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Meia-Lua (Livro 1)/Bárbara Bastos. São Paulo: Amazon.com, Inc., 2019.
Avenida do Contorno, 4747 – sala 1107 – Funcionários 30110-921 – Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 99218-1247 E-mail: barbarabhastos@gmail.com Para Izabela, que testemunhou com afinco a gestação tão aguardada deste primogênito; Para Eduardo, que me apoiou desde o início, fazendo-se o “pai” dele, E para a Mari, que foi quem o tomou nos braços primeiro. Sumário
Prólogo • 9
Um – Wendy •15
Dois – Cidade do Vale • 29
Três – Klüsener • 51
Quatro – O café e o camafeu • 69
Cinco – Liam • 84
Seis – Os cães de Vale • 110
Sete – Cidade Velha • 147
Oito – O pedido inusitado • 171
Nove – Equinócio de calouros • 199
Dez – Onde dói mais • 229
Onze – Salvação • 252
Doze – O chão é lava • 276
Treze – O Sétimo Selo • 296
Catorze – Benjamin • 325
Quinze – Na estrada • 354
Dezesseis – Cidade da Serra • 382
Dezessete – O dálmata de orelhas pretas • 404
Dezoito – O nome do sentimento • 420
Dezenove – Mistérios à meia-noite • 441
Vinte – Luzes da cidade • 464
Vinte e um – Depenarq • 504
Vinte e dois – Tão velhos quanto a própria humanidade • 519
Vinte e três – A falta que o excesso faz • 550
Vinte e quatro – A retaliação • 573
Prólogo
orque o Pavilhão Nepomuceno, o mais próximo da universidade, estava
P tomado pela Feira Anual de Profissões, o Desfile de Outono oferecido
pelas estudantes de Moda e indústrias têxteis locais ocorreria no Pavilhão Central do histórico bairro Cidade Velha. Enquanto universitários, amantes do tema e cidadãos curiosos aglomeravam-se nos corredores da área coberta do Pavilhão, promovendo uma algazarra típica de multidões, sob as cortinas do camarim improvisado ocorria uma algazarra de outra natureza composta por tecidos, texturas e cores em excesso e patenteada pelas estilistas e suas manequins – em sua maioria, as belas universitárias de Cidade do Vale. Uma das moças – uma jovem alta e atlética, curvilínea demais para ser modelo de passarela e dotada de uma juba exuberante de grossos e reluzentes cachos castanhos-avermelhados – encontrava-se sentada diante de um computador, explicando um sistema que havia programado: —… assim, os fornecedores, as estilistas e o varejo poderão estar sempre em contato, é só logar pelo seu usuário aqui. Você pode ter várias atribuições nesse mesmo usuário, clicando neste ícone, e então verá o painel com subusuários e suas atribuições, daí é só escolher em qual entrar… — dizia para um grupo de garotas interessadas e semivestidas, todas bem mais magras que a primeira e artisticamente maquiadas para a passarela — E aqui, neste ícone, temos… — Ei, Son! — chamou à distância uma garota bonita, de rosto simétrico e milimetricamente maquiado, que prendera o cabelo apressadamente com um pregador e se ocupava em maquiar uma das macérrimas modelos do desfile — Tem um cara gato aqui querendo falar com você! A moça cacheada olhou instantaneamente na direção das cortinas que separavam o camarim do palco no instante em que um rapaz alto, de cabelos escuros e rebeldes, rosto anguloso e bem-delineado e roupas pretas e pesadas precipitou-se por elas, invadindo o camarim; as garotas, que estavam se vestindo ou se trocando, cobriram-se rapidamente entre gritinhos excitados, alvoroçadíssimas, mas ele as ignorou displicentemente, traçando uma linha reta até Son, perfeitamente ciente de que era atentamente observado e apreciado por todas e que, embora elas se cobrissem com aparente embaraço, não demonstravam nenhum aborrecimento ao vê-lo passar. — Está um tumulto lá fora. — comentou o rapaz para Son, num tom de voz cortante — O que você está fazendo? — aqui ele baixou a voz — Por que você não atende ao meu chamado? — Estou explicando como o sistema funciona. — respondeu ela, séria — Você não deveria estar aqui. — aqui ela também baixou a voz — Você não pode entrar aqui. — Você não estava me respondendo, o que queria que eu fizesse? — replicou ele, ríspido. — Você está constrangendo todo o mundo. Ben ergueu uma sobrancelha, inclinando a cabeça ligeiramente para o lado numa expressão sarcástica; ao redor dos dois, as outras moças não tiravam os olhos dele, trocando entre si sussurros excitados. Son suspirou; talvez constrangendo não fosse a palavra apropriada para definir o tumulto que o rapaz estava causando no recinto. — De toda forma, obrigada por ter vindo ao desfile. — disse ela séria, a contragosto — Foi muita consideração sua. Antes de Ben esboçar alguma reação, outra garota, dotada de um aspecto feérico reforçado pelos cabelos curtos e espetados e pelo rosto em forma de coração, enfiou a cabeça nas cortinas de entrada do camarim e chamou: — Psiu! Ben, Son! Por que não atendem ao meu chamado? Os dois se viraram para encará-la, surpresos, e ela acrescentou: — Venham aqui! Depressa! Não foi preciso chamar duas vezes; Ben virou-se e se apressou em direção à garota, ignorando os suspiros de admiração que arrancava da equipe técnica do desfile, e a garota cacheada enveredou-se atrás dele, largando o computador para trás. — Tem um cara esquisito lá fora — explicou a menina de cabelos espetados, lançando um olhar furtivo para trás — E eu acho que eu sei o que ele vai aprontar. E quem ele é. Ben e Son olharam no sentido que ela discretamente indicava; sua atenção foi imediatamentos atraída para uma cabeleira longa e imunda e um par de olhos pequeninos e apertados no meio da aglomeração. — Ligue para Liam, Daf. — orientou Ben, avançando para fora do camarim, o olhar fixo no homem — E você, Son, para a delegacia. — O que vai fazer? — Fiquem aqui. — ele ordenou enquanto se misturava na multidão. O olhar do homem encontrou o do rapaz, e ele imediatamente lhe deu as costas, empurrando as pessoas à medida que tentava chegar à saída, seguido à distância por Ben; quando Ben finalmente chegou à saída, um carro passou por ele, cantando pneu.
— Ele caiu na avenida. — um rapaz informou ao celular, dentro do carro,
sacudindo os cabelos castanhos e despojados, cortados na altura da mandíbula, para longe do rosto enquanto mantinha a atenção no trânsito — Estou em perseguição. — Cuidado com o trânsito — orientou uma voz grave ao celular — Temos muitos civis nesse horário. O carro dirigido pelo rapaz – uma banheira velha, porém envernizada – seguia um sedã que costurava no trânsito, ocasionando buzinadas e freagens violentas de motoristas alarmados. — Estou descendo a Acabamundo, Liam — disse a mesma voz grave ao celular — Vou fechá-lo. — Ok. Cem metros depois, uma viatura policial cortou à direita sem se perturbar com o trânsito na avenida e fechou o sedã, que, em vez de parar, deu um cavalo-de-pau, por pouco não capotando, invadiu a pista que seguia no sentido oposto – fechando um carro e obrigando-o a frear bruscamente – e entrou numa rua lateral. — Ele foi na contramão. — informou Liam. — Eu vi. Vou checar o civil, ver se estão bem. A viatura estacionou no acostamento; o motorista, com o uniforme de delegado, saiu do automóvel e atravessou a avenida até o carro civil que havia freado bruscamente; o homem dentro deste, ao ver o delegado dirigir-se a ele, pediu: — Bernardo, fique aqui. — Tá bom, pai. Bernardo era o rapaz no banco do passageiro, que fora salvo pelo cinto de segurança. Ele viu o pai sair do carro para trocar uma rápida palavra com o delegado. Outros carros, que haviam freado logo atrás, contornaram o de Bernardo e seguiram viagem, desimpedindo o tráfego momentaneamente interrompido. — Como estão? — Son perguntou ao celular. — Perdemos ele de vista. — disse Liam, que também estacionara o carro. — Estou com ele na mira. — Ben anunciou repentinamente via rádio. — Ben, volte agora. — ordenou o delegado, enquanto caminhava ao encontro do pai de Bernardo — Abortar missão! — Ele caiu na Via Norte. — anunciou Ben, ignorando a ordem direta — Consigo alcançá-lo. Liam, ainda no carro, deu a partida e seguiu viagem, deixando o delegado e o civil para trás.
Na Via Norte, mais vazia, o sedã corria à toda.
— Son, pode cortar! — comunicou Ben. Um conversível amarelo entrou na pista do nada, obrigando o sedã a frear metros atrás, girando e cantando pneu. O homem dentro dele conseguiu sair do carro, sem cambalear, e correu. — Estou a caminho. — anunciou Liam no rádio. Ben, inclinado sobre a moto, acelerava atrás do homem, ambos num trecho ermo da via. Decaindo vagarosamente de seu ápice, a Lua Crescente estava perfeitamente visível no alto, lembrando o sorriso enigmático de um rosto invisível despontando num céu sem nuvens. O homem finalmente parou para respirar junto a um muro de tijolos. Ben saltou da moto e correu atrás dele, agarrando-o pelo colarinho. — O que você quer? — ele o prensou contra a parede — Achou mesmo que ninguém iria reconhecê-lo? O homem riu; respirava entre arquejos, o rosto afogueado, mas foram os dentes pontiagudos e imundos que se destacavam em sua aparência. — E quem me reconheceu? — ele questionou, lançando um olhar à mulher à distância, que havia saído do conversível e observava a cena a mais de cem metros, apreensiva — Dois bebês recém-saídos do colinho da mamãe? Ben o ergueu, fazendo os pés dele balançarem no ar, prensando-o com tanta força que parecia sufocá-lo – o rosto dele avermelhava mais e mais. — Quem é bebê aqui? Quebro sua cara em dois tempos! — ameaçou o rapaz, enfurecido. O homem apenas ergueu os olhos para o céu, esboçando um sorriso deliciado. — Diga-me — ele retorquiu — Por acaso já largou as fraldas? Ou ainda tem que se esconder na toca como um bom menininho quando chega a hora da verdade? Ben apertou os olhos; o homem riu com vontade. — É pena que vai morrer antes de conhecer a sensação. Mal havia proferido aquelas palavras, e Ben foi lançado violentamente para trás quando, no lugar do homem, surgiu uma criatura gigantesca e tenebrosa, projetando sua sombra colossal sobre o rapaz e fazendo o chão de concreto tremer com seu rosnado. — Ben! — gritou Son. Ben estava caído de costas, os braços à frente do rosto por reflexo no instante em que a criatura em cima dele cravou-lhe as garras na manga do casaco, rasgando-lhe a pele do antebraço, e ia receber uma investida mais violenta quando outra criatura, do nada, precipitou-se contra a primeira, ambas engalfinhando-se num espetáculo macabro; o rapaz ergueu-se lentamente, observando o combate que se desenrolava a pouquíssimos metros dele… A primeira criatura correu, saltando o muro, e a outra foi atrás. Os grasnidos, os grunhidos, os rosnados e as mordidas desapareceram na noite. Ben e Son continuaram a olhar no sentido em que haviam desaparecido à medida que o silêncio retornava. Subitamente, dois faróis iluminaram a via, e uma viatura estacionou no acostamento; dela saiu um homem, o delegado. — Liam o perdeu na altura do Antigo Distrito Industrial. — anunciou — Saiu de nossa jurisdição. — Maldito. — praguejou Ben. O delegado baixou os olhos para o braço de Ben; ele e Son também olharam: as três fissuras infligidas pela criatura começavam a sangrar profusamente em meio à manga do casaco em frangalhos. Ben girou o braço lentamente, lançando à carne dilacerada um olhar de repulsa – não uma repulsa aterrorizada diante da profundidade do corte, mas uma repulsa fria. Um olhar de absoluto desprezo. — Você precisa controlar seus impulsos, Ben. — avisou o delegado, repreendendo-o. — Isso aqui não é nada. — replicou Ben, com desdém — Você sabe disso. — Poderia ter sido pior. Você será o próximo capolicano, precisa aprender a agir como um. Eu o avisei para não ir atrás dele, mas você ignorou uma ordem direta. — Quem é ele? — perguntou Son, indicando com a cabeça por onde as duas criaturas haviam desaparecido — Parece familiar. — Ele é familiar — concordou Ben — e já transmuta fora do ciclo. — Vocês o conhecem porque ele já esteve na cidade antes, há muitos anos — explicou o delegado — Foi expulso por ter feito vítimas civis. E agora, pelo visto, está de volta. Ligue para Olho Cinzento, Son. Precisamos dizer a ele… Son passou a mão no telefone enquanto o homem continuava: —… que o Carniceiro voltou. Um – Wendy –
uando Wendy Adelaide Moss pensava criticamente sobre a
Q própria existência, concluía sem dificuldade alguma que nunca
havia se apaixonado e sequer sabia o que era se apaixonar por alguém. Essa era uma verdade que parecia contrariar todos os ditames culturais nos quais estava inserida; todos os seus colegas, no decorrer do Ensino Fundamental e Médio, haviam experimentado alguma forma de amor e concluído, em algum momento, que estariam gostando de alguém – que havia alguém, em suas vidas tão tenras, que fazia seus olhos brilharem. As mídias e todas as formas de entretenimento conhecidas também corroboravam o fato de como era normal se apaixonar e o quão belo isso poderia ser. De alguma forma, sempre diziam que, quando se gostava de alguém, era fácil de saber – quem ama simplesmente sabe, e Wendy nunca estivera perto de sentir algo parecido. Não eram muitas as pessoas que Wendy conhecia que eram, de fato, correspondidas naquilo que sentiam, pois estava ainda numa época em que muitas pessoas amavam quem não as amava e eram amadas por quem não amavam – mas, ao menos, gostavam de alguém. Não era o caso de Wendy; ela nunca havia se apaixonado, e essa era a primeira verdade a ser contada a seu respeito. Wendy nascera e crescera em Cidade da Serra, uma cidade interiorana com uma população de poucos milhares de habitantes, considerada portanto pequena, localizada em uma região fria e montanhosa, onde o céu nublado e as chuvas orográficas eram uma constante que se mesclavam à densa vegetação verde-escura coalhada de mamíferos. Estudara na escola municipal local e, a partir do ginásio, começara a auxiliar os pais em seu restaurante, O Galpão, um simpático e aconchegante estabelecimento que, pela fachada toda coberta por portas de aço de enrolar – dobradas durante o expediente – lembrava um pequeno galpão, localizado diante de uma praça repleta de árvores frondosas e antigas. Quando as portas de aço não estavam à vista, O Galpão exibia sua fachada acolhedora, com uma varanda a alguns degraus acima do nível do chão que oferecia aos clientes uma visão agradável da praça local e das montanhas verdejantes mais além. A garota começara a contribuir como atendente aos treze anos, passando a trabalhar também na cozinha a partir dos quinze, embora já manifestasse propensão à gastronomia desde os nove, ao fazer os primeiros bolos de micro-ondas para adoçar as manhãs de sábado diante da televisão, e a partir dos onze, ao ajudar a mãe a separar as marmitas quando o restaurante ainda era apenas um serviço de entregas. Wendy adorava cozinhar – pratos quentes ou frios, entradas, pratos principais ou sobremesas, e essa era a segunda verdade a ser contada a seu respeito. Nos anos de Ensino Médio, acordava de manhã, tempo suficiente para tomar café com pão, guardar a marmita na mochila – lanche por ela preparado na véspera que incluía uma fruta e um sanduíche – vestir seu casaco impermeável e ir de bicicleta à escola numa trajetória de apenas cinco minutos. Na escola, encontrava seu melhor amigo, Bernardo, com quem trocava miúdos sobre qualquer assunto fascinante de véspera antes de o primeiro tempo começar. Comia seu lanche nos primeiros cinco minutos de intervalo, ocupava o tempo restante com conversas com amigos e retornava à aula. Na hora do almoço, retornava para sua casa sob o sol a pino, algumas vezes encoberto pelas repentinas nuvens de chuva. Nesse momento, o restaurante, no primeiro andar, encontrava-se lotado de seus clientes habituais – trabalhadores locais – por isso Wendy contornava o estabelecimento por fora, subia uma discreta escada nos fundos para o segundo andar do estabelecimento – a casa da família – depositava o material no próprio quarto, almoçava rapidamente e, se a mãe a houvesse requisitado, retornava ao primeiro andar para oferecer seus serviços. Os principais clientes eram os trabalhadores de um edifício próximo que continha consultórios particulares, centros de exames clínicos e até mesmo um hospital. Trajando vestes brancas e sapatos confortáveis, eles ocupavam seus lugares habituais n’O Galpão e, entre a lasanha e o café da tarde, desatavam a comentar uns com os outros casos complicados que haviam atendido e cirurgias de última hora que haviam realizado. Por volta de catorze horas, o público começava a rarear, e Wendy auxiliava na limpeza do local; às quinze horas, as atividades no restaurante eram encerradas, mas seus pais ainda estavam a fechar o caixa e a preparar a loja para o dia seguinte. Wendy retornava ao andar superior, fazia os deveres escolares, as atividades domésticas de sua incumbência e descansava no início da noite, dedicando tempo a ler algum romance – usualmente os discutidos em aula –, jogar algo on-line com Bernardo, assistir a alguma novela ou, em noites mais quentes, descer à praça mais próxima para comer bens-casados com sua avó, ou então comer churros com chocolate quente na praça com Bernardo nas noites mais frias. Mais recentemente, passara a fazer parte de seu hobby noturno brincar com o gatinho de estimação que sua avó lhe dera, Fred. Os três anos de Ensino Médio transcorreram dessa forma na vida de Wendy; algumas variações se deram nos conteúdos ministrados em aula, mas Wendy se sentara inclusive na mesma carteira, no meio da sala, copiando tudo atentamente, e obtivera ótimas notas em todos os anos, sem grandes dificuldades, graças à rotina sempre tão previsível. Todos os dias, encontrava Bernardo; comia seu lanche, prestava atenção às aulas; retornava durante o almoço, trabalhava no restaurante; realizava deveres em casa; descansava à noite. Sua casa, no segundo andar d’O Galpão, era incrivelmente arejada e iluminada, captando a luz solar pelas manhãs. Por fora, tinha paredes salmão e simpáticas janelas carmesim, com uma pequena varanda externa na sala e na suíte do casal. O soalho, por dentro, era todo feito de madeira, e as paredes salmão eram coalhadas de enfeites rústicos como quadros de madeira com desenhos de cozinheiro e dizeres como hora do café e bom apetite, canecas coloridas penduradas em suportes de madeira e ferro fosco, além de toalhinhas de crochê penduradas nas paredes ou nas superfícies. Havia poucas divisórias, de modo que as salas de jantar e de estar ocupavam um ambiente só, e todos os cômodos possuíam janelas grandes. Os tons quentes e aconchegantes, o aspecto rústico e convidativo e a constante iluminação natural refletiam a personalidade dos três moradores da casa. Sheila, mãe de Wendy, era uma mulher pragmática, disciplinada e objetiva, abençoada com o dom de resolver problemas em vez de se desesperar diante deles, embora não fosse dotada do mesmo talento para prevê-los e evitá-los; vivia um dia após o outro e se comprazia com sua rotina simples e estável. Não demonstrava afeto com facilidade, embora seu sorriso discreto, sincero e benevolente fosse sua marca registrada. Era responsável pela cozinha e dificilmente saía dos fundos da loja; gostava de preparar pratos desafiadores, de preferência salgados. Arthur, pai de Wendy, era um homem simples, humilde e afetuoso, apaixonado pela mulher e extremamente carinhoso com a filha; cantarolava com facilidade e era conhecido por seu dinamismo e por sua personalidade fácil de agradar, socializando com conhecidos e fregueses, caminhando pela frente da loja e tomando nota do movimento, resolvendo problemas, apressando pedidos, atendendo clientes e cuidando do caixa. Gostava de preparar sobremesas saborosas e aconchegantes. Também não fazia o tipo filosófico, teórico ou analítico, feliz com sua rotina simples ao lado das pessoas que mais amava. Vó Laura, mãe de Arthur, era, ao contrário da nora e do filho, mais analítica e observadora. Muito querida por Wendy, afetuosa e bem- humorada, era também um tanto desbocada e partilhava do mesmo gosto de seus familiares por cozinhar. Esse seu talento para observar pessoas e situações, aliado à sua franqueza, fazia com que brotassem da velha notas de sabedoria que a garota guardava para si com bastante consideração. Certa vez, Vó Laura preparara um steak Wagyu ao molho de trufa para o aniversário do filho e chamara a neta para experimentá-lo; esta levou um pedaço da carne embebida no molho trufado à boca, com cuidado para não se queimar, e o experimentou. Estranhou por alguns instantes, incapaz de elaborar um juízo a respeito dele, perdida entre os mil e um sabores que se desabrochavam ao paladar e a identidade de cada um deles; necessitou de algum tempo para enfim aprová-lo. — Você é meio devagar para absorver experiências muito intensas. — observara a avó analiticamente. Essa seria uma terceira verdade sobre Wendy: processar estímulos intensos tomava-lhe um tempo considerável. Possuía a necessidade de algum período para senti-los em sua plenitude e elaborar algum veredicto a seu respeito. Extremamente habituada ao trabalho e aos pequenos prazeres decorrentes da vida rotineira e interiorana de uma família simples, estável e feliz em uma cidade pacata, sempre imersa na mesmice, Wendy não era uma garota de sonhos muito ambiciosos, devaneios compulsivos ou desejo de viver a vida intensamente. Era o tipo que preferia apreciar uma comida mais simples a vivenciar orgias gastronômicas, concentrar-se em uma atividade por vez a ser uma pessoa multifuncional e colecionar sólidas amizades em detrimento de amores românticos, intensos e efêmeros. Wendy não era uma pessoa dada a viver a vida intensamente, e essa era uma terceira verdade a ser contada a seu respeito. Quando prestara vestibular para a universidade na cidade vizinha, Cidade do Vale, já que não havia colégios de ensino tecnológico ou superior em Cidade da Serra, Wendy inscreveu-se no circuito de Ciências Biológicas e de Saúde porque era o campo que contemplava boa parte dos cursos superiores de seu interesse. Como filha de donos de restaurante, considerou seriamente estudar Administração, Engenharia de Alimentos, Nutrição e até Educação Física. Entretanto, seus pais haviam convivido tempo demais com os clientes médicos d’O Galpão; admiravam seu caminhar imponente, seu ritmo ocupado, suas conversas cheias de jargões e sua rotina importante – alguns alternavam, ao longo da semana, entre atendimentos na Serra e no Vale, enquanto outros trabalhavam no Vale durante dois ou três dias e residiam na Serra. Controlavam a própria rotina, não necessitando trabalhar todos os dias, organizando a própria agenda segundo as próprias vontades. Não faltavam pessoas doentes para médicos como não faltavam pessoas famintas para irem ao Galpão, mas o fato era que, enquanto qualquer um poderia cozinhar em casa, ninguém poderia dispensar um médico eternamente. Nesse sentido, Sheila e Arthur trataram de aconselhar a filha a considerar seriamente seguir carreira em medicina. Como a atividade preferida de Wendy já era por ela exercida – cozinhar – e nenhum curso superior oferecido em Cidade do Vale superaria isso, a garota aderiu ao conselho dos pais e se matriculou no circuito de Ciências Biológicas e de Saúde, considerando estudar Medicina, Nutrição ou Educação Física. Julgava seu desempenho insuficiente para ser aprovada no primeiro curso – Medicina – um dos mais concorridos da universidade; qual não foi sua surpresa, entretanto, ao descobrir que obtivera uma pontuação alta o suficiente para ingressar justamente nele. A verdade era que os alunos aprovados para o curso de medicina eram também aprovados em faculdades de medicina por todo o País, de modo que a lista de espera, mesmo para medicina, rodava com vertiginosa velocidade nas universidades preteridas – e era o caso da Universidade de Cidade do Vale. Ainda que localizada em uma próspera metrópole, era interioriana demais, afastada demais, montanhosa, fria e chuvosa demais para despertar a atenção de estudantes que bem poderiam residir no litoral ou nos centros urbanos mais planos e badalados. E assim, com um desempenho mais modesto, porém suficientemente eficaz decorrente de uma rotina diária e semanal de três anos significativamente estável e de uma intensa capacidade de concentração, disciplina e autocontrole emocional, Wendy poderia se matricular não apenas em Nutrição ou Educação Física como também em Medicina. Essa novidade gerara repercussões por toda uma tarde particularmente quente de sábado, em pleno verão, pouco antes do anoitecer subitamente frio típico dos climas de altitude. As atividades do restaurante já haviam sido encerradas naquele dia, e a garota havia se sentado diante do computador, em seu quarto, para acessar um sistema de divulgação de resultados de vestibular que travava a todo momento. Nesse momento em que nossa estória começa, a garota atualizava a página em vão, ansiosíssima para conferir a lista de aprovados. Finalmente, a página carregou – demorou uma eternidade. E então a garota desceu a barra lateral, procurando pelo próprio nome… — Passei! Passei! — gritou, ao escutar seus pais subirem as escadas. Os dois irromperam porta do quarto adentro, parando cada um de um lado, atrás da garota. — Passei! — ela repetiu, enquanto eles a abraçavam. — Com essa nota, você consegue se matricular em quais cursos? — o pai, ansioso, questionou. Wendy comparou o próprio resultado com as notas mínimas de cada curso da grande área de Biologia e Saúde; para o espanto e a alegria geral, ela poderia ingressar em todos os cursos, inclusive Medicina. Sua nota fora quase idêntica à nota de corte, mas não importava – era alta o suficiente. — Medicina! Medicina! Nossa filha será médica! — e os dois começaram a se abraçar. Estavam ainda comemorando, aos berros e soluços, quando ouviram alguém subir as escadas em tropel, gritando: — Wendy! Wendy! Wendy! — era Bernardo, que também irrompeu no quarto poucos segundos depois — Você passou? — Passei, e você? — Também! Vovó Laura vinha atrás, sorridente. O rapaz emendou: — Em Biologia! Os pais de Bernardo eram professores universitários e pesquisadores, ambos doutores. Desde sempre, Bernardo nunca havia concebido outra carreira para si mesmo; era evidente que ingressaria na vida acadêmica. Nisso, os dois amigos eram irrevogavelmente diferentes; Wendy era uma pessoa que gostava de atividades concretas, práticas e manuais; ele preferia abstrações, investigação de fenômenos e elaboração de conceitos. Durante o Ensino Médio, a dúvida que prevalecera fora em qual campo científico ele ingressaria, já que era bastante afeito a Biologia, Química e História Contemporânea. Os dois amigos se abraçaram. Enquanto os pais de Wendy a aconselhavam a ingressar em medicina e sugeriam nutrologia como especialização, Bernardo lhe mostrou o anel que havia acabado de ganhar dos pais; era um anel de formatura que o aguardava para quando se graduasse, uma antiga relíquia de família que representava a tradição de formar intelectuais. Estava extasiado; ser aprovado no vestibular era, sem dúvida alguma, uma vitória mais significativa para ele do que para Wendy. Embora Wendy houvesse conquistado uma vaga mais concorrida – a qual Bernardo, por sinal, não conquistara também por muito pouco – ingressar na universidade era mais importante para ele, pois era onde poderia se realizar profissionalmente. Os dois trocaram miúdos sobre o destino que os aguardava, enquanto os pais sonhavam também, tudo sob o olhar atento de Vó Laura. Quando os pais finalmente retornaram ao restaurante para finalizar algumas tarefas, cantando alegremente, e Bernardo retornou para casa, Vó Laura chamou a neta de lado. — Tenho uma coisa para lhe dar. Não é um anel de formatura. — acrescentou rapidamente — Nós não temos essa tradição na nossa família. Espero que isso não deixe você chateada. — Não deixou, vovó. — respondeu a garota. Era o tipo de tradição que mais tinha a ver com a família de Bernardo do que com a dela. Os pais de Bernardo eram extremamente austeros, se comparados aos de Wendy. Sheila e Arthur eram alegres, festivos e falantes, gritando um para o outro instruções no dia-a-dia e perguntando se haviam feito compras, levado o lixo para fora; vinham em duplinha mostrar à filha novidades como um celular novo que um havia ganhado do outro, um desenho de comanda super responsivo elaborado pela mãe, uma nova receita de torta salgada descoberta pelo pai; o pai era um homem simples, mas extremamente carinhoso, e a mãe uma mulher organizada e exigente, porém mais indulgente do que gostava de transparecer. Os pais de Bernardo possuíam uma agenda mais flexível que os da garota; residiam na Serra por opção, pois gostavam de cidade pequena e dos aluguéis baratos da cidade; ministravam aulas na Universidade de Cidade do Vale durante alguns dias na semana, dividindo seu tempo de trabalho com outras funções acadêmicas e administrativas. A mãe de Bernardo era docente no departamento de Psicologia, e o pai, no de Química; quando ia à casa do amigo, um adorável sobrado roxo de janelas brancas, Wendy os surpreendia de moletom e pantufas, trocando opiniões sobre sua rotina acadêmica com jargões misteriosos. — Consegui mais uma bolsa de monitoria neste semestre por conta daquelas publicações de que lhe falei, aquelas que passaram pelos seis pareceristas, a novela editorial, lembra? Acabei de passar na secretaria para designar a nova monitora, uma IC voluntária do ano passado. — Onde foi mesmo que você publicou? — O da novela foi numa A, mas também saíram dois artigos em duas de conceito B. Um desses dois foi com aquela minha doutoranda, do projeto- sanduíche de que falei, lembra? Metamemória nos pacientes do hospital? Só que a correlação entre dois construtos está alta demais, pedi para o IC reanalisar os dados, pode ser alguma inconsistência do programa… Ou então: — Submeti o resumo do trabalho sobre nanotubos para o congresso semana passada, vou dar uma olhada em dois dos mestrandos, os dados têm relevância e estamos tentando reproduzi-los, mas não sei se eles vão conseguir apresentar os resultados… — Por que não apresentariam? — Um deles está viajando, e o outro, trabalhando fora da cidade, precisariam retornar a tempo para a comunicação oral… — Os coautores não podem apresentá-los? — Eles são coautores um do outro, e até sugeri que fizessem só os pôsteres, mas acredita que a organização escalou os pôsteres só para o primeiro dia, e não para o evento inteiro? Quando tinha dez anos, Bernardo ganhara um livro de metodologia científica e participara avidamente das aulas de ciência nessa época, quando aprenderam noções de epistemologia, voluntariando respostas certeiras que fizeram os professores de ciência à época sorrirem, cheios de orgulho e expectativa. Devido a esse contexto altamente acadêmico e intelectual, Bernardo tiraria grande proveito do ambiente universitário; Wendy jamais cogitaria ingressar na vida acadêmica, e obter um diploma de Ensino Superior nunca estivera entre seus planos mais ambiciosos – quanto mais uma pós- graduação! A avó de Wendy lhe estendeu um colar com um pingente em forma de coração. A corrente parecia recente – era fina e reluzente, como se fosse nova. O camafeu nela pendurado era mais antigo, prateado e ricamente ornamentado, o coração repleto de ramos e rosas esculpidas nele, em alto relevo. Ao olhar os desenhos com atenção, a garota percebeu que os ramos, as folhas e as flores delicadamente desenhadas e ricamente ornamentadas compunham um rosto de perfil que parecia pertencer a uma mulher de cabelos longos. A garota abriu o camafeu; por dentro, havia mais desenhos feitos naquele mesmo padrão de linhas rebuscadas que se assemelhavam a ramas; no outro coração, atrás, havia sido desenhada uma flecha. — Que lindo, vovó… — suspirou a garota. — É de prata. Está na nossa família há muitas gerações. — Nossa… sério? — Pfff, é claro que não, minha filha. — ela fez sinal de pouco caso com a mão enrugada — Foi um presente de um caixeiro-viajante há muitos anos… muitos anos antes de eu conhecer seu avô. Ele apareceu numa noite particularmente fria; o pensionato da cidade estava fechado para reformas, ele não tinha onde ficar e estava passando muito mal, febril. Meu pai, seu bisavô, permitiu que ele dormisse em casa. Minha mãe e eu cuidamos dele. Ele não tinha ouro e nem prata, não tinha um centavo, só algumas poucas mercadorias do ramo dele, que ele ainda não havia conseguido vender. — O que ele vendia? — Tapetes. — Hum. — Mas ele tinha esse camafeu de prata e decidiu que eu o merecia… pelos “cuidados atenciosos que eu havia lhe dispensado”, ele me disse. E então me contou uma história sobre esse camafeu, que é a que vou contar agora. Ele me falou de uma princesa, em uma época muito distante, onde pessoas viviam de um jeito que nem imaginávamos… uma coisa é certa, não tinha encanamento e nem vaso sanitário naquela época, o que torna as coisas bem mais difíceis e mais porcas. Wendy riu. A avó continuou: — Era uma princesa de um reino muito poderoso. Ele tinha uma série de recursos minerais, campos férteis e o exército mais organizado e profissional de todos, o que, convenhamos, era alguma coisa. Recursos, terra e exército? É realmente alguma coisa, vamos combinar. Nada que não fosse exterminado com um surto de cólera, mas talvez não fosse comum beber água sem fervê- la antes, ou talvez a água fosse realmente limpa… enfim, estou divagando. O fato era que essa princesa era a filha única de uma rainha que havia morrido não sem antes dar à luz a vários filhos que não sobreviveram, sendo a princesa portanto a única sobrevivente e a última de uma série de natimortos. Essa princesa, então, era uma menina que cresceu num palácio exuberantemente luxuoso, mas assombrado pela morte. A mãe morreu muito cedo, ela foi criada por empregadas, o pai muito distante e muito ocupado… mas, para a surpresa de todos, ela floresceu como broto de primavera após um inverno muito intenso, um raio de sol após a chuva, o feixe brilhante de sol atrás de um nuvem carregada. E tenho de acrescentar que uma flor desabrochada em condições tão adversas realmente é muito bela. “Criada longe do pai, mimada pela criadagem que via nela o raio-de-sol que faltava àquelas bandas, muito frias e chuvosas como a noite em que o caixeiro-viajante bateu à nossa porta, a pequena criança cresceu livre como um menino plebeu, brincando na selva. Ela realmente se disfarçava de menino e perambulava pelo vilarejo local. Aprendeu a manusear o arco, fina arte da época, e obteve lições de esgrima às escondidas do pai. Era manualmente prendada, e não havia nada que não pudesse aprender a fazer. Bom, prendada como você, minha filha: não havia nada em que pusesse as mãos que ela não conseguisse aprender.” A avó tocou as mãos da neta enquanto falava. “Quanto à moça, continuou a perambular por aí, livre da vigilância do pai, herdeira única dele, cada vez mais bela. Nessa época, seu pai negociava com dois reinos, e estava a receber hóspedes de um deles – no caso, outro rei, e a elite de seu exército de confiança. Pois a princesa estava justamente a zanzar pelos prados do castelo quando viu a guarda estrangeira se aproximar e descansar nas sombras das árvores enquanto o rei visitante era recepcionado pela criadagem dentro do palácio… a audiência entre reis seria mais tarde, então o visitante precisava primeiro descansar. Esse rei era rei de um reino completamente diferente do da princesa – era um reino árido, desértico, escasso em recursos, que usava a criatividade de seu povo para sobreviver. Era conhecido como o reino do povo vermelho. Ao contrário do reino da princesa, não possuía um exército profissional – todos os habitantes, todos os povos vermelhos, homens, mulheres e crianças, sabiam lutar. Lutar lhes era uma segunda natureza. Se você era um caçador, um vendedor, um ferreiro, uma lavadeira… você também era um guerreiro. Esses guerreiros não possuíam tantos recursos e nem eram remunerados para guerrear, mas eram muito mais passionais, e não havia um único habitante que não se levantasse para defender o próprio território quando necessário ou para lutar pela própria liberdade.” — Por que eram conhecidos como “povo vermelho”? — Perguntei a mesma coisa, e o caixeiro me disse que era porque eles tinham pele e cabelos vermelhos. E porque eram passionais. A paixão, se tivesse cor, seria vermelha… embora eu sempre a imagine cor de fogo. “Essa princesa, por acaso, topou com um desses guerreiros, justamente o mais modesto deles, e se apaixonaram. Ele era de origem extremamente pobre, e só estava ali, integrando a guarda de elite de seu rei, porque acontecera de salvar a vida de um nobre, que lhe era eternamente grato. Eram amigos inseparáveis, ambos os soldados, o rico e o pobre. Assim, esse soldado plebeu estrangeiro, que fora alocado entre os mais nobres, e a princesa… eles se apaixonaram. Naquela noite, porém, houve a reunião entre reis, e o rei anunciou que a filha se casaria com o príncipe de um terceiro reino, mais rico que os dois primeiros. Esse terceiro reino era o reino de um povo conhecido como o povo belo, que era tão bonito quanto o nome dizia, e também muito inteligente, criador e produtor de tecnologia. Apesar de ser prometida para se casar com o herdeiro de um reino mais próspero, belo e pacífico que o seu, dotado de um ambiente mais confortável, a princesa não estava feliz, pois havia se apaixonado pelo soldado plebeu e estava completamente ciente de que, se revelasse isso a seu pai, não só não se casaria com ele como poderia até mesmo haver atritos entre o seu reino e o do povo vermelho… e seu pai provavelmente apressaria o casamento dela com o príncipe do povo belo. Assim, antes que o rei do povo belo aparecesse com o príncipe, a princesa e o soldado plebeu fugiram, acobertados pelo melhor amigo dele, e assim vagaram pelo velho mundo, vivendo aventuras que poderiam virar canções e compor uma boa epopéia.” — E viveram felizes para sempre? — Não. Mas… não era bem sobre isso a história. É sobre uma moça que seguiu o próprio coração e viveu intensamente, fazendo escolhas pouco convencionais — ela indicou o colar —, e teria sido supostamente em homenagem a ela que esse camafeu foi desenhado. É um coração, certo? Fala sobre seguir o coração, permitir-se sentir a vida, entrar em contato pleno com as próprias emoções. Enfrentar as próprias escolhas, mesmo quando elas remam contra a maré. Sentir emoção. Viver. — Se ela era uma princesa, terá sido justo para com o reino dela simplesmente fugir com o amor da vida dela em vez de representar o próprio País? — Ah, minha filha, isso é cabeça de burocrata que achava monarca feito de um tecido divino. Do tempo em que se pensava que uma pessoa cagava diferente do resto. Certa deve ter sido ela, que foi caçar a própria felicidade. Ela era uma mulher livre, acostumada a correr por aí descalça com um arco nas mãos. Acha que ela seria feliz casada com um burocrata, trancada em um palácio todo chique, defecando na fossa de ouro real? A garota riu, fitando o camafeu. — Este é o coração dela. O coração da coragem, da vida que pulsa apesar das adversidades. — concluiu a velha. — Era isso que o caixeiro-viajante queria dizer? Esta era a lição dele? — Sei lá. Ele estava meio grogue, coitado, com todo aquele balde de quentão que lhe servimos para aquecê-lo. Decerto inventou essa história meio bêbado para dar uma floreada no presente, depois de toda a hospitalidade que lhe oferecemos. Ele não podia pagar e nem retribuir à altura, certo? Então contou uma história. — E você guardou essa história por todos esses anos? — É uma boa história. Wendy riu. — Muito obrigada, vovó. É um excelente presente de boas-vindas à universidade. — Agora você pode esfregar na cara do Bernardo que você também tem uma jóia de família. Wendy riu, achando graça no modo de falar da avó.
ALGUMAS HORAS MAIS TARDE, estavam Wendy e Bernardo no carrinho de doces
da praça, diante da casa da garota, devidamente abastecidos de um par de churros cada um – de chocolate para Wendy e de doce-de-leite para Bernardo. Ela lhe mostrava a jóia, já devidamente presa ao pescoço. — Ela é pensada em cada detalhe… — comentou ele, impressionado — Cada detalhe! É uma moça, certo? — Acho que sim. — É meio abstrata, parece uma prancha de Rorschach. Mas, olhando assim — ele inclinou a cabeça para o lado, refletindo a jóia à luz do poste mais próximo —, lembra um pouco você. Por causa do pescoço. A garota mordeu o churros, fingindo indignação. — Vai começar o bullying! — exclamou ela, arrancando a jóia da mão do rapaz. — É sério, lembra bastante! Era bonito ser pescoçuda naquela época… — Não é exatamente o fim do mundo hoje em dia, certo? — Aí eu já não sei, vai mais da sua auto-estima… Wendy riu pelo nariz, ameaçando grudar chocolate no cabelo de Bernardo com um gesto de provocação; ele se defendeu imediatamente, alertando-a para o desperdício de churros, ao qual ela concordou. De fato, o pescoço da garota era evidente, mas não um detalhe que a aborrecia, embora lhe rendesse, na infância, apelidos como Girafa, Garrafa, Brontossaura e Gansa (nunca Cisne); ele era longo e estreito, atribuindo-lhe uma postura muito semelhante à de uma bailarina que se acentuava com o queixo delicado, a linha da mandíbula bem-delineada, os ombros estreitos e esculpidos, o busto reto, os braços delgados e arredondados e os pulsos finos. Naquela rara e bem-vinda noite quente de verão – já que fazia frio o ano todo nas montanhas –, em que provavelmente uma inesperada massa de ar quente havia despretensiosamente chegado à Serra, o pescoço de Wendy, pálido como o rosto, estava mais exposto que nunca, pois a garota usava uma camiseta justa de alça em apenas um dos ombros e prendera os abastados cabelos marrom- profundo e lisos em um coque frouxo no alto da cabeça que se desfazia lentamente, cedendo ao próprio peso. Bernardo era um rapaz de altura mediana, mais alto do que a amiga; tinha a pele morena, de um tom meio oliva, os cabelos castanhos muito curtos e cacheados, rosto com traços retos e olhos de um tom âmbar avermelhado que lhe emprestava uma expressão austera. A garota o achava com “ar de intelectual”, embora o amigo não usasse óculos. — Agora você vai usar jaleco e deixar o cabelo crescer para ficar com cara de cientista maluco? — Se quer saber, minha avó já tinha costurado um jaleco de algodão para mim. E você também vai precisar de um. — Eu? Pra quê? — Aulas de laboratório, nós dois teremos. — Oh — a garota fez uma careta; por essa não esperava. — Vai ser muito legal, e um laboratório não é muito diferente de uma cozinha, se quer saber. — Como isso é possível? — questionou ela, cética. — Usamos balança, sais, centrífuga, refrigerador, gel de agarose… e a galera do laboratório do meu pai usa um Bico de Bunsen para fazer café numa cafeteira a vapor. Você vai se sentir em casa. Wendy duvidava disso, mas apreciou a tentativa de Bernardo em tornar o laboratório um lugar aprazível à garota comparando-o ao funcionamento de uma cozinha. A partir daí, naquela memorável noite morna de verão, os dois amigos compartilharam expectativas e planejamentos sobre o futuro repleto de novidades que trilhariam; decidiram, ali mesmo, que comemorariam a aprovação no vestibular juntos, de modo a cortar despesas, e estipularam quem convidariam para a festa – seus respectivos pais e avós, alguns conhecidos, professores e poucos colegas. Desejavam, realizando uma única comemoração conjunta, economizar dinheiro para a nova vida que os aguardava. A semana que se seguiu àquela foi de grandes festividades; a festa modesta pensada por Wendy e Bernardo transformou-se em um memorável banquete megalomaníaco n’O Galpão que mobilizou a cidade inteira – desde os parentes próximos dos dois amigos bem como colegas e professores (orgulhosos) aos velhos amigos da vizinhança que haviam visto os dois jovens crescerem, como dona Abigail, a simpática senhora de cujos gatos Wendy era madrinha, e o Tobias, o supersticioso (e higiênico) vendedor de churros da praça. Como se conspirasse a favor dos recém-aprovados no vestibular, a noite foi morna e pouco ventosa, permitindo a Sheila proporcionar um jantar à luz de velas nas redondezas arborizadas do restaurante que haviam sido distribuídas pela praça com a ajuda de Fernando, o jornaleiro, e Doralice, a leiteira. Wendy não soube dizer qual foi seu momento preferido naquela celebração; quando seus professores do Ensino Médio leram um discurso emocionado para os dois jovens, comovidos por tê- los inspirado a seguirem carreira em uma renomada universidade; quando a professora de ensino fundamental da garota lhe trouxe uma lembrança dos tempos de infância, ou se foi o cartaz-surpresa repleto de mensagens carinhosas de vizinhos e amigos. E, para coroar, Helga, uma das donas de plantações de morangos da região, presenteou os amigos com uma deliciosa torta de morango que Bernardo passou a festa inteira beliscando e escondendo de Fred, o gato. Era o fim de um longo, familiar e sedimentado ciclo, Wendy sabia disso, e não era sem um pouco ansiedade que pensava no que viria a seguir no instante em que botava a cabeça no travesseiro. Sua fonte de alívio, nesses momentos, era lembrar que Bernardo provavelmente sentia o mesmo. Dois – Cidade do Vale –
N as semanas seguintes, Wendy cuidara de dar início aos processos
burocráticos para aquisição de bolsas de estudo, vale-refeição no refeitório, e até pleiteou uma vaga na moradia estudantil, já que um deslocamento diário entre Cidade do Vale e a pequena Serra, onde vivia com sua família, embora não fosse impossível, seria muito cansativo. Não foi sem resistência que seus pais souberam de sua inscrição no catálogo de moradia do campus. — Tem ônibus a cada vinte minutos de Vale para Serra nos horários de pico. — ponderou sua mãe, no jantar; a alegria pela aprovação da filha ainda estava presente na atmosfera, um tanto arrefecida pelas iminências de mudanças na estrutura do lar e na rotina da família — O filho do Josias cursou o ensino técnico inteiro dele assim, e olha que ele trabalhava durante o dia em Cidade do Vale. Saía cedinho e retornava à noite. — E você pode economizar algum dinheiro dessa forma. — continuou seu pai — Morando em casa e obtendo o auxílio-refeição da universidade, você economiza enquanto trabalha. — Ainda é muito cansativo. — insistiu Wendy — Se eu puder morar lá, poderei organizar melhor meus horários. Ainda que os ônibus passem com freqüência, é uma hora de viagem, o que significa duas horas de viagem todos os dias, fora a baldeação, a pressa de sair correndo para não perder o ônibus à noite. Se eu não tiver de me preocupar com esse deslocamento, poderei flexibilizar meus horários. Wendy sabia que a resistência de seus pais em aceitar a possibilidade de a filha morar fora decorria mais das mudanças que esse fato acarretaria no seio familiar do que da dificuldade que a filha teria em economizar dinheiro. Não teriam mais Wendy para ir e voltar para casa, jantar em família, conversar, fazer companhia, ocupar aquele espaço; não ouviriam a filha digitando ao computador, não a veriam vendo televisão ou brincando com Fred. E ela não acompanharia as atividades no restaurante. A garota também sentia o impacto dessa mudança repentina após anos e anos de uma rotina quase imutável; de repente, o simples fato de ser aprovada no vestibular abria-lhe um mundo novo de possibilidades. Ela gostaria de trabalhar em outros lugares, experimentar estagiar em Medicina, trabalhar em outros restaurantes, bistrôs ou cafés, conhecer novas pessoas, adquirir novas experiências; ao mesmo tempo, sair da rotina confortável ao qual estava tão habituada, que tanto apreciava e que tão pouco lhe exigia parecia-lhe um esforço enorme. Contudo, já que estudaria em Cidade do Vale, estava completamente consciente de que sua rotina seria mais proveitosa caso pudesse residir por lá e visitar os pais em finais de semana específicos. No fundo, eles também sabiam disso; não havia mais como adiar a mudança em suas vidas, por isso logo concordaram com a decisão da filha e torceram para que ela conseguisse uma vaga na moradia estudantil. Foi uma surpresa para a garota constatar que, ao contrário da lista de aprovados no vestibular, a lista de aprovados no novo cadastro de moradia era publicada manualmente em um mural, na entrada do campus, dois dias antes de aulas começarem; por que não publicavam na internet em plena era digital, era um mistério – e naquele momento, insolúvel. Sentiu medo; e se não conseguisse uma vaga? O que faria naquela primeira semana? Onde poderia morar? Acordou cedo no dia em que foi publicada no mural da universidade a nova lista de pessoas aptas a se mudarem para a moradia do campus. Enquanto tomava o café, sua mãe a advertiu: — Não se esqueça de colocar o casaco; o dia está feio. Sheila gostava de céu azul, sem nenhuma nuvem – o dia não poderia ter amanhecido mais diferente disso. Wendy vestiu um casaco impermeável e encaminhou-se para o terminal rodoviário minúsculo de Cidade da Serra, cumprimentou Vanda, a vendedora de pipocas que trabalhava na entrada do estabelecimento, e embarcou às sete e meia num Amarelinho – assim chamado pelos moradores os ônibus que levavam os habitantes de Serra a Cidade do Vale. Como havia pessoas que de fato preferiam ou necessitavam morar em Serra e trabalhar na grande cidade, o ônibus lotou facilmente – o Amarelinho funcionava como um transporte urbano, porém, por ser interurbano, era confortável como um ônibus de viagem e possuía a mesma estrutura deste – poltronas reclináveis, bagageiro. Era comum as pessoas dormirem por toda a viagem, durante aquela hora de trajeto que lhes restava antes do destino final – o início da labuta diária. Wendy, contudo, não dormiu; estava preocupada demais com a necessidade de conseguir uma moradia na cidade. Havia se cadastrado, nas redes sociais, em grupos estudantis de carona e de moradia, contudo ainda não se sentia confortável para perguntar em algum fórum se alguém estaria procurando colega de quarto para dividir as despesas do imóvel. Não se sentia muito habilidosa para lidar com pessoas desconhecidas, especialmente em um contexto tão cheio de novidades. A Cidade da Serra localizava-se nas montanhas ao sul, as mais baixas de uma cadeia montanhosa formada por dobramentos modernos e conhecida como Cordilheiras Nebulosas devido tanto à névoa predominante na região em virtude de constantes nuvens de chuva quanto à capacidade de as montanhas mais altas alcançarem as nuvens. A pequena e simpática cidade fora toda construída em uma encosta voltada para o sul, com estradas serpeantes e vista para as planícies mais baixas ao sul da cordilheira, onde o caudaloso rio proveniente do norte e que se enveredava pelas montanhas, o velho Níobe, acalmava-se e formava amplos espelhos d’água, descansando à sombra de árvores em forma de cone que amarelavam durante o outono. Já a Cidade do Vale localizava-se mais ao norte das cordilheiras, ocupando um vasto vale de altitude mais elevada que a própria Cidade da Serra, crescendo em direção às montanhas circundantes, sendo portanto mais fria que a Serra e, por concentrar no vale das montanhas mais altas as nuvens de chuva que atravessavam a Serra, mais chuvosa também. À medida que o Amarelinho se aproximava da próspera Cidade do Vale, a vegetação tornou-se mais verde, densa e úmida, e o céu, mais nublado; uma chuva fina apanhou os passageiros de surpresa, fustigando o vidro da janela. Wendy havia escolhido propositalmente um assento ao lado da janela, já que adorava observar a paisagem. Seu companheiro de leito cochilava sonoramente ao lado, indiferente à paisagem silvestre ricamente arborizada, mas a garota recusou-se a perder cada detalhe do espetáculo matinal e observou as gotas despencarem do baixo firmamento, invisíveis quando vistas de frente porém notáveis quando a garota olhava para cima. O frescor que os dias nublados lhe transmitiam era exatamente o que a garota denominava amor verdadeiro. O dia está lindo, a garota pensou, sorrindo com enlevo. O ônibus entrou na cidade após contornar alguns prados que substituíam as regiões mais selvagens; a garota sabia que, um pouco mais ao norte, encontraria as Sete Cataratas Delaverianas, no entanto a travessia era intransponível por automóvel. Assim, o ônibus optou pelo eixo sudeste, adentrando pela estrada que conduzia ao amplo palacete cor de terracota com imponentes colunas claras que era Instituto Balzaquiano, um tradicional colégio de elite local, e desembocou nos subúrbios sudestinos, contornando o centro histórico da cidade, pois as ruelas deste tornavam intransponível o transporte urbano. Assim, o ônibus adentrou o moderno Novo Centro, mais plano e espaçoso, passando pela Prefeitura, pela Biblioteca Municipal e pelo Museu da Cidade, direcionando-se para o norte da cidade, mais precisamente para uma região denominada Vila Universitária. A Vila Universitária era um complexo urbano formado pela universidade em si no centro, parques turísticos a oeste e também ao norte (o Parque das Cerejeiras), comércio ao sul e bairros residenciais a leste. Apesar do nome, a atmosfera predominante no setor não era exatamente universitária, pois o campus em si, embora fosse completo, era compacto, formado por prédios muito próximos, ladeado pelo Parque das Cerejeiras a oeste e pelos pequenos bairros residenciais a leste. A nordeste do campus e acima dos bairros residenciais, havia um bairro amplo formado por uma floresta de arrojados edifícios empresariais, cujas empresas estabeleciam vínculos estreitos com a universidade, absorvendo seus melhores alunos. Esse bairro era conhecido como Vale de Vidro em decorrência da alta quantidade de vidro a compor as fachadas dos prédios contemporâneos nessa região, refletindo a luz solar durante a manhã. Quando o Amarelinho chegou ao seu destino final, na Avenida Universitária, após traçar uma linha de sul a norte pela cidade, já estava quase vazio – o passageiro ao lado de Wendy saltara no centro. A garota desceu em um ponto particularmente arborizado, na calçada externa ao parque, e caminhou sentido leste, no sentido oposto ao do ônibus, até obter uma primeira visão do campus. A Avenida Universitária cortava a região universitária de leste a oeste e era ladeada por largas calçadas que contornavam a área externa do parque, a fachada do campus e o sul dos bairros residenciais. Um letreito de metal cor de ouro velho, com a logo da universidade – constituída de suas iniciais – anunciava, em letras garrafais, a entrada do campus, à frente de um pedestal com a estátua metálica em homenagem a um de seus fundadores. A Universidade de Cidade do Vale era composta por um complexo de edifícios um tanto próximos, conectados por corredores suspensos, e rodeada por um cinturão verde formado por árvores e um jardim cuidadosamente aparado. Jovens, provavelmente universitários, iam e vinham pela calçada do campus, sozinhos ou em grupos, conversando animadamente em uma reconhecível atmosfera festiva de início de semestre. Os jardins das fachadas dos prédios estavam separados da larga calçada da Avenida Universitária por uma sombreada estradinha de tijolos para transeuntes à esquerda (com bancos de madeira e lixeiras a intervalos regulares) e um estacionamento à direita, e havia um bosque delimitando o território universitário por toda a sua extensão, inclusive separando-o do parque à esquerda. Wendy seguiu a larga estrada serpeante de tijolos que levava ao edifício central; à medida que se aproximava do complexo, percebeu que o nome de cada faculdade estava estampado na fachada de cada prédio, em letras garrafais metálicas e reluzentes. O prédio central, vinho, era a Reitoria ou Prefeitura do Campus; à direita dele, um pouco atrás, um prédio cor de carne ricamente ornamentado, conectado ao primeiro por corredores suspensos, era identificado como Faculdade de Ciências Econômicas (FCE); o prédio à esquerda da Reitoria, por sua vez, de um verde-abacate já antigo e desbotado – um pouco maior que os dois primeiros e visivelmente muito mais labiríntico – era o Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS). Um mapa ao lado da entrada da Prefeitura, localizado em um painel de vidro, continha a planta do campus, localizando os prédios de acordo inclusive com as cores reais deles. Wendy o estudou por alguns instantes; aparentemente, em tons de verde, à esquerda, estavam os prédios relacionados à Biologia e à Saúde; ao centro, atrás da Prefeitura e da Biblioteca Central, o complexo de Humanas, em tons de amarelo; à direita da Prefeitura, o prédio de Economia e, na extrema direita do campus, em tons de azul, o complexo de Exatas. As escolas de Belas Artes e de Música estavam localizadas ao fundo, em tons rosados e alaranjados. O Complexo de Biologia e Saúde era o maior do campus; à esquerda do prédio ICBS, havia um edifício ainda maior, de vários andares, com laboratórios de pesquisa; ao fundo de um gramado intitulado Pátio da Biologia – por ser um jardim cercado de prédios desse circuito – havia um edifício hexagonal verde-siciliano identificado como Laboratórios de Ciências Farmacêuticas; ao fundo do pátio, estava o Centro Didático em verde-musgo, e, à direita do pátio, ao fundo da Biblioteca Central e ao lado do Complexo de Humanas, com quem dividia passarelas, estava o gigantesco Complexo de Saúde, em tons de verde-lima. A garota entrou no hall da Reitoria, composto por escadas, elevadores, bancos, lixeiras e plantas em vaso; por um instante, pensou em pedir informação ao porteiro no balcão lateral de entrada, mas não sentiu necessidade; no instante em que pisara no tapete do hall, vira um par de portas de vidro abertas à frente que desembocavam em um pátio interno, onde a garota divisara uma aglomeração estudantil em torno de uma série de painéis. Dirigiu-se ao lugar e imediatamente localizou o mural que tanto procurava. Havia vários murais dispostos nesse saguão, apinhados de avisos e cartazes dos mais diversos tamanhos, formatos e cores; a considerar, contudo, pela multidão que se acotovelava diante de um deles, fotografando-o e conversando entre si aos gritos, a garota deduziu sem dificuldade de que teriam pregado ali a lista de aprovados ao uso da moradia estudantil. O novo problema que acabara de surgir para a garota residia em conseguir se espremer no bolinho estudantil e verificar se conseguira uma vaga; calculando onde, na lista composta por várias colunas de papéis pendurados, estariam as suas iniciais, ela se encaminhou para o lado direito do bolinho humano. — Wendy! Wendy! — alguém a chamou. Ela logo reconheceu o sorriso de orelha a orelha de seu amigo de longa data, Bernardo. — Bernardo! — os dois se abraçaram, eufóricos. — Você ainda acredita que passamos? — Não, às vezes acordo pensando que vou ter que esperar pelo ano que vem. Ele fez uma careta. — Que pesadelo. Você já se matriculou, certo? O que faz aqui? Ela apenas apontou o mural apinhado de jovens, e ele fez um “ah”. — E você? — ela perguntou. — Vim procurar vagas de iniciação científica e de estágio. — ele esfregou as mãos — A vida acadêmica nem começou para nós, mas já começou para um monte de professores que têm bolsas e projetos à disposição. — Você vai morar aqui ou voltar para Serra? — Consegui me estabelecer em uma república masculina aqui perto. É bem perto, para falar a verdade, quase dentro do campus. Vim semana passada com meu pai, que precisava checar umas amostras, encontrei um cartaz ofertando uma vaga e me candidatei. Eu não sabia que você tinha mudado de idéia… se soubesse, teria procurado um apartamento para a gente! Aliás, Wendy, posso ver agora, mesmo, posso dar um jeito de sair da república, eles conseguem outra pessoa rapidinho… — Fique tranqüilo, Bernardo. Eu ainda não havia falado nada porque eu mesma ainda não tinha certeza se deveria me mudar, me candidatei a uma vaga ainda na dúvida. Para falar a verdade, só decidi de vez o que queria fazer ontem. Como Bernardo já havia puxado o celular para consultar possíveis apartamentos disponíveis, ela o deteve. — Um apartamento para duas pessoas ficaria caro para mim. — explicou ela — Ou teria de ser muito longe daqui. Aqui não é exatamente a área mais barata da cidade, não é… — Por que você não me falou ontem que moraria em Vale? — Bom, meus pais quase não deixaram, mas meu pai cedeu primeiro e mudou a cabeça de minha mãe. Duas horas de viagem e trinta minutos de baldeação? Tsc — ela balançou a cabeça — É muito tempo. — Fora os atrasos… — emendou o amigo — Eu sei. — Bem, vamos ver se estou na lista. Os dois amigos se acotovelaram entre a multidão interminável de estudantes que se revezavam para fotografar os próprios nomes ou os de amigos. Se fizessem uma fila e fotografassem o que lhes apetecia, talvez o espetáculo não durasse tanto, pensou a garota, mas não; tinham de ir e voltar e conversar entre si, atravancando o caminho e fazendo de uma simples consulta a uma lista um verdadeiro evento social. Não que fosse difícil chegar na dianteira; pequena como era, a garota espremeu-se na multidão até chegar ao canto direito do painel, onde presumivelmente encontraria seu nome. Entretanto, havia apenas dois nomes com a letra “W”, e nenhum era o seu. O seu, na realidade, figurava no cadastro pendente, mais precisamente em vigésimo lugar. A lista nunca avançava tanto, já que a moradia estudantil era realmente concorrida. — Droga! — suspirou ela — Não consegui. — Eles dão privilégio a quem é realmente de fora. — ponderou Bernardo — Ouvi meu pai comentando isso uma vez… se percebem que você é da Serra, eles não dão preferência. Você já viu o quadro de avisos? Sempre tem alguém desesperado para dividir apê a esta altura do campeonato. — Não, não conheço ninguém… — a garota sibilou enquanto se afastavam da multidão – Não me sinto à vontade para fazer isso. — Tempos drásticos exigem medidas drásticas. — entoou ele — E você pode ficar comigo, se não tiver ninguém. Consegui um quarto individual, ele tem espaço para mais um colchão. Posso ver com os caras se eles aceitam garotas… — É sempre uma possibilidade. Os dois caminharam lentamente rumo ao quadro de avisos, ponderando sobre as possibilidades que Wendy teria para se mudar da Serra. Havia uma única pessoa diante daquele gigantesco painel composto de um mosaico de ofertas de moradia, aulas particulares e eventos diversos – uma única garota de macacão jeans que pregava ali o último anúncio e que chamaria a atenção de qualquer transeunte em virtude do volumoso violoncelo que carregava nas costas. Se o instrumento em si parecia bastante pesado, sua dona parecia forte o suficiente para carregá-lo; era um pouco mais alta que Wendy, com ombros firmes, braços grossos sob a blusa listrada, pescoço largo sob o rosto de base triangular, compondo um biótipo forte que lembrava a Wendy vagamente mulheres retratadas em pinturas renascentistas. Ao terminar de pregar algum anúncio, ela ergueu os olhos para a multidão à distância, de modo que seu olhar recaiu sobre o casal. — Oi! — ela sorriu de forma simpática; seus cabelos, ondulados e finos, de um tom indefinido, estavam cortados rente ao maxilar e eriçavam mesmo sem vento — Vocês conhecem alguém que tenha interesse em alugar um quarto num apartamento, para rachar o aluguel em quatro? Somos três até agora. Wendy e Bernardo entreolharam-se e se aproximaram da garota. — Vocês aceitam caras? — perguntou Bernardo. A garota ergueu as sobrancelhas. — Não me importo que sejam caras, mas não saberia dizer com certeza se aceitaríamos, não discutimos essa parte quando estabelecemos os critérios — ela se justificou, indicando meio a esmo o anúncio no painel. Wendy adiantou-se para lê-lo em voz alta: — “Vaga para duas pessoas. Pré-requisitos: suportar assovios, cantoria e ensaios musicais; ser asseada; respeito à propriedade alimentícia privada (geladeira comum); cumprimento rigoroso com honorários; namorados (e derivados) não pernoitam.” — Esse primeiro item é de minha autoria — afirmou a garota com um sorriso orgulhoso —, mas elas me convenceram de que os outros quatro requisitos são importantes também. — Imagino que não queiram alguém que pague em atraso ou que não tome banho. — comentou Bernardo baixinho. — Posso ver com elas se aceitam rapazes como moradores. Não vejo diferença alguma, de minha parte, mas posso ver com a Pri… — Não precisa, é para mim. — explicou Wendy. — Você é um rapaz? — perguntou a garota, erguendo as sobrancelhas inocentemente, curiosa. Seus olhos também eram de uma cor imprecisa como os cabelos. — Não, Bernardo estava tirando uma com a sua cara. Eu sou uma garota. — repetiu, sentindo-se muito tola por reafirmar o óbvio. — Ah — o rosto dela se desanuviou — Entendi. Ora, posso levar você para conhecer nossa casa agora. É perto daqui. — Só tem uma coisa: vocês aceitam animais? — Bom, não podemos aceitar nenhum que esteja em extinção ou mesmo que seja silvestre, afinal é ilegal, não é? E é difícil restituí-los quando convivem com humanos por tanto tempo… a menos que você planeje devolvê-lo o mais rápido possível para a natureza, aí sim podemos pensar… — Eu tenho um gato. — explicou Wendy rapidamente — E ele é meu. Posso até pensar em deixar com meus pais, mas ele é tecnicamente meu, eu gostaria de levá-lo comigo. Posso me responsabilizar por telar as janelas e tudo o mais. — Podemos ver isso. Gosto da idéia, ter alguém com um gato em casa é quase se como fosse nosso gato também, e nunca tive um gato antes. — comentou ela, sonhadora. Bernardo fez uma careta de “ahn?”, evidenciando um misto de confusão e desagrado, mas Wendy riu; havia gostado do jeito daquela garota, que, por sinal, se chamava…? — Sou Loredana. — apresentou-se ela voluntariamente — Devem estar se perguntando isso… eu sempre me esqueço de dizer meu nome. Na realidade, já esqueci até meu próprio nome, só percebi na terceira vez em que me chamaram de Otávia… o que não é ruim, gosto de Otávia, deve ser por isso que acabei me apresentando assim quando esqueci meu nome. Pela expressão no rosto de Bernardo, provavelmente ele estava se perguntando se ela tinha algum parafuso fora do lugar, porém somente Wendy compreendeu isso por conhecer o amigo muito bem; recitando o próprio nome e o dele, a garota acompanhou Loredana rumo à sua possível futura moradia, ambas seguidas por um Bernardo particularmente aturdido. O apartamento de Loredana se localizava no bairro vizinho ao da universidade, o Laranjeiras, mais precisamente em um conjunto de dois edifícios baixos, paralelos – de quatro andares - com terreno em comum. Um canteiro separava o terreno da calçada, e, do lado interno, havia um pátio interno comum aos dois prédios, onde havia portas de fundos geminadas, pertencentes aos apartamentos do pavimento térreo, e uma série de pertences – bicicletas, cadeiras, mesas de varanda, roupas penduradas em varais e vasos de plantas; havia até mesmo um cone de sinalização ao lado de uma das portas dos fundos, provavelmente roubado por seus moradores em alguma madrugada memorável. Em vez das portas de fundos, nos andares superiores havia janelas pertencentes à área de serviço, onde os moradores penduravam suas roupas. Um muro alto estabelecia o limite do pátio interno, tornando-o acessível por um vão entre o muro e a lateral dos prédios. — Quem mora no térreo tem melhor aproveitamento do pátio interno — explicou Loredana — E nós moramos no térreo. — emendou, com um sorriso satisfeito. Entraram pelos fundos. Era um apartamento minúsculo e simpático, dotado de todos os itens básicos para sobrevivência na modernidade e alguma decoração simplória certamente obtida de uma promoção nas lojas mais baratas do centro. Apenas um grande quadro, ocupando sozinho uma parede estreita, destacava-se dos demais itens: consistia numa arte abstrata em cores vivas. — Fui eu quem fez. — explicou Loredana, indicando o quadro. — Bem… expressivo. — comentou Bernardo, lacônico — Talvez uma demonstração em carne e osso do movimento pós-modernista que impera nas galerias da atualidade. — Acho que não… eu só estava brincando com umas tintas velhas, o prazo de validade estava expirando e eu precisava usá-las. — replicou ela, dando de ombros — Eu não sei desenhar. — Você meio que acaba de provar meu ponto. — Não iria exatamente para um museu ou uma galeria de arte, não é? — Você ficaria surpresa com o que acaba indo parar em museus. — Bom, eles têm um porquê de estarem lá, não é? — Claro que têm. — concordou ele e, adiantando-se, sibilou no ouvido de Wendy — Grana. — e continuou a circular pelo apartamento, observando-o. — A geladeira é comum, cada uma respeita as posses da outra… Priscila é bem rigorosa com os iogurtes naturais dela, até porque são caros. Mas, se você quiser, pode trazer seu frigobar e instalar no quarto, isso se você quiser um quarto só para você. — Quantos quartos há na casa? — Três. Mas Joana e eu dividimos um deles, não temos dinheiro para bancar um individual. Preferimos alugar para alguém que possa pagar mais. Quer ver o seu? A garota assentiu, e os três rumaram para o quarto. Havia nele uma cama sem colchão e um armário embutido. A janela era voltada para os fundos, para o pátio interno. — Parece ótimo. — disse Wendy, sorrindo; atrás de si, Bernardo mexia nos armários. — Nenhum mofo, ok. — anunciou ele, decidindo também revistar o vão sob a cama. Provavelmente, ele estaria preocupado com a incidência de luz natural no ambiente. Wendy esperou pacientemente o amigo investigar cada centímetro do quarto até se dar por satisfeito. — É um excelente quarto. Tem bastante privacidade, acho. — comentou Loredana — Não tem a vista para a rua. — É, parece uma caverninha. — tornou Bernardo. — Gosto de caverninhas. — replicou Wendy, sorrindo, aliviada.
NA VÉSPERA DA PRIMEIRA SEMANA DE AULAS, Wendy bateu na porta de sua nova
casa com uma mochila, duas malas e uma gaiolinha de onde se via apenas dois grandes olhos amarelos. Bernardo havia pego o carro emprestado do pai e levado a amiga à república. Como ele mesmo precisava buscar o pai no laboratório logo em seguida, pois este havia esquecido na sexta-feira um experimento em andamento importante demais para ser interrompido apenas na segunda, não poderia ficar para ajudar a amiga a levar as malas para o quarto. — Olá! — saudou-a Loredana, abrindo a porta de pijamas e pantufas — A sua chave está aqui do lado, você pode ficar com ela de agora em diante. — Obrigada. — Quer ajuda com essas malas? — Vai me poupar uma viagem e meia… Loredana segurou com firmeza uma mala grande e pesada em cada mão. — Você é bem forte. — comentou Wendy, olhando para os braços desnudos e roliços da garota. — Benefícios adquiridos no Departamento de Música… quando seu instrumento é grande demais para ser carregado por aí e pequeno demais para ser deixado em um local fixo. Então… esse é o Fred? — ela viu a caixa de transporte azul nas mãos da garota. — É… ele está um pouco assustado, vou soltá-lo no quarto, com a porta fechada. Correu tudo bem com a instalação das telas? — Um vizinho com enxaqueca quase matou a gente, mas sobrevivemos. Ele sabe exatamente a quantidade de furos na parede que foram feitos, você pode perguntar a ele se um dia tiver curiosidade. Pensando que não havia hipótese alguma de um dia obrigar o vizinho queixoso a reviver episódio tão desagradável com tal pergunta, Wendy apenas disse: — Sinto muito pelo barulho, por todo esse transtorno… — Nah, foram só uns furinhos… mas a Priscila não quis que instalasse rede no quarto dela, se o Fred entrar lá, ela vai expulsá-lo. — Ela não gosta de gatos? — Não ama, mas também não se opõe a eles. Ela não gosta mesmo é de não ter dinheiro para pagar o aluguel. Disse que, se gatos são tão higiênicos quanto dizem, está tudo bem. As duas entraram no novo quarto de Wendy; uma vez transportada toda a bagagem para o cômodo, a garota fechou a porta e soltou Fred, que se esgueirou pelo quarto, desconfiadíssimo, explorando tudo antes de se acomodar sobre a cama da garota – uma bolinha preta dotada de duas minibolinhas amarelas. — Ele parece um bruxinho! — comentou Loredana, deliciada — Dizem que garotas que têm gatos pretos são bruxas. Você é? — Não que eu saiba, mas pode ser que, um dia, chegue uma carta com essa revelação. Ou um padrinho desconhecido, vindo lá dos confins do universo, para me dar a notícia… — O que você faria se fosse uma bruxa? Wendy hesitou; nunca havia pensado nisso. Loredana fazia perguntas um tanto aleatórias. Se Bernardo estivesse ali, seria o momento em que ele faria cara de quem estaria sofrendo de má digestão, como sempre fazia quando alguém perguntava algo que lhe evocava tantos pensamentos sarcásticos simultâneos que ele não saberia escolher qual deles emitir primeiro. — Acho que eu faria uma casa toda de doces. — Como uma bruxa malvada? — Não, eu apenas comeria os doces. Deixaria as pessoas comê-los… e usaria minha varinha para retorná-la ao normal no fim do dia, para que pudesse comer de novo no dia seguinte. E afastaria as formigas dela, também. Por um momento, pensou que Loredana acharia aquela idéia tosca; era uma idéia tosca, para uma pergunta sobre a qual nunca havia pensado antes. Entretanto, Loredana pareceu apreciá-la. — Nunca tinha pensado nisso… — Loredana refletiu — Eu regeria uma orquestra de instrumentos sem pessoas, no ar. — Você pensou nisso agora ou vem planejando há algum tempo? — Ah, eu já pensei nisso antes. Na realidade, eu sempre quis voar, sabe? Então pensei: por que não tocar violoncelo voando? E, pensando mais um pouco, tive a idéia da orquestra só de instrumentos, regida por uma varinha. — É uma idéia interessante. — concordou Wendy, abrindo uma das malas e retirando uma roupa de cama. — Vai arrumar sua cama agora, com o gato em cima? Coitadinho, está tão confortável. Fred havia enrolado as patinhas dianteiras para dentro do corpo, o peito felpudo estufadinho enquanto pestanejava serenamente, ronronando. — Não, eu só jogo a colcha por cima, fazendo calombinho felino. Veja. — e a garota estendeu a colcha sobre o gato — Está vendo? Calombinho de gato. — Você tem uma colcha de dálmatas? Pensei que seria de gatinhos. — comentou Loredana, observando a estampa coalhada de filhotes de dálmatas. — Minha mãe me deu. Quando criança, eu era a louca dos dálmatas, até tive uma festa de aniversário temática. Meus pais nunca se esqueceram disso… — E então eles pensam que você gosta deles até hoje. Você gosta? — Gosto, mas descobri que tenho muito mais facilidade para lidar com gatos do que com cachorros. Cachorros são muito… impulsivos, agitados, barulhentos, carentes, inoportunos, inconvenientes… já gatos são mais quietos, comportados, independentes… independentes, mas muito companheiros. — O Fred é um bom gatinho, não é? — Loredana fez um cafuné no calombo menor, que era a cabeça do felino; ele ronronou em aprovação — Tô com fome. Quer comer alguma coisa? — Sim, trouxe umas bolachas. — Vai soltar o Fredinho na casa? — ela realmente havia se afeiçoado ao gato. — Não, vou deixá-lo se acostumar com o meu quarto primeiro. As duas saíram do quarto, Wendy fechando a porta atrás de si. — Então… seja bem-vinda à Depenarq! – exclamou Loredana, erguendo os braços no meio da cozinha. — Depê, o quê? Que nome é essa para uma república? — É uma abreviação de “Depê Na Arquitetura”. — Por quê? — Olha bem para a divisão de cômodos deste apartamento, Wendy. A pessoa que projetou isso aqui certamente pegou dependência em alguma disciplina na Faculdade de Arquitetura. Wendy riu, olhando para os lados. Não deixava de haver alguma verdade no que Loredana dissera; cada prédio continha dois apartamentos por andar; entre as portas de cada apartamento, havia as escadas de dois lances que conduziam ao andar superior. A divisão de cômodos de cada apartamento era estranha; a porta de entrada do apartamento já oferecia uma visão para a cozinha, cuja janela dava acesso ao pátio interno, e um espaço para a sala à direita, cuja janela se localizava na parede da fachada; a janela à esquerda da porta de entrada, de frente para a rua, pertencia ao quarto da frente, cuja porta estava localizada na parede à esquerda da cozinha. O banheiro separava esse quarto da frente do quarto dos fundos, por sinal o maior da casa. Do outro lado da cozinha, na parede oposta, separando a cozinha da área de serviço, estava o quarto de Wendy, cuja janela também dava para o pátio interno e cuja porta dava acesso à cozinha. Se a pessoa estivesse na sala e contornasse a sólida parede a ela defronte – onde se encontrava o quadro de Loredana – encontraria a área de serviço e a porta para o pátio interno. Em outras palavras, não havia a lógica comum de muitos apartamentos, que se iniciavam pela sala que tanto conduziria a uma cozinha interligada à área de serviço quanto ao corredor de quartos e banheiros; os quartos estavam agrupados em torno da cozinha, um deles separando esta da área de serviço. Ao menos a janela do banheiro não dá para a cozinha e cada quarto tem uma janela realmente útil, pensou Wendy. O basculante do banheiro dava vista para o vão sob a escada do prédio. Nesse instante, alguém saiu do quarto da frente, trazendo Wendy de volta à realidade. Era uma garota magra, bronzeada do verão, os cabelos escorridos e longos tingidos com luzes. Era visivelmente vaidosa pelas unhas de gel cor de uva e pelos olhos marcados com resquícios de lápis de olho. — Priscila, esta é a Wendy. Ela é caloura de Medicina. Wendy, esta é a Priscila, segundo ano de Engenharia Química. — Oi. — disse ela, parando diante de uma das cadeiras da mesa, o olhar distante. Loredana retirou uma pequena coleção de canecas esmaltadas coloridas do armário e um pote de manteiga da geladeira. Depositou os itens ao lado do pão, sobre a mesa, enquanto Wendy despejava suas bolachas em um pote. — O que houve? — inquiriu Loredana naquela tranqüilidade sonhadora que acalmava Wendy e incomodava Bernardo. — Nada. — Priscila meneou a cabeça nervosamente, indicando que obviamente havia algo de errado. — É o Marco? Ouvi vocês discutindo no celular mais cedo… Como Priscila se recusasse a responder, Wendy perguntou timidamente: — Eu posso sair para vocês conversarem com mais privacidade… — Não, não tem nada a ver. Até porque você vai viver com a gente de agora em diante, não há muito sentido em esconder nossos problemas de você… além disso, membros da Depenarq unidas jamais serão vencidas! Wendy sorriu de leve. Loredana voltou-se para Priscila: — Que que aconteceu, Pri? — Marco. É porque não consegui aquela vaga no pensionato de que falei. — Você queria mesmo ir para o pensionato, não é? — Nã… é, queria, fica do lado da faculdade, refeição e roupa lavada, quarto individual por um valor relativamente baixo, ainda que mais caro do que aqui… a casa é bastante bonita, grande, mas não é que não esteja gostando daqui. Só que vocês iam ter que arranjar ainda outra pessoa para ficar no meu lugar, ia dar um trabalho… mas o Marco queria que eu fosse para o pensionato de qualquer forma, ele acha mais seguro, está preocupado comigo, com a minha rotina, com meu desempenho na faculdade. Aí a conversa foi chegando num rumo em que a gente meio que discutiu. — Ele está preocupado com o quê? — questionou Wendy. — Ladrões. Invasores. Assediadores. Esse tipo de coisa. E também com o excesso de responsabilidades de se morar sozinho, mesmo em república… quero dizer, sou eu que organizo as contas da casa. Não teria todo esse trabalho morando em um pensionato, só precisaria me ocupar dos estudos, teria regras. — Ele também não gostou da festa. — lembrou Loredana. — Que festa? — Wendy quis saber. — A Lúcia, do quarteirão da frente, deu uma festa, e fomos convidadas porque nos esbarramos ali no quintal, quando eu estava recolhendo umas roupas no varal. A gente conhecia um monte de gente e ainda conheceu uma galera muito bacana por lá, foi ótimo. — explicou Loredana a Wendy com tranqüilidade, em tom de conversa — Você ainda não estava aqui, lógico. Foi no semestre passado, uma festa de arromba para comemorar o final do período, logo após o lançamento das notas e o fechamento do diário eletrônico. — E qual foi o problema de Marco com a festa? — Ele não estava na cidade e ficou incomodado. — respondeu Priscila, brincando com um fiapo da toalha de mesa, o celular em uma das mãos — Ficou pensando mil e uma coisas, todo desconfiado, mas não aconteceu nada na festa. — Ainda assim, ele ficou com ciúme. — Vocês têm algum acordo sobre ir ou não a festas? Algum tipo de contrato? — perguntou Wendy. — Bom, a gente avisa um ao outro com bastante antecedência, até para o outro também ver se poderá ir, não é? Mas eu fiquei sabendo da festa no dia, era uma sexta-feira à noite, eu não ia fazer nada, sabe? — como Wendy ainda se mostrava meio perdida, Priscila acrescentou — É que aconteceu o seguinte: o Marco é de outra cidade, assim como eu, só que ele voltou para a cidade dele antes de os exames especiais começarem, mas eu fiquei de dependência em duas disciplinas. Então fiquei em Vale para fazer os exames. Acabei, fiquei sabendo da festa no mesmo dia, as meninas daqui de casa iam, fiquei sabendo de última hora, eu ia ficar sozinha em casa… então acabei indo também. — Não faria sentido você ficar sozinha em casa com uma festa acontecendo no quarteirão do lado. — comentou Loredana — Foi uma decisão sensata, Pri. — Mas… ele ficou bastante incomodado. E com razão. — Ele nunca fez isso? — perguntou Wendy — Nunca foi a uma festa sem você? — Não, ele sempre me avisa com antecedência quando quer ir a alguma festa. A gente meio que se desentende algumas vezes por isso, porque meio que nos organizamos para ir juntos… mas ele já foi a uma ou outra sem mim, sim. — Ele já foi várias vezes, sim, sem combinar com você. — confirmou Loredana — Na cervejada da Letras, lembra? — Lembro, era terça à noite, no meu horário de monitoria no laboratório. — E teve aquela outra, dos Klüsener, era uma festa fechada, lembra? — Sim, o Liam havia convidado você, mas você não pôde ir… e o Emmett convidou o Leandro, amigo do Marco, e acabou convidando o Marco e a mim também. Só que era no horário em que eu ia fazer uma atividade avaliativa, então eu não poderia ir. — Não teve outra? Aquela que nem foi tão boa? Qual era, mesmo? — Foi… foi a Peregrinação Etílica do ano passado. Ele estava meio entediado, mas eu também não pude ir porque eu estava conduzindo uma bateria de testes naquela semana, ele sabia que eu não poderia ir, ficou super chateado com isso, e eu insisti para ele ir sem mim e se divertir. Ele foi, e ficou tudo bem. — Ele foi a três festas sem você e você não pode ir a uma festa sem ele? — indagou Wendy, mais duramente do que pretendera. — Não é bem assim… não é a mesma coisa. Tudo foi conversado entre a gente quando ele foi… no meu caso, não conversamos, a culpa foi minha… — Você não pôde avisá-lo. — disse Wendy. — Na realidade, eu tentei ligar para ele, mas ele não me atendia… então deixei uma mensagem. Depois, na festa, meu celular descarregou, mas eu nem tinha percebido. Então, no dia seguinte, quando acordei e liguei o celular, havia algumas chamadas dele… ele disse que estava dormindo quando eu telefonei. Quando soube que fui na festa sem ter a confirmação dele de que estaria tudo bem, discutimos. Por minha culpa, porque eu fui a uma festa sem avisá-lo. — Não foi sua, Pri, a gente ficou sabendo no mesmo dia. Fomos quase de penetra, normal. — acrescentou Loredana serenamente. — Ah, mas foi fora do que a gente combinou, ele ficou chateado. E agora tem isso de eu não conseguir a vaga para o pensionato… eu sei que ele se preocupa comigo, mas eu já expliquei que não tem com que se preocupar… eu estou bem morando aqui. Até foi bom não ter dado certo o lance do pensionato porque a Joana também acabou indo embora, não foi? Você ia ficar sozinha, Dana. — Seriam três vagas para meninas que não se importassem com assovios e ensaios musicais… mas não teria graça sem você. — Sem mim, você jamais se lembraria de pagar as contas. De toda forma, deixei meu nome na lista do pensionato, especialmente agora que conseguimos preencher as duas vagas do apê e você não vai sair prejudicada. — Você sabe cozinhar e lavar? — perguntou Wendy. — Sei, você não sabe? — Sei também, mas não entendi por que é tão importante se mudar para um lugar mais caro que possui como único diferencial oferecer serviços que você já sabe realizar sozinha. — Porque alguém cuida de você, entende… pensionato tem regras. Você não pode sair e voltar tarde, por exemplo. Tem segurança. Nós não temos nem alarme por aqui, só trancamos a porta e fechamos as janelas. Esse pensionato de que estou falando tem alarme. Tem horários, tudo fixo. — Então isso não vai atrapalhar você ir a festas? — Bom, se eu virar a noite, terei de dormir na casa de outra pessoa, não é? No caso, eu poderia dormir na casa do Marco. — Ele mora onde? — Numa república também, como a gente, só que masculina. Ele tem um quarto exclusivo, eu poderia dormir com ele nesses casos. — Imagino que seja mais seguro… — comentou Wendy baixinho, deixando as reticências no ar, porque, naquele instante, o celular de Pri tocou, entoando uma música alta, e ela atendeu, retornando ao quarto. — Tem uma coisa que eu não entendo… — comentou Wendy — Se morar em pensionato é tão melhor, por que não mora ele? Loredana apenas ergueu as sobrancelhas, dando de ombros. — Suponho que ele ache que ela necessite mais desse tipo de cuidado. Café? — ofereceu, estendendo-lhe uma caneca esmaltada. Nesse instante, uma garota um pouco gorda, de nariz de batata e cabelos pretos, cacheados e volumosos saiu do quarto de Loredana com um livro em mãos. Usava calça jeans, camiseta branca e tênis, os cabelos soltos caindo sobre os ombros. Sorriu timidamente para Wendy, e mesmo esse sorriso tímido revelou covinhas nas bochechas. — Heloísa, esta é Wendy. Vocês duas são calouras de Medicina e também calouras aqui na Depenarq. Wendy, Heloísa topou morar com a gente depois que a Joana anunciou que ia sair. — Ah, que ótimo! Somos da mesma sala! — comentou Wendy, satisfeita; estava feliz por conhecer ao menos uma colega nova, já que Bernardo agora estaria em outro curso, matriculado em cadeiras diferentes, ainda que no mesmo prédio. — Pois é! Eu estava meio nervosa de chegar sozinha, sem conhecer ninguém… As duas se cumprimentaram, e Heloísa se sentou na mesa, aparentando cansaço. — Eu estava arrumando minhas coisas. — explicou — Cheguei hoje. Encontrei o apê de última hora, achei que nem daria tempo de desfazer as malas… — Ela tem uma mala inteira só de livros. — comentou Loredana — Uma biblioteca em uma mala, esse até poderia ser o nome de um livro… — Você trouxe todos os seus livros para cá? — Não, só os preferidos. — Heloísa sorriu timidamente — Não consigo me separar deles. Wendy imaginou Loredana ajudando Heloísa a carregar a mala cheia de livros da garota para o quarto. — Que livros são esses? — Romances. Posso mostrar depois… tenho espaço na prateleira para algum de faculdade que eventualmente tenha de comprar, mas gosto de ler romance. — Romance de que tipo? Heloísa estendeu-lhe o livro que carregava consigo; tinha pouco mais de quatrocentas páginas e narrava a estória de uma moça da era vitoriana que se mudava para o castelo de um príncipe recluso e misterioso. — É realmente romance. — comentou Wendy com voz neutra, folheando o livro mais por cortesia do que por interesse; simplesmente não dava a mínima para romances principescos. — Adoro… — suspirou Heloísa, os olhos brilhando — Posso recomendar um monte deles, se quiser… e, se você for do tipo cuidadosa, até emprestá- los, já que moramos na mesma casa. — Wendy não tem cara de que gosta de romances. — comentou Loredana sonhadoramente. — Como seria uma “cara de que gosta de romances”? — questionou a garota corando, pega de surpresa. — A cara que a Heloísa está fazendo. Olhos piscantes, bochechas de purpurina, cara de quem comeu muito açúcar. — Gosto de açúcar. — disse Wendy, conciliadora. — Eu também! — acrescentou Heloísa — Do que você gosta de ler, Wendy? — Ah… — Wendy realmente nunca havia parado para pensar nisso — Bom, não sou uma leitora ávida. Quero dizer, tenho esse amigo que também está morando aqui em Vale… — O que queria morar com a gente, mas desistiu? — indagou Loredana. — Ele não queria, estava só brincando. Bom, ele adora ler. — disse Wendy. — Ele também vai estudar medicina com a gente? — Não, biologia. Bom, ele adora ler ficção e não-ficção… sci-fi, fantasia, filosofia, clássicos da literatura universal… — Ele parece sensato. E você? — Gostei de alguns de fantasia que ele me indicou… vidas em outros planetas, guerra no espaço sideral, um sobre vampiros e lobisomens, mas gosto mais de não-ficção. Por exemplo o último que li foi escrito por um historiador da minha cidade, contando a história dela, desde o início. Gosto disso, de quando a pessoa estudou muito uma coisa por bastante tempo e então escreve uma espécie de tratado bem fundamentado sobre o assunto. Também li um sobre história das massas no mundo, os pratos feitos ao longo dos séculos. — Você realmente lê não-ficção. — Eu lia também alguns clássicos de ficção, mas era porque a escola exigia, e também gostava de entender o contexto de cada livro, os movimentos literários, o significado na época e etc, mas ficção realmente nunca me atraiu. Heloísa boquiabriu-se, rindo. — Você não lê romances. — Não voluntariamente. — Precisamos curar isso! Vem aqui agora, vou emprestar alguns livros para você! — Mal entrou na faculdade e já quer curar as pessoas? — Fiz residência na clínica de não-leitores de ficção. — Temos uma médica especializada em não-leitores de ficção — comentou Loredana — e uma bruxa. Preciso dizer à Pri que a Depenarq está devidamente representada. — Aceito sugestões de leitura — disse Wendy —, vai que, com uma especialista fazendo a curadoria, eles comecem a fazer sentido para mim… só vou lanchar antes. As três lancharam; Heloísa comunicou a Loredana: — Vou terminar de arrumar as coisas ainda hoje, Loredana. O quarto está meio bagunçado, mas vou terminar tudo antes de dormir. — Não se preocupe. Antes ser sua a bagunça do que minha. — disse Loredana com tranqüilidade — Isso me lembra quando me mudei para cá… já faz algum tempo. — Nem brinca com essa história de bagunça, vou fazer o mesmo daqui a pouco. — comentou Wendy — Fiquei com medo de não encontrar um lugar para morar. — Você é de fora da cidade? — indagou Heloísa. — Sou, mas não de muito longe… sou da Serra. — Ah, aqui do lado… quero dizer, logo ali. — ela fez um beicinho para indicar longa distância — É mais de uma hora de viagem, não é? — É exatamente uma hora. — Uma hora, todo dia? Duas horas? — ela fez uma careta — Não é tão perto assim, sabe. — Exatamente. — Mas então, e o curso? Para falar a verdade, estava pensando em me transferir para Nutrição. Sempre foi meu sonho, mas então consegui uma nota para outros cursos também, então meus pais meio que me obrigaram a me matricular em Medicina. — Tenho uma história semelhante para contar. Heloísa riu. — Já conheci gente que deixou de entrar num curso por ter nota muito abaixo do exigido, mas nunca vi o contrário acontecer. — Pode acontecer. Acontece nas melhores famílias. Mas, bem, para isso temos bolachas, não é verdade? — e Wendy indicou as bolachas — E bolachas recheadas. São um agradável prêmio de consolação. A garota aceitou uma bolacha. — É você quem tem o gato? — Sou eu. — Posso vê-lo? — Claro! Wendy apresentou Fred a Heloísa, que, tal qual Loredana, mostrou-se instantaneamente empolgada com a presença de um animal na casa; em troca, a ávida leitora e futura colega apresentou a Wendy alguns dos tantos livros que trouxera consigo. Wendy acabou levando um deles para o próprio quarto e começou a lê-lo antes de dormir, logo após desfazer as malas; era uma ficção baseada em fatos históricos ocorridos no solo onde atualmente se encontrava a Cidade do Vale, por isso a garota se interessara por ele. Era, entretanto, não um livro acadêmico, mas uma trama histórica centrada no romance proibido entre a herdeira de um reino em guerra e um misterioso porém solícito e habilidoso servo do palácio. O momento em que ambos se encontraram pela primeira vez, porém, Wendy sequer chegou a ler, pois acabou dormindo no início da leitura, tomada pelo cansaço decorrente da mudança recente. Três – Klüsener –
P airava um eterno paradoxo entre calouros e veteranos na universidade:
os calouros, que compareciam aos primeiros dias ansiosos por aulas, eram recebidos com palestras de boas-vindas e introdução ao curso de todos os formatos e permutações de palavras, enquanto os veteranos, já saudosos das férias, ora gemiam a cada conteúdo ministrado já no primeiro dia letivo, ora iniciavam as aulas em seus próprios termos – isto é, comparecendo apenas na semana seguinte. Wendy era uma dessas calouras ansiosas por aulas que ainda não se cansava de repetir para si mesma o fato de ser uma caloura da Universidade de Cidade do Vale. Boquiaberta com a própria sorte, caminhou por todo o complexo didático com Bernardo, que também admirava as paredes amadeiradas, o piso vinílico e os incontáveis painéis, bancos e cantinas; impressionados, observavam os estudantes que transitavam, entreouvindo conversas sobre disciplinas, exames, estágios, pesquisas. Como era a primeira vez que não usariam uniforme escolar, Wendy se sentiu, num primeiro momento, um tanto perdida ao se vestir para ir à aula, mas acabou optando pelo trivial condizente com o tempo chuvoso e frio da cidade: jeans, tênis, camiseta justa azul-marinho, blusa de tricô trançado branca e seu casaco impermeável amarelo-limão. Wendy gostava de usar branco-puro e amarelo- limão; tinha a sensação de que seus olhos grandes e castanhos brilhavam mais, e mesmo o rosado em seu rosto ficava mais evidente. Assistiram à palestra de boas-vindas no Departamento de Ciências Biológicas, no Ciclo Básico e, por fim, no Departamento de Ciências Médicas. No segundo dia de aula, terça-feira, quando as aulas finalmente começaram, a garota descobriu que o primeiro tempo seria ocupado por uma aula de Saúde Integrada, uma disciplina interdisciplinar voltada para todos os cursos de Saúde, por isso se dirigiu a um dos maiores auditórios do Centro Didático, o edifício verde-musgo ao fundo do Pátio da Biologia que continha apenas auditórios e salas de aula, onde as aulas das disciplinas teóricas gerais aconteciam. Sentou-se ao lado de Heloísa, diante de duas garotas desconhecidas, que fofocavam alegremente enquanto lixavam as unhas. Quando a professora adentrou, a classe silenciou. Essa professora solicitou que cada aluno se apresentasse e explicasse por que escolhera seu respectivo curso. Wendy detestava essas apresentações; sentia-se tão ansiosa, pensando no que falaria quando chegasse sua vez, que não se atentava devidamente à apresentação dos colegas, de modo que o intuito daquele misancene lhe era inútil. Além disso, a classe era tão extensa, com as turmas de Medicina, Enfermagem, Nutrição, Fisioterapia, Educação Física, Terapia Ocupacional, Farmácia e Biomedicina que, se o aluno não estivesse ansioso pela chegada de sua vez, certamente estaria entediado. De fato, as cadeiras estofadas do auditório eram convidativas para um cochilo, pensou Wendy, imaginando o que aconteceria se os professores desligassem as luzes e resolvessem dar aula utilizando o projetor multimídia… Estava perdida nesses devaneios quando chegou sua vez de se apresentar. — Sou Wendy — respondeu ela; deixaria que descobrissem seu nome completo quando a lista de presença circulasse — Minha mãe, meu pai e meus avós sempre trabalharam com alimentos. Tenho interesse em estudar saúde e, se possível, relacionar isso com a alimentação. Soube da especialização em nutrologia, talvez ajude… tenho experiência como cozinheira no restaurante dos meus pais, acredito que possa ajudar na articulação entre saúde e alimentação. — Cozinheira? — assoviou uma das meninas na fileira de trás, enquanto Heloísa se apresentava. Era uma garota de cabelos ruivos e ondulados que usava uma jaqueta de couro de um azul tão elétrico quanto a cor de seus olhos. — Não é muito comum ser cozinheira e ter interesse em nutrição. — acrescentou a outra menina, pensativa, os brincos de argola e o brilho labial cintilando enquanto falava; ela tinha a pele morena e longos cabelos escuros e retos — Não tem muito a ver… nunca ouviu falar? A comida que o profissional de Saúde receita, cozinheiro detesta e vice-versa? Ou é saudável ou é gostoso? — Acho perfeitamente possível unir o útil ao agradável. — Bom, não sei se concordo… tenho a intenção de me tornar clínica, por sinal. Nutróloga. — Nós duas temos. — acrescentou a ruiva — Somos Rebeca e Solange. — É uma opção interessante. — comentou Heloísa, virando-se para trás e entrando na conversa — Também pensei em clínica quando entrei… tenho interesse na área de Nutrição, até pensei em mudar de curso… e atuar em clínica. — Nutrição? Mas… aí você teria cinco anos para chegar ao peso ideal, né? — comentou Rebeca. — Cinco anos? — É. Para ter seu próprio consultório já estando no peso certo. Como Wendy franzira a testa diante daquele comentário, a garota acrescentou: — Ora essa, ninguém vai se consultar com uma nutricionista acima do peso ideal, não é? — Pensei que Nutrição fosse sobre comer alimentos saudáveis, não vigiar o peso dos outros. — replicou Wendy com aspereza. — Não seja hipócrita, Wendy. Pessoas vão aos nossos consultórios para emagrecer. Que credibilidade um nutricionista gordo passaria nesse caso? Você iria a um dentista com cárie? A um psicólogo delinqüente? — arrematou Rebeca com desdém. — Nesse caso, por que alguém iria se consultar com você? Pessoas querem alguém que entenda de comida e de saúde, para isso o nutricionista não pode ser subnutrido, e nem o nutrólogo. Vão achar que você não come o suficiente ou que você é um daqueles que empurram ração, terra e pedra para a pessoa engolir, sabe? Ninguém quer isso, todo o mundo sairia correndo. As duas garotas entreolharam-se, escandalizadas. Wendy finalizou: — Pessoas querem comer comidas gostosas, não ir atrás de gente subnutrida que come ração com uma folha de alface. Heloísa gargalhou; nesse instante, chegou a vez de Rebeca e Solange se apresentarem e, a partir de então, Wendy não mais olhou para trás. No intervalo, Wendy havia combinado de encontrar Bernardo no refeitório de Ciências Econômicas, já que o valor do lanche era muito semelhante ao da cantina do prédio de Ciências Biológicas e, segundo boatos correntes – confirmados por Heloísa – de melhor qualidade. Aparentemente, os alunos dos cursos de Finanças e Negócios eram particularmente exigentes com relação a padrão e qualidade de vida; era, de longe, o prédio mais moderno e bem-cuidado de todos, com um piso lustroso e cadeiras de madeira envernizada. Quando entraram no refeitório, logo se depararam com uma variedade no cardápio inexistente no bloco de Saúde, além de uma decoração tão sofisticada – com direito a painel de madeira na parede ao fundo, pôster de grãos de café e mesas com tampo de vidro – que fazia o refeitório de Ciências Biológicas parecer uma pobre fusão malsucedida de saguão fabril com oficina mecânica. Bernardo, por sinal, achara o refeitório da Biologia tão visualmente semelhante a uma oficina mecânica – só que mais iluminado e arejado, pintado de branco – que afirmara categoricamente poder deduzir a potência do motor de carro que fora consertado por aquelas bandas só de beber o café da cantina – segundo ele, feito a partir de óleo de motor. — Como aqui pode ter mais variedade do que onde estudamos Saúde?! — reclamou Wendy, indignada, postando-se na fila de atendimento ao caixa ao lado de Heloísa enquanto aguardavam a chegada de Bernardo — Era para ser o contrário! Duas risadinhas chegaram aos seus ouvidos; eram as meninas que haviam se sentado atrás delas na aula e que agora aguardavam na fila novamente atrás – Rebeca e Solange. — É óbvio o porquê! — disse Rebeca — Aqui é onde estudam os mais ricos e bem-sucedidos. — E por acaso somente ricos necessitam de variedade alimentar? — Não é assim que funciona. — retorquiu Solange — Em todo o caso, não vejo necessidade alguma de oferecerem tantas opções no cardápio. Como a mesma coisa todos os dias, tanto faz comer aqui ou na cantina da Biologia. — Então por que você veio para cá? — inquiriu Wendy, mas não ouviu a resposta, pois era sua vez de fazer o pedido no caixa. Nesse instante, Bernardo apareceu, acenando para as meninas no final da fila. Wendy imediatamente pediu um café a mais e sinalizou para ele encontrá-la no balcão de atendimentos, onde ela entregaria a senha (já paga) para obter seus pedidos. Cinco minutos depois, entre empurrões cautelosos devido ao café em mãos, os três – Wendy, Bernardo e Heloísa – ocuparam uma mesa livre no refeitório localizada ao lado de uma parede de vidro com vista para os jardins e para a fachada dos prédios de Exatas; havia também uma saída atrás de Bernardo em direção aos jardins que poderiam utilizar para contornar a faculdade pelo lado externo e assim evitar a multidão que começava a se aglomerar na entrada do refeitório entre o caixa e o balcão de atendimento. Era impressionante como, apesar de os prédios estarem fisicamente conectados, a atmosfera mudava de um lugar para o outro; o bloco de Biológicas era ocupado predominantemente por estudantes de aparência jovial, trajando jeans, tênis, mochila nas costas e jaleco sob os braços, discutindo trabalhos intermináveis e aspirando fortemente o odor de ração do biotério pelos corredores; já a escola de negócios, além de limpa e reluzente sob imponentes tons escuros e vibrantes nas paredes, no piso e no teto, era repleta de estudantes que pareciam ter saído de alguma revista de moda, mesclando o estilo conservador do mundo empresarial com algo cool, compondo com um visual sofisticado. Enquanto os estudantes de biológicas debruçavam-se em bancadas de pedra nos pátios abertos ou cobertos, entre árvores ou nos laboratórios – em torno do Pátio da Biologia – os estudantes de economia recostavam-se nas cadeiras de madeira, em posições soberanas, ou jogavam sinuca no centro de lazer. O próprio refeitório carregava uma atmosfera diferente, mais formal. Rebeca estava certa; era lugar de gente rica. — Você é uma vidente. — comentou Bernardo, encantado, recebendo, no instante em que se sentaram, o lanche que Wendy havia comprado para ele — Ou uma telepata, ainda não decidi. — Talvez apenas alguém que tenha andado com você no recreio por muitos anos. Antes que Bernardo replicasse, Rebeca e Solange largaram-se nas cadeiras vazias ao seu lado. — Quem são vocês? — perguntou ele, manifestando explícita contrariedade por dividir a mesa com pessoas desconhecidas. — Rebeca e Solange. — respondeu Rebeca. — Algum sinal deles? — perguntou Solange. — Ainda não. Daqui dá para ter uma visão ampla do refeitório, conseguiremos vê-los quando eles chegarem. Bom lugar este que vocês escolheram. — acrescentou para o trio à guisa de elogio. Wendy e Heloísa entreolharam-se, Wendy ligeiramente exasperada, Heloísa um tanto confusa. — Do que vocês estão falando? — perguntou Wendy, irritada com a agitação das duas meninas, que olhavam insistentemente para todos os lados, espichando os pescoços por cima da multidão que apenas se agigantava à medida que aparentemente todo o campus saía das aulas e parecia convergir para o mesmo refeitório. Heloísa abriu um livro que apanhara na biblioteca. — Mas, já? — exclamou Bernardo, impressionado — Não é possível que você tenha algo para estudar. — Ah, na realidade temos. — informou Wendy — Precisamos estudar os nomes de todos os alunos de Saúde. A professora passou trinta minutos pedindo para todo o mundo se apresentar. Bernardo engasgou em seu copo de café, imitado por Heloísa, que riu. — Foi, deu tempo de rolar meu feed de notícias inteiro. Duas vezes. — comentou Heloísa, indicando o celular — Só que este livro aqui eu peguei para a disciplina de amanhã porque o professor enviou um e-mail ontem com o cronograma. — Temos alguém engajado por aqui. — comentou Bernardo, impressionado. — Heloísa, acho que o painel de senhas da cantina não está funcionando. — informou Wendy, erguendo a cabeça de repente — Não dá para saber se estão chamando seu nome daqui. E tem muita gente lá no balcão, não dá para escutar se tiver alguém chamando você. O refeitório estava muito cheio; todas as mesas estavam ocupadas e o trânsito entre o caixa e o balcão de lanches estava precário. — Você pode buscar para mim, por favor? — perguntou Heloísa — É um café e um pão na chapa. — Ok. Wendy se levantou e foi buscar a comida; enfrentou um trânsito engarrafado até a cantina, erguendo a senha; conforme previra, o lanche da amiga estava pronto, de modo que traçou um caminho de volta com ele em mãos. Quando estava quase se aproximando da mesa, alguém lhe deu um encontrão, de modo que a garota perdeu o equilíbrio e verteu parte do café sobre o livro de Heloísa. — Ai! Instintivamente, ergueu a cabeça para ver quem lhe dera o encontrão; fora um rapaz bem mais alto do que ela – tinha mais de um metro e noventa de altura. Um rapaz inacreditavelmente bonito, Wendy teve de admitir para si mesma, perplexa, com aqueles cabelos arrepiados, aquele porte altivo e os olhos escuros e faiscantes destacando-se no rosto anguloso e bem-delineado. — Olha o que você acabou de fazer! — reclamou Wendy. Ele apenas relanceou os olhos para o livro, cujas páginas haviam sido manchadas pelo café quente, e para as tentativas de Bernardo e Heloísa de absorverem o máximo de líquido possível com os precários guardanapos de lanchonete no intuito de minimizar o estrago. — Cantina não é lugar de livro. — retorquiu o rapaz numa voz ríspida, e lhe deu as costas. Aquela frase fez o sangue da garota fervilhar, latejando em seus ouvidos – não acreditava que alguém pudesse ser tão grosseiro, tão mal-educado e de forma tão gratuita; antes ela que conseguisse reagir ou mesmo processar a desfeita, o rapaz já havia lhe virado as costas, como se nada houvesse acontecido, e seguido adiante, driblando a multidão sem dificuldade, já que ele era muito mais alto que a média das pessoas e não estava sozinho – estava acompanhado por outras seis pessoas igualmente altas. — Ah, ele é maravilhoso! — suspirou Rebeca. — Eu sempre pensei que você gostasse mais do Liam… — comentou Solange, animada. — O Liam é um gato e tem a voz mais linda do planeta, mas meu coração sempre será do Benjamin… Wendy girou nos calcanhares para encarar as duas garotas. — Vocês conhecem ele? — Claro que sim, você não? — elas pareciam céticas. Wendy não respondeu; enquanto Bernardo e Heloísa limpavam a mesa, pois era impressionante o estrago que um leve derramamento de café poderia desencadear, a garota começou a separar página por página do livro como se esse gesto, por si só, pudesse salvá-lo. — Por que eu saberia quem é esse cara? — Essa, sim, é uma boa pergunta. — concordou Bernardo, acenando vigorosamente a cabeça enquanto deslizava o guardanapo nas laterais da mesa. — Ah, vocês dois são caipiras, né? — comentou Rebeca — De cidade pequena e tudo o mais. Não são daqui. — Tem coisa mais caipira que saber nome de gente babaca e se achar importante por isso? — retorquiu Wendy, ácida. Bernardo riu nervosamente; Heloísa disse, desanimada: — São os Klüsener. Os dois viraram-se para ela. — Você conhece ele? — Todo o mundo conhecesse os Klüsener. — informou Rebeca com ar de superioridade, como se ela própria fosse uma Klüsener — Eles são e sempre foram populares. Eram particularmente famosos no ensino médio, no Instituto Balzaquiano. — E por que exatamente são populares? Derramamento gratuito de café? Recorde por esbanjamento de grosseria e arrogância antes do almoço? — Não. — respondeu Solange — Todos eles, os sete, são muito bonitos, atléticos, altos, elegantes. Como se não bastasse a beleza incontestável de todos, são também ricos, inteligentes e ótimos atletas. São tão bons que, há alguns anos, quando alguns deles iam disputar o Campeonato Interescolar, eles haviam informado à direção da escola que não participariam da competição se ela acontecesse em uma determinada semana do mês, pois estariam viajando. O Balzaquiano impôs ao Conselho da Cidade a condição de antecipar a data das competições apenas para que eles participassem e vencessem todas as partidas em suas respectivas modalidades. — E os outros colégios acataram essa decisão? — perguntou Bernardo, descrente. — Claro que sim. Uma vitória no Interescolar sem competir com o Balzaquiano não é uma vitória memorável, e ele não iria participar se não alterassem a data. — Quantas escolas participam desse Interescolar? — As quatro mais tradicionais da cidade: o Balzaquiano, o Alberto, o Madre Paula e o São Patrício. O Balzaquiano sempre venceu todas as modalidades que tiveram participação dos Klüsener. — Não que eles já não vençam as outras. — acrescentou Solange — Mas, com os Klüsener, tudo ficou mais fácil. Foi uma massacre atrás do outro, mas quem se importa, não é mesmo? – ela admirou as próprias unhas enquanto falava, pintadas de magenta — O importante era ter a oportunidade de ficar vendo os Klüsener naquela semana, uma oportunidade única. Eu estudava no Madre Paula. — explicou — Não convivi com eles… eu adorava ir ao Interescolar só para vê-los. — Aí vêm eles! — guinchou Rebeca — Olha, Sô, olha! Todos os cinco à mesa, na realidade, olharam, Wendy ainda conservando no rosto uma expressão indignada; com a multidão rareando, pois, como Wendy já sabia a partir de sua vasta experiência no setor alimentício, o estabelecimento lotava e esvaziava repentinamente, em ondas, os sete jovens retornaram e se sentaram do outro lado do refeitório, também ao lado da janela. Talvez por serem sete, talvez por serem grandes, pareceram ocupar muito espaço – ou talvez fosse apenas o comportamento indiscretamente animado de alguns deles. — Então… são eles. — comentou Heloísa — Ouço falar deles desde ontem, mas não sabia quem eram. — Quando você ouviu falar neles? — inquiriu Wendy. Sentia-se num mundo paralelo, ou no fundo de um laguinho, pois até então nunca nem havia ouvido falar dos Klüsener, e achou de bom tom enfatizar esse detalhe em voz alta — Nunca sequer dei falta desses ilustres desconhecidos. Não é como se eu tivesse passado noites em claro, desperdiçando sinapses com quaisquer deles, sabe. Nunca nem tinha ouvido falar dessas pouco ilustres criaturas. Não falara tão alto – não era possível que aquele tom pudesse ser considerado alto –, mas, no momento em que emitira tais palavras, o mesmo rapaz de cabelos arrepiados virou a cabeça em sua direção, irritado. Os dois se encararam à distância; ela ergueu uma sobrancelha, como se o desafiasse, ele fixando nela aquele par de olhos escuros e incandescentes discerníveis à distância. A garota ao lado dele lhe disse algo, de modo que ele virou a cabeça em outra direção, desviando o olhar. — Quem é quem ali? — perguntou Heloísa — Bernardo, você não está sendo discreto. Bernardo, que, por estar sentado de costas para os Klüsener, havia deliberadamente girado o corpo para trás a fim de melhor vê-los, apoiando o braço no encosto da cadeira e obviamente encarando-os, voltou-se para Heloísa, animado. — Qual é o problema? Eles não sabem que são a celebridade da escola? Devem estar acostumados com os paparazzi. — Não precisa desperdiçar sua dignidade desse jeito. Wendy riu. Rebeca, que, pelo visto, adorava falar deles, curvou-se na direção de Heloísa e murmurou: — Ok. — ela se empertigou, satisfeita por ser a porta-voz dos Klüsener — O do café é o Benjamin. Ele é meu. — Tô vendo como ele é seu. Nem olha na sua cara. — comentou Bernardo, ainda encarando os Klüsener abertamente; Heloísa riu enquanto mastigava o lanche, quase soprando farelos de pão pela mesa. Rebeca revirou os olhos. — O Benjamin tem vinte anos e está no quarto e último ano de Economia aqui na FCE. Só que ele não estuda só Economia. Na realidade, ele aproveitou uma série de recursos burocráticos que a faculdade oferece para alterar a grade dele. Cursou todas as obrigatórias nos primeiros períodos, escolheu a dedo disciplinas em Ciências Contábeis, Administração, tem uma formação híbrida… realiza uma série de atividades e projetos em Negócios e Investimentos em vez de atividades optativas normais. Todo o mundo sabe que ele entende de ações e investimentos e que constituiu já um patrimônio avantajado apenas investindo. Dizem que ele é extremamente corajoso e sabe investir em negócios de risco. Wendy ergueu os olhos novamente para Benjamin; ele bebia uma latinha de energético, aparentemente escutando o que outros dois Klüsener conversavam, sentado em uma posição displicente na cadeira. Os cabelos lisos, arrepiados – com gel – eram de um castanho escuro e vibrante como os olhos, em um forte contraste com a pele. Suas duas orelhas eram furadas e saturadas de brincos prateados, que reluziam à iluminação natural da janela logo atrás; havia também anéis grossos em seus dedos longos que igualmente reluziam. Usava vestes pretas que apenas realçavam o contraste natural de sua tez – calça, botas pesadas e jaqueta bomber sobre uma camisa social de colarinho desabotoado em um estilo despojado. Seu rosto era anguloso, mais estreito no queixo, ligeiramente pontudo e com traços bem-definidos, de modo que os músculos da face destacavam-se com facilidade; os malares, por sua vez, eram altos e proeminentes, de modo que os olhos sobre eles, embora grandes e expressivos, também eram amendoados. As sobrancelhas sobre estes eram grossas e ligeiramente arqueadas, e o nariz comprido era proporcional ao formato do rosto. — Aquela que está conversando com Benjamin é uma prima dele, Dafne. — acrescentou Rebeca — É a mais nova do grupo e a única caloura, acabou de entrar, como a gente, vai fazer dezoito anos. Ela passou o último ano, que seria o último ano no Balzaquiano, viajando em intercâmbio, retornando direto para a faculdade. Estuda Relações Internacionais, mas também montou uma grade híbrida, por isso ela também cursa disciplinas em Relações Públicas, Direito e Letras. Todos os Klüsener são poliglotas, mas ela domina mais idiomas do que eles, sendo fluente em mais de seis. Puxou duas disciplinas de canto como eletivas na Faculdade de Música. Dafne se levantou para apanhar outro café; era a mais baixa do grupo, mas, ainda assim, media facilmente quase um metro e oitenta de altura. Usava uma calça jeans de lavagem clara, botinhas caramelo de cano curto, um casacão de veludo marrom sobre uma blusa de lã crua de tonalidades mistas e sóbrias, uma echarpe com desenhos abstratos, uma gargantilha aveludada preta e pulseiras cor de ouro envelhecido que combinavam com o camafeu da gargantilha. Seu rosto pequeno, em forma de coração, de traços delicados, era todo emoldurado por um cabelo curto e espetado castanho- acobreado. Andava espevitada como um moleque, e era a mais sorridente do grupo, os olhos expressivos como os de Benjamin, embora ligeiramente mais claros. Ao vê-la ir à cantina e retornar tão graciosamente, Wendy pensou em uma criatura do bosque – um duende ou mesmo uma fadinha – especialmente com aquelas peças largas e em tons terrosos que usava, que pareciam ter saído de algum brechó boêmio vintage ou do baú da avó. — Ela é irmã mais nova dos gêmeos — prosseguiu Rebeca — Ernest e Emmett. Eles estão no segundo ano de engenharia e têm dezenove anos. O Ernest estuda Engenharia Biotecnológica, e o Emmett, Engenharia de Recursos Energéticos. Eles montaram uma grade toda voltada, no caso de Ernest, para conhecimento biotecnológico e de tecnologia de materiais e empreendedorismo no setor biotecnológico, e no de Emmett, para aproveitamento de recursos energéticos; dizem que os Klüsener investem em empresas que inovam na confecção de materiais flexíveis e resistentes, e que Ernest já criou uma série de protótipos nesse campo. Só que os gêmeos são famosos também por outro motivo: os Klüsener, embora sejam sociáveis e tenham dado algumas poucas festas, todas memoráveis, são meio fechados, mantêm proximidade apenas entre eles mesmos. Dentre os Klüsener, os gêmeos são famosos por socializarem mais e saírem com muitas garotas. As garotas costumam falar muito bem deles porque são muito respeitosos com elas e pelo fato de os encontros serem legais, eles têm uma ótima fama nesse quesito. — Se você algum dia tiver a chance de sair com um deles, — acrescentou Solange para Wendy e Heloísa — com certeza será com os gêmeos. Só que eles não namoram, não se relacionam a sério e são bem sinceros com relação a isso. Legal, não? — Bom, não fazem mais do que a obrigação sendo sinceros, não é mesmo? — retorquiu Wendy. Nesse instante, Benjamin sorriu, mas talvez fosse porque o garoto à direita de onde Dafne havia se sentado houvesse dito algo. Não poderia ser por causa de sua fala – de modo algum. Wendy não falara alto. Os gêmeos, Ernest e Emmett, eram extremamente parecidos com Dafne – o cabelo curto e espetadinho dela parecia realçar isso – embora os traços deles não fossem tão delicados quanto os dela e tivessem o formato do rosto completamente diferente, magro como o de Benjamin. Eles também possuíam o mesmo cabelo liso e de um forte tom acobreado da irmã, e cada um usava um pulôver de uma cor – o da direita usava algum tom quente de cinza, e o da esquerda, cor de tijolo. Os dois estavam juntando notas de dinheiro sobre a mesa, rindo e gesticulando praticamente aos berros, sem dúvida discutindo as regras de alguma negociação. — São famosos por realizarem apostas. — acrescentou Rebeca — É uma das diversões do centro acadêmico… Nesse instante, a outra garota do grupo, sentada ao lado do gêmeo de pulôver cinza, acrescentou uma cédula ao montinho, comentando qualquer coisa entre risos, demonstrando alguma dose de petulância; os dois assoviaram, e o rapaz que estivera conversando com Benjamin riu. Wendy boquiabriu-se quando seu olhar recaiu sobre a garota; ela se levantou para jogar um montinho de guardanapos fora e retornou rapidamente à cadeira, reivindicando algo relacionado ao dinheiro que visivelmente havia apostado, possivelmente questionando se alguma nota fora roubada; apesar de aparentar acusá-los de roubo, parecia também estar se divertindo com os gêmeos. Era simplesmente uma garota linda, possivelmente a moça mais perfeita que Wendy havia visto. Já era alta, medindo pouco mais de um metro e oitenta naturalmente – usando salto alto, então, estava gigante. Usava tantas cores vivas que parecia um jardim ambulante: as botas acima do joelho, com salto bloco, feitas de um tecido semelhante a camurça – para que, somente Deus saberia, naquele tempo tão úmido –, eram de um tom claro de marrom, camelo ou caramelo; a minissaia de um tecido plano e grosso era coral, e havia uma meia-calça discreta e fina, terrosa, combinando as duas cores; usava uma blusa de frio curta e fofa, de pêlos (artificiais) num tom intenso de violeta, expondo um pouco da clavícula enquanto se locomovia; o casaco que havia despido e colocado no encosto da cadeira era laranja, e, para finalizar o espetáculo primaveril, usava um lenço acetinado de estampas abstratas em tons de amarelo-forte e violeta. As unhas estavam pintadas de vermelho, e os brincos de argola polida dourada faiscavam e tiniam à distância. Enquanto a contemplava, Wendy percebeu que ela usava um conjunto de peças que poderiam muito bem dar muito errado e fazer qualquer pessoa parecer um espantalho; a bota alta e extravagante demais, a blusa molenga, ligeiramente curta e grossa e o lenço no pescoço poderiam desequilibrar visualmente suas proporções perfeitamente simétricas, mas a verdade é que ela era tão perfeita que tudo lhe caía bem, numa medida equilibrada. Os ombros bem-esculpidos surgiam sob a blusa, a cintura era realçada pela saia evasê e pela blusa curta e as pernas pareciam alongadas; as clavículas expostas entre a blusa e o lenço, e o pescoço proporcional demonstravam uma rara harmonia visual. O rosto da garota era oval, tão simétrico e bem-esculpido quanto o restante do corpo, com olhos gateados, nariz reto e lábios encorpados, e os cabelos da garota eram de um intenso castanho-avermelhado, do tipo que trazia a dúvida se a garota era castanha (de um tom avermelhado) ou ruiva (de um tom amarronzado) – e eram vigorosamente cacheados, os cachos mais volumosos, hidratados e perfeitos que já vira. — Meu Deus, ela deve passar horas cuidando daquele cabelo — comentou Heloísa, entendida do assunto. Wendy sequer se virou para encarar Heloísa, o olhar fixo naquela Klüsener exuberante como um campo florido na primavera que, naquele instante, abanava uma das mãos para um dos gêmeos, exibindo suas unhas escarlates. — Ah, a Sonja. Pronuncia-se com “i”, mas a grafia é com “j” — comentou Rebeca, sob careta depreciativa de Bernardo, que também contemplava a garota — Ela também tem dezenove anos, também está no segundo ano e também estuda engenharia… Engenharia de Software. Ela é realmente excepcional em gestão de tecnologia de informação e uma das lendas da escola de Engenharia por ter sido aprovada com as maiores notas possíveis no ciclo básico, sem uma recuperação sequer. Ela formatou o programa curricular dela para acrescentar disciplinas de Análise de Sistemas e Administração e se matriculou, neste semestre, segundo boatos, em uma disciplina de pós-graduação em Ciência da Computação. Conseguiu eliminar toda a grade optativa dela já no segundo ano de faculdade por entregar dois projetos de formação complementar interdisciplinares que só foram aprovados porque ela obteve as maiores notas de toda a Engenharia e deixou todo o Departamento impressionado. Dizem que há uma disputa entre professores para orientar o projeto final dela. — ela soltou uma risadinha — E que um de seus projetos é orientado por algum docente daqui da FCE. — Achei que ela cursasse Moda ou algo do tipo. — comentou Bernardo — Não parece uma nerd, vista daqui. — E você parece? — retrucou Solange, olhando o rapaz de alto a baixo. — Como ela consegue ser aprovada em Cálculo e ter tempo para coordenar tantas cores? — suspirou ele — Eu estou apanhando dessa matéria… — Bernardo, você teve sua primeira aula hoje. — lembrou Wendy, cética. — Sim, e já comecei com ponto negativo. Tô apavorado, tem umas listas de Cálculo malucas circulando por aí, e vocês vêm me falar que aquela garota fecha todas provas?! — Ela é uma Klüsener. — retrucou Rebeca, como se isso encerrasse qualquer questão — Então, sim, ela é excepcional. Ela é convidada freqüentemente para desfiles de moda, inclusive desfiles organizados pelas garotas de Moda e de Educação Física, e soube que também desenvolveu um software para quem trabalha no ramo. Mas não cursa nenhuma disciplina na Belas Artes, nada relacionado a Design de Moda, transita só entre o bloco de Engenharia e Tecnologia e as Ciências Econômicas, mesmo. Parece que Moda é mais um hobby. — Gostei da idéia do lenço. — comentou Solange — Ela sabia que a bota chamaria a atenção para os pés e criou um ponto de cor próximo ao rosto para contrabalancear os pés chamativos e voltar a atenção ao rosto… — Um ponto de cor próximo ao rosto? — repetiu Bernardo — Olhe direito para ela e me diga: onde você não vê cor? Só um daltônico não veria. — Eu sou daltônica. — replicou Heloísa, séria. — Você é daltônica? — repetiu ele, virando-se para a garota, incrédulo — Eu não sabia! — Claro que não sabia, acabamos de nos conhecer. Às vezes, confundo café com chá. — Ugh, que horrível. Imagino a pessoa sequinha atrás do café e bebendo uma água suja no lugar… você não vê as cores que aquela menina está usando? — Claro que vejo, eu não sou daltônica. — Ah. — A Sonja é a irmã mais nova do Graham, que tem vinte anos, idade de Benjamin — continuou Rebeca, indicando outro garoto — O Graham cursou o último ano do Ensino Médio e um ano a mais, entre a escola e a faculdade, em uma academia militar. Dizem que viajou para uma base, recebeu treinamento especial… e depois veio cursar Direito. Tecnicamente, está no segundo ano, mas cursa matérias do terceiro porque conseguiu queimar todos os pré-requisitos da grade básica, como o Benjamin, e cursou um monte de obrigatórias no primeiro ano. Puxou algumas disciplinas em Relações Internacionais, mas não muitas… ele, na realidade, passa muito tempo no Centro Esportivo, é o que mais pratica esportes competitivos e um dos melhores atletas dentre os Klüsener. Dizem que sabe atirar, com armas de fogo e tudo. — Não quero jogar aviõezinhos de papel com esse cara — decidiu Bernardo. Graham era o rapaz sentado ao lado de Dafne, que conversava com Benjamin; era mais forte do que o primo, mais baixo e muito mais musculoso do que os gêmeos; seus cabelos castanhos eram muito curtos, o suficiente para parecerem mais escuros que os de Sonja e para que o formato de sua cabeça se tornasse evidente, acrescentando-lhe uma aparência nitidamente militar. Seu rosto era perfeito como o da irmã, embora os traços fossem mais angulosos e menos delicados; o pescoço e o peito eram largos, e os braços, grandes. Sua postura vigorosa e abrangente demonstrava uma força física elevada e uma postura rígida de quem passara algum tempo em treinamento militar. Era muito mais discreto que os gêmeos festivos ou mesmo que o desencanado Benjamin, que se recostava na cadeira como uma espécie de soberano, um dos braços largados sobre o encosto. — Então Sonja e Graham são primos dos gêmeos e de Dafne. — resumiu Heloísa. — Isso, mesmo, e todos são primos de Benjamin. — E aquele outro, é irmão de Benjamin? — perguntou Wendy. O sétimo rapaz, sentado mais ao fundo, era o mais alto de todos – ultrapassava facilmente dois metros – e era também o mais sério. Seus cabelos, de um castanho-fosco, meio acinzentado, porém salpicado de fios dourados, eram lisos e pareciam sem corte, crescendo de forma irregular até a altura da mandíbula; o rosto era anguloso, mais largo que o de Benjamin; o nariz era grande, os lábios, finos, os malares proeminentes, e os olhos, pequenos, apertados, levantados e muito oblíquos, sombreados pelas sobrancelhas longas e retas que lhes acrescentavam uma expressão analítica e um olhar arguto. Era quem se vestia de forma mais simples; ao contrário de Sonja, por exemplo, que usava caimento e modelagem tão impecáveis que as peças pareciam ter sido feitas sob medida para ela, o rapaz parecia ter escolhido uma loja que propositalmente não fabricasse peças adequadas a seu tipo físico – modelagens boas, caimentos inapropriados que lhe acrescentavam uma aparência ligeiramente desleixada contrapondo-se ao seu porte elegante. Isso não prejudicava sua beleza – ao contrário, acrescentava- lhe um charme displicente, como se ele fosse simplesmente muito alheio à realidade cotidiana para se importar com trivialidades pontuais como vestir uma roupa cuja costura coincidisse adequadamente com as dobras de suas articulações. Parecia ouvir a conversa de Benjamin e Graham enquanto devaneava; somente despertou de seus próprios pensamentos quando Dafne surgiu atrás dele, oferecendo-lhe uma maçã totalmente vermelha, à qual ele aceitou com um leve sorriso. — Aquele? Não — Rebeca riu — Aquele é o Liam. Ele não é um Klüsener, é um Andersen. — Como assim? — Ele não é parente dos Klüsener. A garota franziu a testa. Todos eles, todos os sete jovens, compartilhavam alguns traços em comum; eram todos impressionantemente altos – os cabelos dos mais diversos tons de castanho – exibiam sobrancelhas grossas e marcantes e uma tez fortemente avermelhada no rosto, com malares proeminentes e corados. Até mesmo Benjamin, que se diferenciava do grupo por ser mais pálido e ter os cabelos significativamente mais escuros, carregava esses traços, embora mais suavizados. Liam, mesmo não sendo aparentado com os outros, não era exceção nesse quesito. — Ele é uma espécie de amigo próximo da família ou algo assim, convive com os Klüsener desde que eram crianças. Dizem que foi criado na casa deles. — comentou Rebeca — Ele tem vinte e um anos e estuda Economia junto com Benjamin, também está no último ano. Também deu um jeito de eliminar a maioria das disciplinas obrigatórias no primeiro ano e impressionou a todos por juntar muito dinheiro em pouco tempo com ações. Benjamin e Liam são benfeitores do campus. Aliás, a família Klüsener tradicionalmente doa fundos à universidade, mas Benjamin e Liam têm dinheiro próprio para arcar com algumas reformas no campus… Benjamin doou grandes somas para o Museu de Ciências Naturais, e Liam, para a Escola de Música; além disso, eles ampliaram o centro acadêmico da FCE, por isso são considerados donos do centro acadêmico, dizem que há um espaço lá dentro só deles. O Liam tem um conhecimento prático absurdo do mundo dos negócios, já que ele teve de galgar o caminho sem herdar fortuna alguma, mas não possui muitos projetos híbridos em andamento na universidade como os outros; em vez disso, ele criou uma grade com outras áreas de Economia, enxugou ao máximo o currículo e puxou, no lugar de projetos na área, um monte de disciplinas no Departamento de Música. Passa boa parte do tempo por lá e toca uma série de instrumentos. Ele é muito talentoso e participa freqüentemente dos concertos oferecidos pela orquestra do campus. — Eles possuem uma banda, todos eles. — explicou Solange — O Sétimo Selo. A voz do Liam é maravilhosa, parece ouro líquido, dá tanto gosto de ouvir… e ele é muito gato! — Prefiro o Benjamin. — ponderou Rebeca — Ele é tão bad boy, isso é tão sexy — ela suspirou — Que gato… Rebeca olhava para Benjamin, que terminava de tomar seu energético com um olhar displicentemente arrogante, totalmente largado em sua cadeira como se nada no mundo fosse capaz de interessá-lo ou mesmo entretê-lo, um dos braços despojadamente solto atrás do encosto da cadeira. — Imagine só a pegada que ele deve ter… — suspirou a ruiva. Wendy sabia que respeitar o gosto individual alheio era uma parte indispensável do pacto civilizatório, e, como o bonde que Rebeca arrastava pelo Klüsener era o caso de ser uma preferência inofensiva, assumiu deliberadamente uma expressão facial pretensamente diplomática, superior e até amistosa diante daquele comentário tão inoportuno a respeito de alguém tão incontestavelmente desagradável. — Wendy, você está com dor de barriga? Está meio verde… — comentou Bernardo — Foi o café? A garota desistiu da postura diplomática. — Bom, como perdi um tempo irrecuperável de minha vida tomando conhecimento da existência de ilustres pessoas desimportantes, devo recuperá-lo agora em aula. — disse ela — Vamos, que a aula de Introdução à Chamada I deve ter recomeçado, Helô. E assim, uma Wendy pragmática e uma Heloísa aos risos abandonaram o trio e rumaram para o bloco de biológicas, sendo seguidas aos gritos por Bernardo, que corria no encalço delas com o jaleco em mãos. Retornaram ao refeitório de Ciências Econômicas na hora do almoço, Wendy e Bernardo desejosos de apreciar as batatas fritas do cardápio, mas encontraram um estabelecimento lotado em sua potência máxima; varados de fome como estavam, retornaram ao bloco de Biológicas. Wendy havia conseguido um bilhete de desconto nas cantinas de todas as faculdades, um dos recursos oferecidos pela prefeitura do campus para auxiliar os estudantes de baixa renda. Assim, Wendy, Bernardo e Heloísa serviram-se e se sentaram em uma das mesinhas a céu aberto na cantina do Complexo de Ciências Biológicas e de Saúde, no Pátio da Biologia. O ar fresco e a presença de estudantes mais simples que os da FCE reforçaram o apetite da garota, que se sentia mais à vontade em ambientes assim. Usaram a hora seguinte para uma sesta ao ar livre, cada um deitado em um banco; ao final dela, as garotas rumaram para primeira aula de Biologia Celular e Tecidual, a disciplina com a maior carga horária do semestre. Sem perder tempo com apresentações, a professora da disciplina logo introduziu o cronograma aos alunos, demarcando aulas teóricas e práticas e fixando os horários de visita ao laboratório. Wendy teve de passar na biblioteca com Heloísa para apanhar o livro-base da disciplina e, porque Heloísa a aconselhara a já procurar o de bioquímica para o dia seguinte, também levaria este, já que, segundo boatos que preocupavam a amiga, os alunos que deixavam de pegá-lo para usar a segunda opção recomendada pelos professores reprovavam na disciplina com alguma freqüência. Ao chegar em casa, Wendy percebeu sua rotina tão cheia de novidades – casa nova, gente nova, vida nova – que sentiu como se aquele único dia de aula em Vale equivalesse a um mês de vivências em Serra. Se usualmente já não demorava a pegar no sono, adormeceu ainda mais rápido naquela noite de terça-feira, no instante em que repousou a cabeça sobre o travesseiro, satisfeita inclusive com seu quarto novo na Depenarq. Jamais saberia dizer se por influência de sua conversa com Loredana no final de semana, mas foi a primeira vez em muito, muito tempo, que sonhou com dálmatas – um bando deles, na realidade, uma matilha descansando tranqüilamente em um parque. Wendy precisava passar pelos dálmatas para chegar do outro lado do parque, mas com cuidado para que eles não a atacassem. Embora o sonho em si fosse ligeiramente incômodo, dada a possibilidade de a qualquer momento ser atacada por cachorros, Wendy sequer acordou; os dálmatas logo se transformaram em sorvete de flocos, o conteúdo do sonho mudou, e a garota acordou no dia seguinte sem sequer lembrar que sonhara. Quatro – O café e o camafeu –
N a quarta-feira, Wendy tinha aula apenas no turno da manhã, uma
teórica de Bioquímica, já que as aulas de Anatomia após o almoço iniciariam apenas na semana seguinte. Conforme Heloísa previra, o livro pelo qual o professor se orientava logo desapareceu da biblioteca, e muitos alunos se contentaram com o livro secundário ou com versões em pdf contrabandeadas entre os próprios estudantes. Wendy pensou que poderia tirar uma folga à tarde para procurar vagas de estágio, mas a carga de Biologia Celular e de Bioquímica tensionava acumular, por isso aceitou o convite de Heloísa para estudarem na biblioteca. Uma hora e meia se passou com ambas recitando conceitos uma para outra, até que Wendy, cansada de estudar, decidiu dar uma volta entre as estantes. Heloísa havia estourado a quota de livros que poderia levar para casa, por isso Wendy se ofereceu para pegar um por ela; foi a deixa para esticar as pernas um pouquinho. Passeou entre as estantes, adiando ao máximo o retorno à mesa de estudos para espairecer um pouco, observando as lombadas dos livros, lendo alguns títulos aleatoriamente e folheando alguns exemplares a esmo. Finalmente, ao encontrar o livro desejado por Heloísa e mais dois para si mesma, dirigiu-se ao balcão de atendimento para registrar os novos empréstimos com a bibliotecária, onde alguns estudantes aguardavam em fila com o mesmo objetivo. Aguardou pela sua vez na fila quase sonhadoramente, cantarolando baixinho, enquanto a bibliotecária atendia um aluno por vez; finalmente, quando sua vez chegou, a bibliotecária, em vez de chamar Wendy, ignorou-a, fazendo sinal para alguém muito atrás dela. Para indiscutível espanto e profundo desprezo da garota, a mulher havia sinalizado para que se aproximasse ninguém menos que Benjamin Klüsener, que, surgindo absolutamente do nada, desconsiderou completamente a fila que se formara atrás da garota e caminhou gingando até o balcão, onde se debruçou de mãos vazias sem sequer olhar para trás. — Que bom que você veio! — disse a bibliotecária, sorrindo enquanto ajeitava os óculos vinho na ponte do nariz — Aqui estão os documentos para assinar. Liam me disse que você tem andado ocupado, por isso não pôde vir antes. — Certamente. — respondeu ele, lacônico, mas não mal-educado; assinou algumas folhas com um movimento rápido e brusco, a caneta produzindo no papel um ruído estridente e um pouco irritante. Fim da amostra deste eBook. Você gostou? Compre agora ou Veja mais detalhes deste eBook na Loja Kindle