Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ADORNO, T. Sobre Música Popular
ADORNO, T. Sobre Música Popular
O material musical
Estandardização
Pseudo-individuação
Apresentação do material
Requisitos mínimos
Glamour
Fala de criança
5O mais famoso exemplo literário dessa atitude é Want to shee the wheels go wound
(HABBERTON, John. Helen's babies. Nova York, p. 9 et seqs.).
1 29
Teoria do ouvinte
Reconhecimento e aceitação
s Cf. CANTRIL, Hadley & ALLPORT, Gordon. The psychology of radio. Nova York,
1935. p. 69.
136
Até agora a análise se ocupou das razões que levam uma música
qualquer a ser aceita. A fim de entender por que todo esse tipo de
música mantém o seu controle sobre as massas, algumas considerações
de tipo mais genérico talvez sejam apropriadas.
A estrutura mental a que a música popular originalmente apelava,
em que ela se sustenta e que perpetuamente reforça, é simultaneamente
uma estrutura de distração e desatenção. Os ouvintes são distraídos das
exigências da realidade por "distrações" que tampouco exigem atenção.
A noção de distração só pode ser entendida de modo apropriado
de sua situação social e não em termos auto-suficientes de psicologia
individual. A distração está ligada ao atual modo de produção, ao
racionalizado e mecanizado processo de trabalho a que as massas estão
direta ou indiretamente sujeitas. Esse modo de produção, que engendra
temores e ansiedades quanto a desemprego, perda de salário e guerra,
tem o seu correlato "não-produtivo" no entretenimento : isto é, num
relaxamento que não envolva nenhum esforço de concentração. As
pessoas querem divertir-se. Uma experiência plenamente concentrada e
consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam
um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu tempo
livre, eles só quererem alívio simultaneamente do tédio e do esforço.
Toda a esfera da diversão comercial barata reflete esse duplo desejo.
Ela induz ao relaxamento porque é padronizada e pré-digerida. Sendo
padronizada e pré-digerida serve, na psicologia familiar das massas, para
poupar-lhes o esforço dessa participação (mesmo de ouvir ou observar) ,
sem o qual não pode haver receptividade à arte. Por outro lado, os
estímulos que ela providencia permitem uma escapadela da monotonia
do trabalho mecanizado.
Os promotores da diversão comercializada lavam as mãos ao afir
marem que estão dando às massas o que elas querem. Esta é uma
ideologia apropriada para finalidades comerciais: quanto menos a massa
consegue discriminar, maior a possibilidade de vender artigos culturais
indiferenciadamente. Mesmo assim, essa ideologia dos interesses adqui-
ridos não pode ser descartada tão facilmente. Não é possível negar
completamente que a consciência das massas possa ser moldada pelas
agências pertinentes só porque as massas "querem essa coisa".
Mas por que elas querem esse tipo de coisa? Em nossa presente
sociedade, as próprias massas são moldadas pelo mesmo modo de pro
dução que ·o material a elas impingido. Os usuários da diversão musical
são eles mesmos objetos, ou, de fato, produtos dos mesmos mecanismos
que determinam a produção da música popular. O tempo de lazer desses
usuários serve apenas para repor a sua capacidade de trabalho. f: um
meio ao invés de ser um fim. O poder do processo de produção
estende no tempo intervalos que, na superfície, parecem ser "livres".
Eles querem artigos estandardizados e pseudo-individuação, porque o
seu lazer é uma fuga ao trabalho e, ao mesmo tempo, é moldado segundo
aquelas atitudes psicológicas a que o seu dia-a-dia no trabalho os habitua
de modo exclusivo. Música popular é, para as massas, como um feriado
em que se tem de trabalhar. Por isso, há, hoje, uma justificativa para
falar de uma harmonia preestabelecida entre produção e consumo de
música popular. O clamor do povo por aquilo que ele há de receber de
qualquer modo.
Escapar à monotonia e evitar esforço são elementos incompatíveis :
daí a reprodução exata daquela atitude de que se procura escapar.
Com certeza, o modo de as pessoas trabalharem na linha de montagem
da fábrica ou nas máquinas dos escritórios lhes nega qualquer novidade.
Elas buscam novidade, mas a tensão e a monotonia ligadas ao trabalho
de fato as levam a evitar o esforço nesse tempo de lazer, que oferece
a única chance para experiências realmente novas. Como um substitutivo,
elas imploram por um estimulante. A música popular vem oferecê-lo.
Os seus estímulos são respondidos com a inabilidade de se investir esforços
no sempre-idêntico. Isso significa mais monotonia. f: um círculo que
torna a fuga impossível. A impossibilidade de fugir causa a difundida
atitude da falta de atenção na música popular. O momento do reco
nhecimento é o da sensação sem esforço. A súbita atenção ligada a esse
momento se extingue do modo mais instantâneo, relegando o ouvinte
ao âmbito da desatenção e da distração. Por um lado, o domínio da
produção e da promoção pressupõem distração e, por outro lado, eles a
produzem.
Nessa situação, a indústria enfrenta um problema insolúvel. Ela
precisa despertar atenção por meio de produtos sempre novos, mas essa
atenção profere a sua condenação. Se não se presta nenhuma atenção à
canção, ela não pode ser vendida; caso se preste, há sempre a possi
bilidade de as pessoas não mais a aceitarem, pois a conhecem bem demais.
Isso em parte explica o esforço constantemente renovado de limpar do
mercado seus novos produtos, de afugentá-los para os seus túmulos ; e,
depois, repetir a manobra infanticida sempre de novo.
138
O cimento social
Artie Shaw".
1 45
sarcástico para com seus ídolos, mas também na efetivação dessa ran
corosa decisão voluntária. O ego, ao forçar o entusiasmo, precisa hiper
forçá-lo, na medida em que o entusiasmo "natural" não bastaria para
cumprir a tarefa e vencer a resistência. f: esse elemento, o de um deli
berado forçar, que caracteriza a histeria frenética e consciente de si
mesma 1 2 • O fã da música popular precisa ser imaginado como percor
rendo o seu caminho com olhos firmemente fechados e dentes cerrados a
fim de evitar que se desvie daquilo que decidiu aceitar. Uma visão clara
e calma colocaria em perigo a atitude que lhe foi infligida e que, por
sua vez, ele tenta infligir a si mesmo. A voluntária decisão inicial, em
que seu entusiasmo se baseia, é tão superficial que a mais leve consi
deração crítica a destruiria, a !Jlenos que fosse reforçada pela mania, que,
nesse caso, serve a um propósito quase racional.
Por fim, teria de ser mencionada urna tendência que se manifesta
nos gestos do jitterbug : a tendência para a autocaricatura, que parece ser
almejada pelas gaucheries dos jitterbugs e que são tantas vezes anunciadas
pelas revistas e pelos jornais ilustrados. O jitterbug aparenta querer fazer
caretas para si mesmo, para o seu próprio entusiasmo e para a sua própria
diversão, que ele denuncia até mesmo quando pretende estar se divertindo.
Ele zomba de si mesmo corno se estivesse secretamente esperando pelo
Dia do Juízo Final. Através de sua zombaria, ele busca alcançar o perdão
pela fraude que cometeu contra si mesmo. O seu senso de humor torna
tudo tão enganador que ele não pode ser posto - ou melhor, pôr-se a
si mesmo - em posição, responsável por qualquer uma de suas reações.
O seu mau gosto, a sua fúria, a sua secreta resistência, a sua falta de
sinceridade, a sua latente tolerância para consigo mesmo, tudo é enco
berto pelo "humor" e, assim, neutralizado. Essa interpretação é tanto
mais justificada quanto mais improvável for que a incessante repetição
dos mesmos efeitos chegue a proporcionar genuína alegria. Ninguém
gosta de uma piada que já tenha ouvido urna centena de vezes 13.
Há algo de fictício em todo o entusiasmo quanto à música popular.
Dificilmente algum jitterbug está completamente histérico com o swing
ou completamente fascinado por urna apresentação. Para além de uma
resposta genuína a estímulos rítmicos, a histeria em massa, o fanatismo
e a fascinação são, eles mesmos, em parte, slogans publicitários, segundo