto aos fiéis cristãos como meio de glorificação de Jesus e caminho de
fidelidade ao Pai, deve ser também instrumento e ocasião para imitar o Senhor.
Mas o que significa imitar Jesus Cristo? Seria suficiente entender essa imitação em
sentido ético e moral, como obediência ao Pai e aceitação de sua vontade? Certamente imitar
Jesus Cristo, no·sentido a que vamos nos referir, acarreta e implica essas atitudes. Mas aqui
vamos falar de imitar Jesus Cristo segundo o sentido que o vocabulário cristão antigo dava a
essa palavra: bíblico, patrístico e litúrgico, para aludir à configuração ou conformação do
homem batizado e confirmado com Cristo, imagem e ícone da glória do Pai (cf. 1Cor 11,7;
2Cor 4,4; Cl 1,15). Essa “imitação”, que houve quem chamasse de “Lei da mimese da vida de
Cristo”, é todo um processo que começa com os sacramentos da iniciação cristã – porque
iniciam e consagram os começos da vida cristã – e se desenvolve pouco a pouco pela
penitência e eucaristia até chegar a hora de o cristão passar deste mundo ao Pai, depois de
restaurada e recuperada inteiramente a imagem e semelhança divina com que o homem foi
criado (cf. Gn 1,26-27; Cl 3,10; 1Cor 15,49).
O homem novo vive esse processo que se iniciou no batismo e tem seu modelo e figura
em Jesus, imagem perfeita do Pai, Filho de Deus e irmão dos homens, que se encarnou,
nasceu, padeceu, morreu, ressuscitou, subiu aos céus, enviou o dom do Espírito do Pai e do
Filho, está sentado à direita da majestade e voltará de novo com glória. Todos esses
acontecimentos salvíficos da vida de Jesus, que chamamos de mistérios enquanto presentes e
operantes no tempo mediante as ações litúrgicas, têm valor típico e revelador do que ocorre
no nascimento, crescimento e desenvolvimento do cristão, configurado sacramental e
misticamente com Jesus Cristo. Nos sinais e símbolos litúrgicos, ex opere operato uns e ex
opere operantis Ecclesiae outros, Jesus se torna presente com o poder salvífico de todos e de
cada um de seus mistérios que um dia foram visíveis e após sua glorificação tornaram-se
invisíveis, tendo passado de sua aparência e visibilidade aos sacramentos da Igreja,
prolongação da humanidade glorificada do Verbo encarnado pela força do Espírito (cf. Jo
19,30.34; 1Jo 5,6). É, portanto, graças aos sacramentos e a toda a liturgia que cada cristão,
pela fé e pelo Espírito, configura-se com o modelo que é Jesus e, como ele, vem a ser filho de
Deus, se bem que adotivo, e herdeiro da vida eterna.
É nisso que consiste a imitação de Jesus a que nos referimos: a reprodução, em cada um
de nós, dos mistérios da vida de Jesus e a revivescência de suas ações salvíficas, recapituladas
na única e principal gesta de sua morte e ressurreição. Note-se, porém, que essa obra, ainda
que diga respeito a cada cristão em particular, não é tarefa individual nem pode ser realizada à
margem e fora da comunidade que o próprio Jesus instituiu com essa finalidade. Ou seja,
ninguém pode dar-se a si mesmo a imagem de seu ser cristão. Esse dom só vem de Deus por
19

mediação de Jesus que, com a presença e o poder do Espírito, se serve do ministério da Igreja,
depositária e administradora da palavra e dos gestos salvíficos de Deus realizados em Jesus
Cristo. Portanto, é no seio da comunidade cristã, a Igreja congregada e reunida pela Palavra
divina e pela força do Espírito Santo, que Jesus fala, perdoa, batiza e alimenta, visando fazer
dos homens outros “cristos” ou “messias”, outros filhos de Deus e herdeiros da vida eterna.

d) A vida sacramental do cristão

Ora, uma vez que se realiza a configuração com Jesus mediante os sacramentos, que
papel desempenha o ano litúrgico em sua celebração e administração?
Continuando nossa exposição, constatamos que grande número de pastoralistas e
teólogos dos sacramentos se esquece da realidade viva que é práxis litúrgica da Igreja que,
sobretudo nos tempos antigos, nunca separou a vida sacramental da celebração do ano
litúrgico, mas sempre pôs aquela em estreita relação e dependência com este.
A imitação de Jesus Cristo, de que falamos antes, pedia que a imagem de Jesus
“historicizasse” a vida cristã, a participação litúrgica e a administração dos sacramentos. Ou
seja, que dessa presença vivida e celebrada do Senhor, de cada um de seus gestos salvíficos,
especialmente de sua morte e ressurreição, procedessem a explicação, a menção e a expressão
de cada um desses mistérios no tempo e na existência histórica dos cristãos. Não havia,
portanto, apenas razão histórica ou simplesmente catequética para que a Igreja antiga
celebrasse a iniciação cristã na noite pascal e para que mais tarde voltasse a recomendá-la
nessa mesma noite, e durante o período dos cinquenta dias seguintes fizesse os fiéis reviverem
a alegria e os outros sinais da presença do ressuscitado, do esposo que novamente se encontra
entre seus amigos. Também não se explica suficientemente pela história e pela pedagogia
cristã a organização da quaresma em função do catecumenato e do Ordo paenitentium. Por
que, afinal, gostavam tanto os santos Padres de dar suas catequeses sobre os sacramentos
sempre relacionando-as com momentos concretos da vida de Jesus?
Há mais que razões históricas e antropológicas em tudo isso. Não é em vão que se
encontram nas próprias páginas do Novo Testamento, como fruto da reflexão eclesial
primitiva sob a condução infalível do Espírito que introduz na verdade plena (cf. Jo 14,26;
16,23), tanto a aplicação a Jesus e à Igreja e a seus meios de santificação das figuras e
imagens do Antigo Testamento, como a referência das ações e fatos da vida de Jesus aos
sacramentos cristãos. Basta deter-se no capítulo 6 da carta aos Romanos, nas narrativas da
ceia, das multiplicações de pães e de outras refeições de Jesus com os discípulos, nas curas de
enfermos, no evangelho inteiro de João, todo ele impregnado pela concepção sacramental da
vida de Jesus e da Igreja sob a ação do Espírito.
A razão última, teológica, da relação entre vida sacramental e ano litúrgico está no fato
de a vida histórica de Jesus ser o único parâmetro e paradigma da vida cristã, sobretudo se a
entendemos como assimilação e conformação progressivas com o Filho de Deus pela força do
Espírito Santo que o Pai derramou em nossos corações quando fomos regenerados nas águas
do batismo. Jesus, portanto, é o único protagonista da salvação humana, e todos os seus atos,
gestos ou passos revelaram-se como portadores de determinado aspecto da salvação que Deus
opera nos homens. A liturgia, desdobrando a gama dos acontecimentos salvíficos da vida de
Jesus no decorrer do ano, está fazendo algo mais que propô-los como maravilhosos exemplos
para a meditação piedosa ou contemplação, por importante que seja esta. Está projetando
perante nosso olhar nossa própria história salvífica, a história dos fatos de salvação que passo
a passo a vão tecendo e que com nossas respostas de conversão e fé faz-nos sentir também
como seus sujeitos ativos, pela graça de Jesus e pelo poder do Espírito. Quando celebramos
uma festa, um domingo ou todo um ciclo litúrgico, não somente contemplamos Jesus
20

vencendo o mal por nós e em nós, mas nos vemos também a nós vencendo, pela virtude dos
sacramentos, por ele, com ele e nele nosso próprio pecado.
Nesse sentido as palavras de Paulo VI, que citamos a seguir, significam importante
avanço na doutrina pontifícia sobre o ano litúrgico na linha do Vaticano lI, sobretudo se as
comparamos com o que disse Pio XII na Mediator Dei. Diz Paulo VI:

A celebração do ano litúrgico tem peculiar força e eficácia sacramental para


alimentar a vida cristã... Com razão, ao celebrar o mistério do nascimento de
Jesus e de sua manifestação ao mundo, pedimos [que possamos nos transfor-
mar interiormente segundo a imagem daquele que reconhecemos semelhante
a nós em sua humanidade]; e, ao renovar a Páscoa de Jesus, suplicamos a
Deus que os que renasceram com ele mantenham-se fiéis durante a vida à fé
que receberam no sacramento. Pois, usando palavras do concílio Vaticano II,
a Igreja, [comemorando assim os mistérios da Redenção, abre as riquezas do
poder santificador e dos méritos de seu Senhor, de tal maneira que de certo
modo se fazem presentes em todo tempo para que possam os fiéis pôr-se em
contato com eles e encher-se da graça da salvação].

e) A presença do Senhor no ano litúrgico

Constata-se também, na base teológica do ano litúrgico, uma profunda intuição da


Igreja que tem muito a ver com o que antes dissemos a propósito do valor sacramental do
tempo litúrgico. A liturgia, com efeito, para multiplicar as formas de inserção da presença de
Jesus na existência humana, funde em um só momento histórico aquele tempo (in illo
tempore; in diebus illis, diz o leitor na liturgia) em que tiveram lugar os eventos salvíficos e
de maneira particular a vida histórica de Jesus, o Filho de Deus feito homem, e o tempo atual
da celebração, nosso aqui e agora. Sendo assim, o que escutamos nas leituras ou na
proclamação do evangelho não apenas retorna à nossa memória, mas também se produz sob
os sinais da celebração.
Certamente os fatos históricos do passado não podem voltar a se repetir em sua
densidade espácio-temporal. Nesse sentido os acontecimentos salvíficos são irrepetíveis em si
mesmos, ainda que a comunidade ou o povo que os evoca e celebra tenha consciência de
tomar parte na salvação que encerram e atualizam. Essa consciência fica patente no ritual da
ceia pascal judaica, protótipo do alcance e valor atualizador do rito-memorial. Falamos agora
não só de atualização de eficácia salvífica dos acontecimentos passados, mas também de certa
presença desses acontecimentos salvíficos, de modo particular os protagonizados pelo Verbo
encarnado aos quais chamamos mistérios de Cristo ou da vida histórica de Jesus.
Neste tema aflora a doutrina dos mistérios de Odo Casel, tão controvertida em seu
tempo, que hoje podemos interpretar melhor à luz da doutrina da Mediator Dei de Pio XII e,
sobretudo, do Vaticano II. O que Casel queria dizer não é que os acontecimentos da vida de
Cristo se fazem de novo presentes em sua realidade humana e histórica, mas enquanto ações
salvíficas atribuídas à pessoa do Filho de Deus feito homem. Para Casel, o que se faz presente
nas ações litúrgicas é o aspecto divino e eterno dessas ações “teândricas” e não meramente
humanas. A chave do pensamento caselino era a representação mistérica ou presença do
acontecimento de salvação nos ritos e no tempo da celebração.
O papa Pio XII, na encíclica Mediator Dei (do ano de 1947), sem aludir a Odo Casel,
acolhe o mais substantivo de seu pensamento:

O ano litúrgico... não é fria e inerte representação de fatos que pertencem ao


passado, ou simples e desnuda evocação de realidades de outros tempos. É
antes Cristo mesmo, que vive em sua Igreja sempre e prossegue o caminho
21

de imensa misericórdia... a fim de pôr as almas humanas em contato com


seus mistérios e fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente
presentes e operantes não na forma incerta e nebulosa de que falam alguns
escritos recentes, mas porque, como ensina a doutrina católica e segundo a
sentença dos doutores da Igreja, são exemplos ilustres de perfeição cristã e
fonte das graças divinas pelos méritos e intercessão do Redentor e porque
perduram em nós por seu efeito, sendo cada um deles, na maneira adequada à
sua índole particular, causa de nossa salvação.

Não há, com efeito, representação fria e inerte de fatos passados, mas também não há
recordação pura e simples de acontecimentos. A encíclica considera que os mistérios de Jesus
são “exemplos ilustres de perfeição cristã e fonte das graças divinas pelos méritos e pela
intercessão do Redentor e porque perduram em nós por seu efeito”. Nesse sentido são causa
de nossa salvação e ainda continuam vivos para que os fiéis se ponham em contato com eles.
O mesmo ensinamento faz o concílio Vaticano II tomando as expressões da encíclica
Mediator Dei, mas reforçando-a com alusão ao poder santificador de Jesus (sua virtus divina)
que os fiéis podem tocar (cf. Lc 6,19; Mc 5,28-30). Segundo isso, a presença dos mistérios de
Jesus Cristo no ano litúrgico não é tampouco presença místico-espiritual, própria da
contemplação imaginativa e da meditação dos “exemplos ilustres de perfeição cristã”, como
dizia a encíclica, mas presença mistérico-sacramental, ou seja, na ação ritual, nos sinais e no
conjunto da celebração litúrgica. Casel não fez mais que trazer à luz a concepção paulina e
patrística do mistério de Jesus em sua atualização sacramental, ainda que possivelmente não
tenha acertado na metodologia ao relacionar a liturgia cristã com as religiões mistéricas.
Sendo assim, pode-se falar de uma presença de Cristo e de seus mistérios nos tempos
litúrgicos, nas festas e no ciclo anual, como o faz o Vaticano II em SC 102, ou seja,
concretizando esse modo de presença nas ações litúrgicas que a Igreja realiza em dias
determinados ao longo do ano para atualizar a obra de nossa salvação. Em definitivo, a
presença de Jesus nos tempos da celebração produz-se e expressa-se na assembléia reunida
para a festa, na proclamação da Palavra, nos atos sacramentais e sobretudo na eucaristia. Por
meio dessas celebrações, Jesus faz-se presente à sua Igreja e santifica os dias, as semanas e os
anos. Mas esses dias determinados, entre os quais sobressai o domingo, também são âmbito
da presença do Senhor do tempo e da história. Os cristãos que celebram o domingo e as festas,
os tempos e o ano litúrgico, estão conscientes de que é a totalidade do tempo festivo que está
inundada da presença de Jesus, não somente o momento da celebração. Por isso eles
“santificam” também o tempo ao referir ao Senhor toda a realidade humana, familiar, cultural,
desportiva etc., e é claro que toda atividade evangelizadora, caritativa, espiritual e pastoral a
que se dedicam nos “dias do Senhor”.
Assim como a assembléia litúrgica, o ministro sagrado, a Palavra proclamada, os atos
sacramentais e a eucaristia são sinais eficazes da presença de Jesus (cf. SC 7), assim também
os dias festivos e os tempos litúrgicos são sinais igualmente eficazes dessa presença. Cada um
segundo o grau e o modo que lhe é próprio. Nesse sentido o ápice estará sempre na celebração
eucarística e, de maneira mais concreta, nas espécies sacramentais e enquanto essas
subsistem. Mas os tempos litúrgicos dão fé de que Jesus Cristo entrou para sempre – ephápax
– no tempo para redimi-lo e transformá-lo em tempo de graça e salvação (cf. Rm 13,11-12;
2Cor 6,2). Na sinagoga de Nazaré Jesus declarou abertos para sempre os últimos tempos, o
permanente ano jubilar do Senhor (cf. Lc 4,19.21).
Nos dias determinados para a celebração, Jesus se manifesta como plenitude dos
tempos (cf. Gl 4,4), recapitulador de tudo o que existe (cf. Ef 1,9-11; Cl 1,18-19), o mesmo
“ontem, hoje e pelos séculos” (Hb 13,8). Nessa perspectiva da presença de Jesus nos tempos
da celebração, o dia e o ano litúrgico inserem-se no mistério de Jesus Cristo plenitude dos
22

tempos e Senhor da história. “O ano litúrgico é o gesto salvífico de Jesus Cristo que entrou no
tempo e nele permanece. É o mistério do tempo cristificado.”

f) O ano litúrgico e a eucaristia

O ano litúrgico, contemplado como epifania de Cristo no tempo em função do processo


de nossa identificação com ele por meio dos sacramentos, é celebração e atualização mediante
a sagrada recordação de tudo o que ocorreu em Jesus e por Jesus para nossa salvação.
Recordação sagrada que implica não só a proclamação da palavra divina nas leituras e nos
salmos, mas também a oração da Igreja e a ação ritual na qual se cumpre tudo o que foi
anunciado. Nesse ponto a recordação sagrada que a Igreja faz de Jesus e de sua obra salvífica
coincide com a anamnese-epiclese eucarística, ou seja, com a celebração da eucaristia,
memorial entregue por Jesus à sua Esposa (cf. 1Cor 11,24-26 par.).
A eucaristia surge então como o centro do dia e do ano litúrgico, como o núcleo que
sintetiza todo o mistério da salvação que se desdobra nos diversos tempos da celebração. Se
todo sinal sacramental e toda realidade eclesial têm sua raiz e sua fonte no mistério eucarístico
e para ele orientam, outro tanto se pode dizer dos tempos litúrgicos: todos giram em torno da
celebração eucarística. E mais, entre o ano litúrgico e a oração eucarística, ápice da celebração
da eucaristia, existe significativo paralelismo que tem sua explicação histórica no
desenvolvimento do calendário festivo cristão, e sua explicação teológica no íntimo laço que
une a sagrada recordação dos tempos litúrgicos com a anamnese-epiclese eucarística.
Com efeito, foi Odo Casel também que chamou a atenção para esse fato ao estudar a
formulação dos mistérios de Cristo na anamnese das orações eucarísticas e nos testemunhos
dos Santos Padres sobre a dimensão de memorial da eucaristia. “É preciso prestar atenção ao
notável paralelo que existe entre o desenvolvimento da anamnese e o do ano eclesiástico. A
mais antiga anamnese menciona a paixão; da mesma maneira a Páscoa era a única festa dos
cristãos, englobando nela a morte e a ressurreição (com a ascensão e a vinda do Espírito).
Correspondendo à rica expansão do ano eclesiástico, que começa no séc. IV, a anamnese
manifesta por sua vez um desenvolvimento mais amplo. Muito cedo o Oriente celebra a
epifania como a segunda festa principal, e também surge a encarnação como objeto da
anamnese. E, como o Oriente retém também o espírito escatológico dos primeiros tempos, a
parusia desempenha um importante papel na memória mistérica.”
As orações eucarísticas do Oriente mencionam, com efeito, todos os mistérios de Cristo,
desde a encarnação até a última vinda. As do Ocidente atêm-se à tradição representada pelo
cânon romano, a única oração eucarística existente na Igreja de Roma até a reforma litúrgica
depois do Vaticano II, e à tradição da liturgia hispânica, que contém grande número de
orações eucarísticas, mas com formulação mais concisa da anamnese. O cânon romano
menciona unicamente a “bem-aventurada paixão, a santa ressurreição dentre os mortos e a
admirável ascensão aos céus”, manifestando assim sua grande antiguidade.
A liturgia hispânica tem uma originalíssima maneira de realizar a recordação dos
mistérios de Cristo. O sacerdote parte a hóstia em nove fragmentos e os coloca na pátena
dizendo: “Encarnação, nascimento, circuncisão, aparição, paixão, morte, ressurreição, glória,
reino” . Desse modo se expressa a maravilhosa unidade de todos os mistérios, desdobrados no
decorrer do ano, com a eucaristia, sacramento da Páscoa do Senhor e núcleo da obra da
redenção humana. A eucaristia contém o próprio Jesus com seu sacrifício pascal, e com cada
um dos mistérios ou acontecimentos com os quais realizou a obra redentora, evidentemente
não em sua entidade histórico-temporal e humana mas em sua dimensão salvífica, meta-
histórica e divina.
No centro de cada uma das festas do ano litúrgico e de cada um dos domingos estará
sempre a eucaristia, sem a qual a memória eficaz que a Igreja realiza da obra de seu divino
23

Esposo permaneceria mera evocação subjetiva. Por isso não há domingo, nem festa, nem
solenidade alguma, sem eucaristia. E esta expressa a indissolúvel unidade de cada um dos
mistérios com o mistério pascal.
24

2 – DOMINGO, O DIA DO SENHOR

J. Aldazábal

O domingo é um dos valores fundamentais da comunidade cristã. Nele se concentram,


como que em sacramento semanal cheio de riqueza, a centralidade de Jesus e sua Páscoa, a
experiência comunitária da igreja, a celebração da palavra de Deus e da eucaristia como
construtores dessa comunidade, a alegria pascal do descanso...
É uma herança preciosa que remonta – como poucas outras realidades do cristianismo –
à primeira geração apostólica. O domingo é a origem e ao mesmo tempo uma espécie de
resumo semanal de todo o ciclo do ano cristão.
Ultimamente está se desenvolvendo na Igreja uma reflexão mais completa do que
significa o domingo, com uma linguagem nova que se observa também nos documentos do
magistério.
Mas entre essa riqueza e a situação atual persiste uma distância considerável. Há uma
série de fatores que estão contribuindo para que o domingo não seja o que deveria ser dentro
da comunidade cristã.
A secularização, que nos últimos decênios invade a sociedade, sobretudo a ocidental,
está produzindo rápido processo de erosão no sentido cristão do domingo. Apreciam-se nele
valores humanos inegáveis, muitos dos quais conquistas legítimas da humanidade. O domingo
aparece cada vez mais como “o dia do homem”, mas na mentalidade de muitos não mais cabe
considerá-lo também “o dia do Senhor”, com seus valores transcendentes e propriamente
cristãos.
Manifesta-se isso não só na diminuição dos que se reúnem para a celebração eucarística,
mas também na falta de sentido cristão na compreensão do domingo como dia pascal em toda
sua extensão.
Está influindo notoriamente nessa recessão a nova fisionomia que a sociedade
apresenta, com a grande mobilidade que produzem o turismo, a fuga da cidade para a natureza
e a “segunda residência”, assim como as múltiplas ofertas de lazer que o “fim de semana”
apresenta no campo esportivo, político, cultural etc.
Inclusive em alguns países, parece correr risco uma instituição que se transformasse em
algo plenamente assimilado nos direitos humanos como é o descanso dominical: por
urgências tanto da indústria como do comércio, e por certas mal-entendidas leis do progresso
econômico, começa-se a prescindir desse descanso, pelo menos em um dia comum para todos,
lesando assim evidentes valores humanos e familiares.
A pergunta que nos podemos fazer é se o “fim de semana”, com tudo o que significa na
sociedade atual, representa a morte do “dia do Senhor”. A comunidade cristã deve aceitar esse
desafio. É algo inevitável que se perca o sentido cristão desse dia em nome dos valores
humanos? Não é recuperável e evangelizável o “dia do Senhor” além do “dia do homem”, ali
onde se está produzindo o rompimento? Se perdermos o domingo, não perderemos algo de
substancial à nossa identidade cristã?
Uma boa compreensão teológica do domingo pode ajudar a se produzir essa
reaproximação do humano e do cristão em torno desse dia: que se apreciem seus valores
seculares e que nós, cristãos, nos sintamos convidados a celebrar também sua riqueza pascal,
a riqueza que Jesus ressuscitado confere a esse dia.

1. A compreensão dos primeiros séculos

O domingo tem suas raízes na primeira comunidade: “a Igreja, por tradição apostólica
25

que traz sua origem do próprio dia da ressurreição de Cristo, celebra o mistério pascal cada
oito dias, no dia que com razão se chama dia do Senhor ou domingo” (SC 106).

a) Os dados do novo testamento

Os primeiros cristãos, muito embora, como judeus, tivessem muito arraigada em sua
vida a celebração do sábado como o dia de descanso e culto, escolheram desde o começo o
domingo como seu dia de reunião e de celebração da eucaristia. O motivo parece evidente:
nesse dia, o primeiro da semana, depois do sábado, Jesus ressuscitou, convertendo-o assim em
“o dia do Senhor” por excelência. Podiam ter escolhido a quinta-feira por suas reminiscências
eucarísticas, ou a sexta-feira como dia da morte salvadora, ou mesmo o sábado, com conteúdo
novo.
As várias passagens em que se fala desse dia nas páginas do NT ajudam-nos a entender
seus valores teológico-espirituais.
O episódio de Emaús (Lc 24,13-35) parece uma parábola em que Lucas gostaria de
ensinar-nos as riquezas que o domingo encerra para os cristãos de todos os tempos.
No “primeiro dia da semana” (Lc 24,1.13) os dois discípulos, sem esperança, “com os
olhos fechados” encontram-se com Jesus, o caminhante, sem reconhecê-lo. Explica-lhes
este as Escrituras para que compreendam o plano salvador de Deus que incluía a morte do
Messias. Convidam-no a cear e então o reconhecem na fração do pão, voltam correndo à
comunidade de Jerusalém, de que tinham fugido, e “encontraram reunidos os Onze e seus
companheiros que lhes disseram: É! O Senhor ressuscitou”. Em seguida se lhes aparece de
novo Jesus (v. 36) e fala-lhes, anima-os, come com eles e envia-os como testemunhas por
toda parte (v. 48).
Lucas parece querer dar-nos uma catequese do que representa esse “primeiro dia da
semana” para os cristãos, a experiência do encontro com o Ressuscitado, que se concretiza na
explicação ela palavra de Deus (“Não ardia em nós o nosso coração quando ele nos falava no
caminho e nos explicava as Escrituras?”), na eucarista (“reconheceram-no na fração do pão”)
e na comunidade reunida: os três sinais fundamentais pelos quais o Senhor se manifesta a nós,
que não tivemos a sorte, como a primeira geração, de vê-lo, ouvi-lo e tocá-lo em sua vida
mortal ou em suas aparições de ressuscitado.
Também João nos ajuda a entender o domingo a partir do que ocorreu no cenáculo no
“primeiro dia da semana” (Jo 20,19-29). De novo “aos oito dias”, portanto, também no
primeiro dia da semana, aparece-lhes Jesus. Aqui também encontramos os valores teológicos:
a reunião da comunidade, a presença do ressuscitado, a fé dos discípulos (a Tomé, ausente da
primeira vez, dizem: “Nós vimos o Senhor”, e logo o próprio Tomé exclamará: “Meu Senhor
e meu Deus”), a paz que o Senhor dá aos seus, a recordação da paixão (mostra-lhes suas
chagas), o envio missionário (“recebei o Espírito Santo”) e a tarefa da reconciliação (“a quem
perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados...”).
Em Trôade, Atos 20,7-12, Lucas fala-nos da reunião da comunidade com Paulo, “no
primeiro dia da semana, enquanto estávamos reunidos para partir o pão”. Relaciona-se esse
dia com a comunidade reunida e também com a eucaristia. Prossegue o relato com o longo
sermão de Paulo, o sono e a queda mortal do jovem, e algo que parece que Lucas também
quereria relacionar com a reunião eucarística do domingo: Paulo ressuscita o jovem, o que
enche de consolo a comunidade, em seguida celebra a eucaristia (“partiu o pão e comeu”).
Reunião, eucaristia, vida, consolo: traços de urna cena que não se narram sem intenção.
No fim da primeira carta aos Coríntios (1Cor 16,1-2) Paulo faz outra observação
interessante. Por ocasião da reunião semanal (“cada primeiro dia da semana”), os fiéis são
26

convidados a fazer uma coleta em favor dos santos, os cristãos pobres de Jerusalém. Aí a
caridade e a solidariedade fraterna relacionam-se com a celebração comunitária do domingo.
No Apocalipse (1,10) João diz que teve uma visão no “dia do Senhor” (“fui arrebatado pelo
espírito no dia do Senhor”, kyriaké hemera). É a primeira vez que se chama esse dia de “dia
do Senhor”, de dia pertencente ao Kyrios Jesus, o ressuscitado. É nesse dia precisamente que
o Espírito ilumina o apóstolo com visão dinâmica e pascal da história da Igreja.
Ainda na carta aos Hebreus (10,24-25) existe outra passagem que ilumina um dos
aspectos primordiais do domingo, porque o autor exorta os fiéis a não faltar à reunião
comunitária, para ajudar na esperança seus irmãos: “Velemos uns pelos outros, para nos
estimular à caridade e às boas obras. Não abandonemos nossas assembléias, como alguns
acostumaram-se a fazer, mas animemo-nos...” Já então constava a assistência à reunião
comunitária.
Esse conjunto de textos, que, aliás, não têm igual segurança quanto à sua exegese, nem
corresponde certamente à práxis unitária das diversas comunidades, sendo, contudo, o ponto
de partida para a compreensão que a Igreja foi amadurecendo ao longo dos séculos sobre os
valores do domingo.
O domingo, segundo essa perspectiva neotestamentária, é o dia em que celebramos a
vitória pascal de Jesus, o Senhor, e chama-se por isso “o dia do Senhor”; foi escolhido para a
reunião comunitária, em que se celebra sobretudo a fração do pão, ou a eucaristia; surge
também a proclamação da Palavra bíblica como parte da reunião e da experiência do encontro
com o Senhor; a recordação da paixão de Cristo (as chagas de suas mãos e de seu lado) indica
qual foi o caminho da vitória e de sua nova existência pascal; nesse dia que o Senhor
ressuscitado outorgou aos seus o dom de seu Espírito; e faz-se referência a outros valores da
comunidade: o perdão dos pecados, a caridade fraterna, a missão de testemunhas no meio do
mundo.
Todas essas direções partem do Senhor glorioso e concretizam-se em sua pessoa,
presente à sua comunidade, inundando-a de luz, verdade, consolo, vida, esperança e paz.
Ainda não se fala de descanso dominical, mas este dia já aparece claramente como a “Páscoa
semanal” em que a comunidade celebra a salvação de seu Senhor.

b) Os nomes do domingo

O dia que chamamos “domingo” foi descrito pelas primeiras gerações com vários
nomes, dos quais se deduzem as principais direções da compreensão que tinham dele.
Antes de tudo foi denominado de primeiro dia: “una sabbatorum”, “una sabbati”, o
primeiro dia depois do sábado que é o sétimo e o último dia da semana (cf. Mt 28,1; Mc 16,2;
Lc 24,1; Jo 20,1).
Esse nome deu ao domingo dupla ressonância: recorda-nos, por um lado, o começo da
criação do mundo, quando “o primeiro dia” Deus criou a luz (Gn 1,3-5), e por outro esse dia
ficou marcado pelo início da nova criação, a ressurreição de Jesus. Assim explicava são
Justino, no séc. II, a razão da escolha do domingo: “no primeiro dia, em que Deus,
transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e o dia também em que Jesus Cristo, nosso
Salvador, ressuscitou dentre os mortos” (Apologia I, 67).
Jesus, primogênito de toda a criação, inaugura a era definitiva da história, e o dia em
que ocorreu é assinalado com absoluta prioridade sobre os outros. Celebrando agora o
domingo, damos “sim” festivo à vida, ao mundo, à natureza cósmica, à obra maravilhosa de
Deus, e ao mesmo tempo damos “sim” ainda mais jubiloso à nova história que começou na
Páscoa de Jesus.
O mesmo Justino, que escreve a leitores pagãos, chama o domingo de dia do sol:
“celebramos uma reunião geral no dia do so1” (Apologia I, 67).
27

No sistema romano da semana, cada dia tinha o nome de um planeta. Eles conheciam
cinco, que junto com o sol e a lua deram nomes aos sete dias: Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter,
Vênus, Saturno e finalmente o Sol.
Esse nome não triunfou no uso cristão primitivo, ainda que pudesse perfeitamente ser
“batizado”, entendendo-se como referente o título do sol como referente a Jesus, a verdadeira
luz que enviou Deus à humanidade, o “Sol que vem do alto” (Lc 1,78).
Os escritores do primeiro século gostavam também de chamar o domingo de oitavo dia.
Os Padres, ao chamá-lo assim, queriam ressaltar que o dia sucede ao septenário, que o
transcende, que é o dia novo, incapaz de permanecer encerrado em nosso conceito de tempo.
O domingo torna-se imagem da marcha dinâmica rumo à escatologia, projetando nossa
história para adiante, como em espiral pela qual o tempo cristão de certa forma antecipa a
cada semana o reino definitivo.
“Oitavo dia” fala de plenitude e ao mesmo tempo de antecipação. Completa o
septenário da semana cósmica, mas tem também tom profético. J. Daniélou, que foi quem
mais estudou esse nome nos primeiros séculos, chega a afirmar que “a substituição do sétimo
dia pelo oitavo é a expressão simbólica e concreta a um só tempo da substituição do judaísmo
pelo cristianismo... A passagem da religião do sétimo dia à religião do oitavo devia
transformar-se no símbolo da passagem da lei ao evangelho”. São Jerônimo dirá que, ao se
cumprir o septenário da Lei judaica, passamos à “octôada”, ao oitavário da cristã (“septenario
numero expleto, postea per ogdoaden ad Evangelium scandimus”). São Justino explicava que
“o primeiro dia é também o oitavo, depois dos sete dias da semana, sem que por isso deixe de
ser o primeiro” (Diálogo com Trifão, 41,4).
Santo Agostinho apresenta repetidamente essa perspectiva: “na semana coincidem o
primeiro e o oitavo dia” (“idem primus qui octavus”). Transcorridos os sete dias, retorna-se ao
primeiro; concluído o sétimo dia, o Senhor sepultado, volta-se ao primeiro, o Senhor
ressuscitado. A ressurreição do Senhor significa para nós a promessa do dia eterno e a
consagração do domingo” (Sermão 169,3). “O dia oitavo e o primeiro identificam-se, mas o
primeiro desaparece quando chega o segundo. Aquele dia, ao invés, simbolizado pelo oitavo e
primeiro ao mesmo tempo, o domingo, é a eternidade primeira e também a última” (Sermão
260).
Para esse nome do “oitavo dia”, os Padres às vezes partiam da citação de João (“aos
oito dias” teve lugar outra aparição do Senhor: Jo 20,26); outras vezes do número de oito
pessoas salvas na arca de Noé (1Pd 3,20-21), ou então da circuncisão que se realizava no
oitavo dia, ou da semana inteira da Páscoa que, sobre todos os neófitos, concluíam no oitavo
dia deixando as vestes brancas. Mas o que sempre sublinhavam era esse aspecto de espera
escatológica e profecia da volta do Senhor e do dia definitivo e eterno do reino.
O nome mais especificamente cristão do domingo é o que encontramos no Apocalipse
(1,10): o dia senhorial ou o dia do Senhor (kyriaké hemera, dies dominica).
Com genitivo (dia “do Senhor”), a expressão significava no AT o dia de Iahweh, o dia
decisivo do juízo e da salvação. Com adjetivo (dia “senhorial”), expressa no NT a relação
com o Senhor ressuscitado. A mesma coisa ocorre com a expressão “ceia senhorial” (kiriakon
deipnon, cena dominica) que designa a eucaristia, intimamente relacionada com Jesus, que
com sua ressurreição manifestou em plenitude sua condição de Senhor/Kyrios glorioso.
Muito cedo o adjetivo (“senhorial”, “dominicus, dominica”) converter-se-á em
substantivo: dominica passou a designar o dia, ao passo que o neutro dominicum aplicou-se à
celebração eucarística do domingo. A Didaché afirma que a reunião acontece “cada domingo
do Senhor” (kata kyriaken tou Kyriou, in qualibet dominica Domini), ou seja, literalmente
“cada (dia) senhorial do Senhor”, com certo tom enfático de repetição.
Este nome, que refere diretamente o domingo ao Senhor ressuscitado, é o que vai ter
mais êxito e que se tornará a motivação não só da reunião eucarística nesse dia, mas de um
28

estilo cristão de vida. Santo Inácio de Antioquia, em fins do primeiro século ou começos do
segundo, diz aos cristãos de Magnésia que “os que abraçaram a nova esperança não mais
sabatizam, mas vivem segundo o domingo, no qual nasceu nossa vida esplendente por Ele e
por sua morte” (kata kyriaken zonte, secundum dominicam vivunt).
O domingo é dia cheio de sentido.
Chamá-lo de “primeiro dia” recorda-nos a criação e a redenção, e soa a gênese e
começo. Dizer que é “o oitavo dia” fala de marcha rumo à escatologia e ao domingo sem fim
da volta do Senhor. Mas o nome de “dia do Senhor” é o que nos assegura que a plenitude de
sua presença já está no “hoje” de nossa celebração e de nossa história. A recordação do
passado e profecia do futuro condensam-se na plenitude do presente, graças à presença
misteriosa do Senhor entre os seus. O domingo condensa em si mesmo toda a História da
salvação no “hoje” de cada semana.

c) Do sábado ao domingo

Não deixa de ser estranho que uma comunidade com raízes judaicas tão profundas não
tenha adotado o sábado como dia de culto, cristianizando-o com novo conteúdo cristológico,
como fizeram com a festa da Páscoa e Pentecostes.
Constata-se que no início havia comunidades cristãs em que coexistia o sábado com o
domingo: basta ver o comportamento de Jesus, dos apóstolos e de Paulo, com a observância
do sábado e a assistência ativa ao culto da sinagoga ou às orações do templo. Mas prevaleceu
logo o domingo, sobretudo nas comunidades de ambiente não-judaico.
Não foi simples transposição nem mera substituição de um dia por outro, por se ver que
não se podiam harmonizar suas características. Outra prova de que não se trata de mera
sucessão é que uma das características principais do sábado judaico, o descanso absoluto, não
passou ao domingo cristão.
Mas intui-se bem que já desde o princípio vai amadurecendo uma convicção que os
Padres logo expressarão mais explicitamente: o domingo é o “cumprimento” do sábado, que
se considera sua figura e profecia preparatória. Não se tratava de “imitar” o sábado, mas de
levá-lo à sua plenitude.
O domingo aparece com traços de novidade, ruptura e superação. Jesus surge no
evangelho como “senhor do sábado”: acumula sinais de poder messiânico precisamente neste
dia (cf. Jo 5,16-17 e 9,4). Mas logo ressuscita “no dia depois do sábado”, e a comunidade vê
este novo dia como marcado pela Páscoa de seu Senhor: o dia em que, ressuscitando dentre os
mortos, inaugura a nova criação. Assim como o templo foi superado e realizado mais
plenamente na pessoa de Jesus, assim também o sábado foi assumido e plenificado pelo
domingo.
Mas essa “superação” não deveria significar para os cristãos o esquecimento dos
grandes valores religiosos que o dia de sábado continha e continua contendo, os quais em
grande parte passaram a enriquecer o domingo cristão, pascal e cristologicamente
interpretado.
O sábado judaico, que os judeus continuam apreciando tanto quanto nós o domingo,
tem uma teologia muito rica e uma dinâmica de espiritualidade que seria interessante que nós,
os cristãos, aproveitássemos para potencializar todas as possibilidades de nosso domingo.
O sábado celebra o poder criador de Deus. O homem está satisfeito com seu trabalho e
avanços tecnológicos, mas o sábado lhe recorda que o dono e o criador do universo é Deus, e
que recebeu a incumbência de trabalhar como colaborador de Deus. O sábado dá ocasião ao
homem de meditar sobre si, sua vida e seu trabalho, e re-situar-se no posto que lhe
corresponde com referência ao cosmo e a Deus. E também lhe proporciona um dia de
encontro gozoso com a natureza e o cosmo como obra de Deus.
29

O sábado convida à festa e ao descanso. O homem tem direito ao trabalho, mas também
ao descanso. Deus descansou no sétimo dia. O homem imita a Deus em seu trabalho criador
mas também em seu descanso. O sábado judaico representa, desde há muitos séculos, reação
adequada ao excessivo desejo de trabalho e ganho, ou ao domínio do homem sobre o homem
(e inclusive sobre servos e animais). É dia em que se celebra de alguma maneira a liberdade
humana, participação na liberdade e no descanso do próprio Deus, diante do ritmo frenético
do trabalho e da escravidão da máquina. É a correção de toda desumanização.
O sábado também tem sentido social de fraternidade. Corrige de alguma maneira a
diferença entre homem e homem, entre rico e pobre, com trégua obrigatória na luta pela vida
e nas tensões que possam surgir entre o amo e o empregado. O homem é dono de si mesmo e
sem cessar tem de ir reconquistando a dignidade humana que lhe é própria. Deixam todos seu
trabalho, os donos e os filhos, os forasteiros e os criados, e até os animais. Na festa não há
horários, nem controle de trabalho, nem produção, nem horas extras. O descanso do sábado
convida à vida de família e à amizade.
O sábado é, sobretudo, o dia em que se atualiza a aliança pascal de Deus com seu
povo, aliança que ele realizou historicamente no êxodo do Egito e na doação da lei no Sinai.
O sábado é a recordação semanal de como Deus é Deus que salva e liberta (cf. Dt 5,14-15), o
sinal e o memorial da aliança.
Deus não só é Criador, mas também Libertador e Salvador: unem-se as duas dimensões
na celebração do sábado. Assim como o primeiro sábado foi “santificado” por Deus (cf. Gn
2,3; Ex 20,8-11), assim também o sábado semanal “santifica” todo o tempo e toda a história.
Não é de estranhar que esse dia seja instituição tão querida aos judeus e que estes o
considerem fato essencial de sua própria identidade. Chegam a dizer que não foi Israel que
conservou o sábado mas foi o sábado que conservou Israel acima das vicissitudes da história.
O domingo cristão leva à sua plenitude essas mesmas orientações do sábado judaico
pela novidade radical de seu conteúdo: Jesus Cristo, o Senhor ressuscitado. A abertura a Deus,
a alegria festiva: tudo isso se vê agora realizado não só na primeira criação cósmica ou na
primeira libertação pascal, que também se recordam e se celebram, mas sobretudo na nova
criação e na nova Páscoa de Jesus Cristo.

d) Alguns testemunhos patrísticos

A celebração do domingo da primeira geração conservou-se e desenvolveu-se nas


seguintes, destacando um ou outro de seus vários valores, segundo as regiões e a sucessão dos
séculos.
São abundantes e interessantes os testemunhos que temos dos primeiros séculos sobre o
dia do Senhor. Permitem-nos constatar como a teologia e a espiritualidade do domingo
abriram caminho nas comunidades das novas gerações.
A Didaché, provavelmente dos fins do séc. I, está entre os testemunhos mais antigos
sobre a vida da Igreja. Em seu capítulo 14, ela une a celebração eucarística com o dia do
domingo: “Reunidos em cada dia do Senhor, parti o pão e dai graças, depois de ter confessado
vossos pecados, a fim de que vosso sacrifício seja puro”.
O governante Plínio o Jovem, em princípios do séc. II, escreve ao imperador Trajano o
resumo das acusações contra os cristãos que foram detidos e interrogados: “... sua maior falta
ou erro limitava-se ao costume de reunir-se em um dia fixo antes do sair do sol, de cantar
entre eles um hino a Cristo como Deus e reunir-se outra vez para tomar seu alimento que é
ordinário e inocente...”
Parece bastante seguro que esse “dia fixo”, que Plínio não determina mais, deva
corresponder ao domingo seja qual for a identidade das reuniões de que fala (eucaristia?
oração? ágape fraterno?).
30

Outros autores do séc. II dão testemunho de seu apreço pelo domingo como o dia
oitavo, o dia do Senhor, o dia em que os cristãos vivem um estilo de vida centrado na Páscoa
de seu Senhor.
Diz Barnabé: “Celebramos como dia de festa alegre o oitavo dia, durante o qual Jesus
ressuscitou dentre os mortos e em que, depois de aparecer, subiu aos céus (Carta 15,9).
Santo Inácio de Antioquia: “Os que vivem segundo a antiga tradição voltam à nova
esperança, não guardando o sábado, mas o dia do Senhor (não “sabatizando”, mas vivendo
“segundo o domingo”), no qual nossa vida foi salva por Ele e por sua morte...” ( Ad Magn.
9,1).
São Justino, professor de filosofia, escrevendo ao imperador Antonino, descreve
amplamente a vida da comunidade cristã, por exemplo a eucaristia dominical:

E no dia chamado do sol fazem uma reunião em um mesmo lugar todos os


que moram nas cidades ou nos campos... E celebramos essa reunião geral no
dia do sol, por ser o dia primeiro, em que Deus, transformando as trevas e a
matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador,
ressuscitou dentre os mortos (Apologia I, 67).

A terminologia usada por são Justino é adequada ao entendimento dos romanos (“o dia
do sol”). É o dia da reunião comunitária e da celebração eucarística, que inclui a proclamação
e a escuta da palavra de Deus.
Nos séculos seguintes vamos encontrando testemunhos ainda mais explícitos. Afirma
Eusébio de Alexandria:

O dia santo do Senhor é a comemoração memorial do Salvador. O dia do


Senhor é chamado domingo (“dia dominical”, kyriake hemera) porque é ele o
senhor (kyrios) dos dias. Antes da paixão do Mestre não se chamava
dominical, mas primeiro dia. Neste dia, com efeito, o Senhor estabeleceu o
fundamento da criação. Igualmente, neste dia, Ele deu ao mundo as primícias
da ressurreição. Neste dia... ordenou celebrar os santos mistérios. Este dia é
para nós a “fonte” (arche) de todo bem, é o princípio da criação do mundo, o
princípio da ressurreição e o princípio da semana (Sermão 16 sobre o dia do
Senhor).

Nesses testemunhos dos quatro primeiros séculos, vão-se destacando os diversos


valores teológicos do domingo, mas não o do descanso. Também não se acentua o nexo que
pode ter nosso dia de festa com o terceiro mandamento, o que manda santificar as festas com
o descanso, como veremos ao falar desse aspecto mais adiante. Autores como santo
Agostinho fazem o possível para entender o descanso de modo simbólico e metafórico, e não
querem fazê-lo derivar do mandamento do AT.
Depois da conversão de Constantino e das consequentes reformas sociais e religiosas,
deu-se certo processo de “sabatização” com referência ao domingo cristão: aproximou-se sua
compreensão à do antigo sábado, sobretudo no que se refere ao descanso semanal, que foi
sendo legislado cada vez com maior minuciosidade.

2. A compreensão atual do domingo cristão

Ao longo dos vinte séculos de vida da Igreja, a partir do dado bíblico e da rica
sensibilidade das primeiras gerações, com as consequentes influências das diversas culturas e
tempos, chegamos à compreensão e à práxis atual do dia do Senhor.
Vale a pena examinar os textos mais importantes do magistério atual.
31

O Concílio Vaticano II (SC 106) definiu com linguagem nova o que é para nós o
domingo: A Igreja, por tradição apostólica que tem sua origem no próprio dia da ressurreição de
Cristo, celebra o mistério pascal cada oito dias (octava quaque die), no dia que se chama com razão
dia do Senhor ou domingo (dies Domini seu dies dominica). Neste dia, os fiéis devem reunir-se (in
unum convenire debent) a fim de que escutando a Palavra de Deus e participando da eucaristia
recordem a paixão, a ressurreição e a glória do Senhor Jesus e dêem graças a Deus que os fez
renascer à viva esperança pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (1Pd 1,3). Por isso o
domingo é a festa primordial (primordialis dies festus) que se deve apresentar e inculcar à piedade
dos fiéis de modo que seja também dia de alegria e de libertação do trabalho ( dies laetitiae et
vacationis ab opere). Não se lhe anteponham outras solenidades, a não ser que sejam de suma
importância, visto que o domingo é o fundamento e o núcleo de todo o ano litúrgico (fundamentum et
nucleus totius anni liturgici).

Aparece nesse texto uma descrição muito estudada das dimensões do domingo que
herdamos desde a primeira geração:
- o próprio fato de sua tradição a partir da comunidade apostólica, do primeiro dia da
primeira Páscoa
- o domingo celebra o mistério pascal a cada oito dias
- o nome que se prefere é o de “dia do Senhor”
- o dia da reunião dos fiéis da comunidade
- para escutar a palavra de Deus
- e celebrar a eucaristia
- e assim fazer memória do mistério da Páscoa do Senhor
- com a consequência de que o domingo seja para a comunidade cristã viva esperança,
festa primordial, dia de alegria e descanso
- mantendo assim sua prioridade sobre toda outra celebração
- porque é o fundamento e núcleo de todo o ano litúrgico.

As Normae universales sobre o ano litúrgico de 1969 (= NU) falam do domingo:


A santa Igreja celebra a memória sagrada da obra da salvação realizada por
Cristo, em dias determinados durante o decorrer do ano. Em cada semana, o
domingo – por isso é chamado dia do Senhor – rememora a ressurreição do
Senhor, que uma vez ao ano, na grande solenidade da Páscoa, é celebrada
juntamente com sua santa paixão (n. 1).
No primeiro dia de cada semana, chamado dia do Senhor ou domingo, a
Igreja, segundo sua tradição apostólica que tem sua origem no próprio dia da
ressurreição de Cristo, celebra o mistério pascal. Sendo assim, o domingo
deve ser considerado o dia festivo primordial (n. 4).
Por sua peculiar importância, o domingo somente cede sua celebração às
solenidades e às festas do Senhor. Mas os domingos do advento, da quaresma
e da Páscoa têm preferência sobre todas as festas do Senhor e sobre todas as
solenidades (n. 5).

O Código de direito canônico de 1983:


O domingo, em que se celebra o mistério pascal, por tradição apostólica,
deve-se observar em toda a Igreja como festa primordial de preceito... (c.
1246). No domingo e nas demais festas de preceito os fiéis têm a obrigação
de participar da missa, e abster-se-ão também de trabalhos e atividades que
impeçam dar culto a Deus, gozar da alegria própria do dia do Senhor
(laetitiam diei Domini propriam) ou desfrutar o devido descanso da mente e
do corpo (debitam mentis ac corporis relaxationem) (c. 1247).
32

Novo prefácio dominical do Missal (o X), intitulado “o dia do Senhor”:

Na verdade é justo bendizer-te e dar-te graças,


Pai santo, fonte da verdade e da vida,
porque nos convocaste à tua casa
neste dia de festa.
Hoje, tua família,
reunida na escuta de tua Palavra,
e na comunhão do pão único e partido,
celebra o memorial do Senhor ressuscitado,
enquanto espera o domingo sem ocaso
em que a humanidade inteira
entrará em teu descanso.
Então contemplaremos tua face,
e louvaremos para sempre tua misericórdia.
Com essa gozosa esperança,
e unidos aos anjos e aos santos...

a) O domingo, Páscoa semanal

O aspecto teológico fundamental do domingo, tanto nos testemunhos que vimos dos
primeiros séculos como nos atuais, consiste em ver nele o memorial sacramental da Páscoa do
Senhor: “a Igreja celebra o mistério pascal a cada oito dias no dia que é chamado com razão
de dia do Senhor ou domingo” (SC 106); “em cada semana o domingo rememora a
ressurreição do Senhor, que uma vez por ano, na grande solenidade da Páscoa, é celebrada
juntamente com sua santa paixão” (NU 1, citando SC 102); “hoje tua família celebra o
memorial do Senhor ressuscitado” (prefácio dominical X do missal).
É verdade que o Senhor ressuscitado está sempre presente à sua comunidade, mas desde
a primeira geração enfatiza-se sobretudo e de modo especial a força de sua presença no dia do
domingo, que se apresenta como o dia do encontro da comunidade cristã com seu Senhor.
Sobretudo nas aparições narradas por João (no primeiro dia da semana e, portanto, exatamente
aos oito dias), Jesus faz-se presente aos seus precisamente nesse dia.
Essa é a perspectiva radical do domingo, da qual derivam todas as outras: a cada oito
dias os cristãos celebram o memorial da vitória pascal de Jesus. Elevamos uma porção
semanal de nosso tempo à categoria de “sacramento da Páscoa do Senhor”, um dia que é
chamado com toda razão “dia do Senhor ressuscitado”. O memorial não é só uma recordação
de aniversário (“foi num dia corno hoje que o Senhor ressuscitou”), mas comporta a presença
do que se comemora: o Senhor glorioso continua presente com a mesma vivacidade com que
o fizera no dia da Páscoa, influindo em nossa história com a mesma força dinâmica como no
princípio. Inaugurou-se então a Páscoa: agora continua crescendo e desenvolvendo-se em e
por nós, sempre com a presença misteriosa do Senhor, sobretudo no domingo.
Seria talvez mais exato interpretar esse “dia do Senhor” não tanto como dia que
dedicamos a Jesus, mas como dia que ele dedica a nós. Assim como os judeus dizem de sua
Páscoa: “eis o dia que o Senhor fez: que Ele seja nossa felicidade e nossa alegria” (Sl 117),
assim também compreendemos nosso domingo como o dia em que a salvação “que Deus fez”,
a nova vida do ressuscitado, alcança-nos mais plenamente, como dom semanal que Deus nos
faz, como pausa que nos concede no correr do tempo. Cada domingo é ao mesmo tempo
memória da Páscoa inicial e profecia da Páscoa futura. Em cada domingo atualiza-se a
primeira e antecipa-se sacramentalmente a definitiva, enquanto a comunidade vai caminhando
e amadurecendo para o descanso eterno.
33

É essa perspectiva a melhor maneira de iluminar todos os outros aspectos que


consideramos e vivemos no domingo: se se reúne a comunidade, se se celebra a eucaristia ou
os outros sacramentos pascais, se se vive esse dia de modo festivo e pascal, tudo é porque esse
dia é o sacramento semanal da nova vida de Jesus ressuscitado, que sempre quer comunicar-se
conosco.

b) O dia da comunidade

“Hoje tua família, reunida, celebra o memorial do Senhor ressuscitado” (prefácio


dominical X do missal).
É a característica mais antiga: “por uma tradição apostólica que traz sua origem do
próprio dia da ressurreição de Cristo” (SC 106), a comunidade cristã reúne-se no domingo e
“desde então a Igreja nunca deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal” (SC 106).
“No dia chamado do sol, todos os nossos, os que vivem nas cidades ou nos campos, reúnem-
se em um mesmo lugar” (Justino, Apologia I, 67).
A reunião dominical é uma das realidades mais atestadas da primeira geração: “no
primeiro dia da semana, estando reunidos... Aos oito dias estavam outra vez reunidos” (Jo
20,19.26); no dia de Pentecostes, também em dia de domingo, “encontravam-se todos
reunidos em um mesmo lugar” (At 2,1); “no primeiro dia da semana, estando nós reunidos
para a fração do pão” (At 20,7).
O Diretório para celebrações sem presbítero, aquelas com que têm de se conformar as
comunidades desprovidas de sacerdote, exorta-as a apreciar o outro grande valor de sua vida
cristã, a convocação dominical para a comunidade:

Desde os primeiros séculos, os pastores não cessaram de inculcar nos fiéis a


necessidade de reunir-se no domingo: “não vos separeis da Igreja (da
comunidade reunida), pois sois membros de Cristo, pelo fato de que vos
reunis, não sejais negligentes, nem priveis o Salvador de seus membros, nem
contribuais para desmembrar seu corpo” (Didascalia apostolorum 2,59, 1-3).
É o que recordou modernamente o concílio Vaticano II com estas palavras:
“nesse dia os fiéis devem reunir-se a fim de que, escutando a Palavra de Deus
e participando da eucaristia, recordem a Páscoa do Senhor e dêem graças a
Deus...” (SC 108). (ADAP 10).

O domingo, além de manifestar nossa comunhão com o Ressuscitado, é também o dia


que expressa mais claramente a identidade da própria assembleia da Igreja, a comunidade
reunida em torno do Senhor e movida por seu Espírito. Os fiéis que frequentam a eucaristia
dominical “de alguma maneira representam a Igreja visível estabelecida por todo o orbe” (SC
42), são uma epifania da Igreja inteira, uma condensação e realização hoje e aqui do mistério
da Igreja universal.
A própria reunião, mesmo antes de começar a soar os cantos ou as leituras, já é
manifestação da presença do Senhor ressuscitado entre os seus: “onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, aí estarei eu” (Mt 18,20). A assembleia dominical nos vai educando
para uma consciência mais viva de Igreja, para um sentido mais profundo de pertinência,
para um compromisso de construção da comunidade, que não é realidade já conquistada, mas
processo de amadurecimento a partir da convocação de Jesus Cristo e da animação do
Espírito.

Jamais se apreciará suficientemente a grande importância da assembleia


dominical como fonte de vida cristã do indivíduo e das comunidades, e como
expressão da vontade de Deus: reunir todos os homens no Filho Jesus Cristo.
34

Todos os cristãos... devem estar convencidos de que a assembléia dominical é


para o mundo um sinal do mistério de comunhão que é a eucaristia.

Uma consequência pastoral é a necessidade de saber conjugar a experiência das


reuniões de grupo com a reunião comunitária geral. Sendo legítimas a vivência e a celebração
da fé no grupo, continua sendo ainda mais clara a primazia da celebração comunitária: “a
assembleia que manifesta mais plenamente a natureza da Igreja na eucaristia é a que une entre
si os fiéis de qualquer gênero, idade e condição”. A assembleia dominical, heterogênea como
o é a própria Igreja, convocada pela fé em Jesus Cristo e pela ação de seu Espírito, é uma
reunião do povo de Deus, não de uma família, de um grupo social ou de uma equipe
apostólica. Por isso “devem conjugar-se, especialmente nos domingos e dias festivos, as
celebrações que se fazem nas igrejas e oratórios com as celebrações das paróquias, de
maneira que ajudem a ação pastoral. E mais, que as pequenas comunidades religiosas não-
clericais e outras do mesmo tipo... participem nos dias da missa na igreja paroquial”; “para
que a unidade da comunidade paroquial cresça na eucaristia dos domingos e dias festivos, as
missas para grupos particulares, como são as associações, façam-se, enquanto possível, nos
dias feriais”.

c) A eucaristia do domingo

A vivência cristã do domingo tem seu momento privilegiado na celebração da


eucaristia.
A eucaristia da comunidade remonta à primeira geração, conforme já vimos no
testemunho de Lucas (Lc 24 e At 20), ou nas orientações da Didaché ou no relato de Justino
sobre a reunião dominical dos cristãos.
Temos página muito expressiva do apreço das primeiras gerações pela eucaristia
dominical nas atas de martírio de um grupo de cristãos de Abitene, norte da África, no ano de
304, quando foram surpreendidos na casa de um deles durante a perseguição de Diocleciano.
Eram um sacerdote, Saturnino, e mais uns cinquenta cristãos, entre eles vários jovens e
crianças, e também pessoas importantes da sociedade, como o senador Dativo. O processo
judicial ficou minuciosamente registrado nas atas. À acusação de ter permitido reunião ilegal,
o dono da casa responde: “não me era possível impedi-lo, nós não podemos viver sem
celebrar o mistério do Senhor (sine dominico non possumus)”.
Pode-se afirmar que desde o princípio “a Igreja não deixou de se reunir para celebrar o
mistério pascal: lendo o que a ele se refere em toda a Escritura, celebrando a eucaristia, na
qual se tornam de novo presentes a vitória e o triunfo de sua morte...” (SC 6). A eucaristia não
é tanto iniciativa nossa quanto convocação de Cristo, o Senhor, e de seu Espírito, que nos
envolve e assim nos faz participantes da graça pascal de Jesus.
Nessa eucaristia, além da experiência de comunidade reunida no nome e sob a presença
misteriosa de seu Senhor, nós cristãos, nos alimentamos antes de tudo da palavra de Deus. Já
na passagem de Emaús, Lucas parece dizer-nos que também a explicação das Escrituras tem
papel central no encontro com o Ressuscitado. A comunidade passará logo a participar da
mesa eucarística do corpo e sangue de Cristo, mas já na primeira parte “Cristo, por sua
Palavra, faz-se presente no meio dos fiéis” (IGMR 33). A dupla mesa a que somos convidados
é encontro progressivo com o próprio Senhor.
A eucaristia, memória sacramental e participação da Páscoa de Jesus – entrega de seu
corpo e de seu sangue para a vida do mundo –, tem no domingo sua máxima significação. É
algo mais que preceito cumprido ou pedagogia educadora da fé: é entrar na dinâmica
salvadora do Senhor, que quer se dar a nós como alimento de vida para nosso caminho.
A eucaristia vai edificando a comunidade pascal: “Visto haver um só pão, todos somos
um só corpo”, diz Paulo, “porque todos participamos desse pão único” (1Cor 10,17). A
35

comunidade reunida faz a eucaristia, mas a eucaristia faz a Igreja e vai amadurecendo-a como
comunidade do Ressuscitado. “Nenhuma comunidade cristã edifica-se se não tem sua raiz e
eixo na celebração da santíssima eucaristia” (PO 6). A eucaristia dominical é privilegiada
realização histórica e visível do que a Igreja é como povo sacerdotal de Deus. É como a
regeneração constante de nossas raízes pascais, fazendo-nos assumir também a mesma atitude
de oblação de Jesus Cristo: “participando do sacrifício eucarístico, fonte e ápice de toda a vida
cristã, oferecem a Deus a vítima divina e oferecem-se a si mesmos juntamente com ela” (LG
11).
Mas, além disso, a eucaristia dominical lança-nos na missão que Jesus nos encomendou:
anunciar e realizar o projeto do evangelho em cada geração: “a renovação da aliança do
Senhor com os homens na eucaristia acende nos fiéis a caridade de Cristo que urge” (SC 10),
“a eucaristia deve conduzir tanto às várias obras de caridade e à ajuda mútua como à ação
missionária e às várias formas de testemunho cristão” (PO 6).
A eucaristia não é a única característica do domingo cristão, mas é a mais representativa
e a que encerra e expressa os valores mais importantes da comunidade cristã.
Quando uma comunidade, por falta de presbítero, tem de celebrar “só” a liturgia da
Palavra, ainda que termine na comunhão, tem de estar consciente de que, além de outros
valores que também nessas ocasiões se põem em evidência (a dignidade do povo cristão, a
centralidade do domingo, a força salvadora da Palavra, a importância da reunião, o papel
ministerial dos leigos) falta-lhe a mais importante, a celebração plena da eucaristia, para que
assim “a comunidade do Senhor” precisamente “no dia do Senhor” participe da “ceia do
Senhor”.

d) O descanso pascal do domingo

Nos primeiros séculos o domingo não se caracterizou pelo descanso do trabalho. Não só
porque socialmente era impossível por ser dia de trabalho como os demais, mas também
porque não deram importância a esse aspecto. Por mais que apreciassem o caráter pascal do
domingo, as primeiras gerações não relacionaram com ele o “descanso sabático” dos judeus,
nem quiseram que se relacionasse o terceiro mandamento com o domingo.
Mas já desde muito cedo os cristãos davam a esse dia um tom de celebração pascal, e
recomendava-se deixar os negócios temporais pelo menos para tornar possível a assistência da
eucaristia comunitária. Tertuliano (De oratione 23) convidava todos a deixar por algum tempo
as ocupações profanas (differentes negotia) para poder celebrar o dia do Senhor. E as
Constituições apostólicas (cap. 13) dizem: “não anteponhais vossos negócios temporais à
Palavra de Deus, mas, abandonando tudo no dia do Senhor, correi com diligência a vossas
igrejas”. Isso, porém, não implicava que no resto do dia não se trabalhasse.
O fato decisivo foi a iniciativa de Constantino, nos inícios do séc. IV: “estabeleceu que
um dia fosse especialmente destinado à oração, o dia que é o senhor e o primeiro dos dias,
porque é o dia do Senhor e da salvação, o dia ao qual o Senhor deu seu nome”, como escreve
Eusébio (Vida de Constantino, 4, 18). No ano de 321 veio o primeiro decreto: no domingo
(“venerabili die solis”) têm de descansar os juízes e as demais atividades civis. Curiosamente
não se proibiram os trabalhos do campo: um sinal a mais de que a origem do descanso
dominical não está em continuidade com o sabático, porque para os judeus as tarefas dos
camponeses também eram rigorosamente proibidas. Desde o princípio esse decreto foi
flexível: admitiam-se facilmente exceções. Se não se podia omitir trabalho sem prejuízo para
alguém, podia-se continuar (licet quod praetermissum noceret).
A decisão não parece ter despertado de imediato grande entusiasmo entre os pastores da
Igreja. Alguns consideraram-no providencial, porque permitia celebrar melhor o dia do
36

Senhor. Mas não se pode dizer que os Padres dos sécs. IV e V tenham demonstrado grande
apreço por esse aspecto do domingo.
Para santo Agostinho, por exemplo, o preceito do decálogo nesse sentido não tinha de
ser entendido ao pé da letra, como os outros. Os judeus, sim, tomaram esse descanso em
sentido material e não trabalhavam: “a ti se diz que observes o sábado espiritualmente, não
como os judeus, que o fazem com ócio corporal” (Sermão 9,3); “os judeus observam
servilmente o dia do sábado na folga... O cristão que se abstém de ações servis é quem
observa espiritualmente o sábado. O que é ação servil? O pecado” ( Com. a S. João 3,19). O
verdadeiro repouso do cristão é, antes de tudo, o do coração, o sabbatum cordis: “nós
descansamos das más obras; nosso sábado está dentro, no coração; nosso sábado é o gozo
do sossego de nossa esperança” (Enarr. in Ps 91,2). O descanso verdadeiro será a paz eterna
do céu, com Jesus Cristo, em Deus.
Mas, apesar dessa reticência dos Padres, não só se foi tornando cada vez mais geral o
descanso do trabalho no domingo, como também ocorreu nos sécs. V e VI uma evolução
muito notável rumo à sua interpretação rigorosa. Vários imperadores (Graciano, Valentiniano,
Teodósio) e os concílios regionais, sobretudo na França, foram detalhando e amplificando
esse repouso, fazendo-o obrigatório inclusive com penas civis se não se cumpria. O que tinha
começado com tom claramente pascal, como participação na vitória de Jesus Cristo, foi se
relacionando cada vez mais com o preceito do AT do descanso sabático: um processo de
“sabatização” que não fez muito bem ao dia do domingo. Em séculos seguintes, até nossos
dias, foi se entendendo o descanso dominical mais a partir do terceiro mandamento que a
partir da Páscoa de Jesus.
Em nossos dias, esse descanso constitui realidade social, verdadeira conquista para o
mundo trabalhador, descanso que envolve não só reparar as forças físicas depois da semana de
trabalho, mas também libertação psicológica, descanso que favorece a dignidade humana e a
regeneração da pessoa e seu equilíbrio interior.
Mas para nós, cristãos, é algo mais: esse descanso tem claro caráter pascal e é
entendido a partir do evento de Jesus ressuscitado. Se os judeus descansam no sábado em
memória do descanso de Deus criador e de sua libertação do Egito, nós nos abstemos de
nossos trabalhos corriqueiros no domingo porque é o dia da celebração pascal, a memória da
Páscoa de Jesus, nosso dia de festa por excelência. Sentimo-nos libertados por Jesus Cristo e
redimidos por sua Páscoa, “ressuscitamos” com ele. O festejar espontâneo no domingo é
como uma homenagem festiva que prestamos a Deus por nos ter salvo nesse dia.
O domingo é sinal de nossa liberdade humana e cristã. Ser libertados por Jesus em sua
Páscoa significa, entre outras coisas, que não somos escravos do trabalho, da máquina, da luta
contínua pela vida, mas donos de nós mesmos. O descansar no domingo, quando poderíamos
continuar “produzindo”, é gesto semanal de que não nos apetece ficar envoltos na idolatria do
material.
O concílio motiva esse descanso a partir da perspectiva da celebração pascal: “o
domingo é a festa primordial, que se deve apresentar e inculcar à piedade dos fiéis de modo
que seja também dia de alegria e libertação do trabalho” (SC 106).
O descanso dominical é gesto profético que fazemos cada semana para manifestar nossa
dignidade humana e cristã. Esse dia permite encontrar-nos com nosso próprio ser. Uma pessoa
que no domingo não vai ao trabalho, ainda que talvez lhe agradasse ir, está expressando que
em seu programa de vida há outros valores que também quer cultivar: sua família, por
exemplo, ou as diversas atividades culturais que a ajudam a realizar-se como pessoa, ou o
esporte, ou o encontro com os amigos, ou o contato com a natureza e, além disso, como
cristão, também a reunião comunitária, sobretudo a eucaristia. Também assim se vive o
encontro com o Senhor ressuscitado e se vive pascalmente “o dia do Senhor”. Dá à pessoa
serenidade e equilíbrio interior, de que todos têm necessidade no meio do ritmo vertiginoso a
37

que o mundo de hoje nos submete. Um domingo vivido assim ajuda-nos a redescobrir sem
cessar nossa relação com Deus, com a natureza, com a família, com a sociedade e com nosso
próprio ser.
Atualmente, não se põe tanta ênfase na casuística dos “trabalhos servis”, mas no espírito
pascal desse descanso. O Código (c. 1247) expressa-se assim: “no domingo e nos outros dias
de preceito os fiéis... se absterão de trabalhos e atividades que impeçam dar culto a Deus,
gozar da alegria própria do dia do Senhor, ou desfrutar o devido descanso da mente e do
corpo”. É linguagem nova, que parece pensar mais nos benefícios do descanso que nas faltas
que sua infração implicaria. O domingo tem em mira o culto a Deus, a alegria pascal, a
reunião comunitária e o descanso físico e psicológico do cristão.

e) A alegria do domingo

Não se trata só de deixar de trabalhar. É todo o dia do domingo que somos convidados a
viver em festa e em sentido pascal.
“O domingo é a festa primordial... dia de alegria e libertação do trabalho” (SC 106);
“no domingo abstenham-se os fiéis de trabalhos que impeçam... gozar da alegria própria do
dia do Senhor...” (CIC 1247).
Bastante antes de o domingo significar abstenção do trabalho, já era entendido pela
comunidade cristã como dia de alegria, alegria que consistia em celebrar comunitariamente a
eucaristia e viver o dia todo com tom pascal.
Tertuliano argumentava contra alguns que menosprezavam as festas pagãs: “os pagãos
têm uma festa anual, ao passo que para ti é festa a cada oito dias (tibi octavo quoque die)” (De
idol. 14). Para o Pseudo-Barnabé o domingo é “um dia todo ele passado em alegria” (15,9). As
Constituições apostólicas afirmam surpreendentemente: “o domingo é dia em que todos deveis
ficar alegres, porque quem se aflige em dia de domingo cometerá pecado” (20,11).
Por isso foi costume muito antigo que não se jejuasse nesse dia. Santo Ambrósio dava
a razão: “no domingo celebra-se a festa da ressurreição: não podemos jejuar nesse dia. Seria
não crer na ressurreição de Cristo se alguém quisesse jejuar no domingo” (Epist. 23). A
mesma motivação, e também o olhar escatológico voltado para a Páscoa futura, levou a não
rezar de joelhos no domingo. Essa postura era penitencial nessa época, e no domingo não
cabia essa atitude. Por exemplo, diz santo Agostinho: “todos os domingos oramos de pé
(stantes oramus), o que é sinal da ressurreição” (Epist. 55, 28). Santo Isidoro: “no dia do
Senhor oramos de pé como sinal da futura ressurreição: assim o faz toda a Igreja” (De eccl.
off. 1, 24). São Basílio une as duas motivações (a recordação e a espera da Páscoa): “De pé é
como fazemos a oração no primeiro dia da semana, mas nem todos sabem a razão disso. Não
é somente porque, ressuscitados com Cristo e devendo buscar as coisas do alto, tenhamos de
voltar à nossa memória, estando de pé quando rezamos, no dia consagrado à ressurreição,
mas porque aquele dia parece ser de alguma maneira a imagem do tempo vindouro” (Trat.
do Esp. santo 27).
O domingo é o dia pascal, com tudo o que comporta de alegria e vitória. A razão
profunda é que este Senhor Jesus continua vivo e está presente em nossa existência com
toda a sua força salvadora. Como os primeiros cristãos voltaram cheios de alegria depois da
ascensão (Lc 24,52s), assim também nós estamos convencidos da presença sempre viva de
Cristo e de que sua Páscoa é força dinâmica que continua transformando também nossa
história.
Nós, cristãos, fazemos da alegria do domingo um gesto profético no meio deste mundo:
é nosso ato de fé em Jesus Cristo e no que ele nos quer comunicar. Ter tempo para fazer festa e
viver com alegria consciente esse dia é demonstrar que entendemos nossa fé cristã não como
algo triste, mas como boa nova feita vida. Na verdade, o domingo é “o dia que o Senhor fez:
38

que Ele seja nossa felicidade e nossa alegria” (Sl 117,24). Mais que obra meritória de nossa
parte, é dom semanal que o Senhor ressuscitado nos faz, espaço de festa vivido cultualmente.
E, além disso, antecipação semanal da Páscoa futura e definitiva, que quer alimentar nossa
esperança.
O “dia do Senhor” não tem por que estar em inimizade com “o dia do homem”. Os
cristãos podem evangelizar sua alegria de fim de semana, dando-lhe seu sentido, pascal e
cristocêntrico. Dormir umas horas a mais, comer melhor, sair para passear a fim de gozar a
beleza do criado, passar mais horas com os amigos ou a família, dedicar tempo a nossos
hobbies culturais, musicais, desportivos, sair às montanhas ou à praia, junto com a
participação na eucaristia da comunidade cristã e em outras iniciativas próprias do domingo,
tudo isso constitui estilo pascal de viver o dia inteiro do domingo.

f) Outros aspectos do domingo

Ainda cabe colher, dos vários testemunhos antigos e modernos sobre o domingo, outras
riquezas que possam contribuir para dar-lhe em nossa vivência cor mais densa de Páscoa
semanal.
a) O domingo é o dia dos sacramentos. Não só a eucaristia adquire cor especial nesse
dia – ainda que já tenha bom sentido diariamente –, mas também o matrimônio ou a unção
comunitária dos enfermos ou os batismos e as primeiras comunhões.
Os sacramentos são os sinais privilegiados pelos quais o Senhor glorioso, a partir de sua
existência pascal, torna-se presente a nós e nos comunica sua graça, e por isso tem particular
relação com o dia pascal do domingo. A celebração do matrimônio, por exemplo, terá
significado adicional se ocorrer no domingo, o dia em que Jesus Cristo, tendo purificado sua
esposa a Igreja, ressuscitou para uma nova vida.
Vê-se claramente em particular a coerência dos sacramentos da iniciação com a
Páscoa e portanto com o domingo. Não é de estranhar que o ritual do batismo de crianças
diga que “para manifestar a índole pascal do batismo encarece-se a celebração desse
sacramento na vigília pascal ou no domingo, dia em que a Igreja comemora a ressurreição do
Senhor” (Prenotandos 46). O mesmo se poderia dizer da confirmação, que também se
vincula estreitamente com a Páscoa do Senhor e seu dom por excelência, o Espírito. Celebrar
esses sacramentos no domingo tem cunho de “exemplaridade simbólica”. Os sacramentos da
iniciação celebram precisamente nossa primeira participação e imersão na Páscoa de Jesus.
Por isso se explica também que o missal romano convide a que nos domingos, pelo menos
nos mais importantes do ano, a eucaristia não comece com ato penitencial, mas com a
recordação do batismo que é a aspersão.
O sacramento da reconciliação não parece ter muita relação com a festa dominical. Mas
se entendermos essa celebração não tanto como “penitencial” no sentido de tristeza mas de
“reconciliação” gozosa com o amor misericordioso de Deus, participando da vitória pascal de
Cristo sobre o pecado e o mal, veremos como esse sacramento pode ter sentido no encontro da
comunidade cristã com seu Senhor, o mesmo que, em sua aparição pascal a seus discípulos
(Jo 20,21s), confiou-lhes, como que o primeiro dom de seu Espírito, a faculdade de
perdoarem pecados. Celebrar no domingo (ou em sua preparação sabatina) o sacramento da
reconciliação é de alguma maneira mergulhar de cheio na Páscoa e deixar-se purificar pelo
Senhor, para que o encontro eucarístico se aproveite mais plenamente.
O domingo é o dia em que mais significativamente se leva a comunhão aos enfermos.
Ainda que seja precisamente o dia em que os ministros da comunidade têm mais trabalho, goza
de especial sentido o fato de a comunidade, lembrando-se de seus enfermos – pessoas que
durante anos frequentaram a assembleia e agora estão impedidas – e como prolongamento de
sua celebração, lhes envie, aproveitando se preciso o ministério extraordinário de leigos
39

autorizados, a comunhão. São Justino afirmava já no séc. II que os diáconos distribuíam aos
presentes “o pão e o vinho eucaristizados” e os levavam também aos ausentes (Apologia I,
65).
b) Além da eucaristia e dos eventuais sacramentos que se celebram, a comunidade
cristã teve longa tradição de outras convocações para a oração.
Antes de tudo a liturgia das horas, em suas horas básicas das laudes e das vésperas, às
quais são convidados particularmente os fiéis no domingo: “as horas principais, especialmente
as vésperas, celebrem-se comunitariamente na igreja nos domingos e festas mais solenes” (SC
100); “é sumamente conveniente que onde for possível se celebrem com a assistência do
povo, pelo menos as vésperas (do domingo)” (OGLH 207). O louvor eucarístico prolonga-se
assim no louvor dos salmos, hinos, orações e preces da oração oficial da Igreja, destinada
primordialmente para todo o povo, ainda que dentro dele os ordenados e os religiosos tenham
motivações especiais para celebrá-la.
Também cabem outras celebrações da palavra e outros modos de oração pessoal e
comunitária, também extralitúrgica, e não só onde falta o presbítero para poder celebrar a
eucaristia.
A adoração eucarística tem também especial sentido no domingo, prolongando a
meditação em torno do Senhor ressuscitado que se deu a nós como alimento eucarístico e
tirando desse gênero de oração cristã as evidentes vantagens que se podem derivar para nossa
espiritualidade e para o tom pascal de nossa existência.
Também se devem recordar aqui as celebrações dominicais na ausência do presbítero,
caso cada vez mais frequente não só em países de missão, mas também entre nós.
É todo um desafio para nossa geração o fato de que essas comunidades cheguem, apesar
de tudo, a celebrar o dia do Senhor o melhor que podem. O ideal continua sendo a celebração
eucarística, e a isso é preciso endereçar uma série de esforços. Mas às vezes não é possível e
então, sob a direção de leigos encarregados, a comunidade celebra a Palavra de Deus,
terminando sua oração com a comunidade.
c) Também as iniciativas de caridade podem contribuir para dar ao domingo cristão
sua verdadeira identidade.
A reunião comunitária e a celebração da eucaristia apontam não só para expressar a
fraternidade nesse momento, mas também para prolongar sua atitude e alimentá-la também
fora da celebração litúrgica. Prolongar a atitude de caridade fraterna fora da eucaristia é dar ao
domingo a plenitude do que este significa como dia do Senhor – o Senhor que se deu a si
mesmo pelos outros.
Paulo pedia aos cristãos de Corinto: “Para a coleta em favor dos santos... No primeiro
dia da semana, cada um porá de lado o que tiver conseguido poupar” (1Cor 16,1-2). São
Justino, em sua descrição da liturgia dominical, por duas vezes diz que os que dela participam
sentem-se obrigados a realizar iniciativas de caridade nesse dia: “nós, depois disso,
recordamos sempre essas coisas entre nós, e nós, que temos, socorremos a todos os
abandonados, e sempre estamos unidos uns aos outros... Os ricos, cada um segundo sua
vontade, dão o que lhes parece, e o que se reúne se põe à disposição do que preside e ele
socorre os órfãos e as viúvas” (Apologia I, 67).
O domingo, além da eucaristia, pede atitude de alegria e festa, mas também de caridade:
maior proximidade com relação às pessoas, aos familiares e amigos; um dia em que
cultivamos a fraternidade ou em que decidimos visitar algum parente ou conhecido doente ou
abandonado, um dia em que nos lembramos de detalhes humanos para com os demais, um dia
em que decidimos ser mais amáveis e otimistas: tudo entra nesse clima pascal do dia do
Senhor, em que nossa melhor homenagem é imitar sua atitude de entrega aos outros, que
culminou precisamente na Páscoa cuja memória é o domingo.
40

O domingo, além de não trabalhar e de participar da eucaristia comunitária, pede um


estilo de vida. “Viver segundo o domingo” é programa intimamente relacionado com nossa
identidade cristã como pessoas e comunidade. Viver em profundidade o domingo marca-nos
para toda a semana. Faz aprofundar-nos nas melhores riquezas de nosso ser cristão: vai-nos
comunicando a convicção de nos sabermos salvos por Jesus, acompanhados sempre por sua
presença e seu Espírito, membros de uma comunidade, iluminados pela Palavra, celebrantes
da eucaristia que nos faz participar da Páscoa de Jesus, filhos que vivem na festiva alegria na
família de Deus, em harmonia com o mundo presente e futuro, com o cosmo e as pessoas.
Essas são as grandes orientações que o concílio (SC 106) nos convidava a transmitir ao
povo cristão, para que possamos “salvar” entre todos, pelo caminho das convicções e dos
valores, o domingo cristão, ameaçado pelo secularismo deste mundo, vivendo-o todos
alegremente tanto em sua vertente humana como na cristã, à luz e sob a presença misteriosa
mas real daquele que dá nome e sentido pleno a esse dia, o Senhor ressuscitado.
41

3 – O TRIDUO PASCAL
E. Aliaga

Os primeiros cristãos identificaram o mistério pascal com o de Jesus, mas ainda não
existe essa síntese nos escritos do NT. A expressão “mistério pascal” (paschale sacramentum)
não se encontra, com efeito, nos escritos neotestamentários; é, antes, fruto de progressivo
amadurecimento que começa a surgir nos albores do séc. II, tornando-se desde então
conquista definitiva para a teologia de todos os tempos. Os textos bíblicos constituem, na
verdade, base e premissa para se chegar à formulação da síntese agostiniana que salvaguarda
plenamente tanto o valor da “Páscoa-paixão” como o da “Páscoa-passagem”: contempla-se a
Páscoa como transitus per passionem. Levou-se, com a síntese do bispo de Hipona, a feliz
termo o processo da cristianização da Páscoa antiga, reconhecendo plenamente o caráter
pascal não só da imolação de Jesus, mas também de sua ressurreição: “paixão e ressurreição:
eis a Páscoa verdadeira”.
O Vaticano II recuperou em seu magistério essa síntese como dado adquirido pela fé da
Igreja que imerge suas raízes na palavra revelada e na reflexão dos primeiros séculos do
cristianismo. Essa visão teológica do mistério pascal reflete-se na liturgia renovada a partir
dos documentos conciliares, mas vai mais além porque deve animar toda a vida da Igreja,
nascida da Páscoa, não só para anunciá-la e celebrá-la ritualmente, mas também e sobretudo
para vivê-la.
Essa visão teológica do mistério pascal é indispensável, ademais, para compreender o
conteúdo e a estrutura da celebração anual da Páscoa. Da unidade desse mistério depende
também o sentido unitário da celebração do tríduo pascal. Esse tríduo é a própria realidade da
Páscoa do Senhor celebrada sacramentalmente em três dias, cujo centro de gravitação se acha
obviamente na vigília pascal com sua celebração eucarística. As Normas gerais sobre o ano
litúrgico precisam (n. 19), com efeito, que “o tríduo pascal da paixão e ressurreição do Senhor
tem seu início na missa da ‘Ceia do Senhor’, seu ápice na vigília pascal e seu termo nas
vésperas do domingo da ressurreição”.

1. Perspectivas histórico-pastorais

Na pesquisa sobre as origens litúrgicas cristãs não basta referir-se apenas a documentos
explícitos que obviamente são esporádicos; principalmente se consideramos que a tradição só
nos legou referências litúrgicas ocasionais. Esse princípio, que tem valor geral, aplica-se
também a tudo o que diz respeito à celebração pascal da Igreja primitiva. Por isso importa
muito fixar a atenção no ambiente espiritual em que se desenvolveram as comunidades
primitivas e no exato contexto histórico contemporâneo à redação dos escritos do Novo
Testamento.

a) A celebração da Páscoa: do AT ao NT

A Páscoa não era, no hebraísmo palestinense da época de Jesus, apenas uma festa anual
israelita como as outras, mas sublinhava-se seu peculiar valor escatológico de libertação
definitiva. Já nos profetas antigos percebe-se tanto o desejo veemente de aproximar a alegria
da libertação à própria Páscoa (Is 30,29) como a coincidência propositada da própria
libertação com o dia exato da Páscoa (Jr 31,7; 38,2).
Fica bem manifesto, de outro lado, que a promessa da libertação escatológica pascal se
vinculava com a aparição do Messias (= Cristo), fato que podemos comprovar no próprio rito
42

pascal hebreu, no Poema das quatro noites, e em toda a tradição midráshica da qual o poema
mencionado é um exemplo entre tantos.
Encontramos, como se sabe, a origem da celebração da Páscoa no AT e nomeadamente
em dois textos: Ex 12 e Dt 16. O primeiro apresenta-nos o sentido teológico da Páscoa,
sublinhando sobretudo a ação salvífica de Deus que “passa” para ferir os egípcios e salvar
Israel. Páscoa é “Deus que passa”. No segundo – assim como nos capítulos 13-14 do Êxodo –
sobressai, porém, mais “o homem salvo”, sua passagem da escravidão à liberdade.
Foram se afirmando na celebração dois aspectos do conteúdo do evento pascal: de um
lado, a imolação-comida do cordeiro e, de outro, a saída do Egito como passagem da
escravidão à liberdade. E o judaísmo palestinense vai se esforçar para manter e aprofundar a
um só tempo o conteúdo teológico da Páscoa e seu caráter ritual de sacrifício.
A celebração pascal inicialmente era feita no seio familiar e tinha como vítima uma
cabeça de gado miúdo, mas logo se passou a uma celebração realizada por Israel em um único
sacrifício cultual centralizado em Jerusalém tendo um cordeiro ou mesmo um touro como
vítima (cf. Dt 16).
No judaísmo da diáspora helenística, porém, uma vez que não se podia celebrar a
Páscoa em Jerusalém, desdobrou-se, por obra de Fílon de Alexandria, o aspecto moral e
espiritual da Páscoa que acabou significando quase exclusivamente a passagem da pessoa dos
vícios à virtude.
Agora, se, à luz dos fatos que mencionamos, voltarmos o olhar para as fontes cristãs –
como o são os próprios evangelhos – perceberemos facilmente que surge o evento Cristo (= o
Messias) intimamente ligado, e até mesmo em coincidência, com a celebração pascal. Dá-se,
com efeito, a coincidência cronológica de ter morrido o próprio Jesus durante a celebração da
festa pascal hebréia.
Nos sinóticos, tendo em conta as peculiaridades e diferenças próprias de cada
evangelista, salta à vista que a libertação prometida no Antigo Testamento acaba sendo a
realidade consumada na pessoa e ação de Jesus, a quem se apresenta como o acontecimento
por antonomásia do reino de Deus que tem seu marco expressivo entre o batismo e a subida a
Jerusalém para aí celebrar a Páscoa e morrer (Mt 26,2; Lc 22,15), ou, usando expressão mais
radical, para celebrar a Páscoa com sua morte.
Esse trânsito, que leva Jesus ao longo de três anos do rio Jordão a Jerusalém, lugar
privilegiado da celebração pascal, evidencia que ele viera para dar pleno cumprimento não
somente à “passagem” dos hebreus pelo mar Vermelho e pelo Jordão, mas também ao rito que
dela se celebrava em Jerusalém.
A centralidade pascal no cristianismo apostólico fica comprovada pelo evangelho de
João, em particular pela singular ênfase que concede às três últimas Páscoas de Jesus (Jo
2,13.23; 6,4; 13,1). A afirmação de Jo 1,19-28 com sua referência a Elias, ao profeta, a Cristo
e ao batismo que se devia ministrar nesses dias, introduz-nos num messianismo
declaradamente pascal, concebido como libertação do pecado por obra de Jesus e apresentado
na perspectiva pascal do cordeiro. Jesus identifica-se com o pão pascal (= verdadeiro maná)
que o Pai oferece para a vida eterna (6,31ss), e o que Jesus apresenta nesse pão é seu corpo
sacrificado “para que o mundo tenha a vida” (Jo 6,51) na linha da equivalência “pão-cordeiro”
presente no próprio rito pascal. E mais: vê-se a morte de Jesus na cruz, no dia e hora em que
no templo vizinho se ofereciam os cordeiros, como o verdadeiro cumprimento do sentido
profético desse rito (Jo 19,34-37).
Acrescentem-se a esse conjunto de sugestões evangélicas a referência explicitamente
pascal de 1Cor 5,7 e outro texto, não menos claro, de 1Pd 1,18-21, que interpreta a morte de
Cristo em chave pascal.
Com essas breves referências aos textos principais do Novo Testamento que tratam da
temática Cristo-Páscoa, queremos indicar a importância não só do evento pascal na Igreja
43

primitiva, mas também de sua atualização “ritual” na ceia do Senhor, celebrada precisamente
“em memória da morte do Senhor” (1Cor 11,23.26).
É óbvio que essa centralidade do evento pascal de Jesus conferiu à nova comunidade
dos cristãos a consciência de ser o verdadeiro Israel de Deus (Gl 6,16), no qual se cumpriu a
verdadeira libertação que o converteu em “o povo conquistado por Deus Pai” (1Pd 2,9); mas,
além disso e precisamente pela mesma razão, distingue-se a Igreja do resto do hebraísmo
levando-a a celebrar não mais a Páscoa “figurativa” (= recordação dos fatos do Êxodo), mas a
Páscoa da libertação que se realizou no Messias Jesus.
A perspectiva pascal, na qual se encerra e se resume todo o mistério de Cristo, fez que
a Igreja primitiva não conhecesse outra celebração senão a pascal. Somente em um segundo
momento o “mistério” de Cristo se desdobrará e se contemplará por meio de seus
“mistérios”, cada um em particular, obtendo-se assim visão pormenorizada do mistério
global de Jesus. Vamos assistir então, com o passar do tempo, à celebração de um ciclo
pascal propriamente dito, e outro ciclo natalício referente aos mistérios da encarnação vista
em seu momento inicial.

h) Celebração da Páscoa anual no tempo apostólico e imediatamente pós-apostólico

Não existem documentos explícitos que falem de celebracão pascal anual cristã no
tempo apostólico. Essa afirmação pode parecer estranha, mas não se deve esquecer que em
seus inícios o cristianismo continua parte integrante – e acha-se inclusive no mesmo sulco –
da tradição judaica, na qual a festa da Páscoa era fato estabelecido.
O livro dos Atos dos apóstolos fala-nos em duas ocasiões da Páscoa (12,3-5 e 20,6).
Mas tudo faz pensar que o autor não nos queria fornecer data de calendário, ainda que não
seja menos verdade que situa as duas cenas no quadro de uma festa notável e conhecida
inclusive por cristãos de proveniência pagã. Isso poderia fazer pensar em uma celebração
pascal cristã, se bem que ambientada, pela data e terminologia, em sua celebração judaica
homônima. Isso vale principalmente para o segundo caso, em que se indica que a viagem de
Paulo começa depois das festas dos Ázimos.
Paulo também nos oferece um texto bastante claro sobre a Páscoa cristã (1Cor 5,7-8).
Ele quer explicar o sentido da festa pascal, se bem que não contenha nenhuma indicação clara
de que Jesus substituiu o cordeiro pascal judaico. Pode-se afirmar, é claro, que deparamos
nessa passagem com um testemunho confiável da transição da celebração judaica para outra
de cunho claramente cristão. Pois, uma vez admitido que a imolação do cordeiro era
celebração anual, e que a imolação de Jesus substituíra a do cordeiro, era lógico admitir que a
imolação de Jesus também se celebrava anualmente. É justo desenvolver raciocínio paralelo
com referência à interpretação que Paulo faz da Páscoa referindo-a à imolação de Jesus, muito
embora no quadro da celebração hebréia.
Enfim, são sem dúvida muitos os autores que deduzem a existência de uma Páscoa
cristã nos tempos apostólicos a partir das narrativas da última ceia. Percebe-se nelas a
presença de fórmulas litúrgicas próprias da celebração eucarística em uso. Assinalamos
sobretudo o interesse manifesto em sublinhar que Cristo, longe de abolir a Páscoa, atribuiu-
lhe outro rito e outro conteúdo: o pão e o vinho, por um lado, e a salvação escatológica
mediante a morte de Jesus, por outro. Fica claro, portanto, que os cristãos da época
redacional sinótica já possuem sua Páscoa cristã própria.

c) A Páscoa cristã dos séculos II a VI

A Páscoa cristã caracteriza-se nesse período por dois ou três dias de jejum que
naturalmente se concluía com a celebração de um culto litúrgico. O caráter penitencial da
44

Páscoa vincula-se com seu significado, ou seja, refere-se à paixão e morte do Senhor. Essa
dimensão não era estranha à própria Páscoa hebréia que se expressava com o simbolismo das
ervas silvestres e dos pães ázimos que se chamavam com razão de “pães da aflição” (Dt 16,3).
Assinale-se, todavia, que existe diversidade no cômputo dos dias de acordo com duas
correntes. A primeira corrente refere-se à célebre questão dos “quatuordecimanos”, de que
muitas vezes se tem idéia sumária e superficial, segundo a qual alguns, nomeadamente os
“quatuordecimanos”, celebravam a Páscoa na Sexta-Feira Santa (da mesma forma que os
hebreus que a celebravam no dia 14 de Nisan), sendo que os outros (a segunda corrente) a
celebravam no domingo seguinte. Estes inseriam a celebração da ressurreição no quadro da
Páscoa. Os primeiros, porém, somente se detinham na dimensão da paixão e morte.
Esse tipo de explicação é falso porque a Páscoa era, para uns e outros, sobretudo a
paixão do Senhor, e tanto uns como outros a concluíam com a celebração da ressurreição,
ainda que de maneira diversa.
a) A corrente oriental. Representam os “quatuordecimanos” um costume oriental que
parece ter suas origens no apóstolo João. Insistem, a exemplo de João em seu evangelho, no
dia, hora e modalidade da morte de Jesus: ele morreu na sexta-feira, às 3 horas da tarde, e
como o cordeiro, figura que se aplica explicitamente a Jesus: “não quebrareis os ossos do
cordeiro”. Firmando-se nesses detalhes, e convencidos de que a morte de Jesus substituíra a
Páscoa hebreia, celebravam a Páscoa cristã jejuando durante toda a sexta-feira e terminavam o
jejum com a celebração eucarística ao cair da tarde desse dia.
b) A corrente ocidental. Os outros cristãos, firmando-se em tradição mais geral e menos
restrita a umas poucas Igrejas da Ásia Menor, opunham que se devia manter o jejum durante
todo o dia do sábado e iniciar a celebração da eucaristia, ou seja, o sacramento da Páscoa,
propriamente nas primeiras horas do domingo, na hora em que se dera a ressurreição. Não era
concebível, argumentavam, que se fizesse festa rompendo o jejum enquanto o Senhor jazia
morto no sepulcro. Isso naturalmente implicava que não se celebrava a Páscoa (= a morte de
Jesus no sacramento) no mesmo dia e hora que Jesus morreu, ou seja, na Sexta-Feira Santa.
Tudo isso deu origem a uma longa controvérsia que atingiu a máxima virulência nos
tempos de Policarpo, oriental “quatuordecimano”, e do papa Aniceto. Aquele chegou até a
viajar a Roma por causa dessa questão, mas sem alcançar o consenso desejado. Mais tarde,
pelos fins do séc. II, o papa Vítor quis esclarecer a questão, e fez convocar sínodos locais por
toda a cristandade, inclusive da esfera da tradição joanina. Após inflamadas idas e vindas,
impôs-se o uso romano, ou seja, que só se devia celebrar no domingo o mistério da
ressurreição do Senhor, não se podendo interromper o jejum pascal até esse dia. Não obstante,
permaneceram as divergências no modo de calcular as incidências da data lunar de 14 de
Nisan no calendário solar. Foi preciso esperar ano de 325, quando o concílio de Nicéia
exortou todas as Igrejas a aceitar o costume alexandrino de celebrar a Páscoa no domingo
seguinte à lua cheia do equinócio da primavera, ou seja, entre 22 de março e 25 de abril.
Parece que se encontra no fundo de toda essa luta contra os “quatuordecimanos” a
vontade decidida dos ocidentais de empenhar todas suas forças para se desvincular dos
costumes judaicos.
O costume ocidental, mantido substanciamente durante séculos e novamente sancionado
hoje, de fazer da Sexta-Feira Santa e do sábado santo dias alitúrgicos, ou seja, sem celebração
da eucaristia, reproduz o sentido primitivo da Páscoa cristã que é a celebração penitencial da
morte do Senhor. É preciso, de mais a mais, assinalar que a celebração da eucaristia nas
primeiras horas do domingo põe em primeiro plano a unidade do mistério pascal que
compreende de modo indissolúvel a morte e a ressurreição de Jesus.
Observe-se, no entanto, que se vai romper paulatinamente essa unidade no decorrer dos
tempos, quando passa a prevalecer o desejo de ressaltar cada um dos aspectos do mistério em
45

particular. Toda essa diversificação teve início a partir do fim do séc.VI; assinale-se ainda que
esse processo é mais demorado no Oriente que no Ocidente.

d) Desdobramentos e involuções da liturgia do tríduo sacro

A celebração dos dias santos sob a denominação global de “tríduo pascal” constituiu
novidade na linguagem oficial eclesiástica. Assim denomina, com efeito, o missal de Paulo VI
(1970) a celebração desses dias. Não é, porém, expressão que se tenha cunhado na
Antiguidade. Mas é certo que santo Ambrósio alude já no séc. IV a um “triduum sacrum”
referindo-se aos dias em que a Igreja celebra a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus.
Antes, referia-se Tertuliano à sexta-feira de Parasceve e ao domingo; Orígenes dizia que a
sexta-feira era dedicada à lembrança da paixão, o sábado à recordação da descida aos infernos
e o domingo à memória da ressurreição. Um pouco mais tarde, o próprio Agostinho evoca o
“sacratissimum triduum” do crucificado, morto e sepultado. E Leão Magno em muitas
ocasiões nos fala da “paschalis festivitas” e do “sacramentum paschale”.
E evidente que se vai generalizando a partir do séc. IV a tendência a historicizar os
relatos evangélicos, e ela se institucionaliza rapidamente em Jerusalém por razões óbvias.
Egéria descreve toda essa semana que se baseava em reconstrução fiel dos últimos dias da
vida terrena de Jesus. Esses ritos, levados a cabo nos mesmos lugares da paixão, tiveram
notável influência no enfoque das celebrações, inclusive fora de Jerusalém. Muito cedo,
porém, o que parecia enriquecimento terminou transformando-se em fator que não apenas
desagregava a unidade do mistério pascal mas também desviava a atenção do que lhe era
nuclear.
A ênfase dada à instituição da eucaristia na quinta-feira santa fez desviar a atenção do
verdadeiro ápice da Páscoa constituído pela eucaristia da vigília pascal. Além disso, a
memória de sua instituição assume pouco a pouco relevo tal que chega a romper
definitivamente a própria unidade do tríduo, que já não ficaria constituído por sexta-feira,
sábado e domingo, mas por Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo, porque na
contagem dos três dias santos entrará a celebração da instituição eucarística.
Com o passar do tempo dois ritos vão acrescentar-se à liturgia eucarística da quinta-
feita santa: a transladação solene da reserva eucarística e o despojo e desnudação dos altares.
O primeiro constitui um gesto prático que se desenrola sobretudo a partir dos sécs. XIII-XIV
em concomitância com a devoção “visiva” da hóstia consagrada e consiste em levar a lugar
determinado o pão eucarístico que sobrou. O segundo é gesto funcional, como o era ainda no
séc. VII, quando se adornava o altar com toalhas somente para a celebração da eucaristia; não
tardará a tornar-se um gesto simbólico, sendo às vezes dramatizado em memória da
desnudação de Jesus de suas vestes.
Finalmente, o “lava-pés” na quinta-feira santa – que já se atesta em meados do séc. V
em Jerusalém – difundiu-se por todo o Oriente e Ocidente. Assinale-se que esse rito não tinha
lugar no quadro da eucaristia. Inscreve-se, como é óbvio, na linha das “comemorações
históricas” dos acontecimentos de Jesus.
A Sexta-Feira Santa correu e corre o risco de se entender exclusivamente como dia da
recordação da morte sem referência à ressurreição de Jesus. A liturgia da Palavra no início
ocupava o primeiro plano da celebração juntamente com as orações, como na tradição
sinagogal. Depois, e a exemplo da “adoração da cruz” feita em Jerusalém, difundiu-se em
muitos lugares a entrada solene da cruz com a exclamação: “Eis a árvore da cruz...” A
analogia com a “luz de Cristo” da vigília pascal prestar-se-á para frisar os elementos mais
visíveis da morte e ressurreição. Com isso ficaria menos evidenciado o núcleo central: passar-
se-á facilmente da contemplação do mistério – fundada na liturgia da Palavra – a uma espécie
de representação visível, que acabará sobrepondo-se chegando à devoção popular da “via
46

sacra”. Finalmente, a devoção à eucaristia – com a introdução da comunhão – levou ao inteiro


esquecimento do sentido específico do jejum intra-pascal que só terminava com a
“comunhão” da noite da Páscoa.
Do mesmo modo, quanto à vigília pascal, alguns elementos – que passaram a fazer parte
das celebrações do tríduo pascal – tiveram provavelmente lugar funcional e até mesmo
ocasional; depois, ampliados e fixados no rito, podem ter constituído, tanto para o clero como
para os fiéis, um ponto mais vistoso que os elementos essenciais. A bênção do círio que no
séc. V acontecia um pouco por toda parte, ainda era ignorada na liturgia papal do séc. XI; o
uso do fogo encontra seus primeiros testemunhos em Roma em fins do séc. I a partir do séc.
XII vai-se antecipando a hora do começo da “vigília” para as 11 ou as 12 horas da manhã: em
tempos de Pio V, adianta-se inclusive a hora “tertia”. E o Código de direito canônico do ano
de 1917 convalidou esse uso dizendo que a quaresma terminava no meio-dia do sábado santo.
Todas essas antecipações acabaram eliminando inteiramente a unidade do tríduo e
criando, além disso, estridente contraste entre as expressões dos textos litúrgicos e o horário
em que se celebrava. Não se deve esquecer, de mais a mais, o fato assinalado por B. Fischer
que adverte – pelo menos para a região transalpina – a formação de um segundo tríduo que ia
do domingo de Páscoa à quarta-feira. Parece que pelos fins da Idade Média essa solução
estendeu-se por muitos lugares.
Após tantas vicissitudes, o tríduo pascal começou a reconquistar com Pio XII sua
unidade e sentido – sob o impulso do movimento litúrgico. Aprovou-se definitivamente,
depois de breve período de experimentação, o novo Ordo que compreendia toda a semana
santa. Entre outras disposições, estabelecia-se, com efeito, que na manhã da quinta-feira santa
– após a “tertia” – se celebrasse a missa crismal, ao passo que se deveria celebrar a missa “in
cena Domini” pela tarde, na hora mais oportuna mas não antes das 5 horas da tarde nem
depois das 8 horas. A solene ação litúrgica da Sexta-Feira Santa deslocava-se para as
primeiras horas da tarde (de 3 a 6) de acordo com as exigências pastorais. A vigília pascal
pela noite, em horário oportuno para começar a missa à meia-noite.
Sendo assim, a reforma decidida pelo Vaticano II encontrava terreno preparado para
levar a cabo toda a obra iniciada por Pio XII. Diga-se, todavia, que essa decisão final dificulta
a compreensão do início exato da cinquentena pascal, que se inicia com o próprio domingo de
Páscoa.

2. Início do tríduo pascal: a quinta-feira santa

O dia da quinta-feira santa faz parte dos tempos litúrgicos diferenciados: até a hora das
vésperas é o último dia da quaresma; com a “missa na Ceia do Senhor”, abre-se o tríduo
pascal; assim o estabelece a reforma do missal e do ano litúrgico decidida pelo Vaticano II.
Ficam então inalterados em seus termos os “três dias”, que nos apresentam os limites do
tempo em que se realizou o mistério redentor, sem incluir a quinta-feira santa. Esse dia
oferece-nos, com efeito, o momento sacramental do próprio mistério, ou seja, atualiza e torna
presente a realidade pascal ao longo de todos os séculos. Assim, ao passo que no “tríduo”
apresenta-se a nós a realidade do mistério pascal único e unitário em sua dimensão histórica, a
“quinta-feira santa” no-lo transmite em sua forma ritual permanente.
No rito da Ceia, que Jesus nos mandou celebrar em sua memória, deu-nos ele seu
sacrifício pascal. A Igreja repete a Ceia para perpetuar a Páscoa. Celebrar a Páscoa significa
fundamentalmente celebrar o rito eucarístico. Com efeito, para ser exatos, devemos considerar
quatro Páscoas na história da salvação: a do Senhor, ou seja, a passagem salvífica de Iahweh
na noite da saída do Egito; a dos judeus, ou seja, a celebração do memorial ou memória
objetiva realizada com o rito da ceia pascal (cf. Ex 12,14; 13,8-9); a de Jesus, ou seja, sua
imolação na cruz, sua “passagem deste mundo ao Pai” (Jo 13,1) por meio de sua paixão e
47

ressurreição; e, enfim, a Páscoa da Igreja celebrada de forma sacramental, “in mysterio”,


anualmente, mas também semanal e cotidianamente no rito eucarístico.
O rito pascal, tanto no AT como no NT, une-se estreitamente à Páscoa histórica, de que
é memória eficaz, real presença da salvação, e anúncio de sua realização definitiva. A ceia
pascal de Jesus não tem outro significado. Inserida no ritual da ceia pascal hebreia, desta toma
a tríplice relação que a alia à Páscoa. Mas há notável diferença: ao passo que o rito hebreu se
refere a uma Páscoa que, ainda que acontecimento histórico (a libertação israelita do Egito), é
essencialmente simbólica porque se orienta para a libertação “messiânica” futura, o rito
realizado por Jesus (pão-vinho = corpo de Cristo, o verdadeiro Cordeiro pascal, e sangue da
aliança verdadeira com referência à sua figura que é a aliança do Sinai conclusiva da Páscoa
do Êxodo) é memorial e presença da Páscoa verdadeira que se realiza na “passagem”
redentora de Jesus, e é anúncio da redenção consumada que se realizará quando “todos os
homens” celebrarem a Páscoa de Cristo. Fala Jesus, com efeito, de seu sangue “derramado em
prol da multidão, para o perdão dos pecados” (cf. Mt 26,28).
Podemos concluir, portanto, com Marsili, que o tríduo da Páscoa de Jesus conduz-nos
certamente ao sentido real, mas acentua a posição temporal da redenção operada pelo Senhor,
ao passo que a quinta-feira santa põe-nos em comunicação real, mediante a celebração pascal
de seu corpo e sangue imolados por nós em sacrifício, com a própria redenção, se bem que no
âmbito sacramental.
A celebração litúrgica característica desse dia não é primitiva, talvez pelo fato de a
tradição antiga ter posto a instituição da eucaristia e o início da paixão na terça e quarta-feiras
santas e não na quinta-feira santa. Percebemos, todavia, que se dá a partir sécs. IV e V a
evolução que levou a comemorar na quinta-feira santa a ceia do Senhor. Com efeito, pode-se
constatar nesse período de tempo a denominação: “feria quinta in Coena Domini”, ainda que
seja provável para essa mesma época a denominação de “natale calicis”. Se em alguns
documentos deparamos com o qualificativo “dies traditionis”, será preciso prestar atenção ao
contexto imediato, porque a “traditio” significa, nos tempos mais antigos, somente “entrega”,
“instituição”; e a expressão refere-se imediatamente à eucaristia: “dia da instituição da
eucaristia”, como ainda hoje se diz na variante que a primeira oração eucarística prevê para a
celebração da quinta-feita santa. Muito cedo, porém, o “dies traditionis” passou a significar
também o dia da traição (= praedictionis), enfatizando-se então o fato da prisão de Jesus.
O missal de Paulo VI dá à eucaristia da tarde da quinta-feira santa caráter festivo,
unitário e comunitário. As leituras falam-nos do rito pascal do Antigo e Novo Testamentos
tendo como núcleo a ceia pascal celebrada por Jesus com os discípulos, que serve de eixo a
Páscoa hebraica e a cristã. A passagem de Ex 12,1-8.11-14 narra-nos a instituição do rito
memorial dos acontecimentos do Êxodo, que anunciaram e prefiguraram a Páscoa de Jesus. A
segunda leitura (1Cor 11,23-26) descreve a ceia pascal cristã, celebrada por comissão do
Senhor, e dá seu sentido; e o evangelho (Jo 13,1-15), estreitamente vinculado com as duas
leituras anteriores, ilumina-as com a figura de Jesus que, embora Mestre e Senhor, faz-se
servo lavando os pés dos discípulos. Os textos do Novo Testamento recordam-nos
unanimemente que a celebração eucarística do “serviço” e humilhação de Jesus requer que
imitemos na vida pessoal o exemplo que nos legou.
a) O lava-pés. Celebra-se esse rito na quinta-feira santa como rito suplementar. A atual
reforma introduziu-o na própria celebração eucarística, depois do evangelho e da homilia. O
rito ajuda a compreender o grande e fundamental preceito cristão da caridade fraterna. Desde
seus inícios recebe, com efeito, o qualificativo de celebração do “mandato”.
b) Os textos eucológicos da celebração eucarística. As três orações do missal de Paulo
VI, que substituíram as do anterior missal de Pio V, expressam bem a índole dessa celebração,
sublinhando o aspecto sacrificial e nupcial do banquete eucarístico: seu caráter de “memorial”
do sacrifício de Jesus Cristo, o Senhor.
48

O motivo da ação de graças, que reflete o prefácio, é o sacerdócio eterno assim com
também o sacrifício de Jesus com seu sacramento: a própria eucaristia que perpetua seu
memorial até sua vinda. Ressalta-se assim o caráter sacramental, sacrificial e escatológico
próprio de toda celebração eucarística (cf. 1Cor 11,26).
Mais, porém, que os novos textos, há na reforma recente dois ritos que, sem ser
específicos da quinta-feira santa, podem modificar profundamente sua celebração: a
concelebração de todos os sacerdotes da paróquia ou da região, e a possibilidade oferecida aos
fiéis de comungar do cálice do Senhor, como fizeram os próprios apóstolos.
c) A adoração da eucaristia: o Monumento. Dado que a Sexta-Feira Santa foi – e
continua sendo – dia alitúrgico, sem celebração de missa, mas dia em que se comungava, era
preciso guardar na quinta-feira santa o Sacramento para o dia seguinte. No princípio não se
sentia essa necessidade, pois os fiéis costumavam levar para casa parte do Sacramento que
consumiam na Sexta-Feira Santa antes de quebrar o jejum. Mas depois decaiu o uso da
comunhão privada, começando-se então a conservar o Sacramento na Igreja – mais
exatamente na sacristia – para a comunhão de todos. O fato não se revestia de nenhum caráter
particular, e, portanto, a cerimônia de levar a eucaristia para a sacristia não era marcada por
solenidade especial, nem tampouco na Sexta-Feira Santa quando era levada ao altar.
Começa, todavia, a delinear-se nos inícios do séc. XI o costume de organizar, para essa
transladação do Sacramento, uma procissão com velas, incenso e acompanhamento de cantos;
o final da procissão era uma capela da Igreja ou anexa a ela. Começou-se a explicar esse rito
como “sepultura” do Senhor velada pelos cristãos. Muito cedo, porém, passou-se do
significado simbólico à representação realista: erigia-se na própria capela um túmulo e, em
alguns casos, punha-se a figura de Jesus deitado; além disso, em alguns lugares apareciam de
ambos os lados duas estátuas de soldados em guarda, imagens das santas mulheres e de são
João, e até mesmo motivos mortuários. Essa idéia da “sepultura” esteve de tal modo arraigada
em alguns lugares, que não era raro guardar duas hóstias consagradas: uma para consumir na
Sexta-Feira Santa e a outra para mantê-la “sepultada” todo o sábado santo e fazê-la
“ressuscitar” na celebração eucarística da ressurreição.
Na reforma atual a Igreja quer que se evite toda ideia de sepulcro e se faça a adoração
da eucaristia somente até a meia-noite em ação de graças pelos dons concedidos pelo Senhor,
devendo-se depois dar lugar ao pensamento da paixão, logo que começar a meia-noite, ou
seja, a Sexta-Feira Santa. Essa disposição é certamente elogiável como reação à falsa ideia do
“sepulcro” em que estaria encerrado o corpo de Jesus. Mas diga-se também que a própria
disposição ainda repousa sobre uma compreensão distorcida da eucaristia. Com efeito, na
primeira parte da adoração, caracterizada por luzes e flores, enfatiza-se justamente o dom do
Senhor, mas pode-se não perceber que se trata do “dom da Páscoa”, ou seja, do “dom do
sacrifício pascal”, que é precisamente o mistério da morte de Jesus. A quinta-feira santa não é
só dia do “corpo do Senhor”, mas também dia do “corpo do Senhor oferecido e de seu sangue
derramado em sacrifício”; é, na verdade, dia do memorial de sua morte pascal.
À meia-noite começa o “tríduo” da Páscoa de Jesus, tríduo que quer salientar a
realização temporal da redenção operada pelo Senhor.

3. O primeiro dia do tríduo pascal: a Sexta-Feira Santa

A Sexta-Feira Santa, que a Igreja celebra hoje, é uma composição de vários elementos
de estilo e procedência bem diversos. A Igreja não vê esse dia como de pranto e luto, mas
como dia de amorosa contemplação do sacrifício cruento de Jesus, fonte de nossa salvação.
Ela não faz na Sexta-Feira Santa um funeral, mas celebra a morte vitoriosa do Senhor. Por
isso, fala-se de paixão “beata” e “gloriosa”.
49

O elemento fundamental e universal da liturgia desse dia é a proclamação da Palavra,


dado que a Igreja, por antiquíssima tradição, não celebra hoje a eucaristia. Compõe-se o rito
de três partes: a liturgia da Palavra, a adoração da cruz e a cerimônia da comunhão.

a) Serviço eucológico alitúrgico

A ação litúrgica atual conserva a forma antiga de celebração da Palavra. A reunião


compreendia – já em seus inícios – um serviço de leituras, cantos e preces que se conservou
substancialmente até agora. Deparamos assim com a entrada em silêncio, que nos reconduz ao
tempo em que não havia antífona de entrada. Depois da prostração e de breve oração passa-se
diretamente às leituras.
Propõem-se duas orações introdutórias à escolha. Na primeira pede-se ao Senhor que
em sua misericórdia santifique e proteja sempre sua família pela qual Jesus inaugurou em seu
sangue o mistério pascal; a segunda se inspira por inteiro em 1Cor 15,45-49.
A primeira leitura é um bom trecho do quarto cântico do Servo de Iahweh, o mais rico
de ensinamento e o mais importante do ponto de vista teológico. A Igreja lê nesse dia a
palavra profética de Isaías. É o Novo Testamento que dá pleno sentido à personalidade do
Servo sofredor, vendo-a realizada na pessoa de Jesus; por isso antigamente se chamava esse
cântico de “o evangelho da paixão e morte de Jesus”.
A Igreja oferece a primeira resposta à palavra de Deus valendo-se do salmo 30, cujo
versículo 6 Jesus pronunciou na cruz (Lc 23,46). Com isso a liturgia atribui a Jesus o salmo
inteiro, encontrando nele a descrição de sua paixão e de seu pleno abandono nas mãos do Pai.
Toma-se a segunda leitura da carta aos Hebreus (4,14-15; 5,7-9). Depois de Isaías nos
apresentar o “homem das dores”, o texto de Hebreus ressalta que a figura do Servo encontra
realização não só em Jesus, mas também no “sumo sacerdote” a quem se devem nossa
fidelidade e confiança. Como resposta à palavra do apóstolo e preparação à escuta da
narrativa da paixão, a assembleia canta o texto de Paulo aos Filipenses (2,8-9), glorificando o
Senhor por sua palavra.
O evangelho é o relato de Jo 18,1-19.42 que a Igreja reserva, não sem motivos, para
esse dia precisamente pela perspectiva com que o apóstolo apresenta a vida e a morte de
Jesus.
A liturgia da Sexta-Feira Santa, com essa visão joanina do mistério pascal, quer ajudar-
nos a compreender os sinais da divindade e glória de Jesus, fixando nossa atenção não tanto
na descrição de seu sofrimento humano mas na apresentação daquele aspecto.
Depois da leitura da Sagrada Escritura e da homilia, a liturgia da Palavra termina com
as orações solenes (= Oração universal) segundo o esquema ordinário da antiga prece
litúrgica: convite, intenções, prece em silêncio, unificação (“coleta”) das preces por parte do
presidente da assembléia reunida.
A oração universal ou dos fiéis chegou-nos, por meio da liturgia da Sexta-Feira Santa,
em sua forma mais rica e clássica. O formulário atual data do séc. V, mas o estilo das preces
que o compõem é sem dúvida mais antigo. O missal de Paulo VI introduziu alguns retoques a
esse venerando formulário para adaptá-lo à situação presente.
Não devemos deixar de assinalar a teologia que emerge do lugar que essas orações
solenes ocupam depois da proclamação da palavra de Deus. A assembleia, iluminada e
interpelada pela palavra, abre-se à caridade orando pela Igreja, pelo papa, pelas ordens
sagradas e por todos os fiéis, pelos catecúmenos, pela unidade dos cristãos, pelos judeus,
pelos não-cristãos, pelos que não crêem em Deus, pelos governantes e pelos atribulados...

b) A adoração da cruz
50

Neste momento da celebração deveria começar a liturgia eucarística. Mas na Sexta-


Feira Santa a Igreja não celebra a ceia do Senhor. A liturgia volta-se toda ela para o sacrifício
cruento de Jesus, e não para o rito que é seu memorial. Em lugar da eucaristia fazem-se a
apresentação e a adoração da cruz.
Esse rito nasce como consequência da proclamação da paixão de Jesus. É como que
uma celebração épica da vitória de Jesus Cristo sobre o mundo e o pecado mediante a cruz.
Canta Jesus Cristo sofredor e já proclama sua ressurreição valendo-se de belíssima antífona de
origem bizantina: “Adoramos tua cruz, Senhor, louvamos e glorificamos tua ressurreição.
Veio do lenho da cruz alegria para o mundo inteiro”. Como se percebe, a Igreja não separa a
morte da ressurreição de Jesus.
As origens históricas desse rito devem sem dúvida ser buscadas em Jerusalém, onde o
encontramos já no séc. IV, sendo-nos conhecido graças a Egéria e Cirilo de Jerusalém. Passou
muito cedo ao Ocidente, ainda que se tenha de advertir a sobriedade jerosolimitana em Roma,
ao passo que em outros lugares ele vai sendo cada vez mais dramatizado segundo um
esquema igualmente provindo de Jerusalém, mas de época posterior ao séc. IV. Hoje o rito
latino reproduz um cerimonial solene que se caracteriza pelo cântico do triságio bizantino e
pelos “impropérios” (= diálogo literário entre Jesus e o povo), com evidente inspiração
oriental, levados a Roma em torno do séc. IX-X, talvez via Benevento.
Ao terminar a adoração, põe-se a cruz sobre o altar, que é símbolo do sacrifício e
sacerdócio de Jesus Cristo. A assembleia contempla seu Senhor (Jo 19,37).

c) O rito da comunhão

Retomando a parte da habitual celebração da eucaristia que sucede ao cânon, e


começando pelo pai-nosso – sem o rito da paz ou o Cordeiro de Deus, porque tinham sido
feitos na eucaristia em que as hóstias foram consagradas –, essa parte da celebração não passa
de mero rito de comunhão.
Parece que no antigo uso romano havia dupla tradição segundo a qual o papa e seus
ministros não faziam a comunhão na Sexta-Feira Santa, ao passo que o resto do clero e o povo
podiam fazê-la em outras Igrejas. No séc. XII, Inocêncio III estabeleceu que tanto o povo
como os ministros não comungavam, reservando a comunhão somente ao presidente da
celebração. Ora, essa disposição encontrou resistências notáveis até o extremo de
encontrarmos testemunhos da prática anterior ainda aos sécs. XVI-XVII.
Em 1955, com a reforma da semana santa feita por Pio XII reintroduziu-se, após
discussões inflamadas, a prática da comunhão na Sexta-Feira Santa.
Abre-se com certeza o perigo de desenfoque do ponto culminante do tríduo: a
participação na eucaristia da vigília pascal e o significado do dia alitúrgico. Não obstante, se
apresentarmos a realidade de modo adequado, será possível ressaltar o aspecto positivo do
rito: toda comunhão feita fora da missa sempre é comunhão com Cristo que se oferece por nós
em sacrifício ao Pai. E é esse o aspecto específico a sublinhar.
A solene ação litúrgica da paixão e morte do Senhor termina com uma oração e com a
bênção pronunciada sobre o povo.

d) o jejum pascal

Como sinal exterior da participação interior do sacrifício de Jesus (2Cor 4,11), e como
sinal de que chegamos aos dias em que nos tiraram o Esposo (cf. Lc 5,33-35), a Sexta-Feira
Santa é dia de jejum.
A tradição do jejum pascal é antiquíssima. Tertuliano e Hipólito atestam que em Roma
a celebração anual de Páscoa começava com o jejum da Sexta-Feira Santa que se prolongava
51

por todo o sábado até a celebração da eucaristia da vigília pascal na noite do sábado para o
domingo. A duração de jejum nessa época restringia-se no tempo a dois dias somente, mas
entendia-se e praticava-se de forma muito rigorosa.
A constituição sobre a liturgia do Vaticano II (SC 110) ratifica a prática primitiva para a
Sexta-Feira Santa e aconselha-a para o sábado. Esse jejum chama-se pascal para que nos faça
perceber o “transitus”, a passagem da paixão à alegria da ressurreição. Compreende-se, por
isso, que não se tenha o jejum pascal como elemento secundário mas como parte integrante da
celebração do tríduo sacro.

4. O segundo dia do tríduo pascal: o sábado santo

O sábado santo foi sempre – pelo menos desde o séc. II, ou seja, desde a época dos
“quatuordecimanos” – dia de jejum pleno e, portanto, dia alitúrgico. Terminava com uma
função de vigília que desembocava na madrugada do domingo com a celebração da eucaristia.
No começo o rito não se diferenciava em nada na prática dos outros sábados ordinários,
tendo em vista que a vigília pascal foi inicialmente a primeira celebração litúrgica cristã. É
nesse sentido que se deve tomar a expressão de santo Agostinho em que ele diz que “a Noite
santa é a mãe de todas as vigílias”. Percebem-se, não obstante, algumas peculiaridades. Não
se tardou, com efeito, a venerar nesse dia o repouso de Jesus no sepulcro e sua descida aos
infernos, assim como também seu misterioso encontro com todos os que esperavam que se
abrissem as portas do céu, como indica a carta do apóstolo Pedro (1Pd 3,19-20; 4,6). Por tudo
isso dizemos que muito cedo se vai abrindo passagem à consideração desse dia como dia de
paz e espera.
Antigamente, tanto em Roma como no Oriente, dedicava-se o dia ao último dos
escrutínios dos “electi” que receberiam o batismo na noite seguinte. Sabemos pela Traditio
apostolica que, desde tempos pré-nicenos, revestia-se de particular importância a reunião
alitúrgica em que os batizandos eleitos realizavam os atos definitivos pelos quais expressavam
sua separação da idolatria e simultânea adesão a Jesus. Ninguém podia faltar. Em Roma, o
próprio papa presidia a função no Laterano.
O Ordo XI, que reflete os usos romanos do séc. VI, descreve-nos os ritos que se faziam
nessa assembleia matutina (das 9 às 12 horas) com a participação inclusive dos fiéis: o último
exorcismo com o rito do éffeta; a unção com o óleo dos catecúmenos, a tríplice renúncia a
Satanás; a redditio symboli, ou seja, a recitação do credo apostólico que fora “entregue” aos
catecúmenos no escrutínio do sábado “in mediana”.
Não se esqueça que inclusive atualmente, em que há adultos para batizar, observam-se
as indicações do Ritual da iniciação cristã de adultos, que recomenda fazer coincidir o tempo
da purificação e da iluminação com a quaresma, e a “mistagogia” com o tempo pascal, de
forma que toda a iniciação revele claramente seu caráter pascal.
Sendo assim, os ritos da iniciação cristã já não ficam na mera recordação histórica, mas
são também realidade atual que tanto a pastoral geral como a litúrgica em particular deveriam
levar adequadamente em conta. O Vaticano II reatualizou o catecumenato, e o rito da
iniciação cristã de adultos é seu fruto mais precioso.
Além disso, a Igreja jamais quis estabelecer ofício particular para celebrar o fato da
sepultura de Jesus. Infelizmente a antecipação progressiva da vigília pascal acabaria
eliminando o silêncio solene do sábado, perdendo assim esse dia seu significado primitivo.
Finalmente, em 1642, Urbano VIII eliminou os dias santos da lista das festas de preceito.
Voltamos a nos encontrar no missal de Paulo VI, de 1970, com o restabelecimento dos
elementos mais nobres da história da celebração cristã da vigília pasca1. O sábado santo
apresenta-se da maneira seguinte: nesse dia “a Igreja permanece ao lado do sepulcro do
52

Senhor, meditando sua paixão e morte, abstendo-se da missa (a mesa fica sem toalhas e
ornamentos) até a solene vigília ou espera noturna da ressurreição”.
Em vista de esse dia ser alitúrgico, o missal se limita a recordar esse fato, convocando
ao mesmo tempo para a liturgia das horas, diversamente da Igreja antiga que não se
congregava nesse dia nem sequer para a oração.

5. O terceiro dia do rito pascal: a vigília pascal na noite santa. Domingo da


ressurreição: o dia de Cristo, o Senhor

Poucas celebrações litúrgicas são tão ricas de conteúdo e simbolismo como a da vigília
pascal. O núcleo de todo o ano litúrgico, de que nasce qualquer outra celebração, é essa vigília
que culmina na oferenda do sacrifício pascal de Cristo. Nessa noite santa a Igreja celebra, do
modo sacramental mais pleno, a obra da redenção e da perfeita glorificação de Deus como
memória, presença e espera.
O ritual romano da vigília pascal foi enriquecendo-se, com o passar do tempo, com
elementos de origem não-romana. Sempre foi, todavia, celebração de vigília declaradamente
noturna, na qual adquirem pleno sentido os diversos elementos simbólicos que a integram.
O missal de Paulo VI recorda que, “segundo antiquíssima tradição, essa é uma noite de
vigília em honra do Senhor (Ex 12,42). Os fiéis, tal como recomenda o evangelho (Lc
12,35ss), devem assemelhar-se aos servos que, com lamparinas acesas nas mãos, esperam o
retorno do seu Senhor, para que quando chegar os encontre em vigília e os convide a sentar-se
à sua mesa”.
Nà Páscoa judaica já se fazia presente a motivação da vigília em que se celebrava o rito
pascal (Ex 12,42): tratava-se de memória eficaz dos eventos da salvação que se celebrava
durante uma vigília. Nos textos do judaísmo contemporâneo de Jesus, a teologia da Páscoa
acentuava também o aspecto escatológico. No Poema das quatro noites, a descrição da “quarta
noite” sanciona a tradição que fora se desenvolvendo no judaísmo pós-exílio e que estava
muito viva na época do Novo Testamento, segundo a qual aconteceriam a aparição do
Messias e a inauguração do mundo novo em noite de Páscoa. Advirtamos, além disso, que a
vigília pascal dos judeus – após a destruição do templo – terminava com um “adeus”
carregado de esperança temporal: No ano que vem, em Jerusalém!
Na Páscoa cristã não se muda a estrutura teológica da vigília pascal (memória-presença-
espera), sendo ela antes enriquecida com a “realidade” de Cristo, o crucificado-ressuscitado:
ele é “a Páscoa de nossa salvação”. Os cristãos “velam” na noite de Páscoa para celebrar toda
a economia salvífica com visão unitária e contínua da criação à parusia. A memória-presença
do mistério de Cristo – que com a ressurreição vence a morte – torna-se espera de acordo com
a exortação evangélica: “Permanecei em trajes de trabalho e guardai vossas lâmpadas acesas”
(Lc 12,35-36).
Desde o séc. II o conteúdo do ano litúrgico e teológico da Páscoa cristã tem caráter
abertamente comemorativo e soteriológico. Agostinho, em memorável sermão para a noite de
Páscoa, resumiu toda a tradição bíblica e patrística sobre a vigília como “memória e espera”.
A esperança da Igreja – na noite pascal – funda-se nas promessas de Deus e reaviva-se pelas
leituras dessas promessas na liturgia da Palavra, pelos textos que falam de Abraão, do êxodo e
da terra prometida, antes de se fazer o anúncio da ressurreição.
A vigília alcança, nesse clima, valor simbólico de espera da vinda do Senhor de maneira
típica que o cristão deve distinguir. Funda-se no passado – que se torna presente
sacramentalmente – a promessa do futuro. Dessa realidade viva e atual nasce a alegria pascal.
O sentido mais autêntico dessa vigflia é o fato de estarmos vivendo a Páscoa que celebramos
no rito; celebramo-la para que opere cada vez mais profundamente em nós a espera da Páscoa
eterna (1Cor 5,7; Rm 12,12-24).
53

Desdobra-se, no missal de Paulo VI, a celebração da vigília pascal em clima de alegria e


em ritmo progressivo e ascensional que desemboca finalmente na liturgia eucarística. Os ritos
da vigília, embora diferenciados em diversas partes claramente definidas, formam um
conjunto unitário girando em torno do núcleo essencial da palavra de Deus e da eucaristia.
Pelos sinais sacramentais da luz, da água, do pão e do vinho” – explicados e feitos presentes
pela palavra de Deus – significa-se e faz-se presente a realidade da Páscoa do Senhor para que
se torne nossa e a expressemos em nossa vida.

a) O lucernário ou o começo solene da vigília

A primeira parte da vigília celebra a luz do mundo que é Jesus na glória de sua
ressurreição (cf. Jo 1,9; 9,12; 12,35-36). Também nós, que participamos de seu mistério pelos
sacramentos da iniciação cristã, somos, por nossa vez, “luz no Senhor” (Ef 5,8).
Esse rito deve criar tal clima de júbilo que invada a celebração inteira. Mas nesse rito
inicial (e advirta-se que não passa de “rito inicial”, razão pela qual não deve ser
supervalorizado) fixa-se a atenção não na bênção do fogo em si mesma, mas no significado
pascal da luz que surge nas trevas. O sinal principal é o círio da Páscoa.
O uso da bênção do fogo é de origem irlandesa, sendo talvez resultado de
cristianização de uso pagão. No séc. VIII, entrou na Alemanha, como sabemos, por consulta
de são Bonifácio ao papa Zacarias (741-752), que atesta que em Roma o “fogo novo se toma
das lamparinas grandes que se conservam acesas na parte mais escondida de Igreja”.
Praticamente, para Roma, o “fogo novo” não será outra coisa senão a “luz” do círio pascal, e
não um rito especial do fogo. Temos de esperar o séc. XII para encontrar atestado esse rito,
mas ainda então predomina a dimensão folclórico-religiosa que já tinha nos países do norte,
visto que o povo tomava brasas desse fogo e as levava às próprias casas para acender de
novo o fogo que antes se apagara.
A reforma da semana santa – levada a cabo sob o pontificado de Pio XII (1955) –
restabelece esse uso incorporando-o plenamente à celebração dessa solene vigília.
Reunido o povo fora do templo, ao redor do fogo, o presidente da assembleia explica o
sentido de toda a vigília: trata-se de ficar em vigília orando e reviver a Páscoa do Senhor na
escuta da palavra e na participação dos sacramentos; e Jesus Cristo ressuscitado confirmará a
esperança de participar de sua vitória gloriosa sobre a morte e de viver com ele em Deus.
O fogo benze e acende o círio pascal que evoca a luz de Jesus que ressuscita em sua
glória. A procissão até o altar é presidida pelo diácono, que carrega o círio aceso e canta por
três vezes: “A luz de Cristo”, a que o povo responde: “Demos graças a Deus”. Essa procissão
evoca o caminhar do povo hebreu no deserto à luz da coluna de fogo, mas evoca sobretudo
palavras do próprio Jesus: “Eu sou a luz do mundo, aquele que vem em meu seguimento não
andará nas trevas; ele terá a luz que conduz à vida” (Jo 8,12). o sentido pascal e escatológico
dessa procissão aparece com evidência: somos o novo povo de Deus nascido da Páscoa;
peregrinos, seguimos Jesus ressuscitado – a um só tempo nossa cabeça e luz do mundo –
através do deserto da vida presente até a pátria celeste.
Coloca-se o círio no presbitério, e ele domina a assembleia. Então o diácono proclama
solenemente – na alegria da luz de Jesus ressuscitado as festas pascais.
O “pregão pascal” é o novo nome, que de novo se retomou da Antiguidade, do rito
chamado “bênção do círio”. Em Roma estava em relação com o “novo fogo”, ou seja,
acendia-se como “luz renovada” das lamparinas deixadas acesas na quinta-feira anterior. Mas
logo aparecem testemunhos de uma “laus cerei” entre os autores ocidentais.
Não obstante, o primeiro documento litúrgico, que nos informa da existência do rito em
Roma, é o Sacramentário gelasiano, ou seja, um documento dos sécs. VII-VIII que,
entretanto, não alude ao louvor ao círio.
54

O pregão pascal anuncia tematicamente a mensagem da ressurreição e celebra – com


esplêndida prece de ação de graças – as maravilhas operadas por Deus nessa noite santa,
vértice de toda a história da salvação: o pecado de Adão, de que fomos redimidos pelo sangue
de Cristo; as figuras da redenção; o cordeiro; a passagem pelo mar Vermelho; a coluna de
fogo. O hino passa a celebrar – de modo altamente poético – a vitória pascal de Cristo até
chegar à conhecida passagem: “Necessário foi o pecado de Adão, apagado pelo sangue de
Cristo. Feliz a culpa que mereceu tão grande Redentor!

b)A liturgia da Palavra

Se é verdade que o rito do fogo e do círio não passam de cerimônias de abertura da


vigília pascal – tendo sido originalmente de absoluta sobriedade –, o rito batismal da Páscoa
entra de cheio na vigília, assim como também as leituras que o precedem. O símbolo da luz do
círio cede lugar à realidade de Cristo, luz do mundo, presente em sua palavra que se proclama
na Igreja. Essas leituras introduzem-nos no sentido e alcance que tem a Páscoa na vida da
Igreja e de cada cristão. Por isso, é preciso inseri-las na esfera dos sacramentos pascais
mediante os quais morremos e ressuscitamos com Cristo.
As primeiras sete leituras, tomadas do Antigo Testamento, enunciam figurativamente os
mistérios pascais: a criação do mundo e do homem, o sacrifício de Abraão e a passagem do
mar Vermelho, e um texto escatológico do livro de Isaías (54,5-14). Proclamam-se, em
seguida, três leituras que se dirigem mais diretamente à celebração do batismo. A própria
leitura de Paulo também é batismal (Rm 6,3-11) e termina com a leitura do descobrimento do
túmulo vazio e o anúncio do anjo: Jesus ressuscitou!, segundo o relato de cada sinótico em
cada um dos anos do ciclo trienal.

c) A liturgia batismal

Parece que não existe testemunho de rito batismal na noite da Páscoa que nos leve além
do séc. III; mas a própria universalidade do rito poderia levar a concluir que se trata de
tradição inclusive apostólica.
Encontramos profunda e sugestiva teologia batismal-pascal fundamentada inicialmente
no texto paulino que apresenta o batismo como imersão na morte de Cristo (Rm 6,3-4).
Todavia, Paulo, prolongando o paralelismo, contempla também a outra dimensão, falando de
ressuscitar à vida juntamente com Jesus. O aprofundamento nos vários aspectos da teologia
paulina ocorreu progressivamente. Teremos de esperar as catequeses mistagógicas de Cirilo de
Jerusalém, de Gregório de Nazianza e de Ambrósio de Milão para deparar com um
desenvolvimento harmonioso dessa teologia. Os autores do séc. II ainda ignoram a tipologia
batismal fundada na relação: passagem pelo mar Vermelho e morte-ressurreição de Jesus;
estão mais atentos a outra tipologia batismal, a do “batismo-banho nupcial” (cf. Ef 5,25.27), na
qual – sobretudo os “quatuordecimanos” – encontram perfeita convergência com João quando
este apresenta Jesus crucificado de cujo lado manam sangue e água, banho purificador da
Igreja (Jo 19,34). Esse simbolismo, diversamente do outro, põe mais em relevo o caráter
eclesial do batismo, sacramento das bodas com Cristo. Portanto, nas catequeses mais antigas
(séc. II), o batismo é sacramento “pascal” porque é o sacramento da ressurreição. A catequese
pascal e a batismal sem dúvida levam os sinais de clara evolução que se verificou no decorrer
dos tempos da Igreja. E não se esqueça que – nas primeiras catequeses – o binômio batismo-
paixão se associava com frequência ao outro batismo-martírio, a ponto de se denominarem
ambos “batismos”: batismo de água e batismo de sangue.
No missal de Paulo VI, e com a liturgia batismal, desloca-se a atenção da assembleia
para a fonte batismal como o lugar onde se faz nossa a Páscoa de Jesus no sinal da água e na
55

profissão de fé trinitária. A fonte – como a chamam os Padres – é ao mesmo tempo tumba do


passado e seio materno de que nasce a vida. Obviamente o sinal a se evidenciar é a água. O
celebrante benze-a com uma oração epiclética, tomada em seus elementos principais do
sacramentário gelasiano, em que se recordam todos os temas batismais antes mencionados. A
bênção da fonte significa que a graça do batismo não sai da água como elemento material,
mas do Espírito Santo que a santifica; essa idéia se expressa mediante o sinal da imersão do
círio na fonte batismal enquanto o sacerdote diz: “Nós te pedimos, Senhor, que o poder do
Espírito Santo desça, por teu Filho, sobre a água dessa fonte, para que os que foram
sepultados com Cristo, em sua morte, ressuscitem com ele pelo batismo para a vida”.
Antigamente os batizados iam ao batistério cantando o salmo 41: “Como uma corça
anela pelas torrentes d’água...”, enquanto os fiéis ficavam na Igreja cantando a ladainha. No
batistério, tinha lugar a última parte da preparação ao batismo: o exorcismo do éffeta, a unção
no peito e nas costas, a renúncia a Satanás com a conclusão da adesão a Cristo e o credo, ou
seja, a profissão de fé. Em seguida benzia-se a fonte, e, no momento de ser batizados, os
eleitos faziam tríplice profissão de fé em resposta a tríplice pergunta. Depois de cada resposta,
o bispo submergia totalmente na água o eleito. Ao sair da água, o neófito era ungido de novo
com a fórmula: “Eu te unjo com o óleo sagrado no nome de Jesus Cristo”, que manifesta a
plena conformação com Cristo, o Ungido ou Messias, e com sua dignidade régia e sacerdotal,
transformando-se assim em sacerdote e rei da nova aliança.
Em continuação vinha o outro sacramento: a confirmação, que indica tanto o gesto ou
rito como o efeito. Já no início aparece o duplo gesto: a unção com o sinal-da-cruz na fronte, e
a imposição das mãos. Depois a entrega da veste branca e do círio aceso.
O missal romano atual prevê celebrações sem batizandos. Benze-se, nesse caso, a água
para a aspersão dos fiéis, com uma bela oração que recorda o simbolismo natural e bíblico da
água; evoca-se a seguir o batismo dos presentes que são convidados a associar-se à alegria dos
que recebem no mundo inteiro o batismo naquela mesma hora, ao mesmo tempo que renovam
suas “promessas batismais” no contexto exato da liturgia eucarística, em que acontece a
adesão batismal definitiva.

d) A liturgia eucarística

Eis-nos no cerne da vigília pascal: são os primeiros momentos do grande dia esperado,
o dia que fez o Senhor, a alvorada do dia que contemplou Jesus ressuscitado. Tudo o que a
Igreja realiza durante todo o ano litúrgico converge para essa eucaristia pascal e parte dela.
A iniciação cristã, ou seja, a participação nos mistérios – desde os primeiros séculos
cristãos –, começava com o batismo e a confirmação, e completava-se com a oferenda do
sacrifício. Revestidos com as vestes brancas, com o círio aceso na mão, os neófitos entravam
na Igreja cantando o salmo 42, cujo estribilho era precisamente: “Aproximar-me-ei do altar de
Deus.” Era a primeira vez que os eleitos participavam da liturgia eucarística. Mas
participavam ainda não instruídos sobre seu pleno sentido, o que lhes era explicado na semana
seguinte, chamada “in albis”. Sua participação ficava, em consequência, um tanto restrita:
nem sequer na oblação que, em seu lugar, faziam seus padrinhos; recitavam-se, porém, seus
nomes na própria celebração da eucaristia antes da consagração.
Antigamente, a missa papal começava com o ofertório, mas já nos sécs. IV-V começava
com o glória e as leituras. Ainda hoje essa eucaristia distingue-se por seu caráter arcaico: não
se canta a antífona introdutória, nem o credo, nem a antífona do ofertório, o cordeiro de Deus,
a antífona da comunhão, nem se dá o beijo da paz. Mas na última reforma se restabeleceram
alguns desses elementos. Os medievais tentaram encontrar razões simbólicas para essas
omissões. Na verdade não são mais que vestígios do rito eucarístico antes de se começarem a
introduzir nos sécs. IV-V semelhantes cantos.
56

Com o canto repetido do “aleluia”, o presidente despede o povo e expressa sua alegria e
júbilo. E concluímos com Odo Casel: “Este é o momento em que nasceu a verdadeira
eucaristia: a Páscoa! Por isso o mistério da noite pascal culmina na eucaristia, que já não
oferece Jesus sozinho, mas em companhia de sua ekklesia. Ela entra com ele em sua eucaristia,
e essa eucaristia inaugura a grande festa de Pentecostes, dos cinquenta dias nos quais a
ekklesia libertada dá graças ininterruptas ao Pai com seu Filho”.

e) O dia da ressurreição: o dia de Cristo, o Senhor

Só a partir dos sécs. IV-V começam a aparecer testemunhos de celebração eucarística


no domingo de Páscoa, quando a vigília pascal começou a deslocar-se da meia-noite para a
manhã do sábado.
Entre as peculiaridades dessa eucaristia da manhã de Páscoa encontramos o beijo que o
papa dava a seus ministros dizendo: “Verdadeiramente o Senhor ressuscitou!” O mesmo rito
observavam e continuam a observar os orientais e os russos, que nessa circunstância se
abraçam saudando-se com a expressão: Christos anesti. Tornou-se famosa a composição de
Venâncio Fortunato: Salve festa dies, que frequentemente se cantava na procissão de entrada.
A sequência pascal Victimae paschali é do séc. XI.
A liturgia desse dia de Páscoa celebra o acontecimento pascal como “dia de Cristo, o
Senhor”. As leituras bíblicas contêm o querigma pascal e a recordação dos compromissos da
vida nova em Jesus ressuscitado; acentuam o valor sacramental da celebração da Páscoa que
faz entrar por sua participação em uma condição de vida nova.
Os textos eucológicos contêm a temática da relação entre Páscoa e eucaristia, Espírito e
unidade dos fiéis, juntamente com outros temas complementares. O Prefácio apresenta como
motivo de ação de graças o fato de Jesus, ao aceitar por nós a morte, ter destruído a morte e,
ao ressuscitar, ter aberto um futuro de vida ao homem pelo dom de sua própria vida.
Jesus é o homem novo porque é o homem verdadeiro, o homem pensado e querido por
Deus, perfeitamente fiel à vocação do homem: cumpre até o fim a vontade do Pai. É o homem
que supera a ilusão de poder ajudar-se a si mesmo valendo-se apenas das próprias forças. Só
Jesus realizou plenamente a verdadeira vocação humana porque é o Homem-Deus.
Por sua ressurreição e vitória total, Jesus comunica ao mundo o seu Espírito de vida que
muda o coração do homem, Espírito de liberdade que redime o homem das raízes mais
profundas de suas escravidões porque o redime do pecado; é essa a verdadeira libertação
pascal.
57

4 – A QUINQUAGESIMA PASCAL
J. Bellavista

1. Evolução histórica

a) Nos primeiros séculos

O Pentecostes judaico. A Páscoa do Antigo Testamento, como primeira festa da


primavera, inaugurava o ano litúrgico de Israel. É a mais citada entre todas as festas de Israel
e considerava-se no tempo de Jesus a mais importante. Não vamos nos ocupar agora de sua
evolução histórica desde suas origens distantes na época seminômade dos antepassados de
Israel, unida depois à recordação da saída do Egito, até alcançar o sentido nacionalista forjado
pela escola deuteronomista, e terminar com um ritual próprio da corrente sacerdotal que se
fixou definitivamente como memorial da salvação.
Como prenotação da quinquagésima pascal cristã, o que nos interessa aqui
particularmente é sua íntima conexão com outra grande festa judaica: a festa das semanas ou
de Pentecostes. As duas festas, juntamente com a dos tabernáculos, constituem o núcleo das
três peregrinações ao templo de Jerusalém que cada ano Iahweh exigia de seu povo.
Seu nome tradicional é Festa das Semanas (Ex 34,22), ainda que seja bastante frequente
a antiga denominação de Festa da Colheita (Ex 23,16), que nos remete a um ritual agrícola
que tem lugar no fim das sete semanas dos ázimos, e ocasionalmente apareça como Festa das
Primícias (Nm 28,26).
A festa transforma-se essencialmente, em certos ambientes judaicos dos albores do
cristianismo, em festa da aliança ou de sua renovação. A tradição rabínica abre já no séc. II da
era cristã outra perspectiva ao relacionar a festa com o dom da lei no Sinai.
Ao recapitular a legislação sobre a festa, o Deuteronômio diz: “Contarás sete semanas: a
partir do dia em que a foice for lançada na seara é que contarás as sete semanas. Porque
celebrarás a festa das Semanas...” (Dt 16,9).
Trata-se de festa relacionada com a Páscoa e dela dependente no que se refere à
celebração. A festa das Semanas relaciona-se igualmente com os Ázimos, e no judaísmo
helenístico leva o nome de dia cinquentésimo, penthkosth/ (h`me,ra) ou seja, Pentecostes,
nome que a Igreja adotou seguindo a versão dos Setenta, como atestam Fílon e Josefo.
Corrobora-o o judaísmo rabínico quando designa a festa com a palavra “conclusão”,
referindo-se ao período inaugurado pela Páscoa e pelos ázimos.
Nas origens cristãs. Das vezes em que aparece no Novo Testamento o nome de
Pentecostes (At 20,16; 1Cor 16,8), não podemos deduzir consequências cristãs por referir-se à
festa judaica. Servir-nos-ia a tradução no plural da Vulgata de At 2,1 Dum complerentur dies
Pentecostes se o original grego th.n h`me,ran th/j Penthkosth/j não estivesse no singular. Em
todo caso, o valor dessa tradição está no fato de nos permitir saber que existia, no momento em
que se fez, a convicção de que Pentecostes era um espaço de dias mais que um dia, e a tal
ponto estava arraigada essa convicção que motivou essa tradução não estritamente literal.
A conclusão que se extrai da análise dos documentos cristãos dos primeiros séculos é
precisamente essa. A duração de cinquenta dias da Páscoa, inspirada na tradição
veterotestamentária, constitui, porém, a novidade radical da festa cristã. Pentecostes
significou, desde muito cedo, um período de cinquenta dias e não uma festa particular. Não
obstante sua ambiguidade, é sugestivo quanto a isso um texto não muito distante da morte do
último apóstolo, Epistola apostolorum, que situa a parusia durante Pentecostes: “ocorrerá
entre Pentecostes e a festa dos Ázimos a vinda de meu Pai”.
58

O testemunho de Tertuliano é o mais conhecido, dentre os autores latinos primitivos,


pelas diversas vezes que repete o conceito. O texto talvez mais eloquente encontra-se em um
livro de batismo: “Nós, porém, tal como o temos por tradição, no domingo da ressurreição nos
abstemos não só de ajoelhar, mas também evitamos o gesto e exercício de angústia e temor, e
até diferimos nossos negócios, a fim de não dar lugar ao diabo. A mesma coisa fazemos
também durante Pentecostes, que se distingue pela mesma solenidade de exaltação”. A frase
Tantumdem et spatio Pentecostes, quae eadem exultationis solemnitate dispungitur merece
que a sublinhemos porque a tradução necessariamente subtrai expressividade ao espaço de
tempo de vários dias, os quais formam parte de uma mesma solenidade.
Tertuliano perguntava-se em seu tratado sobre o jejum por que transcorrem os cinquenta
dias com grande alegria. Diz-nos uma vez mais em sua obra sobre o batismo que o tempo de
Pentecostes é o mais indicado para o banho sagrado. Os escritos de Tertuliano entre o final do
séc. II e o começo do séc. III indicam suficientemente a maneira como se entendia
Pentecostes na Igreja latina.
Hipólito de Roma dá testemunho, já nos inícios do séc. III, dos cinquenta dias de
Pentecostes ao falar da casuística do jejum. Ao lado da universalidade da obra de Hipólito, ao
entrar o séc. III podemos então citar o grego Orígenes. Para ele, vive nos dias de Pentecostes
quem pode dizer que é um ressuscitado em Cristo.
No termo dessa mostra de literatura cristã dos três primeiros séculos, parece-nos
oportuna a observação de Cantalamessa sobre o duplo sentido de Pentecostes. No que se
refere ao que poderíamos chamar de sentido litúrgico do termo, seria inexata a tese de
progressiva evolução do sentido original de Pentecostes (= os cinquenta dias) em favor de um
sentido restrito (= festa do quinquagésimo dia depois da Páscoa). Mas o citado especialista
nessa literatura não vê em nenhum momento de seu desenvolvimento evolutivo que a palavra
“Pentecostes” tenha tido só o significado amplo de cinquenta dias ou o restrito de um só dia.
No séc. II o dia quinquagésimo aparece distinto dos outros seja por seu caráter conclusivo do
período ou por sua conexão com o evento da ascensão ou da vinda do Espírito Santo.
Voltando ao Ocidente, o concílio de Elvira teve de intervir no início do séc. IV contra a
tendência de algumas Igrejas de encerrar o ciclo pascal com a festa da ascensão. Por outro
lado, quando no séc. V prevalece o sentido restritivo em favor do dia quinquagésimo, não
desaparece o significado antigo. Santo Agostinho, que muitas vezes comenta o dia da festa de
Pentecostes em sua carta a Januário, conserva também o sentido de cinquenta dias em que se
canta o aleluia e não se reza de joelhos. Máximo de Turim regala-nos, já no séc. V, com o
precioso texto que afirma uma quinquagésima como festa contínua, como se todos os dias
fossem domingo. Algo parecido diz Hilário de Poitiers († 367).
Poderíamos concluir a seleção de textos com um que procede do Egito, aparentemente
o lugar em que se manteve por mais tempo o sentido primitivo. Em sua Epistula festalis,
Téofilo de Alexandria acrescenta, ao falar da Páscoa, que ela se prolonga depois por sete
semanas.
Nos três primeiros séculos aparece com suficiente clareza que, para as Igrejas da Ásia
menor, África, Roma ou da Gália, assim como também do Egito, Pentecostes e seu
significado são um fato universal. Quando vemos ampliar-se nos séculos posteriores o
conceito, não temos nenhuma contradição com o anterior. A Páscoa inaugura em todos os
lugares um tempo de festa de sete semanas que se assemelha a um grande domingo que
recebe o nome de Pentecostes, vindo a ser a Páscoa prolongada. Não se tratava originalmente
dos cinquenta dias depois da Páscoa, mas do espaço de tempo de cinquenta dias.
Ao jejum pré-pascal seguem os cinquenta dias de solenidade e alegria nos quais nem
sequer se permite rezar de joelhos. Ressoava em cada reunião litúrgica o cântico triunfal do
aleluia. O primeiro concílio ecumênico reunido em Nicéia no ano de 325 resume no cânon 20
a disciplina geral do tempo pascal de que alguns se tinham afastado: “Dado que alguns se
59

ajoelham no domingo e nos dias de Pentecostes, o santo concílio estabelece, a fim de


observar-se regra uniforme em todas as partes, que se dirijam a Deus as orações estando
de pé”.

b) Evolução posterior: frações no interior da quinquagésima

Pentecostes. Um processo evolutivo, em que se nota a influência do livro dos Atos dos
Apóstolos, levará pouco a pouco a festejar com ênfase particular o dia da conclusão desses
cinquenta dias como o dia da vinda do Espírito Santo. No séc. IV, Igrejas como as de
Constantinopla, de Roma, de Milão e da Península Ibérica começam a celebrar esse aspecto
da salvação pascal.
A resposta do papa Sirício à carta do bispo Himério de Tarragona no ano de 385 seria,
se fosse clara, o primeiro documento em que se constaria que a Igreja de Roma começa a
celebrar o dia quinquagésimo como especial. A carta diz, com efeito, que para essa Igreja só
constituem dias de batismo o domingo de Páscoa e seu Pentecostes. Não fica inteiramente
claro no texto se Pentecostes é somente um dia ou o período de cinquenta dias, o que,
porém, já o é em um escrito contemporâneo. O texto, de autêntico sabor pascal, permite-nos
saber que a Igreja de Roma ainda celebra a quinquagésima visto que Páscoa e Pentecostes
constituem um princípio e um termo, que adquire significado especial pela vinda do Espírito
Santo. O concílio de Elvira em terras hispânicas apresenta por volta do ano 300 testemunho
semelhante.
Os três primeiros sermões do Papa Leão († 461) para esse dia pronunciam-se ainda no
quadro da quinquagésima, mas se precisa que efetivamente se passaram cinquenta dias depois
da Páscoa e dez depois da ascensão. O mesmo acontece na Hipona de santo Agostinho. Da
mesma forma em Roma, que celebra Pentecostes comemorando a vinda do Espírito Santo com
singular relevo. Aos testemunhos ocidentais de Leão e Agostinho podemos acrescentar para o
Oriente os de Gregório Niceno e de João Crisóstomo para os quais o dia quinquagésimo de
Pentecostes também se caracteriza como a festa da vinda do Espírito Santo. Não resta dúvida
de que, no fim do séc. V ou no séc. VI para todas as Igrejas, Pentecostes perdera seu caráter de
conclusão da Páscoa, passando a ser uma grande festa do ano litúrgico, mas não sem
vacilações como se nos torna claro pelo nascimento da festa da ascensão.
A ascensão. Ainda que a unidade indiferenciada da quinquagésima nos três primeiros
séculos tenha resistido bem, ia ganhando terreno a quadragésima para impor-se como
aniversário da ascensão, como um pouco antes o fizera Pentecostes com relação à vinda do
Paráclito. Em um e outro caso, os primeiros ensaios de celebração autônoma de início não
foram contrários à unidade do spatio Pentecostes.
Sabemos, pelo relato da peregrina Egéria das últimas décadas do séc. IV, que não havia
rito especial da ascensão no quadragésimo dia. Lia-se o relato da ascensão, segundo a letra
dos Atos dos Apóstolos ou do evangelho, no dia quinquagésimo no lugar em que ocorrera o
acontecimento salvador. Anteriormente, Eusébio de Cesaréia, depois do ano de 332, conhece
uma festa semelhante à da ascensão em Pentecostes. Ele escreve no De solemnitate paschali
que Pentecostes é o dia soleníssimo em que Cristo foi recebido no céu, resultando assim que a
ascensão seja o “selo” da quinquagésima pascal. Por singular que pareça a ideia, não faltam
outros testemunhos orientais para corroborá-la, como o apócrifo Doctrina apostolorum ou um
lecionário siríaco do séc. V. Se bem que difícil de explicar, parece que não se pode negar que
Máximo de Turim conhecia em pleno séc. V a prática oriental da ascensão no dia
quinquagésimo, como se deduz do conteúdo de seus sermões para esse dia.
A evolução começou não esquecendo dentro de Pentecostes o dia quadragésimo, ainda
que não se tenha celebrado em uma primeira fase como festa própria. Assim foi até
aproximadamente meados do séc. IV. Daí era curto o caminho para uma festa autônoma. Já
60

Gregório de Nissa, João Crisóstomo e as Constituições apostólicas atestam uma festa


especial. Roma celebra no séc. V a festa da ascensão no dia quadragésimo, pelo menos no
tempo do papa São Leão. Foi nesse século que se universalizou a prática em toda a Igreja,
devido em grande parte à influência da narração do acontecimento nos Atos dos Apóstolos.
A semana da Páscoa. A Igreja prolonga, sem dúvida inspirada na tradição judaica, a
festa da Páscoa por sete dias. Foi a origem da oitava da Páscoa. Essa, em princípio, acabava
no sábado, visto que se tomava como ponto de partida a vigília pascal. Era a celebração da
oitava do solene batismo pascal. Os neófitos deixavam as vestes brancas. Os primeiros
testemunhos dessa oitava são do séc. IV, mas o fato é anterior. Em fase posterior, os
documentos litúrgicos romanos relacionam a semana de Páscoa, ou semana in Albis, com o
domingo, ainda chamado no sacramentário gregoriano de Dies dominica post albas, passando
a ser a oitava da ressurreição, ao perder a semana o caráter dominante de semana batismal. As
grandes catequeses batismais de Ambrósio, Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo e outros
autores do séc. IV são testemunhos do apogeu batismal dessa semana da Páscoa.
Essa organização vai-se generalizando em todas as Igrejas. As Constituições
apostólicas por volta do ano 400, no interior da quinquagésima, tendem já a destacar a
primeira semana. A peregrina Egéria também nos fala dessa oitava em Jerusalém.
Em Roma, durante essa semana, o sacramentário gelasiano no séc. VI atribui um
formulário litúrgico próprio para cada dia, e o primeiro domingo é chamado de Octava
paschae die dominica. O sacramentário gregoriano indica as Igrejas estacionais para cada dia.
Enfraquecimento do sentido de Pentecostes. Prevaleceu, até o concílio Vaticano II, uma
estranha práxis penitencial: três dias de ladainhas menores com formulários próprios de
missas precediam o dia da ascensão. Foram ordenadas por são Mamerto, bispo de Vienne, por
volta do ano de 476. O papa Leão III introduziu-as por volta de 800 em Roma e difundiram-se
na França por ordem do concílio de Orleans de 611.
A história vai complicar ainda mais a situação. A semana que sucede a Pentecostes vai
tornar-se em sua oitava, como réplica à semana pascal. Essa oitava está bem estabelecida no
séc. VII com leituras e orações próprias para a missa de cada dia. Pentecostes está longe de
ser aquele período de uma só festividade de cinquenta dias, toda ela celebração e alegria para
festejar o acontecimento cristão por antonomásia. É uma grande festa e, como a Páscoa, está
igualmente provida de uma oitava.

2. O tempo pascal dos cristãos

Os elementos para a reflexão teológica sobre o período dos cinquenta dias partem
necessariamente dos dados bíblicos em que se funda e da própria celebração da Igreja tanto de
hoje como de ontem. Para isso destacaremos em primeiro lugar alguns aspectos da tradição
bíblica e patrística, depois estudaremos a própria celebração litúrgica.
Este não é o lugar para repetir a teologia litúrgica da Páscoa. Limitar-nos-emos ao
tempo pascal, objeto de nossa exposição.
Os dados que a evolução histórica do Pentecostes judaico nos oferece podem ser
consideradas pelo menos referências que de alguma maneira a reflexão cristã que recebeu sua
influência deve levar em conta.
A progressiva espiritualização da festa configurará uma celebração ao fim de sete
semanas, contando cinquenta dias depois da Páscoa até o dia seguinte ao sétimo, segundo Lv
23,15-16. O calendário litúrgico que contém o capítulo 23, incluído na seção do código de
santidade de origem sacerdotal, é, uma espiritualização do tempo, elaborada depois do exílio,
em que se volta o interesse menos para o tempo da colheita que para o espaço de cinquenta
dias compreendido entre Páscoa e Pentecostes. Os laboriosos cálculos para fixar o calendário
deram por resultado que a festa das semanas para os fariseus, com a oposição dos saduceus,
61

ficou fixada no “dia seguinte ao sábado”, ou seja, domingo. Sete vezes sete dias mais um
(cinquenta) constituem símbolo de plenitude.
Ao fazer a reflexão cristã sobre o tempo pascal, não se deve esquecer de outros dados
importantes, como podem ser o sentido da festa da aliança e do dom da Lei originalmente
vinculado ao Pentecostes judaico. Essa referência explicará a importância que a festa tinha
para Qumran, “comunidade da aliança”, para renovar a aliança. Fazê-lo, com referência à
Páscoa da libertação, equivale à rejeição da escravidão. Pentecostes é solidário da Páscoa e
não deixa de ter para os cristãos o sentido de “inclusão” que lhe davam os rabinos. Entende-
se, enquanto festa da primavera, a repercussão cósmica e de vida nova que tem implícita.
Apoiados no Novo Testamento, vamos nos fixar unicamente nos dados que nos oferece
sobre o período dos cinquenta dias e da celebração dos grandes acontecimentos que lhe são
característicos como base das unidades celebrativas que foram se configurando em seu
interior.
Comecemos pela cronologia. Sabe-se, quanto ao sentido do tempo da ressurreição, que
Lucas apresenta uma versão nos Atos dos Apóstolos e outra diferente em seu evangelho. O
final de Lc 24,36-53 situa os fatos do tempo que transcorre até a ascensão como se todos se
dessem no dia da Páscoa. Se bem que um estudo literal do texto obriga a reconhecer que não
podem caber em um só dia de vinte e quatro horas. Para o autor dos Atos, entre a ressurreição
e a subida ao céu, transcorrem vários dias (At 1,2-3.22). A vinda do Espírito Santo só ocorre
no dia de Pentecostes (At 2,1).
Para o quarto evangelho, liga-se a efusão do Espírito à glorificação (Jo 7,39). A
ascensão, embora distinta da ressurreição, também teria lugar no dia da Páscoa, que por outro
lado é o dia em que Jesus transmite o Espírito a seus discípulos (Jo 20,17.22). Mateus e
Marcos parecem situar também a ascensão na tarde do dia da ressurreição.
As diferenças indicam sem dúvida a pouca importância que atribuem ao sentido preciso
da cronologia. Tratar-se-ia antes de duas tradições distintas, acentuando cada uma diversos
aspectos do mistério salvador. Em todo caso, o tempo tem valor simbólico.
A semana da Páscoa. A primeira semana da Páscoa, ao se estabelecerem formulários
próprios para a celebração diária da eucaristia, recebeu como textos evangélicos os relatos das
aparições do ressuscitado. A forma atual parte dos mesmos critérios já tradicionais, embora a
distribuição das perícopes não coincida com os mesmos dias do missal romano anterior ao
concílio Vaticano II.
Mateus fala de duas aparições, uma às mulheres junto ao túmulo e outra aos doze (Mt
28,9-10 e 16-20). Lucas também narra duas, uma aos discípulos de Emaús e outra aos onze e
seus companheiros (Lc 24,13-35 e 36-53). João transcreve quatro, uma a Maria Madalena,
outra aos discípulos sem Tomé, outra com ele e a última com os discípulos junto ao mar da
Ga1ileia. Deixemos de lado o testemunho de Marcos em vista da discutida forma original da
conclusão de seu evangelho.
Costuma-se distinguir entre as aparições de Jesus na Galileia e as ocorridas em
Jerusalém. Para o estudo bíblico-litúrgico, talvez nos interesse mais a distinção entre
cristofanias apostólicas e cristofanias pessoais. O interesse dessa distinção está no fato de
corresponder à forma literária ao mesmo tempo que ao conteúdo e à função das narrações. As
aparições apostólicas permitem conhecer mais a experiência religiosa que as aparições
privadas. As primeiras, mais oficiais, possibilitam descobrir melhor a mensagem da Páscoa e
seu alcance.
A liturgia lê também, no segundo e terceiro domingo da Páscoa, os evangelhos das
aparições do ressuscitado.
Os cristãos, que celebram essa manifestação do Senhor da vida, são os batizados que
receberam e renovaram pela Páscoa sua incorporação ao ressuscitado como Senhor da vida e
da morte que abre a vida ao mundo futuro e definitivo em Jesus Cristo.
62

O acontecimento pascal é novidade tão radical que é impossível reduzi-lo a detalhes


históricos precisos. As narrações evangélicas pretendem menos dizer-nos quantas são e de que
maneira ocorrem as aparições, que transmitir-nos uma experiência de fé pascal e suas
consequências. A exposição dos fatos conduz assim ao entusiasmo de ser salvos e à profissão
de fé. O próprio ressuscitado, fazendo-se presente nas assembleias dominicais, desvenda o
alcance de seu novo modo de existir. O entusiasmo, o crescimento da fé e a progressiva
adesão ao ressuscitado aliam-se à atenção que se presta à sua presença.
A celebração comunitária em assembleia litúrgica é o lugar privilegiado do encontro.
Sem dúvida é a essa teologia subjacente que apontam os evangelistas, ao situarem no
domingo de Páscoa as aparições.
Inscreve-se o itinerário dos três primeiros domingos na celebração da fé pascal como
núcleo da salvação histórica que a Igreja professa. Vale a pena recordá-lo com a precisão das
palavras da Constituição conciliar sobre a liturgia: “Essa obra da redenção humana e da
perfeita glorificação de Deus, preparadas pelas maravilhas que Deus operou no povo da
antiga aliança, foi realizada por Jesus Cristo principalmente pelo mistério pascal de sua bem-
aventurada paixão, ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão... nasceu o sacramento
admirável da Igreja inteira”. Por essa razão enviou os apóstolos não só para anunciarem “que
o Filho de Deus, com sua morte e ressurreição, nos livrou do poder de satanás e da morte...
mas também para realizar a obra de salvação que proclamaram mediante o sacrifício e os
sacramentos.”
O caminho da fé a partir do primeiro domingo leva-nos progressivamente do sepulcro
vazio que leva Maria Madalena a crer que lhe roubaram o corpo, passando por Pedro que quer
comprovar pessoalmente o fato, até terminar com a atitude madura de João que viu e creu.
Para o evangelho do segundo domingo, que corrobora a teologia do domingo cristão, a
presença do Senhor no oitavo dia oferecendo o dom do Espírito, a reconciliação universal e o
perdão dos pecados manifesta-se ao mesmo tempo como o centro do novo culto. Mostrando
as feridas, ele é verdadeiramente o cordeiro imolado e glorificado, o sujeito principal da
celebração sacramental da Páscoa.
A aparição do terceiro domingo, junto ao lago de Tiberíades, alia-se às outras que nos
descobrem a Igreja como comunidade do ressuscitado. O reino que funda sua ressurreição é
como que rede cheia de peixes. À comunidade nascente se assegura o serviço da presidência
para a Palavra e a eucaristia, fundado na fidelidade e no amor de Pedro a quem se confia o
rebanho.
A ascensão. A ascensão, aspecto glorioso da Páscoa, permite explicar mais
pormenorizadamente as características do triunfo pascal. Com ela começa a última etapa da
história da salvação. Cristo sentou-se à direita do Pai, e a Igreja continua sua missão. É
precisamente nessa profissão da fé primitiva “sentado à direita de Deus” (Ef 1,19-20; Mc
16,19) que se manifesta a eficácia de sua força e soberania. Esse subir ao céu é a origem de
carismas para a Igreja, até levá-la à plenitude daquele que em todos leva tudo à perfeição (Ef
1,17-23).
Os quarenta dias ignorados pelos sinóticos são para At 1,3 os dias em que Jesus fala aos
apóstolos do reino de Deus para que dêem testemunho até os confins da terra. As
características do reino de Deus se precisam mais. Aquele que recebeu o senhorio universal
põe à disposição das nações a palavra de conversão, o sacramento da entrada e a garantia de
sua presença na comunidade até o fim do mundo, em conformidade com a conclusão final do
evangelho de Mateus (Mt 28,19-20).
O final canônico, não-autêntico, de Marcos sublinha a atualidade dessa presença
inaugurada na ascensão, cooperando com os apóstolos e confirmando sua palavra com sinais
correspondentes.
63

Lucas, com a tríplice referência a Jerusalém (24,47.49.52), ressalta que a manifestação


suprema da glória de Cristo aconteceu no mesmo lugar da paixão. Podemos então falar da
liturgia da ascensão. Jesus Cristo, sumo pontífice, levantando as mãos faz o gesto supremo de
bênção aos discípulos que o cercam. É a última vez que esse gesto se encontra no Novo
Testamento. Justamente enquanto os abençoava separa-se deles (Lc 24,50-51), como se a
ascensão e a bênção fossem a mesma coisa; ou como se a ascensão inaugurassse a grande
bênção. Os atos restantes da ascensão segundo Lucas inscrevem-se igualmente nesse contexto
litúrgico. Por isso, afirma-se que os discípulos, “após se terem prostrado diante dele”,
voltaram com grande alegria a Jerusalém, “e estavam sem cessar no templo, bendizendo a
Deus” (Lc 24,52-53). Alegria semelhante é própria de quem entrou na visão do ressuscitado.
É a alegria de ver o coroamento da ressurreição e a inauguração do tempo sagrado de Igreja, o
júbilo de pertencer à grande comunidade do louvor exultante.
O significado da ascensão vai ainda mais longe. Ela não é, com efeito, somente o termo
da resssurreição que coroa a obra de Jesus, nem tão-somente o sinal do atraso da parusia, mas
também anúncio de que já começou a soberania de Jesus, no sentido de que doravante está
constituído juiz dos vivos e dos mortos. A ascensão é o selo colocado na liturgia terrena de
Jesus para inaugurar a celestial. O tempo intermédio é o tempo da liturgia da Igreja em
comunhão com ele. Trata-se menos do final das aparições que da grande aparição que as
explica a todas.
“Foi a ele que Deus exaltou por sua destra como Príncipe e Salvador” (At 5,31). Essas
palavras de Pedro aos judeus dizem que aquele que foi exaltado é o guia da salvação. A
exaltação de Jesus como o ápice da ressurreição facultou aos homens inaugurar sua pregação
com o acontecimento do ressuscitado. Assim, a fé na ressurreição é causa da salvação para os
que obedecem à pregação que convida à conversão...
Jesus, elevado ao céu, virá assim como os apóstolos o viram partir. A afirmação de Atos
(1,11) anuncia a futura vinda, falando ao mesmo tempo da maneira desse retorno, perceptível
e imperceptível, ou seja, como acontecimento real que supera o olhar humano. Em vez de
olhar para o céu, os apóstolos devem realizar na terra pela força do Espírito Santo sua missão
de testemunhos da fé. E a fé que alimenta a assembleia litúrgica celebrante e por meio da
contemplação e do louvor fortalece-a para o testemunho. A liturgia nos apresenta essa
“meditação entre Páscoa e Pentecostes”, como o sugere o título de um estudo.
O Pentecostes do Espírito. Para a missa do domingo de Pentecostes indica-se como
evangelho o trecho de Jo 20,19-23. Jesus apresentou-se aos seus na tarde do domingo de
Páscoa como enviado do Pai. Da mesma maneira que recebera a missão, dispõe-se a enviar os
apóstolos, fazendo-os príncipes da vida e do conhecimento recíproco que o une ao Pai, do
amor que o Pai lhe tem, da missão que dele recebeu. Um gesto de Jesus revela a dimensão
trinitária da missão: o sopro sobre os apóstolos acompanhado do dom do Espírito.
A doação do Espírito é descrita com um verbo que não se encontra em outros lugares do
Novo Testamento: “Exalou seu alento sobre eles” ao dar-lhes o Espírito, expressão que
recorda o dia da criação quando se fala do sopro vital ao criar o homem (Gn 2,7). Sentido
parecido tem em Sb 15,11 ou Ez 37,9. Pela força do Espírito Santo, que procede de Cristo
ressuscitado, começa o novo mundo.
Os apóstolos criados de novo pelo Espírito foram capacitados para comunicar aos
homens as palavras que são espírito e vida (Jo 6,63). Em seguida, comunica-lhes o poder de
perdoar e reter. E o poder eclesial de perdoar as faltas no seio da comunidade dos discípulos.
Os apóstolos foram criados de novo pelo Espírito para prolongar a missão de Cristo em sua
totalidade.
A primeira leitura da missa desse domingo é a narrativa do acontecimento de
Pentecostes segundo o livro dos Atos. Trata-se de visão distinta da de João. Por meio da
morte, Cristo situa-se para além do tempo. Pouca coisa somos capazes de dizer dessa nova
64

realidade. Só sabemos que a Escritura distingue, para nossa instrução, etapas na economia e
na revelação do mistério. Para João, a cena de Páscoa e a aparição pública aos discípulos ao
longo de oito dias representam a última etapa dessa revelação progressiva. Será a última
manifestação visível de Jesus que sobe ao Pai (Jo 20,17).
Lucas relaciona o dom do Espírito com o sentar-se de Cristo à direita do Pai (At 2,33).
Mas, em ambos os casos, trata-se de resultado da glorificação de Jesus, com o que se inaugura
o tempo da Igreja.
O ruído, vindo do céu como vento forte, e as chamas de fogo são traços semelhantes aos
que ocorrem no momento da aliança no Sinai aonde subira Moisés, como se lê na segunda
leitura da missa vespertina desse domingo. Lucas inclina-se por essa perspectiva que lhe
permite iluminar melhor como o Triunfador da morte e Senhor da vida comunica, a partir da
ascensão, o Espírito da nova aliança.
A força do ressuscitado, que comunica o Espírito à comunidade nascida da Páscoa,
surge como linha convergente nas leituras dominicais do tempo pascal. Se, por um lado, o
Espírito é a força da missão, tem-se também clara consciência de que o progresso da
comunidade é a um só tempo obra do Espírito Santo e dos apóstolos. Daí a afirmação de que a
Igreja, por toda a Judeia, Galileia e Samaria, gozava de paz e fortelecia-se cheia dos consolos
do Espírito (At 9,31).
A glória do Senhor Jesus. O lecionário dominical dos evangelhos para as missas do
tempo da Páscoa apresenta as bases para o aprofundamcnto do mistério que a Igreja celebra
nesses cinquenta dias. Já vimos como os três primeiros domingos concentram-se nas
aparições de Jesus ressuscitado; o predomínio do evangelho de João é claro.
A partir do quarto domingo, os trechos evangélicos procedem do quarto evangelho.
Com razão se fala do ciclo de João. Do quarto evangelho lê-se o capítulo décimo inteiro. No
quinto e sexto, lêem-se passagens do discurso de despedida.
Tendo em vista a necessidade de seleção para nos mantermos nos limites de espaço que
se nos concede, vamos nos deter brevemente no capítulo 17, que a liturgia lê no sétimo
domingo ou, se se preferir, no sexto, no caso de se transladar a festa da ascensão ao domingo
anterior à conclusão da Páscoa.
Por sua unidade e coerência, constitui excelente síntese do mistério pascal. É impossível
reduzir a um só denominador a tradicionalmente chamada “oração sacerdotal”, conteúdo deste
capítulo. Outros preferem chamá-la de oração pela unidade dos cristãos ou de outro modo.
Em todo caso, é verdade que a função sacerdotal de Cristo aparece nela com força singular,
sobretudo pela mediação que expressa como orante universal e com valor de eternidade.
Transcende o tempo e tem sua continuação na história da Igreja. Realiza, de certa maneira, a
ascensão de Jesus ao Pai. É a “hora”, tão repetida no quarto evangelho, que culmina nesse
momento de sua morte e ressurreição, ou seja, de sua glorificação e exaltação na cruz (Jo
3,14; 8,28; 12,32-34). É ao mesmo tempo a hora da Igreja na qual é o Senhor ressuscitado
intercessor universal e único mediador.
A oração de Jesus começa com a referência a essa “hora”. Jesus revela, situando-se na
conjunção do tempo com a eternidade, a densidade de seu momento vital e a importância do
momento vital da Igreja. A hora da passagem ao Pai (Jo 13,1) estrutura por sua vez toda a
vida dos cristãos. Nela o Pai glorifica o Filho a fim de que Filho o glorifique (Jo 17,2). A
morte de Jesus que inaugura sua glorificação altera e transforma a vida do homem, visto que
lhe permite descobrir o Pai como fonte de plenitude existencial.
Aparece pelo menos sete vezes nesse capítulo a palavra “glória” ou “glorificar”, na
qual encontramos o sentido da Páscoa de Jesus. Ele, que ocultara sua glória no mistério da
encarnação, agora a recuperará para sua humanidade e para os homens (Jo 17,5). A
finalidade da obra de Jesus era levar a termo a glorificação do Pai (Jo 17,4). O bem dos
65

discípulos, objeto da oração de Jesus, é também em última instância glorificação para ele
próprio (Jo 17,11).
A oração de Jesus começa pedindo a glorificação como fonte de vida para os seus; a
vida eterna é “que eles te conheçam a ti, o único verdadeiro Deus e àquele que enviaste, Jesus
Cristo” (Jo 17,3).
A glória, enfim, desdobra todo o seu sentido à luz da unidade divina, fundamento da
unidade dos crentes. A partir do v. 20 os fiéis entram como parte integrante da oração, graças
à revelação do amor conforme narra o v. 23. A fé também integra esse conjunto. Os versículos
anteriores e os incluídos entre os dois apresentam a fé dos discípulos como fundamento da fé
para o mundo.
Não é este lugar de fazer teologia, mas de introduzir na celebração pascal. O
conhecimento dos textos é requisito necessário para apreender o que se celebra. Poder-se-ia
dizer que a oração de Jesus prolonga pelos séculos a dimensão eucarística da presença do
ressuscitado em sua Igreja e no mundo. Porventura não é na eucaristia que o espírito de amor,
forjador da comunidade eclesial, faz entrar os humanos em comunhão com a unidade do
Amor divino, revelado pela morte e ressurreição de Jesus?
A quinquagésima na literatura cristã antiga. A literatura das origens que citávamos no
começo da exposição ajudados por numerosos estudos a ela dedicados é a base para responder
à pergunta se podemos falar de uma teologia de Pentecostes e de qual seja seu conteúdo no
cristianismo dos primeiros séculos.
É fato que os cristãos deram atenção muito cedo aos cinquenta dias da Páscoa.
Influenciaram nisso o Pentecostes judaico e em grau menor o acontecimento da salvação
ocorrido no dia quinquagésimo: a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja nascente. É
significativo que não tiveram preferência os quarenta dias dos encontros do ressuscitado com
seus discípulos. Esses sete dias por sete, como o quinquagésimo por coroamento, pareceu-lhes
como a perfeição mais completa imaginável.
Assim se explica, como já indicamos em outro lugar, que os testemunhos ocidentais e
orientais, tanto do Egito como da Ásia menor, dos fins do séc. II e primeira parte do séc. III
sejam unânimes em aceitar que a Páscoa é tempo de festa que se estende ao longo de sete
semanas. A concepção unitária da Páscoa, que tem Jesus como protagonista principal, é mais
primitiva. As conhecidas controvérsias sobre o dia em que se devia celebrar a festa e sobre
quando devia cessar o jejum dividiram grande parte das Igrejas das origens. A outra tradição
pascal nasce em Alexandria nos inícios do séc. III com Clemente e Orígenes, que em vez de
acentuar a paixão gloriosa do Senhor, como era o caso anterior, preferem acentuar o plano
espiritual e moral da passagem ou trânsito. Essa idéia insiste mais na “Páscoa contínua” que
no “aniversário” e, por isso, favorece mais a teologia de Pentecostes.
Para a tradição que comentamos, Pentecostes não consiste num conteúdo histórico-
trinitário (festa do Espírito Santo etc.), mas no cristológico original que celebra a presença de
Jesus entre os seus depois da ressurreição em perspectiva escatológica. A rejeição da festa do
Espírito Santo, inspirada nos Atos dos Apóstolos, está presente na literatura pelo menos até o
início do séc. III, assim como por outra parte o componente cristológico está presente na festa
de Pentecostes do séc. IV, por exemplo em Teófilo de Alexandria e em Ambrósio. Nesse
caso, Pentecostes não se configura como um significado distinto do outro, mas como relação
entre os dois. Semelhante ligação entre Páscoa e Pentecostes é bem compreensível enquanto
predominou na última o componente cristológico, que celebrava a ressurreição prolongada no
tempo como uma espécie de Grande domingo, segundo a expressão feliz de Atanásio.
Essa idéia do espaço de Pentecostes adornado com todas as prerrogativas do domingo,
Magna dominica, é surpreendente por sua unanimidade; assim como se excluía a penitência
no domingo por ser o dia da ressurreição, assim também ela será excluída em todo o tempo
pentecostal, segundo testemunhos, inclusive tardios, como o de Hilário de Poitiers. Esses
66

sabbata Sabbatorum são para ele, como na Antiguidade, o tempo da alegria. Segundo ele,
“foram religiosamente celebrados pelos apóstolos, a ponto de não se permitir a ninguém
adorar com corpo prostrado na terra, nem preparar-se pelo jejum a festividade dessa bem-
aventurança espiritual”.
O mesmo Hilário observa que o “uno” da quinquagésima supera os sete por sete, o que
lhe permite introduzir o tema da octôada, contando esse “uno” na última semana como oitava
e com isso implicando a idéia de plenitude evangélica. O raciocínio é claro. O simbolismo do
“oitavo dia” (sete mais um), característico do domingo como plenitude segundo os Padres,
leva-nos ao número cinquenta (sete vezes sete mais um). Já o Antigo Testamento conhecia
essa amplificação do sábado (Lv 25,3-4; etc.). Assim como o domingo supera o sábado, assim
também Pentecostes sobrepassa as sete semanas bíblicas enquanto a celebração mais solene
do “oitavo dia”. Esse dia, que é ao mesmo tempo o primeiro e o oitavo, a octôada, é para
Basílio a plenitude escatológica.
A mística dos números, que estimava, como consumação e nova era, o dia
quinquagésimo, à maneira de dia oitavo depois da semana, teve decidida influência na visão
de Pentecostes como cinquenta dias. Que não atuasse como primeiro termo a vinda do
Espírito Santo fica claro pelo fato de se celebrar nesse dia também a ascensão como selo da
quinquagésima.
A idéia da grande alegria, alheia às práticas penitenciais, mantida universalmente como
inerente aos cinquenta dias, adequava-se bem ao período que era ao mesmo tempo “o grande
domingo”, “a semana das semanas”, “o selo da quinquagésima”, o “oitavo dia”. A esses se
acrescentavam outros elementos, que qualificam o espaço sagrado de Pentecostes com
componentes teológicos, que aqui só podemos enumerar.
Entre eles cabe contar, de acordo com o testemunho de Eusébio de Cesaréia, Máximo
de Turim e outros, o jejum dos amigos do esposo que não podem jejuar enquanto este está
presente. Assim se interpretava Mt 9,15. A ideia das primícias do Pentecostes antigo como a
colheita dos povos enfeixados em uma única Igreja da catolicidade pela foice espiritual dos
apóstolos, segundo expressa também Eusébio, não era alheia à festa. Jesus introduz, com
efeito, em seu corpo glorificado, no céu os primeiros frutos da humanidade redimida.
Simplificando, poderíamos dizer que é o tempo em que se celebrava toda a salvação de Deus
em Jesus Cristo, uma vez que o mistério pascal é definitivamente o que a totaliza.

3. A celebração litúrgica do tempo pascal

Uma vez que o simbolismo bíblico dos quarenta dias da preparação está fora de dúvida,
o futuro deveria empenhar-se em redescobrir os cinquenta da celebração.
Se a fixação da festa da ascensão no meio da quinquagésima, ou da própria oitava da
Páscoa, fraciona esse espaço sagrado, uma tradição bíblica, distinta dos Atos dos Apóstolos,
assegura-nos que nem as aparições do ressuscitado nem a vinda do Espírito Santo estão
ligados a esses espaços de tempo precisos.
Semelhante procedimento deverá ser seguido com a quinquagésima cristã. Ao
aprofundar o conceito de Páscoa, seu conteúdo exigirá longo período para que se passe à sua
celebração consciente. Com efeito, como vai ser possível ir interpretando essa Passagem de
Jesus ao Pai, como cabeça de todo o povo, por uma paixão salvadora que mereça a vitória
sobre o inimigo e sobre a morte, e culmine na glorificação e no senhorio universal? O que se
realizou de uma vez para sempre vem a ser vivido permanentemente pelo cristão mediante a
celebração repetida do sacramento. A teologia bíblica do mistério pascal vai descobrindo
como este não se restringe aos relatos bíblicos do ressuscitado, mas é o ponto de
convergência de todas as páginas sagradas. Essas farão o fiel compreender melhor como
67

Deus, além de falar-lhe, em determinadas circunstâncias históricas interveio em seu favor


salvando-o definitivamente .
A pastoral sobre Pentecostes iluminará o mistério da Igreja como fruto particular da
Páscoa. Essa Igreja sabe que lhe está confiada, além do anúncio, a celebração da Páscoa no
sacramento. Esse será o outro elemento a que atender durante as solenidades pascais. Os
grandes tempos das catequeses mistagógicas não deveriam ficar relegados ao passado. O
cristão tem necessidade contínua delas, e este é o tempo adequado. De novo o batismo haverá
de ser o sacramento que salva, cura, purifica e ilumina. É o sacramento da nova criação, do
novo nascimento e da transformação. Mas não acaba aí. É ao mesmo tempo morte e
ressurreição. O sacramento será perfeito com a confirmação. Configurado com o sinal de
Cristo, o batizado está preparado para ressuscitar à sua imagem. Sucederá, naturalmente, a
essa catequese batismal a eucaristia. Como nos tempos gloriosos de Ambrósio ou de Cirilo,
esse ensinamento catequético deverá repousar em duas bases: o simbolismo do rito e o das
Escrituras. Neste simbolismo aparece a grande riqueza de doutrina e de imagens batismais.

a) Leituras para a eucaristia

Vários critérios entraram em jogo ao se preparar o atual lecionário, promulgado


juntamente com o novo missal pela Constituição apostólica Missale Romanum de 3 de abril
de 1969, entre os quais alguns sobressaem. Sem dúvida o que fica mais claro é que o mistério
pascal foi apresentado com maior clareza e abundância de textos. Isso permite múltiplas
facetas do mistério inefável, impossível de se apreciar na pobreza do lecionário anterior. Do
ponto de vista prático, acharíamos aí nova justificação do porquê de uma quinquagésima
pascal. Outras preocupações também foram levadas em conta. Quis-se assegurar, como se
devia, a fidelidade à tradição, razão pela qual se estudaram as listas de leituras bíblica, dos
livros orientais de cerca de quinze ritos. Também o sentido ecumênico não esteve ausente:
levaram-se em conta igualmente os lecionários em uso nas Igrejas da Reforma do séc. XVI a
nossos dias.
Surge a intenção pastoral na abundante e variada seleção de textos distribuídos durante
o curso de três anos consecutivos. Somente aceitando esse longo período de tempo era
possível realizar esse desiderato. Assim como se levou em conta a tradição das leituras para
cada domingo, assim também se deu atenção à revelação histórico-progressiva da salvação:
profetas, apóstolos, Jesus Cristo.
A primeira dessas três leituras apresenta nesse tempo uma característica própria dele: os
Atos dos Apóstolos substituem o Antigo Testamento. Já existia precedente nesse sentido,
como o era o uso das liturgias orientais, da ambrosiana e da hispânica.
As três leituras são praticamente distintas para cada um dos domingos dos três anos, se
excetuarmos o primeiro domingo da Páscoa, da ascensão e do domingo de Pentecostes.
A primeira, tomada do livro dos Atos, vai repetindo ao longo de cada ciclo as passagens
mais importantes sobre os atos da primitiva comunidade cristã, assim como também dos
discursos querigmáticos de Pedro e Paulo. Essa seleção diz por si própria do valor catequético
dessas perícopes, como ilustração maior do mistério pascal: a Igreja se constitui pelo anúncio
e vive para o anúncio e a celebração de Jesus morto e glorificado.
A segunda leitura é a semicontínua da primeira carta de Pedro, da primeira de João e do
Apocalipse, nos respectivos ciclos A, B e C. As razões pastorais e catequéticas parecem
claras: a primeira por seu sentido batismal; a segunda por iluminar o exercício do caminhar do
cristão na fé e na caridade; e a terceira pela grande visão do glorificado que conserva os sinais
da paixão (unidade do mistério) e dá sentido à história dos homens.

b) Páscoa, ascensão, Pentecostes


68

Domingos de Páscoa. Para o primeiro domingo de Páscoa, os três anos têm as mesmas
leituras, embora se possa mudar a segunda pela que antes esse dia tinha tido. Se se preferir,
deixa-se a possibilidade, para o evangelho, de repetir o da vigília. Não se vê que vantagem
tem isso, a não ser para os que não participaram da eucaristia da noite, e mesmo isso é
duvidoso.
A impossibilidade de leituras tão adequadas para cada ciclo ocasionou essa fixação.
Não parece que se tenha de pensar que seja inconveniente. Na primeira, o testemunho de
Pedro sobre Jesus de Nazaré ressuscitado, com quem comeu e bebeu, é bastante eloquente.
Esse anúncio aos pagãos constitui formulação muito precisa e rica sobre o dinamismo interno
do evento pascal.
O querigma que anuncia já foi testemunhado pelos profetas e deve-se anunciar ao
mundo inteiro, visto que somente nele se acha a salvação.
A epístola proclama como a carne pecadora entra pelo batismo na esfera do divino em
comunhão com a humildade glorificada do Senhor.
O evangelho sublinha o fato que teve lugar precisamente na madrugada do “grande
domingo”. Maria Madalena é a primeira a se apressar. Depois Pedro e João constatam o fato.
É o momento em que, segundo as Escrituras, Jesus havia de ressuscitar dentre os mortos.
Pode-se ler, na missa vespertina, o evangelho que narra o acontecimento ocorrido na
tarde daquele domingo, a caminho de Emaús. Quis-se manter, com essa possibilidade,
caminho aberto para os que preferem marcar o momento da jornada pela referência à
“madrugada” e ao “entardecer”.

c) Domingo de Pentecostes

Este domingo é outro desses dias que têm formulários únicos para os três ciclos, o
mesmo para a missa da vigília e a do dia. As razões são as mesmas que para o primeiro
domingo.
Embora lhe seja atribuído o sentido de festa do Espírito Santo, não se deixa de acentuar
seu caráter de conclusão da Páscoa. É esse o aspecto a ressaltar. Na medida em que assim o
apresentarmos, seremos fiéis à teologia do Espírito como dom que faz o ressuscitado à sua
Igreja, em conformidade com o evangelho da vigília (Jo 7,37-39). Tudo isso se significa pelo
nome tradicional que se lhe dá nos livros litúrgicos de outrora e de hoje, ao se chamar esse
domingo de “domingo de Pentecostes” e não de festa de Pentecostes. O próprio evangelho
desse domingo apresenta sob essa perspectiva o Espírito Santo; e certamente será essa a razão
de ser o mesmo para os três anos: quem doa o Espírito é o Senhor glorificado. Essa perícope
permite não repetir, quase com idêntica apresentação, o que se leu na primeira leitura. A
Igreja é a antibabel enquanto reunião em Cristo e no Espírito dos homens divididos (1ª leit.);
Pentecostes é a promulgação da nova lei (2ª leit.); o Espírito levanta dentre os mortos o novo
povo de Deus (3ª leit.). Com as palavras de Joel, Pedro se dirige ao povo no dia de
Pentecostes (4ª leit.).

d) Ascensão do Senhor

Acontece com a festa da ascensão algo semelhante ao domingo de Pentecostes. Não se


deve exagerar o fato de se ter preservado a tradição dos Atos e da liturgia posterior ao séc. IV
ou V de mantê-la no quadragésimo dia. Não esqueçamos que o próprio Lucas situa, em seu
evangelho, a ascensão no conjunto das aparições do ressuscitado, como se tivessem lugar no
próprio domingo da Páscoa. Será isso precisamente o que se lerá no ano C, seguindo a ordem
de um sinótico para cada ano.
69

Duas coisas hão de se destacar do que dissemos. A primeira consiste em apresentar a


ascensão, tal como é na realidade, como uma grande aparição do ressuscitado, precisamente a
última. Aquela que, deixando para sempre os discípulos de forma visível, inaugura sua nova
presença sacramenta na comunidade cristã. Entende-se, de acordo com o evangelho de Lucas,
que esse aspecto fundamenta a grande alegria dos presentes. É a “grande alegria” da Igreja, o
começo do tempo sagrado que lhe cabe, o convite ao louvor, a manifestação da glória do
Senhor. O evangelista vê nesse fato algo muito mais profundo que a separação.
Um segundo aspecto seria o valor relativo do número 40. A esse propósito escreve
Schlier que “se pretende com isso oferecer uma cifra simbólica”. A nova coleta e os dois
prefácios ressaltam que a ascensão do Senhor é também a dos que são de Cristo.

e) Os domingos de Páscoa

As leituras evangélicas para o conjunto desses domingos buscam-se no evangelista


João. Impõe-se essa linha joanina por ser a reflexão de fé mais rica e ampla sobre o evento
pascal.
O segundo domingo da Páscoa tem, porém, nos três anos o mesmo evangelho, o que se
explica pela referência ao oitavo dia. Não é porventura esse dia o que fundamenta a
celebração da Páscoa semanal? Daí o bem fundado dessa norma e a atenção que convém
dispensar para desvendar o alcance desse conteúdo.
Se o primeiro domingo destaca a mesma linha joanina para os três ciclos, nem por isso
se quis anular os sinóticos como possibilidade. Algo parecido ocorre no terceiro domingo. Os
ciclos A e B permitirão ler as passagens sucessivas de Lucas referentes aos discípulos de
Emaús. Sendo assim, um acontecimento importante como esse – para os que não o ouviram
na tarde do primeiro domingo – oferecerá essa visão clara de como convinha que segundo as
Escrituras o Messias morresse e ressuscitasse (na unidade de um só passo) e fosse
reconhecido no partir do pão.
Para o ano B, a continuação dos trechos de Lucas, em que Jesus aparece aos onze
reunidos, é de valor excepcional. Vão-se repetindo as manifestações do Senhor no contexto de
uma refeição, que fundam o banquete messiânico do reino. Por último, a afirmação de que
toda a Escritura era anúncio do evento da Páscoa: “Eis as palavras que eu vos dirigi quando
ainda estava convosco: é preciso que se cumpra tudo o que foi escrito sobre mim na lei de
Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,44).
João reaparecerá no ano C com a narrativa sobre o Senhor às margens do lago de
Tiberíades. A visão desses três domingos permite-nos ver como em todos eles, inclusive na
primeira semana da Páscoa, os evangelhos nos narram as aparições de Jesus. Estas permitem
desvendar pouco a pouco os diversos matizes do ressuscitado que concede dons preciosos à
comunidade nascente.
O quarto domingo, lendo sucessivamente diversas passagens do caps. 10 de João,
acentua mais a autoridade do ressuscitado que a literalidade do Bom Pastor. Tal enfoque
permite ver nesse capítulo o desdobrar progressivo do mistério pascal. A outra apresentação
autônoma integrar-se-ia menos nesse conjunto harmônico dos evangelhos dominicais desse
período e seria ao mesmo tempo menos segura, biblicamente falando.
Reproduzem-se, nos domingos seguintes, longas passagens do discurso da última ceia,
os aspectos pascais mais salientes que não se tinham lido na quaresma precedente.
Por último, lê-se no sexto domingo, se é que a ascensão se celebra no sétimo, todo o
capítulo 17 de João, reproduzindo a oração sacerdotal por inteiro.
É essa a riquíssima variedade que hoje oferece a quinquagésima renovada.
E isso sem ter dito nada sobre muitas leituras ou sobre orações ou prefácios, e muito
menos sobre as leituras e orações próprias de cada uma das férias.
70

Compreende-se assim que cada domingo desse período não passa de determinado
domingo de depois da Páscoa dentro da unidade que forma o tempo pós-pascal. E essa Páscoa
continuada, uma vez que seus celebrantes são também peregrinos, só pode desembocar na
Páscoa escatológica. Todo tempo pascal tem leituras e orações próprias para cada dia, ao
passo que antes só as tinham os dias da oitava. Os cinco prefácios próprios são outra riqueza
que não se deve negligenciar, com um corpo muito definido que sublinha determinado
aspecto do mistério pascal, e com um princípio e conclusão de expressão pascal comum a
todos.
A eucologia da liturgia das horas é suficientemente eloquente por si mesma: hinos,
responsórios, orações de louvor e intercessão. As leituras patrísticas transmitem-nos toda a
riqueza da fé da Igreja na Páscoa. Quanto às leituras bíblicas, note-se a leitura semicontínua
dos Atos dos Apóstolos durante todo o tempo pascal para o segundo ano do lecionário bienal.
Trata-se, enfim, de história, teologia e pastoral muito bem assumidas pela reforma
litúrgica do concílio Vaticano II, que afirma com referência ao tempo pascal: “Os cinquenta
dias que vão desde o domingo da ressurreição até o domingo de Pentecostes devem ser
celebrados com alegria e exultação, como se se tratasse de um só e único dia festivo, e mais
ainda, como um grande domingo”.

Você também pode gostar