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O Espaço Sagrado a sacralização do mundo - Homogeneidade espacial e hierofania

O Tempo Sagrado e os mitos - Duração profana e tempo sagrado


(ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.17-19; 38-40).

O Espaço Sagrado a sacralização do mundo - Homogeneidade espacial e hierofania (p. 17-19)

Para o homem religioso, o espaço não ê homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço
qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés,
porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo 3,5) Há, portanto, um espaço sagrado, e por conseqüência
“forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consistência, em suma,
amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição
entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.

É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial,
que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa
primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. É a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo,
porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma
hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que
se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na
extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode
efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro”.

Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o
homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a
aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer se no “Centro do
Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da
relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo,
e não tardaremos a citar exemplos que mostrarão, de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico da orientação ritual
e da construção do espaço sagrado.

Em contrapartida, para a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente
as diversas partes de sua massa. O espaço geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que direção for, mas sem
nenhuma diferenciação qualitativa e portanto sem nenhuma orientação – de sua própria estrutura. Basta que nos lembremos
da definição do espaço dada por um clássico da geometria. Evidentemente, é preciso não confundir o conceito do espaço
geométrico homogêneo e neutro com a experiência do espaço “profano” que se opõe à experiência do espaço sagrado, e que
é a única que interessa ao nosso objetivo. O conceito do espaço homogêneo e a história desse conceito (pois foi adotado
pelo pensamento filosófico e científico desde a Antiguidade) constituem um problema completamente diferente, que não
abordaremos aqui. O que interessa à nossa investigação é a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem não
religioso, quer dizer, por um homem que recusa a sacralidade do mundo, que assume unicamente uma existência “profana”,
purificada de toda pressuposição religiosa.

É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de
dessacralização do inundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir
completamente o comportamento religioso. Isto ficará mais claro no decurso de nossa exposição: veremos que até a
existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo.

Mas, por ora, deixemos de lado este aspecto do problema e limitemo-nos a comparar as duas experiências em questão: a do
espaço sagrado e a do espaço profano. Lembremo-nos das implicações da primeira: a revelação de um espaço sagrado
permite que se obtenha um “ponto fixo”, possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do
mundo”, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço. Já
não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o “ponto fixo” já não goza de um estatuto ontológico único; aparece
e desaparece segundo as necessidades diárias. A bem dizer, já não há “Mundo”, há apenas fragmentos de um universo
fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de “lugares” mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado pelas
obrigações de toda existência integrada numa sociedade industrial.

E, contudo, nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não
homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço. Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente
diferentes dos outros: a paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira
visitada na juventude. Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade
excepcional, “única”: são os “lugares sagrados” do seu universo privado, como se neles um ser não religioso tivesse tido a
revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana.
Conservemos esse exemplo de comportamento “cripto religioso” do homem profano. No decurso de nosso trabalho, teremos
ocasião de encontrar outros exemplos desse tipo de degradação e dessacralização dos valores e comportamentos religiosos.
Mais tarde nos daremos conta da sua significação profunda.

O Tempo Sagrado e os mitos - Duração profana e tempo sagrado (p. 38-40)

Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem contínuo. Há, por um lado, os
intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas); por outro lado, há o Tempo
profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas
espécies de Tempo, existe, é claro, uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode “passar”,
sem perigo, da duração temporal ordinária para o Tempo sagrado. Surpreende- nos em primeiro lugar uma diferença
essencial entre essas duas qualidades de Tempo: o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é,
propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Toda festa religiosa, todo Tempo litúrgico representa
a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, “nos primórdios”.

Participar religiosamente de urna festa implica a saída da duração temporal “ordinária” e a reintegração no Tempo mítico
reatualizado pela própria festa. Por consequência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente
repetível. De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não “flui”, que não constitui uma “duração”
irreversível. É um tempo ontológico por excelência, “parmenidiano”: mantém se sempre igual a si mesmo, não muda nem se
esgota. A cada festa periódica reencontra-se o mesmo Tempo sagrado – aquele que se manifestara na festa do ano
precedente ou na festa de há um século: é o Tempo criado e santificado pelos deuses por ocasião de suas gestas, que são
justamente reatualizadas pela festa. Em outras palavras, reencontra-se na festa a primeira aparição do Tempo sagrado, tal
qual ela se efetuou ab origine, in illo tempore. Pois esse Tempo sagrado, no qual se desenrola a festa, não existia antes das
gestas divinas comemoradas pela festa. Ao criarem as diferentes realidades que constituem hoje o Mundo, os Deuses
fundaram igualmente o Tempo sagrado, visto que o Tempo contemporâneo de uma criação era necessariamente santificado
pela presença e atividades divinas.

O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob
o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem
reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o
homem religioso do homem não religioso. O primeiro recusa se a viver unicamente no que, em termos modernos,
chamamos de “presente histórico”; esforça-se por voltar a unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode
ser equiparado à “Eternidade”.

É difícil precisar, em poucas palavras, o que representa o Tempo para o homem não religioso das sociedades modernas. Não
é nosso propósito falar das filosofias modernas do Tempo, nem dos conceitos que a ciência contemporânea utiliza para suas
investigações. Nosso objetivo não é comparar sistemas ou filosofias, mas sim comportamentos existenciais. Ora, o que se
pode constatar relativamente a um homem não religioso é que também ele conhece certa descontinuidade e heterogeneidade
do Tempo. Também para ele existe o tempo predominantemente monótono do trabalho e o tempo do lazer e dos
espetáculos, numa palavra o “tempo festivo”. Também ele vive em ritmos temporais variados e conhece tempos
diferentemente intensos: quando escuta sua música preferida ou, apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada, ele
experimenta, evidentemente, um ritmo temporal diferente de quando trabalha ou se entedia.

Mas, em relação ao homem religioso, existe uma diferença essencial: este último conhece intervalos que são “sagrados”,
que não participam da duração temporal que os precede e os sucede, que têm uma estrutura totalmente diferente e outra
“origem”, pois se trata de um tempo primordial, santificado pelos deuses e suscetível de tornar-se presente pela festa. Para
um homem não religioso essa qualidade transhumana do tempo litúrgico é inacessível. Para o homem não religioso o
Tempo não pode apresentar nem ruptura, nem “mistério”: constitui a mais profunda dimensão existencial do homem, está
ligado à sua própria existência, portanto tem um começo e um fim, que é a morte, o aniquilamento da existência. Seja qual
for a multiplicidade dos ritmos temporais que experimenta e suas diferentes intensidades, o homem não religioso sabe que
se trata sempre de uma experiência humana, onde nenhuma presença divina se pode inserir.

Para o homem religioso, ao contrário, a duração temporal profana pode ser “parada” periodicamente pela inserção, por meio
dos ritos, de um Tempo sagrado, não histórico (no sentido de que não pertence ao presente histórico). Tal como uma igreja
constitui uma ruptura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se realiza no seu interior
marca uma ruptura na duração temporal profana: já não é o Tempo histórico atual que é presente – o tempo que é vivido,
por exemplo, nas ruas vizinhas –, mas o Tempo em que se desenrolou a existência histórica de Jesus Cristo, o tempo
santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e ressurreição. É preciso, contudo, esclarecer que este exemplo
não explicita toda a diferença existente entre o Tempo profano e o Tempo sagrado, pois, em relação às outras religiões, o
cristianismo inovou a experiência e o conceito do Tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo. A liturgia
cristã desenvolve-se num tempo histórico santificado pela encarnação do Filho de Deus. O Tempo sagrado, periodicamente
reatualizado nas religiões pré-cristãs (sobretudo nas religiões arcaicas), é um Tempo mítico, quer dizer, um Tempo
primordial, não identificável no passado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou “de repente”, de que não
foi precedido por um outro Tempo, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.

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