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Religiosidade e Interioridade em Agostinho
Religiosidade e Interioridade em Agostinho
Belo Horizonte
2011
Leonam Rocha de Almeida
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
_____________________________________________________
Prof. Dr. Lindomar Rocha Mota (Orientador) – PUC Minas
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Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva – PUC Minas
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Prof. Dr. Paulo Cezar Costa – PUC Rio
This dissertation conducted a study on the religious experience of St. Augustine, from the
consideration that his works can offer a rich and meaningful reporting regarding how
Christianity has solved the problem for one man's quest for truth. The main goal was assumed
to know the fundamental motivations of his life as a Christian. Thus, it was necessary to draw
the lines of his itinerary to know how he arrived in proclaiming of Christianity as the true
religion. It was necessary also to investigate the concept of man by which her life was shaped
after conversion to Christianity. And, as a consequence of the very nature of his
anthropological concepts, sought to understand how this author articulated his ideas about the
creation and final destination of humanity. In relation to which this conception of man may be
of interest to the scope of individual religious experiences, this survey showed that St.
Augustine, substantiated by biblical tradition, taught that man, created in God's image and
deformed by sin, should advance in knowledge and love towards the restoration of that image
in the hereafter.
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 9
1 INTRODUÇÃO
aos fiéis, por meio de carta apostólica, a exortação do sumo pontífice a que se mantivesse
sempre vivo e atraente o encanto do gênio nascido em Tagaste, na África. E foi mais ou
menos com esse espírito que iniciamos esta pesquisa, acreditando que se tratava de ir a fundo
num pensamento que ilumina, partindo de seu próprio centro de emissão, tudo o que viera
antes e tudo o que sucedeu-se depois.
Isso significa que nossa primeira hipótese sustenta o caráter inesgotável dos estudos
em agostinologia. Não por insuficiência dos estudos anteriores, mas por constatar que cada
geração, e cada período da história do ocidente, para compreender a si mesmos, deverão
encontrar e reencontrar sempre a existência fundamental de um homem chamado Aurélio
Agostinho.
Entretanto, para além da defesa da importância histórica desse pensador, também
damos um passo a frente para concordar com o especialista que, com rigor científico,
certificou-se de que
cada vez mais, cresce o número daqueles que, buscando recuperar o verdadeiro
espírito agostiniano, numa visão de totalidade de sua doutrina, vêm mostrando que o
pensamento do santo Doutor serve, também, para orientar as reflexões filosófico-
teológicas atuais, face aos desafios da contemporaneidade (COSTA, 2006, p. 80).
caminho de perfeição. O homem é imagem de Deus porque pode ser partícipe Dele; porque é
capax Dei, e isso significa que para o bispo de Hipona o sinal da grandeza humana é aquilo
que configura o “homem como uma tensão para Deus” (Carta Apostólica Augustinum
Hipponensem, II, 2). Nesse sentido uma das peculiaridades da experiência agostiniana é a
inquietude, justificada pela constatação de que nada abaixo do ideal Supremo pode oferecer
satisfação plena. Donde se vislumbra que, para ele, o destino final da criatura à imagem de
Deus define-se pela transcendência de termos como infinito, absoluto, eterno, pleno, feliz.
Diante da sublimidade de tal concepção, difícil seria encontrar um equilíbrio entre um
racionalismo cético ou um fideísmo irrefletido. Se existe esse equilíbrio, exemplar é a vida
daquele de quem é justo dizer: “Agostinho não tem qualquer ilusão sobre o alcance de nosso
conhecimento em relação à natureza divina [...] Não obstante [...] entrega-se a um esforço
considerável para alcançar pela inteligência o objeto de sua fé” (GILSON, 2007, p.413).
Agostinho é o homem a caminho, sua santidade é a caminho, sempre em busca de si mesmo,
jamais satisfeito consigo. Por isso, a melhor síntese de sua orientação espiritual enuncia-se no
duplo movimento que vai para dentro e para cima: interioridade e transcendência. E o
“término desse movimento interior é Deus” (CAPÁNAGA, 1957, p.125).
Quanto ao que se conquista durante a caminhada, com ajuda da graça divina, nenhum
dom é mais proeminente do que a caridade na doutrina agostiniana. A caridade realiza uma
ordenação no campo do amor, alterando a maneira como o homem frui de sua existência. O
progresso se dá à medida que há purificação e, por isso, não se progride sem que haja uma
mudança íntima em relação àquilo que é visado pelo desejo. Pois, se o “caminho da perfeição
é o caminho da caridade” (MORIONES, 1988, 17), e caminha-se amando, não pode haver
avanço enquanto a alma deleitar-se do mundo mais do que de Deus.
Encontraremos sempre em primeiro plano o cunho psicológico da ascese agostiniana.
A restauração da imagem de Deus na mente deve transformar o homem por completo, em
essência. O divisor de águas dessa transformação é o amor. Para Agostinho duas cidades
foram fundadas por dois amores e, na mesma medida, dois amores constituem homens
essencialmente diferentes. Essa distinção entre dois amores refere-se à caridade e
concupiscência. Isso permite caracterizar a restauração em dois sentidos. De um lado, a cura,
de outro, um embelezamento da imagem, que é o mesmo que dizer que a graça, pela qual
somos feitos participantes da natureza divina e filhos adotivos de Deus, é a operação divina
pela “qual a imagem de Deus no homem é não somente restaurada pela cura das chagas da
ignorância e concupiscência, mas também embelezada pela sabedoria e caridade”
(MORIONES, 1988, p. 36).
12
Mas enfim, que sentido a ideia de restauração da imagem de Deus na mente tem na
trajetória da vida do santo Doutor? Com essa pergunta vamos de encontro ao primeiro
capítulo deste trabalho. Buscamos seguir os passos de Agostinho, encadeando as etapas de
seu itinerário. O cristianismo foi a melhor resposta aos problemas que a busca pela sabedoria
lhe impuseram. Somente aí encontrou uma concepção de homem satisfatória e uma mediação
eficaz. Entretanto, desde a leitura do Hortêncio de Cícero já entrevera a imortalidade da alma
como destino do sábio e, desde a conversão ao platonismo, a noção de que a ascese do espírito
deve implicar no retorno a algo fundamental.
Quais os fundamentos e as características da antropologia agostiniana? O capítulo
seguinte responde a essa pergunta a partir de três linhas de exploração. Uma delas trata das
relações entre fé e razão; sobre as quais é importante notar que a introdução da fé no ofício do
pensar se deve a um novo conceito de racionalidade, que distancia o jovem professor de
retórica do projeto filosófico platônico. Outra, talvez a mais cara das assunções agostinianas,
resume-se na crença de que a verdade habita no interior do homem. Não é possível ter uma
correta compreensão do posicionamento de Agostinho frente à verdade revelada sem o
entendimento da interioridade como pressuposto fundamental. A terceira linha de exploração
parte da fonte bíblica, e por isso resulta em conteúdos mais sistematizados. A antropologia
agostiniana é cristã e, consequentemente, bíblica, portanto, tem como enunciado capital a
criação do homem à imagem e semelhança de Deus.
Qual a direção e meta do processo de restauração? No capítulo final exploramos ao
máximo nosso foco temático. A experiência religiosa de Agostinho nos parece essencialmente
dinâmica. Isso significa que é preciso ter clara noção daquilo que constituía sua meta, tanto
quanto dos meios de consecução e etapas do percurso.
É importante ressaltar ainda que, como Agostinho entendeu a palavra religião a partir
de suas raízes etimológicas1, que remetem à noção de religar a algo transcendente e, também,
noção de releitura da vida, optamos por manter essa referência, no sentido de acreditar que o
aprofundamento no tema nos fornecerá algumas conclusões sobre as soluções agostinianas
para problemas fundamentais da experiência religiosa. Parece-nos certo que o sujeito religioso
procura resolver pelo menos três problemas: a origem, a finalidade e as regras do viver.
Seguindo essa orientação, sustentamos a hipótese de que a restauração da imagem de Deus na
mente é um tema que pode dialogar com aspectos universais da religiosidade e, da perspectiva
agostiniana, deve revelar desdobramentos teológicos, filosóficos, éticos e psicológicos.
1
Sobre essa assertiva ver a obra A verdadeira religião.
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nenhuma estrela, e inicia o primeiro livro de seu relato autobiográfico fazendo de si uma
psicologia aplicável a qualquer criança comum, presente de atividades instintivas e afetos
primitivos.
Já o segundo livro das Confissões é intitulado “os dezesseis anos”. Aparece aí a
imagem de um jovem cheio de soberba, colocado em conflito com as autoridades. A idade dos
dezesseis anos é apontada como um marco, a partir do qual finalmente se entregou às paixões
do mundo. Acabava de nascer um pecador voluntário, capaz de roubar peras somente pela
satisfação do êxito no roubo. (Confissões, II, 4, 9)2.
É nítido o conflito do jovem com os ideais paternos e maternos. O pai ambicioso pela
fama intelectual do filho; a mãe esperançosa com o futuro espiritual dele. Agostinho
confessou que não correspondia bem a tais desejos, visto que se interessava pelo mundo.
Buscava mais a aceitação do grupo e superação dos colegas. Interpretou tal conduta como
busca por amar e ser amado. Em suma, apesar de ter se mostrado um jovem talentoso e de boa
índole, esses primeiros relatos mostram que o nosso Santo também foi vítima de uma
adolescência conflituosa e turbulenta.
Aurélio Agostinho nasceu em uma província africana no período do Baixo Império
Romano. Isso significa duas desvantagens graves quanto à situação geral: o império estava em
fase de declínio, passando por longa crise social, econômica e política; e por decorrência
desse movimento, as províncias eram as mais afetadas por injustiça e exploração. Quanto ao
aspecto religioso, ao contrário, isso significa patente vantagem: o cristianismo estava em
processo de oficialização pós-Constantino.
O Império Romano enfraquecido com a crise do século III depara-se com uma Igreja
forte. O imperador Constantino [...] iniciou uma nova política com relação aos
cristãos [...] seus vários éditos, expedidos em 313, simplesmente davam ao
Cristianismo uma igualdade de situação com os cultos pagãos. Com isto foi pondo
fim à primeira política de perseguição dos cristãos. Posteriormente, concedeu certos
privilégios ao clero cristão e determinou que seus filhos fossem educados na nova
fé, mas continuou a manter o culto imperial (SOUZA, 2001, p. 10).
O efeito da crise para as províncias era sentido na desigualdade social. Havia contraste
visível entre classes: idioma, moradia, estética, profissões; signos de inclusão e privilégio
numa África que “alimentava Roma mas não conseguia alimentar-se a si mesma” (SOUZA,
2001, p. 15). A Igreja, desde o século II, obtinha sucesso em constituir-se nesse ambiente,
2
Todas as citações de Agostinho aparecem com o título em tradução para o português, seguidas das referências:
livro, capítulo e subcapítulo ou paginação original, quando for o caso. Optou-se por isso para facilitar a leitura.
Entretanto, nas referências bibliográficas constam os títulos correspondentes ao idioma em que a obra foi
consultada, no caso, português ou espanhol.
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mas o povo era marcado mais pela “incidência da mensagem na vida cotidiana, já que era
muito pragmático” (SOUZA, 2001, p. 14). Como característica negativa, havia uma divisão
crítica entre católicos e donatistas (cristãos extremistas e violentos) – que Agostinho viria a
combater no plano doutrinário.
De acordo com as pesquisas complementares da biografia de Peter Brown, Agostinho
cresceu num ambiente tipicamente rural da África romana. Isso significa que um orgulho e
amor pela cultura civilizada conviviam com a existência de uma dura competitividade entre,
digamos, supostos candidatos a emergentes. Ficar rico não era uma opção possível, o caminho
para se tornar um membro da cidade passava pela educação clássica, “era um dos únicos
passaportes para o sucesso” (BROWN, 2005, p.25). Nesse contexto, também é importante
notar que os africanos romanos se faziam conhecidos pelo gosto dos debates públicos. Para
aquele que se tornasse exímio orador, havia a possibilidade de ser tomado como advogado por
algum nobre benfeitor (patroni de alguma comunidade), e assim defender seus interesses em
fórum público. Esses esclarecimentos de contexto são o passaporte para chegar ao pai do
jovem Agostinho.
A memória de seu pai, Patrício, quase se perde num ostracismo inquietante para o
investigador de sua vida. Por que falou tão pouco dele, enquanto, ao contrário, encheu de
louvores sua mãe? Por que nem mesmo relatou as dores de sua morte, já que o perdera no
cume de uma adolescência turbulenta? Não obstante, o pouco que falou dele já é o suficiente
para especulações bem significativas. Patrício sem dúvida era o provedor da família. Era mais
ou menos pobre, mas não deixou relatos de nenhuma conduta grave que o desabone. Não
sabemos se era austero ou permissivo, sabemos que era agressivo, todavia, está claro no
primeiro livro das Confissões que esse homem efetivamente participou da educação de
Agostinho. Quis que o filho fosse homem de sucesso social e, para isso, investiu na única via
possível – a educação. Não há dúvidas de que houve esforço de sua parte para que Agostinho
concluísse seus estudos. Sem nos alongar nesta discussão, verificamos sem hesitar o desejo de
Patrício sobre o filho, a ponto de idealizá-lo. E concluímos: há um pai nessa história.
Mas o fato é que o cunho religioso da escrita das Confissões impede a exploração da
complexidade de uma obra verdadeiramente biográfica. Ali Agostinho julga mal seu pai. A
ênfase recai no erro do homem pagão, na futilidade de suas ambições. Não encontramos
gratidão pelos esforços, nem mesmo a confissão da dívida simbólica do filho que aprendeu
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valores com o pai. Paira aí qualquer coisa obscura (pano de fundo para especulações
psicológicas, talvez)3.
O caso de Mônica é diferente. Uma das vertentes importantes das Confissões é o foco
com que localiza a relação mãe-filho. Agostinho parece criar ali o paradigma da mãe cristã,
falando daquela que “pelo coração, fez-me nascer para a vida eterna” (Confissões, IX, 8, 17).
Mônica aparece sempre como um poço de virtudes cristãs, a começar pela fé
fervorosa. É interessante como o texto faz conjugar a pureza de espírito com a sabedoria nessa
mulher. É cristã, mas apoia e sabe julgar a importância da educação pagã clássica recebida por
seu filho. Não possui educação formal, mas é capaz de ter sonhos premonitórios e interpretá-
los com clareza intuitiva. No diálogo A vida feliz, fica-se surpreso com suas participações,
contribuindo com perspicácia quase filosófica aos debates. Por outro lado, é também figurada
como esposa fiel e submissa, além de ligada aos sacramentos e à vida comunitária da igreja.
Mas o ponto mais importante dos relatos de Agostinho reside no fato de que Mônica é
apresentada exercendo integralmente a função materna, de forma excepcional. O leitor fica
com a impressão de que o cuidado do filho - acompanhá-lo e fazê-lo cristão - foi algo como
uma missão de sua vida. Em algumas passagens tem-se a impressão de um exagero edípico de
Agostinho (por exemplo, seus irmãos quase nem chegam a entrar na história), mas, tomando a
antiguidade da obra, e tomando a intenção do autor de dedicá-la à memória de sua mãe, não
há como ter dúvidas de que há também ali a intenção de fundar a imagem imaculada de uma
mãe cristã. Agostinho, tal como o filho de Maria, também foi um filho ameaçado pela morte,
mas pela morte da vida mundana e, Mônica tudo fez para não perdê-lo na fé. Figuras e
coincidências à parte, o filho de Mônica também encontraria sua cruz espiritual aos trinta e
três anos. Cristão batizado, homem que ao ver a morte da mãe pôde calar-se vencido “pela
voz do espírito” (Confissões, IX, 12, 29).
Se esse quadro sumariamente apresentado acima for tomado como base, como
referência da bagagem familiar e cultural, um resumo pode ser oferecido com ênfase em três
aspectos. Sobre a herança paterna, o interesse de investigação volve aqui à educação de
Agostinho. A educação clássica constitui a matriz da estrutura intelectual desse sujeito, e
mais, em seu tempo, introduziu o jovem no turbilhão das oportunidades. O filho de Patrício
fez-se um exímio orador e homem ambicioso e competitivo. Guardou essas características por
3
Um indício de que talvez o relato das Confissões mascare o peso real da morte de Patrício, encontra-se no
diálogo Contra os Acadêmicos (II, 2, 3). Ali Agostinho admitiu ter necessitado de consolações e conselhos da
parte de Romaniano, patrono e amigo muito presente em sua vida.
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Apesar de nunca ter demonstrado vocação para continência e austeridade moral, a fase
de rebeldia adolescente parece ter durado pouco. A imagem a que somos remetidos quando
buscamos o Agostinho estudante é a de um jovem de espírito liberal, amante dos prazeres
lícitos e ilícitos, mas de boa índole, educação, provavelmente até dotado de inteligência
notavelmente eminente; amante do teatro, capaz de ler os livros da intelectualidade da época;
custeado pelo pai, para estudar retórica em uma cidade importante de sua localidade –
Cartago, na África mediterrânea.
Aos dezenove anos de idade, já há dois órfão de pai, esse jovem despertou para o amor
da sabedoria encantado com uma obra de Cícero chamada Hortênsio. O próprio Agostinho
informou sobre o livro: “é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que
ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas
aspirações e desejos” (Confissões, III, 4, 7).
O agente de tal transformação pessoal foi explicitado objetivamente: trata-se da crença
de alcançar a imortalidade pela sabedoria. Tem-se aí o marco, o nascimento de um propósito
de vida para o homem Aurélio Agostinho. Foi notavelmente fiel a tal propósito: uma vida
dedicada à busca do Bem-supremo.
O modo como o jovem compreendeu a mensagem de Cícero nos parece peculiar e até
inesperado. Qualquer estudante moderno, mesmo de família cristã, pensaria que o despertar
para a sabedoria filosófica deveria abrir um longo caminho de estudos e erudição. Mas, ao
contrário, o relato do ocorrido refere-se a uma súbita mudança íntima de seus desejos e
aspirações. Ao fazer da sabedoria o objeto de uma busca, no caso de Agostinho, tratava-se de
vivenciar um novo sentimento de prospecção ao futuro, acompanhando uma experiência de
cunho religioso; e não meramente a curiosidade ou interesse intelectual.
Esse marco na vida de Agostinho deve esclarecer muito do que se procura aqui em
termos de genealogia da busca espiritual. Na verdade, pelo menos simbolicamente, somente a
partir daí é que se pode localizar o inicio de uma busca em sua vida ou, de acordo com
Étienne Gilson, esse evento “permaneceu para ele como o primeiro passo no doloroso
caminho que deveria conduzi-lo para Deus” (GILSON, 2007, p. 17). Tinha dezenove anos e,
logo já seria um professor de retórica em Cartago, um homem da sociedade do baixo império
romano; seria professor, e adepto (ouvinte) numa seita gnóstica denominada maniqueísmo.
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que queira, que se proponha a fazer isso estará trilhando a estrada que leva aos deuses”
(SÊNECA, 2009, p. 122).
Mas como não é somente o exemplo de Sêneca que vem ao socorro da tentativa de
compreender essa “aura religiosa” da filosofia indicada por Peter Brown, seria possível ir a
fundo nessa questão e vasculhar toda a tradição da filosofia antiga. Já em Contra os
Acadêmicos, por exemplo, o primeiro livro escrito após a conversão, isso parece encontrar
confirmação, pois, o próprio Agostinho atribuiu aos “antigos” o conceito de sabedoria como
“ciência das coisas humanas e divinas” (Contra os Acadêmicos, I, VI, 16). Mas, para manter a
coerência com o propósito da presente investigação, segue-se aqui somente um comentário de
linhas gerais.
A origem da palavra filosofia está inextricavelmente atrelada à religiosidade na Grécia
antiga. Mais precisamente, o período helênico foi marcado por uma transformação em que
explicações racionais do mundo tentavam substituir as explicações mitológicas até então
vigentes. É consenso entre os historiadores da filosofia que “a filosofia surgiu como uma
forma de explicar o mundo em contraposição às formas narrativas mitológicas”
(GHIRALDELLI JR., 2008, p. 14). Hadot (2008) corrobora essa afirmação. Esse autor
demonstra que a filosofia é um movimento difuso que nasce por volta do século VI a.C., um
movimento que pode ser mais apropriadamente entendido como uma reviravolta no
pensamento vigente na Grécia arcaica. Não há uma conexão explícita entre os diversos
pensadores que viveram nessa época, todavia, de acordo com Hadot, “esse pensadores
propõem uma explicação racional do mundo” (HADOT, 2008, p. 28).
Está implícita na ideia de ‘cosmogonia’ a elaboração de fundamentos para responder
às questões últimas que se apresentam ao espírito: a criação do mundo e a criação e o sentido
do homem. De acordo com Hadot (2008, p. 29), a noção expressa pela palavra physis e a
tentativa de caracterizar a physis universal seria como que um ponto de convergência entre as
primeiras cosmogonias surgidas nesse período de florescimento intelectual no qual nasce a
filosofia. Era uma noção que continha certo automatismo, e servia para expressar a ideia de
um processo físico natural com início, desenvolvimento e resultado. E, tamanha é a
importância dessa intuição originária que, mesmo posteriormente, as “as teorias racionais, em
toda a tradição filosófica grega, serão influenciadas por esse esquema cosmogônico original”
(HADOT, 2008, p. 29).
É dentro desse contexto, em que o saber sobre a physis pode significar triadicamente
tanto ciência física, como conhecimento da alma, ou ainda saber moral e político, que a ideia
de sabedoria emerge como algo presente e importante na vida daqueles povos. Filo-sofia virá
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a significar assim um honroso interesse por uma atividade nobre e pouco acessível. No texto
de Hadot (2008, p. 43), sophia é algo que aproxima o homem dos deuses, carregando todas
essas conotações entre saberes práticos, os saberes da boa vida e da política, os saberes das
ciências e da contemplação.
Ao que tudo indica, os desenvolvimentos da filosofia e das cosmogonias racionalistas
resultaram numa profunda modificação do politeísmo mitológico da Grécia arcaica (exemplo
disso encontra-se entre as acusações que levaram à condenação de Sócrates). Tomando-se
uma definição clara e resumida do que configura um panteísmo, essa afirmação torna-se
justificável. Segundo a síntese de Russel (1991, p. 131)4, o panteísmo é a crença de que Deus
é o próprio universo; não há o ato de criação, e sim uma força criadora que causa o
desenvolvimento e a evolução em si mesmo. Sendo assim, é possível afirmar que a mais
profunda relação entre filosofia e religião veio a se expressar primeiramente numa
modalidade de panteísmo. Mas, não obstante nossa preferência por tal afirmação, não há uma
unanimidade entre os especialistas sobre o uso do termo panteísmo em relação ao contexto
daquele longo período de séculos – o helenismo. E, de fato, não é necessário nos prendermos
aqui a essa problemática. O que mais interessa é localizar uma relação, que acabou por se
estabelecer na tradição, entre a ideia de sabedoria e a ideia de uma Inteligência divina – ideia
que o próprio Agostinho (Contra os Acadêmicos, III, XVII, 37) resgatou do platonismo, na
doutrina da oposição entre mundo sensível e mundo inteligível.
Todavia, Pierre Hadot propõe que em quase todas as escolas filosóficas da antiguidade
esteve presente a ideia de um tipo de relação entre a alma e o cosmos. Isso é um primeiro
dado. Nesse sentido, “um dos exercícios espirituais recomendados por Platão consistia em
uma espécie de dilatação do eu na totalidade do real” (HADOT, 2008, p. 290). Trata-se de
uma ideia profundamente religiosa que tinha por principal função alterar o modo do homem
se colocar diante da morte, e o modo de se portar diante das coisas do mundo humano. Ideia
que também resultava num distanciamento e elevação do pensamento. O autor demonstra a
presença desse tipo de ideia na contemplação aristotélica da natureza, no mergulho epicurista
no infinito, no voo dos estoicos até a felicidade plena da integração à totalidade, além de
Ptolomeu, Cícero, Sêneca, Ovídio, entre outros, sempre com o mesmo sentido de tomar
consciência da participação no Todo. E é justamente essa representação de um Todo,
entendido a partir da noção de physis, sem uma referência explícita a um Criador, que permite
localizar na Grécia clássica uma espécie de tendência ao panteísmo.
4
Todas as citações diretas e indiretas de textos consultados em outros idiomas aparecem em tradução nossa para
o português.
23
Todas as outras coisas têm parte de cada coisa, mas a inteligência é ilimitada,
independente e não misturada a alguma coisa, mas é só em si mesma [...] ela é a
mais sutil e mais pura de todas as coisas, possui pleno conhecimento de tudo e tem
imensa força. E todas as coisas que têm vida, as maiores, são todas dominadas pela
inteligência [...] todas a inteligência reconheceu; e as coisas que estavam para ser, as
que eram e agora não são mais, todas as que são agora e as que serão, todas a
inteligência dispôs (ANAXÁGORAS apud REALE, 2007, p. 63, 64).
5
Não se trata de afirmar que santo Agostinho não soubesse distinguir os campos da filosofia, teologia e religião,
até porque, jamais se pronunciava temerariamente e, mais ainda, fora sempre cuidadoso com a etimologia das
palavras. Trata-se somente de pontuar uma convergência entre esses campos no que se refere à busca pela
sabedoria. Basta-nos aqui a citação: “se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como
demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus” (A Cidade de Deus,
VIII, 1). Note-se também a especificação “verdadeiro filósofo”.
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para o presente propósito, em que é de suma importância localizar a busca agostiniana em sua
raiz, preferimos fixar-nos nesse campo de lindes imprecisas. Sabemos dos contatos de
Agostinho com a leitura de Cícero, e das profundas modificações interiores sofridas. Assim,
com base no que foi dito acima, torna-se possível vislumbrar de relance a origem histórica do
que para ele significou despertar para a busca da sabedoria.
Agostinho relatou que seu primeiro movimento após essa súbita conversão filosófica
foi buscar nas sagradas escrituras adotadas pelos cristãos. Afora a ideia que se fez acima sobre
a origem e uso filosófico da palavra sabedoria, que, para Agostinho (A Cidade de Deus, VIII,
2), remonta a Pitágoras, que teria forjado o nome filosofia justamente para marcar o aspecto
superior aos limites humanos com respeito à sabedoria; além do que foi visto sobre a
influência de Mônica, talvez isso tenha ocorrido também devido a:
O cristianismo do século IV deve ter sido apresentado a um menino desse tipo como
uma forma de ‘Verdadeira Sabedoria’. O Cristo da imaginação popular não era um
Salvador agonizante. Não havia crucifixos [...] Nos sarcófagos da época Cristo é
sempre exibido como um Mestre, ensinando sua sabedoria a um séquito de filósofos
novatos (BROWN, 2005, P. 50).
Orígenes, Gregório de Nissa, Cipriano, entre tantos outros? Havia séculos o cristianismo se
confrontava com as doutrinas filosóficas e, seguindo Étienne Gilson (2006, p. 31), em O
espírito da filosofia medieval, desde Fílon ou Justino, já seria possível pensar na ideia de
filosofia cristã. Como entender que santo Agostinho simplesmente tenha passado os olhos
sobre as escrituras descartando-as com desdém, se logo em seguida aceitou uma seita mais ou
menos cristã, o maniqueísmo?
Talvez devamos nos contentar com a suposição de que apesar de gênio promissor, o
jovem Agostinho jamais foi um leitor assíduo e minucioso. Peter Brown acha “difícil
imaginar Agostinho como leitor” (BROWN, 2005, p. 113). Mas isso não parece
suficientemente verdadeiro, até porque os relatos que ele mesmo deixou apontam para uma
boa atividade e competência na vida intelectual. Duas hipóteses nos parecem mais plausíveis.
Primeiramente é um fato que a boa educação naquele mundo romano era uma educação pagã.
Sabe-se que sua oratória e cultura geral foram formadas na leitura dos grandes autores do
paganismo latino, basicamente literatura. Não há em seus relatos qualquer referência a autores
cristãos e, pelo contrário, essa educação pagã carregava certo sentimento de superioridade da
tradição clássica. Em segundo plano, sua educação religiosa também não parece ter passado
pela introdução às grandes questões teológicas. Talvez até não fosse muito diferente daquilo
que um jovem brasileiro moderno na maioria dos casos aprende em casa, na escola e no
catecismo: a fé em Jesus Cristo, preceitos morais, vida comunitária, orações e sacramentos –
somente argumentos de autoridade. Ou seja, para o jovem, a razão provavelmente não era
convocada a justificar a fé.
Sob a consideração de que “essa igreja africana era excepcionalmente tacanha e
conservadora” (BROWN, 2005, p. 51), é fácil imaginar que o jovem de espírito liberal e de
muitas ambições mundanas não se sentisse nem um pouco atraído ou motivado a aprofundar-
se por conta própria nos verdadeiros mistérios cristãos. Pelo contrário, o evangelho fechado
tal como lei, certo ranço de judaísmo, somando-se à postura autoritária dos bispos, seriam
mais dotados a reforçar sua postura reativa: o que mais se esperaria de uma personalidade
juvenil marcada pelo fascínio da autonomia racional? Tanto em Cícero quanto no
maniqueísmo foi a possibilidade de alcançar a sabedoria somente pela razão que atraiu
Agostinho – e, consequentemente, alcançar a verdade sem a dependência quanto à autoridade
da fé. (COSTA, 1999, p. 52).
Sendo assim, é sob esse prisma que se torna possível compreender o teor da primeira
leitura bíblica de Agostinho. Admite-se que o estilo não lhe pareceu agradável por falta de
sofisticação. Assim como também no conteúdo faltava a sedução dos argumentos puramente
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racionais. Definitivamente não era isso que ele procurava, porquanto submeter-se à fé não
fosse uma alternativa naquele momento.
Mas por que caiu nas malhas do maniqueísmo, ao invés de seguir a trilha filosófica?
Há um primeiro motivo na importância especial da figura de Cristo em seu universo pessoal.
Acreditava que não daria crédito pleno a uma doutrina que não carregasse o peso desse nome.
(Confissões, III, 4, 8). E, por outro lado, além de arrogarem a si o qualitativo de cristãos, os
maniqueus prometiam um caminho para Deus através do exercício livre da razão. (COSTA,
1999, p. 52) sem necessidade de submissão à autoridade nenhuma. Agostinho não poderia
desejar nada diferente disso.
Até chegar a ultrapassar a visão materialista do mundo, Agostinho ainda precisaria da
influência fortuita da ideia de luz imutável do neoplatonismo de Plotino. Influência que veio a
ser também para ele a descoberta do sentido da interioridade. (Confissões, VII, 10, 16). Na
fase em que aderiu ao maniqueísmo, a influência filosófica que parece ter fortalecido sua
permanência nessa seita é outra, trata-se da obra As Categorias de Aristóteles, que lera aos
vinte anos de idade. Esta é uma esclarecedora indicação de Marcos Roberto Nunes Costa, que
considera que “tal obra – As Categorias -, iria, também, contribuir fortemente para a entrada e
permanência de Agostinho no maniqueísmo, ao oferecer-lhe o conceito de substância material
(Hyle)” (COSTA, 1999, p. 50), já que “a partir daí [...] passaria a pensar tudo como substância
material (Hyle) inclusive Deus” (COSTA, 1999, p. 51).
A pertinência dessa hipótese é corroborada pela própria visão de Agostinho sobre o
seu passado. O que o prendia a uma seita que pregava um Deus em forma de luz material era
justamente o seu materialismo. Se considerarmos “evidente que [...] Agostinho quer apontar a
reviravolta que provoca a tese platônica do atributo divino da incorporeidade, devidamente
conciliada com as primeiras palavras do evangelho de João” (RAMOS, 2009, p.198), torna-se
evidente que esse deve ser o sentido da ênfase no relato das Confissões sobre as
transformações ocorridas após o encontro com o neoplatonismo. Ele provavelmente quis
revelar que essa era a chave que precisava, para vencer o ultimo grilhão, o materialismo - e a
consequente impossibilidade de conceber a realidade da dimensão espiritual.
Uma rápida explicação sobre o que foi o maniqueísmo nos parece suficiente para
confirmar tanto o materialismo desta doutrina quanto outras características que, em conjunto,
deviam servir bem como atrativos a Agostinho.
Para começar, deve-se notar que essa doutrina foi fundada por um único homem, cerca
de pouco mais de um século antes do nascimento de Agostinho e, já no final do século IV, era
uma seita amplamente difundida por diversos países e regiões. Por ter sido mal vista por
27
a ideia de que todos os grandes mestres da história, até mesmo Cristo, seriam como que
espíritos mais evoluídos que teriam descido à Terra para trazer ensinamentos aos homens e
contribuir com a evolução do planeta.
Dois aspectos do maniqueísmo devem ainda ser apontados, para facilitar o
entendimento da permanência de Agostinho nessa seita. Primeiramente o dualismo,
subjacente à ideia da existência de dois princípios antagônicos eternos no regimento do
mundo: o Bem e o Mal, a luz e as Trevas. Mas também a moralidade ascética exacerbada
entre os membros maniqueus.
Agostinho se achava intimamente preocupado com o problema da existência do mal.
Não somente o mal físico, mas o mal moral, algo que ele experimentava em si mesmo. Essa
questão o levava ao extremo de ter que se perguntar sobre a bondade de Deus. Haveria um
paradoxo: como um Deus bom criaria também o mal? Sobre esse questionamento, o
maniqueísmo lhe apresentaria respostas bem convenientes ao seu desejo íntimo: “eram
dualistas, tão convencidos estavam de que o mal não poderia provir de um Deus bom”
(BROWN, 2005, p. 58).
A solução maniqueísta para o problema do mal viria assim, paradoxalmente, propiciar
para Agostinho a solução para dois problemas íntimos seus. Diante da concupiscência
generalizada da carne, Agostinho mantinha dois desejos opostos. De um lado era corroído
pelo sentimento de culpa e de insatisfação consigo mesmo. Mas também, inversamente, não
encontrava força interior suficiente para querer abandonar os prazeres da vida. Sendo assim,
com a divisão irredutível de sua natureza a dois princípios opostos, poderia ao mesmo tempo
desculpar-se por saber existir o princípio bom, e resignar-se pela independência do principio
mal. O maniqueísmo servia somente para preservar o lado bom, pois o lado mal não seria
totalmente vencido em vida. Com isso é possível afirmar que a “evitação elaborada de
qualquer sentimento íntimo de culpa viria, mais tarde, a se afigurar [...] como o traço mais
evidente de sua fase maniqueísta” (BROWN, 2005, p. 61). E suas palavras provam que ele
chegou a ter consciência disso posteriormente.
O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido
satisfazia o meu orgulho; desse modo eu não permitia que curasses minha alma que
pecara contra ti preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava
em mim, mas não era eu (Confissões, V, 10, 18).
Tanto que Agostinho se manteve somente ouvinte entre os maniqueus por nove anos.
Apesar de ser atraído pelo ascetismo deles, postergou o quanto foi possível sua adesão entre
29
os membros, já que aos ouvintes era reservada uma larga complacência moral. “Os maniqueus
eram homens austeros. Na época, eram conhecidos por seus rostos pálidos” (BROWN, 2005,
p. 61), mas, Agostinho preservou esse lado pecador do qual diz que “estava em mim, mas não
era eu”, apesar de ter sido convidado a se tornar membro.
Mesmo com o pé atrás, sem jamais adentrar plenamente ao maniqueísmo, nosso autor
cultivou por nove anos uma simpatia pelo ascetismo dos membros maniqueus. A eles eram
feitas árduas exigências sobre a vida sexual, alimentação e trabalho. (COSTA, 1999, p. 65).
Mas o cerne do que o mantinha em erro era a incapacidade de refutar o materialismo dualista,
central naquela doutrina. O bem seria uma substancia luminosa. E o mal seria o próprio
oposto de Deus, ou seja, a Matéria. Daí que o ascetismo proposto pela seita se lhe apresentava
pleno de sentido:
Com uma moral ascética, pensava-se afastar o homem do mundo material e com isso
enfraquecer as amarras do corpo e libertar a alma para as coisas mais elevadas. Ou
seja, a moral maniquéia faz parte do processo de libertação do Salvador (COSTA,
1999, p. 64, 65).
2.3 O ceticismo
Pouco mais adiante, explica que sua posição cética o encaminhava a um ecletismo
doutrinário. Já não acreditava ser possível alcançar a verdade. Por esse motivo mantinha um
interesse eclético por várias doutrinas filosóficas, flutuava por elas. Chega a dizer que as
opiniões da maioria dos filósofos sobre a estrutura do mundo e da realidade sensível lhe
pareciam bem aceitáveis.
Infelizmente Agostinho não relatou detalhadamente as influências pessoais, amigos ou
as leituras que embasavam essa sua fase de filósofo cético. Há motivos claros para pensar em
Cícero, o maior dos ecléticos, já conhecido e citado por Agostinho. Mas a impressão que fica,
em primeiro lugar, é que esse ceticismo temporário manteve-se meio em segredo. Pois ainda
frequentava os maniqueus em Roma e, posteriormente, em Milão, tornou-se catecúmeno na
igreja de Ambrósio, frequentando seus sermões (essa relação com a figura de santo Ambrósio
é um capítulo à parte no itinerário de Agostinho e será tratada adiante). (Confissões, V, XIV,
25). Sendo assim, fica difícil imaginar que ele pudesse sustentar um ceticismo declarado.
O meio mais confiável para definir as posições filosóficas que influenciaram
Agostinho nesse período é seguir aquilo que ele mesmo comunicou de sua compreensão a
respeito da filosofia dos Acadêmicos. O diálogo intitulado Contra os Acadêmicos traz uma
exposição sobre essa doutrina, a refutação dela e também uma reinterpretação de seus
propósitos. Não obstante ser uma obra posterior à conversão ao cristianismo (assim como
tudo o que temos de Agostinho), essa obra é o relato mais fidedigno do conhecimento que
Agostinho devia ter sobre o tema. Partindo do que se encontra escrito ali, abre-se a
possibilidade de imaginar o que essa adesão ao ceticismo acadêmico teria significado para o
jovem homem descrente do maniqueísmo, ao mesmo tempo sedento e desencantado da busca
pela verdade (sabedoria).
Agostinho afirma, em meio ao diálogo, que já havia refletido longamente sobre os
problemas suscitados pelas proposições dos céticos Acadêmicos. Essa afirmação e também as
citações dos principais nomes envolvidos com o tema, tais como Pólemon, Arcesilau,
Carnéades e Cícero permitem acreditar que ele teve contato íntimo com textos desses autores.
Ou, em caso contrário, que seu conhecimento deles foi possibilitado pelas compilações de
Cícero. A única alusão feita a um texto específico aparece no final do terceiro livro, trata-se
da obra Acadêmicos, de Cícero6.
6
Devido às citações constantes e exclusivas de passagens de Cícero, das limitações de leitura devido a
Agostinho não dominar o idioma grego, além da forma sistematizada como expõe as doutrinas dos Acadêmicos,
acreditamos que as principais fontes que conhecia provinham mesmo de Cícero. Outro fator que pode corroborar
esse parecer é a centralização da análise no ceticismo Acadêmico, remontando sua origem à academia de Platão
e aos conflitos com o estoicismo, o que pode indicar a referência básica dos manuais de filosofia. Agostinho não
considera a linhagem cética de Pirro, também não faz distinção entre o ceticismo e o ecletismo, tal como fazem
os historiadores da filosofia contemporâneos. (REALE, 1997).
32
Cícero era respeitadíssimo pelos homens cultos do império. Para Agostinho trata-se de
autoridade inegável. E apesar do cristianismo já ocupar nessa época lugar de religião oficial,
definitivamente o universo intelectual não era prioritariamente cristão. Como se vê na
formação do próprio Agostinho, o que prevalecia era a cultura pagã clássica. Muitos eram os
homens ainda avessos à religião cristã, como por exemplo, Símaco, prefeito de Roma, que
muito ajudou Agostinho em sua carreira. Diante desse quadro, não “chega surpreender,
portanto, que a ‘Nova Academia’ de Cícero, durante algum tempo, tenha conferido
respeitabilidade intelectual à decepção de Agostinho” (BROWN, 2005, p.96). E mais, como
aponta Peter Brown (2005), ao se distanciar de uma visão tão rígida e fechada quanto a do
maniqueísmo, o ceticismo possibilitou a Agostinho uma nova compreensão da busca pela
sabedoria, pois passou a aceitá-la como uma busca prolongada (talvez até sem um fim
possível).
Tal foi o impacto dessa doutrina, que Agostinho, interrogado sobre os fundamentos de
sua refutação, ainda se diz ali, meio ironicamente, afetado por ela. A afirmação acaba por
conter também uma crítica ao que o ceticismo produz de preguiça e indolência em seus
adeptos:
Não sabes, pois, que ainda não tenho nada como certo e que os argumentos e
disputas dos Acadêmicos me impedem de procurá-lo? Pois não sei de que modo me
fizeram admitir como provável [...] que o homem não pode encontrar a verdade. Isso
me deixara preguiçoso e indolente e eu não ousava buscar o que homens tão
inteligentes e doutos não conseguiram encontrar. Se não conseguir convencer-me da
possibilidade de encontrar a verdade tão fortemente quanto os Acadêmicos estavam
convencidos do contrário, não ousarei procurar e não tenho nada a defender (Contra
os Acadêmicos, II, IX, 23).
sentido da alma. E se corrige: “em verdade, deveria ter dito ‘em Deus’, porque o sentido da
alma goza Dele” (Retratações, I, 1, 2). E se esse ainda era um erro no período recente de sua
conversão ao cristianismo, mais ainda deve-se supô-lo em sua fase cética.
As duas premissas principais que Agostinho atribuiu a esses novos Acadêmicos são: a
impossibilidade de conhecer a verdade e o dever do sábio de não dar assentimento a nada.
Mas, não obstante, essa doutrina não se interessava por abandonar o exercício filosófico,
como se vê, por exemplo, no relato sobre Carnéades, que se recusava a ocupar-se de qualquer
outra coisa. Essa figura do homem que não dá seu assentimento a nada, que se mantém na
dúvida, essa é a imagem do sábio da nova Academia.
Os principais argumentos que Agostinho conheceu em favor da doutrina cética são
expostos brevemente no segundo livro do diálogo. Consta que tudo começou com uma
contenda entre Zenão e Arcesilau. Diante da posição de Zenão “segundo a qual só pode ser
percebida como verdadeira uma representação que é impressa de tal modo na alma pelo
objeto de onde se origina que não pode sê-lo por um objeto donde não se origina” (Contra os
Acadêmicos, II, IV 11), Arcesilau e, em consequência, os aqui chamados Acadêmicos,
negaram a possibilidade de ser encontrado tal sinal de verdade. Esse fora o pontapé inicial.
Outro argumento forte, para o qual há uma extensa citação de Cícero, são os inúmeros
desacordos entre os filósofos, o que é interpretado como demonstrativo de que a distância
irredutível entre as doutrinas talvez seja um indício do erro generalizado de seus defensores.
Em seguida considera-se a ilusão a que os sentidos estão expostos em sua atividade, de forma
a não se poder considerá-los como fonte idônea para o conhecimento. Pelo que parece,
exemplos como o do remo colocado na água eram usados neste sentido de convencimento. Há
também os sonhos e os delírios, os quais representam não realidades óbvias. Além das
mentiras, sofismas e sorites. Daí seguiu-se a conclusão de não se dar assentimento a nada. O
próprio estoico Zenão defendia que não se devia opinar, já que a opinião era algo menor,
desprezível, e então, operando o argumento sobre a impossibilidade do conhecimento
verdadeiro, concluíram os Acadêmicos que o sábio não deveria nunca aprovar nada.
Sob a consideração de que esse sábio sustenta um princípio de conduta, em detrimento
da verdade em si, imaginamos o cético Agostinho como um homem interessado na erudição e
modo de vida de homens como Cícero. Talvez esse tenha sido mesmo um momento de
mudanças marcantes no horizonte intelectual de Agostinho, após nove anos de maniqueísmo.
Poderia abandonar sua busca prioritariamente religiosa e concentrar-se mais na ambição de
uma carreira de sucesso. E de fato existem vários exemplos romanos de homens cultos e
influentes politicamente, amantes da boa vida, possuidores de bens e favores, tais como
34
Cícero, Sêneca e outros senadores diletantes, e até um imperador, Marco Aurélio. Ou ainda
homens de seu tempo, como Romaniano, mecenas de Agostinho, ou o prefeito Símaco, e
muitos outros com quem poderia identificar-se, de modo que seria inútil investir em citações.
Se a prática da mecenagem a homens cultos, pelos chamados patronos, era um lugar comum
no mundo romano, tal como se propõe a seguir, então é certo que um horizonte de ascensão
social esteve aberto para aquele promissor professor de retórica.
Mas, definitivamente não era esse o destino de Agostinho, tanto que essa fase foi
curtíssima, não resistindo à sedução do encontro com Ambrósio e o platonismo, que serviram
como novo impulso religioso. Ainda que as intenções iniciais dessa nova aproximação ao
cristianismo, como catecúmeno em Milão, sejam bastante duvidosas e questionáveis, além de
nos revelarem novamente um homem possivelmente ambicioso que não
tinha nenhuma razão para resistir às intensas pressões externas por esse ato de
conformidade política. Tinha uma carreira por construir, e Mônica estava
arranjando para ele um casamento com uma herdeira católica. A corte era cristã;
Ambrósio, como bispo católico, dominava Milão (BROWN, 2005, p. 96).
Arcesilau, a meu ver, com muita prudência e utilidade, ao ver aquele mal espalhar-se
largamente, ocultou completamente a doutrina da academia, enterrando-a como ouro
para que alguma vez a descobrissem os pósteros (Contra os Acadêmicos, III, XVII,
38).
Agostinho acreditou que tal conflito tivera seguimento por baixo dos séculos, tal como
um lento estado de fermentação que prepararia o renascimento da doutrina de Platão na figura
de Plotino. A primeira alusão histórica a esse conflito entre a Academia e os estoicos é
atribuída a Metrodoro, um homem que dissera explicitamente que o ceticismo da Nova
Academia não passava de arma contra os estoicos. A restauração da autoridade da doutrina
platônica passou ainda por nomes como Antíoco, Filo de Larissa – e Cícero! Esse relato nos
chega de tal modo que sugere mesmo a existência de uma espécie de aura religiosa e esotérica
7
A questão é controversa e longamente estudada. A título de ilustração indicamos em síntese a posição de dois
dos maiores representantes das correntes opostas: Prosper Alfaric e Charles Boyer (ver Referências). O primeiro
é radical na defesa de uma suposta conversão ao neoplatonismo, e aponta discrepâncias entre os relatos das
Confissões e o conteúdo dos Diálogos filosóficos. Argumenta que o jovem Agostinho parece indiferente ao rito
do batismo, e considera o cristianismo como uma forma inferior e popular da sabedoria platônica. Boyer contesta
tal posição, mesmo partindo de uma aceitação da influência de princípios platônicos: a realidade espiritual e as
verdades inteligíveis. Mas faz intervir um principio de autoridade: Agostinho somente acolhe o platonismo
naquilo em que verifica concordância com a fé cristã. Trata-se de uma subordinação ao cristianismo.
8
Ver o comentário de Agostinho em Contra os Acadêmicos, III, IX, 18 e nota explicativa do tradutor, sobre a
referência a Ecádemo ao invés de Acádemo.
36
sobre a tradição platônica. Plotino é situado numa culminância histórica: “Não muito tempo
depois daquela época, cessada toda obstinação e contumácia, a doutrina de Platão, a mais pura
e luminosa da filosofia, expulsou as nuvens do erro e voltou a brilhar, principalmente em
Plotino” (Contra os Acadêmicos, III, XVIII, 41).
Esse relato do diálogo Contra os Acadêmicos é precioso, no sentido de revelar a
novidade que o encontro com o neoplatonismo representou para Agostinho. Novidade que lhe
oferecia a segurança do alicerce de uma tradição antiga, preservada por gerações de filósofos
que aparentemente não compunham uma mesma linhagem. Essa novidade se mostrava na
existência de uma filosofia capaz de transmitir dogmaticamente os parâmetros do verdadeiro
conhecimento. E mais, filosofia esta que estava na boca dos cristãos cultos de Milão.
Principalmente na boca daquele poderoso bispo, Ambrósio, cuja autoridade foi determinante
para o futuro de Agostinho, de quem se diz que “os sermões [...] eram ‘doutos’, seu livro
principal moldava-se cuidadosamente em Cícero e suas ideias deixavam transparecer a
influência de expoentes contemporâneos de Platão” (BROWN, 2005, p. 85).
imperial, em 386, deixou as marcas indeléveis de seu poder local. Ambrósio venceu a respeito
de uma igreja, que a mãe de Valentiniano queria ver confiscada e, para ampliar ainda mais a
confiança do povo em sua liderança, deu-lhes de presente o achado dos corpos de dois
mártires cristãos que jaziam sob o altar de uma nova basílica. Em consideração a esse fervor
religioso, somado ao poder político e ao respeito intelectual, não é difícil pensar que um
“homem assim teria pouco interesse em Agostinho. Conhecia bem demais o seu tipo: o
indivíduo que se tornava cristão para contrair matrimônio e se ajoelhava na igreja para
contrair algum cargo” (BROWN, 2005, p. 98).
Uma longa citação a seguir refletirá bem a ideia de Agostinho sobre a influência vital
de santo Ambrósio sobre ele e, também, sobre como o contato com seus sermões o
prepararam lenta e inconscientemente, mesmo antes de chegar ao platonismo, para sua futura
conversão. Isso porque através das interpretações espirituais das escrituras, chegou a admitir
que os argumentos em favor do cristianismo fossem defensáveis, obtendo também uma visão
completamente nova sobre o sentido do Antigo Testamento (atacado veementemente pelos
maniqueus). Após relatar que acompanhava assiduamente os sermões de Ambrósio, a título de
interesse pela eloquência do orador, mas desprezando o conteúdo, assim segue:
Portanto, definitivamente não foi com um íntimo contato pessoal que Ambrósio
influenciou Agostinho. Este é quem seguia em sua busca, fervilhando, ora no silêncio de seus
angustiantes pensamentos, ora conversando com amigos como Alípio e Nebrídio. Diante da
imponente figura do bispo, requisitado ao extremo tanto pela plebe quanto pelos poderosos, e
além de tudo leitor assíduo, nosso autor relatou que o “certo é que nunca tinha oportunidade
de consultar teu santo oráculo, que residia no coração dele, sobre minhas duvidas, a menos
que se tratasse de questões rápidas” (Confissões, VI, 3, 3). Tal influência profunda só pode ser
explicada pela autoridade e respeito que essa figura lhe inspirava, e pela lenta assimilação do
conteúdo de suas pregações.
38
Esse relato que se encontra nas Confissões atinge um marco para o recorte aqui
proposto. Pelos sermões de santo Ambrósio adveio uma nova descoberta, a partir da qual
Agostinho em breve transformaria definitivamente sua concepção de busca filosófica. A nova
descoberta teve como primeiro efeito abrir ou relativizar o julgamento que ele tinha sobre a
doutrina dos cristãos. Nos sermões ele aprendia uma nova interpretação do Antigo
Testamento, e isso agia tal como uma ruptura sobre uma barreira. A descoberta veio daí:
descobriu que o relato sobre o homem criado à imagem de Deus não se refere à imagem do
corpo humano, e sim a algo da ordem espiritual. O primeiro efeito de abertura foi devido a
não mais acreditar que os cristãos pregavam um Deus encerrado na forma de corpo humano.
Ultrapassada essa barreira foi possível investigar seriamente o sentido da verdade contida nas
Escrituras, ainda que, para vencer a concepção materialista do mundo, precisasse de mais um
tempo e do auxílio da filosofia platônica. A primeira ênfase do relato recai sobre o
reconhecimento dos erros em que incorria.
Eu, que nem de longe suspeitava o que era substância espiritual, então me
envergonhei alegremente de ter vociferado por tantos anos, não contra a fé católica,
mas contra as ficções criadas por imaginações carnais [...] sem antes me haver
informado através de pesquisas sérias (Confissões, VI, 3, 4).
que não se realizaria tão facilmente até que chegasse o dia de sua conversão: “Por que não me
decido a abandonar as esperanças do mundo para dedicar-me inteiramente à busca de Deus e
da verdadeira felicidade?” (Confissões, VI, 11, 19), o teor dessa pergunta expressa a
inquietude que tinha consigo.
Permaneciam os traços do materialismo, dificultando-lhe a contemplação da
verdadeira meta de sua busca. O materialismo que lhe parecia convincente se aproximava ao
epicurismo, com a diferença de que sentia a necessidade de imaginar a felicidade na posse de
um bem imortal, e se indagava “se fôssemos imortais e vivêssemos num perpétuo prazer do
corpo, sem temor de perdê-lo, por que não seríamos felizes?” (Confissões, VI, 16, 26),
ignorante de seu próprio erro que consistia em não conseguir pensar “no esplendor da luz e da
beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do corpo e só perceptíveis ao íntimo da
alma” (Confissões, VI, 16, 26).
Não foi mera coincidência que Agostinho tenha se deparado com o neoplatonismo
nesse exato período de sua vida, não só pelas disposições intelectuais em que se encontrava,
mas também pela estadia em Milão. De acordo com indicação de um especialista, nessa
cidade em que foi simultaneamente iniciado por Ambrósio na espiritualidade cristã e na
doutrina plotiniana (MADEC, 1996, p. 37), “era de maneira absolutamente natural que
passavam, nesse ambiente, das Enéadas ao Prólogo do Evangelho de João, ou a São Paulo”
(MARROU, 1957, p. 33). Assim, além da influência do bispo, como Agostinho ainda não era
um verdadeiro cristão, fez nessa cidade um novo círculo de amigos que lhe renderam um
renovado impulso filosófico. Em suas primeiras obras como cristão, as que foram escritas no
retiro em Cassicíaco, encontram-se dedicatórias a alguns deles – Mânlio Teodoro e Zenóbio9.
O primeiro avanço pessoal a ser considerado quando se trata dessa temática, é que
“através da leitura do neoplatonismo, Agostinho confirmaria o conceito de substância
espiritual que aprendera com Ambrósio” (COSTA, 1999, p. 91). Contudo, antes de chegar a
9
De acordo com Peter Brown, as pesquisas sobre a atuação intelectual dessas pessoas traz novos problemas a
respeito da conversão de Agostinho, pois revela a influência de certo modismo, ou até de certo lugar comum que
envolveria a ideia de uma conversão à filosofia platônica. Um exemplo interessante é Mânlio Teodoro, homem
culto e influente, mais velho que Agostinho: consta que se retirara “da vida ativa cerca de três anos antes, por
volta de 383, e, em seu retiro campestre, havia começado a escrever livros de filosofia e um tratado sobre
métrica” (BROWN, 2005, p. 109) – qualquer semelhança não é mera coincidência.
40
essa compreensão, percebe-se, pelo relato das Confissões, que seu pensamento passava por
mais uma nuança, algo próximo de um panteísmo, mas sem a referência direta a alguma seita
ou filósofo. Com isso já conseguiu dar um importante passo, somando mais um
acontecimento em favor da futura conversão: tal como agente de uma transmutação do desejo,
chegou à compreensão íntima de que o eterno (imutável) é melhor, superior, preferível, ao
mutável (mundo sensível, prazeres, ambições). Pensava em Deus nestes termos, como
“incorruptível, inviolável, imutável” (Confissões, VII, 1, 1). Mas ainda estava preso ao
materialismo, não era capaz de conceber qualquer coisa que não ocupasse lugar no espaço.
Daí que não era capaz de crer no Criador, e acabava empurrado para um panteísmo,
acreditando num Deus imutável tal como corpo infuso no mundo ou difuso além-mundo. Em
suas palavras:
Eu te concebia como entidade que se estende por toda a parte, e vai penetrando,
através dos espaços infinitos, em todo o universo, e alastrando-se também fora dele
na imensidão sem limites. Desse modo, a terra o céu e todas as coisas te continham,
e todas elas encontravam em ti seu limite, enquanto tu não eras limitado por nada
[...] Com teu sopro misterioso governavas interna e exteriormente tudo o que criaste
(Confissões, VII, 1, 2).
Por ser ainda uma posição instável, esse panteísmo não permitia qualquer repouso a
Agostinho em sua busca. Ainda que permanecesse certo empuxo ao cristianismo, também lhe
advinham toda sorte de angústias, na impossibilidade de se resolverem aí as grandes
interrogações sobre o problema da existência do mal.
Por outro lado, o neoplatonismo também foi a doutrina que trouxe para Agostinho algo
verdadeiro para a compreensão a respeito do mundo espiritual e, consequentemente, a respeito
da ideia de Deus sem referência a qualquer coisa material. Nessa linha de pensamento, ele se
viu noutra posição em relação a Deus, separado Dele. Tratava-se de uma revolução íntima
profunda e duradoura que “fez nada menos do que deslocar o centro de gravidade da vida
espiritual de Agostinho. Ele não mais se identificou com seu Deus: esse Deus era
completamente transcendental” (BROWN, 2005, p. 118).
Uma maneira eficaz de exemplificar sinteticamente o aprendizado proporcionado a ele
pelo platonismo pode ser utilizar o diálogo Contra os Acadêmicos, onde o cristão recém-
convertido admite adotar essa filosofia como instrumento para elaboração racional das
verdades da fé. Em poucas palavras, Agostinho resume o legado de Platão, naquilo que o
ensinamento traz de essencial:
41
Para o meu propósito basta dizer que Platão pensou que há dois mundos, um
inteligível no qual habita a própria verdade, e este outro sensível, que se nos
manifesta pela vista e pelo tato. Dizia que consequentemente aquele é verdadeiro,
este é semelhante àquele e feito à sua imagem, que o primeiro é o princípio da
verdade, na qual se aperfeiçoa e purifica a alma que se conhece a si mesma,
enquanto o outro pode gerar na alma dos insensatos não a ciência, mas a opinião
(Contra os Acadêmicos, III, XVII, 37).
Por um lado, pelo que as Confissões e os dados sobre a vida intelectual de Milão
daquele tempo permitem supor, aparentemente, a primeira leitura dos neoplatônicos foi feita
já sob o amplexo comparativo das Escrituras. Cada ensinamento é comparado com o seu
correspondente bíblico. O paralelo é estabelecido no sentido de apontar que ali está exposta,
somente com termos diferentes, uma doutrina sobre o Verbo como Filho de Deus; a
imutabilidade do Verbo anterior e acima de toda a criatura; o Verbo como luz verdadeira da
qual a alma dá testemunha, ou Sabedoria da qual a alma deve participar para ser sábia.
(Confissões, VII, 9). Por outro lado, para crédito de tal filosofia, Agostinho apontou que, por
eles, fora levado a entrar em seu íntimo para encontrar a luz imutável, a luz do criador; ou
seja, um novo sentido para o conhecimento de si mesmo nascera a partir daí, nascera como
descoberta e despertar para a interioridade. Quanto ao horizonte cristão que já se afigurava,
deve-se ter em vista que, patentemente, há nessa conversão ao neoplatonismo um nítido
conflito entre a busca da verdade baseada na autonomia da razão e a necessidade de uma
autoridade transcendente.
O neoplatonismo pode ser registrado com a mesma ênfase que se registra
biograficamente a leitura do Hortênsio de Cícero. (MADEC, 1996, p. 29). Ambos são
representativos, no sentido de marcar a partida de uma direção na vida de Agostinho.
Filosofia e religião novamente se encontraram e, se,
10
Usamos aqui o termo “platônicos” somente para marcar que era esse o termo correntemente usado por
Agostinho e seus contemporâneos. De acordo com nota de Ramos (2009, p. 37), deve-se considerar
neoplatônicos os que se inspiram na segunda parte do diálogo Parmênides de Platão, considerando esta a obra
onde se encontra o segredo da filosofia desse mestre. Ademais, Agostinho parece não priorizar a distinção entre
o que é exclusivo de Platão em contraste com seus seguidores.
42
Além da aura religiosa que há muito cercava a ideia de conversão à filosofia, o grande
fator determinante que merece ser ressaltado na experiência de Agostinho é mesmo essa
influência de um círculo de cristãos bem aplicados no platonismo, e que, como cristãos,
consequentemente, eram provavelmente tendenciosos em suas interpretações dessa filosofia.
Tudo indica que é preciso considerar o fato de que em “Milão grande parte do platonismo
desenvolto e elegante era cristão” (BROWN, 2005, p. 111). Do que se infere uma relação
perene entre as duas doutrinas no universo do pensamento agostiniano; com maior proveito
por parte do cristianismo, é claro.
Os principais nomes desse círculo foram Vitorino, Simpliciano, Ambrósio e Mânlio
Teodoro – com a ressalva de que não se trata de um círculo de convivência direta. Quanto às
fontes, primeiramente considera-se as traduções lidas por Agostinho. Por mais que não se
saiba exatamente quais foram essas obras, provavelmente eram traduções feitas por Mário
Vitorino, homem sobre o qual se sabe que, mesmo que tardiamente e de súbito, convertera-se
ao cristianismo. Contava também com os “sermões plotinianos” (MADEC, 1996, p.37) e
“com os escritos de Ambrósio, o qual teria divulgado o Platão do Fedro, Fédon e Banquete,
corrigido e revistado por Porfírio e Plotino” (RAMOS, 2009, p. 41). E ademais, por ambos
serem vistos como ligados ao nome do padre Simpliciano, sendo que este pode ser
considerado até “pai espiritual” de Ambrósio, é possível atribuir-lhe certa originalidade. De
modo que sua importância histórica, juntamente com a de Teodoro, situa-se na referência
explicita e consciente que, como cristão, fazia ao platonismo. (O’MEARA, 1958, p. 101).
É natural imaginar uma interferência na direção dos interesses de alguém que nesse
contexto fosse iniciado nos segredos do platonismo. Para tanto, basta tomar o fato de que,
para esses cristãos, “a história do platonismo parecia convergir muito naturalmente com o
cristianismo” (BROWN, 2005, p. 112). Essa suposta “história do platonismo”, tal como foi
possível extrair acima no Contra os Acadêmicos, talvez seja uma visão apropriada por esse
círculo, com origem em fontes que desconhecemos, e não um relato fidedigno da história.
Não nos cabe discutir a possibilidade de uma continuidade da escola platônica, sem ocasos e
rupturas, no decorrer dos séculos. Não obstante, ao que nos parece, o interesse desses cristãos
era aproximar seus argumentos aos dos platônicos. Alguns até já defendiam que Platão teria
43
extraído sua doutrina de um contato com as escrituras judaicas. Dentre esses estão incluídos
Ambrósio e, posteriormente, o próprio Agostinho. (A Doutrina Cristã, II, 29).
De fato existem estudos que buscam comprovar a existência de uma linhagem
platônica legítima que perpassaria a antiguidade e antiguidade tardia através de uma tradição
oral. Porém, se os cristãos buscavam essa aproximação entre as doutrinas, certamente não era
em favor da perpetuação da doutrina platônica. Nesse sentido, concordamos com Ch. Boyer
(1953, p. 172) a respeito da subordinação ao cristianismo na recepção da tradição filosófica
por parte de Agostinho. E provavelmente trata-se de uma tese aplicável a todo o cristianismo
primitivo.
Mas não se deve pensar que por isso o contato entre essas duas doutrinas seja
superficial: é contingente. Na medida em que conquistava espaço entre as classes intelectuais
do império o “Cristianismo teve que se abrir ao clima cultural da época [...] não [...] como
algo exterior e apologético, mas, sim, como uma tendência que enxerga na metafísica grega
uma possibilidade concreta de conciliação” (BEZERRA, 2006, p. 134). E isso se relaciona
com certo débito da teologia para com a filosofia, em termos de reflexão conceitual e
fundamentação. De tal forma que, nesse sentido, a subordinação de que falamos deve ser
também entendida como uma maneira para o cristianismo “se autocompreender e expressar-se
em nível racional” (BEZERRA, 2006, p. 133). Basta seguir a História Eclesiástica de
Eusébio de Cesaréia para confirmar que os maiores Padres gregos eram verdadeiros eruditos e
grandes letrados em filosofia: nomeadamente, Orígenes se destaca. Consta que filósofos e
homens cultos submetiam-se a seu ensino, com o seguinte método:
As pesquisas mais recentes e rigorosas sobre este assunto não obtiveram resultados
muito animadores. No caso de Ângelo Zanoni, a solução foi simplesmente abandonar o desejo
de determinar o conteúdo das leituras de Agostinho.
Diante da falta de rigor, e até mesmo do fato de Agostinho anunciar, em A Cidade de
Deus, que citaria Platão resumidamente, coloca-se outro problema. Estaria Agostinho fazendo
somente uma escolha deliberada devido a seus interesses argumentativos, ou haveria
realmente uma deficiência ou insuficiência em suas fontes sobre o platonismo? Existe a
possibilidade de a segunda hipótese ser correta, apesar de não haver confirmação científica
sobre o assunto. Um grande indício em favor de tal hipótese é a ausência de indicação das
fontes de Platão. O que os pesquisadores acabam por admitir é que Agostinho teria lido algum
tipo de material resumido, sintético, tal como um manual de filosofia. Infelizmente, não
obstante as traduções de Mário Vitorino e os escritos de Ambrósio – e arriscamos também
dizer Cícero11, grande divulgador do paganismo - serem considerados fontes de Agostinho,
não temos “um esclarecimento acerca do conteúdo dos libri platonicorum, e nem sequer
podemos delimitar com precisão o que Agostinho teria lido” (RAMOS, 2009, p. 41) 12.
Quanto à primeira hipótese, como já foi dito anteriormente, não há dúvida sobre sua
pertinência, já que Agostinho, assim como seus contemporâneos cristãos, fizera uso do
platonismo em favor do cristianismo. Tudo indica que “uma transposição inconsciente do
plotinismo ao sentido cristão” (JOLIVET, 1941, p. 99) acorre ao serviço da inteligência da fé.
O próprio Ambrósio, que no dizer de Brown (2005, p. 113) saqueava a obra de Plotino,
provavelmente teria sido exemplo para nosso autor, talvez até ensinando-o a citar a bíblia para
lembrar o ouro dos egípcios levado a serviço do povo de Deus. (Confissões, VII, 9, 15). A
posição é objetiva, assumida diversas vezes por Agostinho, e resume-se assim: “todo bom e
verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é
propriedade do Senhor” (A Doutrina Cristã, II, 19).
11
Cícero foi uma das fontes de Agostinho sobre o platonismo. A maioria dos autores que consultamos não trata
dessa questão, exceto a indicação explícita de O’Meara (1958, p. 101). Ver também que no Contra os
Acadêmicos, ao tratar de certa história oculta do platonismo ligada à Nova Academia, Agostinho dá a entender
que se baseia em informações de obras de Cícero.
12
Preferimos crer no que o próprio Agostinho disse sobre tal problema: “Li entrementes algumas poucas obras
de Platão” (A vida feliz, I, 4).
46
Quanto à segunda hipótese, por mais que possa ser considerada alguma insuficiência
no conhecimento que Agostinho demonstra ter a respeito do platonismo, estudos mostram que
não é possível descartar o fato de que seu leque de leituras platônicas não foi tão parco assim.
Isso é bem verdadeiro principalmente no tocante a Plotino e, quiçá, Porfírio. Mormente
considera-se Plotino como a grande influência filosófica da teologia e filosofia agostiniana.
Sem nos alongar, e para não sair de nosso propósito, introduzimos as teses de alguns autores.
Todavia, é certo que, sobre certos pontos de base comum, há poucas divergências a
respeito da presença do platonismo no pensamento de Agostinho. É possível pensar no
empréstimo de alguns princípios, relacionados à consideração do mundo inteligível como
mundo das verdadeiras realidades, aquelas que transcendem a dimensão espaço-temporal; de
modo que alcançar tais verdades só pode ser privilégio e finalidade da inteligência humana.
(BOYER, 1953, p. 172). Deriva daí uma doutrina da substância espiritual e da transcendência
de Deus. Ou, de forma semelhante, pensar que esses “livros o fizeram descobrir a
refletividade e lhe deram o sentido do espírito como ato; o fizeram retornar sobre si mesmo;
eles o colocaram na via da interioridade, pela qual o espírito se encontra a si mesmo e se
ultrapassa para reingressar seu fundamento, Deus, o Ser Absoluto” (MADEC, 1996, p. 39).
Ou, num esforço ainda mais sintético, tendo em vista a apreensão de Plotino, também é
possível encontrar uma concordância doutrinária básica na ideia de Deus como fundamento
de tudo - ideia que funda o pensamento sobre Deus como Ser Absoluto, como Luz da
inteligência e como Bem supremo: ele tomou de Plotino a cosmologia, a doutrina dos degraus
(ascese contemplativa) e a metafísica da beleza (o mal somente como privação). (JASPERS,
1962, p. 69).
Para Peter Brown, em síntese, cristianismo e platonismo convergiam por apresentar a
seus seguidores uma proposta de realização extramundana, projetada fora do mundo sensível
– ideia de voltar, religar a algo mais fundamental. Proposição esta que se confirma pela
constatação do fato de que, para o mundo em que viveu Agostinho, a base desta convergência
situava-se no encontro da doutrina do Intelecto, em Plotino, com a doutrina do Verbo de
Deus, no Evangelho de João13. Essa convergência
unia pensadores pagãos e cristãos num único horizonte de ideias. Para Plotino o
Intelecto era um Princípio Mediador de suprema importância: ao tocar o Um, ele se
voltava para fora, ao mesmo tempo, como fonte de Muitos. Era fácil ver nesse
13
No caso de Orígenes e dos Padres gregos, a referência ao platonismo não se funda no neoplatonismo, doutrina
nascida no século III. Trata-se do médio-platonismo, “forma de platonismo que nasce depois da morte de
Antíoco de Ascalona (filosofia acadêmico-eclética do século I a.C.) e que se desenvolve até os inícios do século
III d.C.” (SANTOS, 2008, p. 21).
47
14
O autor tem vários trabalhos relacionados ao tema da influência plotiniana em Agostinho, mas somente o
artigo The Enneads and St. Augustine image of happiness é alvo de nosso comentário.
15
Plotino viveu no século III d. C. Foi um filósofo conhecido ainda em vida. Seus escritos foram organizados e
editados pelo influente discípulo, Porfírio. Este subdividiu a obra do mestre por temas e não cronologicamente.
O nome Enéadas refere-se a novenas. E assim, como havia 54 tratados, foram divididos em seis Enéadas.
48
descobriu um não-ser. A linguagem usada pelo bispo de Hipona nessa passagem das
Confissões encontra total ressonância em Plotino. Inclusive essa parece ser uma ideia
completamente estranha ao texto das sagradas Escrituras. Enquanto para Plotino, ao contrário,
parece ser uma ideia central: o Ser verdadeiro é Sabedoria, os entes recebem sua forma de
existência por participação nessa sabedoria e não são Seres Verdadeiros. (O’CONNEL, 1963,
p. 142).
O artigo de R. J. O’Connell é longo e minucioso. Portanto, não cabe aqui um
comentário detalhado. É relevante notar que, não obstante a refutação do platonismo que o
Agostinho da maturidade acabou por fazer, um fio de ligação com Plotino se manteve em sua
essência e estilo. A intelectualidade metafísica coexistindo com uma experiência mística
profunda foi como marca registrada de nosso Santo e, segundo o autor do artigo em questão,
trata-se de uma via encorajada pelo exemplo pessoal de Plotino, que se recusava a “manter
esses dois registros distintos” (O’CONNEL, 1963, p. 163).
Todavia, há ainda outro ponto de convergência com o texto plotiniano que merece
toda nossa atenção, pois incide diretamente sobre a investigação do presente trabalho. Trata-
se da teoria plotiniana de que a alma não é completamente caída, por sua parte superior ser
capaz de alcançar uma contemplação beatificante da Sabedoria. Para tanto, o homem deve
deixar-se a si mesmo para obter uma reintegração ao Todo. (O’CONNEL, 1963, p. 146 –
147). Para esse especialista, a extrema confiança que Agostinho depositou na filosofia em
seus primeiros escritos constitui corolário legítimo de sua aceitação sobre essa doutrina de
Plotino. E nessa perspectiva, isso implica que é possível identificar uma marca plotiniana
indelével na doutrina agostiniana da restauração da imagem de Deus no homem. O termo
usado é bíblico e prioritariamente paulino, mas, por outro lado, mantém clara conexão com a
crença da alma não ser inteiramente caída.
Em relação a Plotino, por conseguinte, parece certo afirmar que há mesmo toda uma
convergência que não pode ser descartada: a interioridade como caminho, a purificação, o
autoconhecimento, a luz transcendente, a beleza, a ascese e a contemplação. A grande
divergência é que a complacência para com a filosofia não foi mantida por Agostinho e,
efetivamente, a plena restauração da imagem de Deus na mente só assumiu sentido como
meta para uma vida futura.
Já foi dito acima que os especialistas incluem uma lista mais ou menos extensa e
imprecisa a respeito das influências platônicas de Agostinho: traduções, manuais, círculo de
amigos, e até mesmo Jâmblico e Apuleio. Mas comparado ao eminente nome de Plotino,
nenhum outro é tão considerado quanto Porfírio. Contudo, não há uma decisão unânime sobre
49
a dimensão de sua influência, e as opiniões podem ser até bastante extremistas. Por isso,
interessa mais apontar aqui a existência de alguns consensos.
São poucos os dados concretos, mas não inexistentes. Por exemplo, tendo em conta
que raramente nosso autor citou suas referências bibliográficas pelo nome das obras, é
relevante notar que um dos casos em que isso aconteceu foi justamente sobre uma obra de
Porfírio (De regressu animae, obra perdida). Por sua vez, o fato mais significativo é o
destaque dado ao combate a ele nas discussões dos trabalhos tardios, especialmente A cidade
de Deus. Agostinho empenhou-se ao extremo para vencer seus argumentos. E, certamente, há
que se considerar justificável esse destaque, devido a autoridade reconhecida desse platônico,
grande erudito, escritor muito divulgado em seu tempo, e compilador das obras de Plotino.
(O’MEARA, 1958, p. 97).
Não obstante essa notável dificuldade devido à falta de fontes diretas e fidedignas, o
mais importante a se considerar no caso de Porfírio é um tipo de “influência negativa”
(MADEC, 1996, p. 43) que o situa frente à escolha de Agostinho pelo cristianismo. Existe um
tratamento crítico e diferencial entre Plotino e Porfírio, principalmente no que tange ao tema
religioso e à relação de Porfírio com a teurgia. Desde o início a relação entre o neoplatonismo
e o paganismo foi mal vista por Agostinho: trata-se de uma contenda no que tange ao tema da
mediação religiosa e da idolatria. A posição dos platônicos era a seguinte:
A questão que se impõe é sobre quem ou quê pode se passar por tal autoridade. Ou
seja, é uma questão que atinge profundamente o tema da mediação religiosa. Porfírio foi
grande pesquisador das religiões, particularmente interessado por essa questão. Teve inclusive
conhecimento do cristianismo. Buscava realizar algo como uma “ciência da redenção”
(MADEC, 1996, p. 43). Mas rejeitou o cristianismo e a divindade de Jesus – mesmo não
rejeitando o valor da experiência humana de Jesus. Agostinho, por sua vez, sempre nutrira
simpatia pela religião cristã, e não tardou a condenar o orgulho dos platônicos, em nome dessa
diferença irreconciliável.
Agostinho jamais indicou qualquer mudança em sua compreensão sobre o platonismo.
Na verdade a mudança foi em sua aceitação, retificou-se por tê-lo adotado e elogiado mais do
que deveria no início de sua vida de escritor cristão. (Retratações, I, 1). Por esse motivo, na
50
Agostinho intuiu nessa tripartição uma via tríplice para o Deus uno; uma via que passa
pela interrogação a respeito dos fundamentos desses conhecimentos filosóficos referidos
acima. Seria necessário interrogar a causa da existência dos seres (natural), a razão que
sustenta a inteligência humana (racional) e a ordem justa das ações (moral) – interrogações
que devem apontar para a existência de Deus, tal como suporte do ser, da razão e da justiça16.
O trecho citado é concluído com a demonstração de como a filosofia serve ao cristão
que busca a Deus pela razão. De acordo com a interpretação do especialista, a descoberta da
tripartição da filosofia deve fortalecer a fé, na medida em que subentende uma exortação ao
verdadeiro Deus:
O mérito dos platônicos no campo da moral reside em ter localizado o bem supremo
do homem fora dele mesmo. Isso se relaciona com a ideia de virtude, desde que por virtude
entenda-se imitar a Deus. O primeiro fundamento é a consideração de que o mundo sensível
existe subordinado a um mundo inteligível, incorpóreo, que o determina. Se a razão é a parte
mais excelente do homem, e se essa razão deve acessar e subordinar-se ao Excelente - aquilo
que confere a ela seu caráter racional -, isso significa que a norma de conduta ou de
organização da vida do homem no mundo já pode ser enunciada: o corpo e o mundo material
devem ser dominados e subordinados à razão humana e, esta, por sua vez, domina na medida
mesma em que é subordinada ao principio superior a ela – Deus. Daí que, além de uma norma
de vida, no campo da moral, a filosofia platônica também alcança a meta da vida feliz: o bem
supremo verdadeiro, que equivale ao gozo de Deus.
Basicamente é isso que está enunciado no trecho a seguir:
Cedam todos aos filósofos que disseram não ser feliz o homem que goza do corpo
nem o que goza da alma, mas o que goza de Deus. E dele goza [...] como os olhos
gozam da luz [...] Platão estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a
16
Acontece algo curioso nesta passagem, algo que nos leva a pensar que talvez Agostinho tivesse um
conhecimento maior sobre Platão do que somente um conhecimento baseado em manuais. Agostinho se recusa a
indagar sobre a posição de Platão a respeito dessa tripartição da filosofia, se Platão conferiria ou não o lugar
devido ao Deus único, justifica essa recusa devido ao método de Platão – refere-se ao método socrático, em que
a construção dialética sobrepõe-se ao ensino direto mestre-discípulo. Ou seja, alega que Platão não comunica
diretamente aquilo que pensa ou sabe. Não obstante, Agostinho não se recusa a falar dos seguidores de Platão,
acredita que talvez estes tenham ligado a filosofia tripartida ao Deus transcendente. Não seria esse um claro
indício de que Agostinho faz distinção entre textos de Platão e os textos de seus seguidores?
52
virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita Deus, e que tal é a única
fonte de sua felicidade (A Cidade de Deus, VIII, 8).
Vendo que os corpos e os espíritos existem com mais ou menos forma e, destituídos
de toda forma, careceriam, em absoluto, de ser, perceberam dever existir algo em
que se encontrasse a espécie primeira e incomutável e, portanto, incomparável.
Acreditaram, com muitíssimo fundamento, encontrar ali o princípio dos seres, que
não fora feito e pelo qual foram feitos todos os seres (A Cidade de Deus, VIII, 6).
souberam distinguir entre o que o espírito descobre e o que o sentido apreende, sem
que aos sentidos nada tirassem do que podem, nem lhes atribuíssem poder que não
têm. Disseram existir certa luz das inteligências que ensina todas as coisas e é o
próprio Deus, por quem todas foram feitas (A Cidade de Deus, VIII, 7).
Agostinho não chegou a dizer que os platônicos alcançaram o Deus trino, mas teceu os
elogios mais enaltecedores no sentido de que a filosofia deles contém todos os caracteres da
relação do homem com um Deus único e transcendente. Não há dúvidas de que se deve
questionar a fidedignidade da abordagem de nosso autor, fazendo ressaltar o fato
contingencial de seus interesses cristãos. O investigador sofre a infelicidade de não haver
referências textuais nas compilações de Agostinho, já que com um pouco de rigor por parte
dele resolver-se-iam muitas das indagações que se interpõem às soluções conclusivas. Em
nota, Ângelo Zanoni (2009, p. 52) enfatiza mais um problema: o mundo em que viveu Platão
53
Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo do meu
coração sob tua guia [...] Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e
acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável [...] mas acima de mim
porque ela me fez (Confissões, VII, 10, 16).
concordando em que a divindade existe e cuida das coisas humanas, pensam não ser
suficiente para conseguir a vida feliz, o culto a um só Deus incomutável. Por isso,
dizem, é preciso render culto a muitos deuses criados e instituídos por Aquele uno
(A Cidade de Deus, VIII, 1).
Agostinho parece supor que, por motivos de outra ordem, mesmo reconhecendo o
Deus uno, os platônicos teriam defendido o culto a muitos deuses como condição para a vida
feliz. O detalhe que nos provoca a interrogação é a distinção estabelecida entre conhecer o
Deus único e defender o culto politeísta a título de condição para a vida feliz. A acusação é
55
clara e decisiva, incide sobre uma inaceitável “dissociação entre o culto e a compreensão da
natureza divina” (NOVAES FILHO, 2007, p. 96).
Compreender a fundo em que se radica tal dissociação poderia ser objeto atual de
importante estudo comparativo, mas escapa inteiramente ao alcance da presente pesquisa. É
possível adiantar que, provavelmente, como vimos acima, essa é uma questão referente à
mediação religiosa, que toca diretamente a Porfírio e sua busca por determinar um caminho de
autoridade, para traçar um caminho de redenção para as massas inaptas ao uso da razão.
Finalmente, há que se esclarecer que, se houve aqui insistência na questão da
influência do platonismo no pensamento agostiniano, foi no sentido de assegurar,
principalmente, duas conclusões fundamentais para situar o que seguirá nos capítulos
seguintes. Considera-se que, tanto a experiência pessoal de Agostinho quanto seu pensamento
são inquestionavelmente cristãos. E, contudo, defende-se que tal influência platônica é
legítima e funcional. Não se deve esquecer a simplicidade e a transcendência da mensagem
primitiva do cristianismo: a revelação bíblica. O texto sagrado não é autoexplicativo, não
produz metalinguagem, muito menos tem sentido óbvio. Quando a palavra Verbo aparece no
Evangelho de S. João, por exemplo, não é possível ter certeza de tratar-se de uma imagem,
uma comparação, ou uma expressão completamente verdadeira da realidade divina.
Considerando o encontro de filosofia e teologia na obra agostiniana, esse é um dado que -
para o mal ou para o bem - prova que certas teses filosóficas foram úteis para uma melhor
articulação do discurso teológico e que, vive e versa, o dogma católico provocou progressos
efetivos nas análises filosóficas. (PAISSAC, 1951, p. 7).
56
O marco cronológico situa-se entre os anos de 385 e 386, período em que Agostinho
decidiu frequentar os sermões do bispo Ambrósio. Descobriu uma maneira diferente e mais
profunda para interpretar o texto bíblico e, seguindo uma lenta aproximação ao cristianismo,
foi se purificando de um resistente materialismo intelectual. O texto das Confissões é claro em
atribuir ao famoso bispo o primeiro vislumbre de uma nova concepção de homem: “Logo
descobri também que teus filhos espirituais [...] não entendiam as palavras onde se diz que ‘o
homem foi criado por ti à tua imagem’ no sentido de te acreditarem e julgarem encerrado na
forma de corpo humano” (Confissões, VI, 3, 4).
Esse curto relato não permite que se aprofunde o assunto nem mesmo que se interprete
como teria Agostinho recebido essa nova doutrina. Mas é suficiente para que se verifique o
fato de que a aproximação ao cristianismo implicava já de partida uma transformação em suas
concepções de homem e de mundo. Ou seja, deve-se considerar que, parte das esperanças e do
ímpeto intelectual que precederam a conversão e o primeiro retiro em Cassicíaco, consistiu
em acreditar-se feito à imagem e semelhança de Deus. De quais esperanças? Será
58
fundamental responder a essa questão. Para isso segue uma análise sobre as primeiras e mais
importantes diretrizes de pensamento abertas por sua aproximação ao cristianismo. Com a
ressalva de que, aqui, essas diretrizes já são apresentadas plenamente desenvolvidas em
relação à totalidade da obra, o que implica a não restrição da abordagem somente aos
primeiros textos publicados pelo autor.
Na conversão ao cristianismo, a trajetória do jovem que iniciara sua busca a partir de
uma leitura em Cícero encontrou seu termo, não como ponto final, mas como correção de
direcionamento. Trata-se de uma transformação de base, essencial, que possibilitou o
surgimento da “valoração correta das realidades da vida pela conversão à sabedoria”
(GALVÃO, 2009, p.54).
Percebe-se nesse sentido que a identificação entre filosofia e religião cristã foi
fundamental para o Agostinho. Desenvolveu-se até a identificação máxima da verdadeira
religião com a verdadeira sabedoria, para aí perder parte de sua importância, com o preceito
“tudo o que reconheceres como verdadeiro, conservar e atribuir à Igreja católica” (A
verdadeira religião, I, X, 20). Com o passar dos anos e com a maturação na vida eclesiástica,
é fato que essa identificação perde ainda mais espaço em sua obra, assim como deixou de
nomear sua experiência pessoal a partir de termos como filosofia e vida filosófica. Mas, para
o escritor de Cassicíaco, não poderia haver nada mais importante, pois essa identificação agiu
como um elo entre suas experiências precedentes e o inicio da vida cristã. Então, em uma
década, com a fermentação desse substrato rico, surgiria o bispo maduro das Confissões, porta
voz de uma teologia promissora, convincente e sensata.
De toda forma a conversão é a partida desse processo. Tudo o que Agostinho
escreveu, desde o inicio de sua carreira como escritor, tem imenso valor, com a garantia de
que já se tratavam de progressões no verdadeiro caminho. Sua autodefinição, com base em
uma de suas cartas, é a de alguém que se esforça por pertencer ao número daqueles que
escrevem progredindo e progridem escrevendo. E, por isso, é preciso focar no que foi uma
transformação de base operada no modo de valoração das realidades. E fazer isso como quem
busca responder sobre a base de construção de determinado edifício. Nesse sentido,
considera-se verdadeira a seguinte afirmação:
Não é de se espantar que o problema da relação entre esses dois termos ocupe longa e
recorrentemente o pensamento de Agostinho. Como defender a supremacia da verdadeira
religião, incluindo nela a verdadeira sabedoria e a verdadeira filosofia, sem cair no erro de ser
acusado pela defesa de uma fé cega? Suas reflexões foram sempre confiantes, provavelmente
por, conscientemente, darem seguimento à tradição bíblica, por exemplo, tendo Isaías 7, 9
como paradigma: “Se não crerdes, não entendereis”.
As palavras do Papa João Paulo II, tratando abertamente da cristianização do
platonismo, esclarecem a dimensão enorme dessa problemática no pensamento agostiniano. O
bispo de Hipona viveu num mundo em transição, e foi testemunha de uma confluência de
tradições, principalmente do encontro do cristianismo com a filosofia grega. No contexto
desse encontro, por um lado, os cristãos foram chamados a dar a sua razão ao mundo, ou seja,
a justificar racionalmente sua fé, mas, por outro lado, se beneficiaram por encontrar ali
elementos enriquecedores para sua teologia. Segundo a suprema autoridade eclesiástica, “o
bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e
teológico, nela confluindo elementos do pensamento grego e latino” (JOÃO PAULO II, 1998,
p. 44).
Os esclarecimentos prestados na Carta Encíclica Fides et Ratio são muito úteis, deles
é possível retornar sobre Agostinho com maior compreensão. A começar por reconhecer que,
para além do livro de Isaías o “caráter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que
existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé” (JOÃO
60
PAULO II, 1998, p. 23). Ambas se unem numa visão mais completa sobre o mundo e a
história, em que o olhar aperfeiçoado pela fé percebe no curso dos acontecimentos a presença
ativa da divina Providência.
O primeiro pressuposto expresso nessa consideração sobre o texto bíblico é o de que a
razão humana é limitada para transcender-se por si mesma. Apregoa-se aí a ideia de que o
homem não tem capacidade para conhecer-se satisfatoriamente, ou conhecer o mundo e Deus,
mantendo-se fechado em sua própria racionalidade. O sumo pontífice indica que dessa
constatação já se pode extrair algumas regras para a razão:
ser humano, capaz de produzir as questões últimas sobre a realidade. Em outros termos, trata-
se de afirmar a religiosidade e a filosofia como inerentes à racionalidade. Nessa perspectiva,
entende-se que homem acaba por desembocar no absoluto, simplesmente porque não pode
evitar a pergunta sobre o sentido último da experiência de si e do mundo. De modo
semelhante ao De Trinitate, onde o homem é denominado capax Dei, a criatura capaz de
Deus, para simplificar basta dizer que ele “pode encontrar e reconhecer tal verdade. Sendo
esta vital e essencial para sua existência” (JOÃO PAULO II, 1998, p. 37).
O uso do termo “religiosidade” aparece nesse contexto. O termo serve para definir
essa dimensão da existência humana na qual o sujeito chega ao questionamento e busca da
resposta última ao porquê de tudo. Para João Paulo II, essa é a expressão suprema da natureza
humana, por ser o ponto mais elevado de sua racionalidade.
Aqui, retornando sobre Agostinho, descobre-se que as proposições do papa expressam
completo acordo com sua doutrina. Razão e fé caminham juntas. Basta volver aos primeiros
escritos de Cassicíaco para encontrar justamente essa solução, caríssima ao jovem cristão, que
buscava abraçar a vida cristã sem abandonar os sonhos do filósofo.
pela fé implicará numa “unidade formada por conhecimento e amor” (PRZYWARA, 1949,
129).
Por enquanto, como o papel da fé é o de purificar a razão, é importante aprofundar
primeiro na natureza da relação entre essas instâncias a partir da descrição de seu mecanismo
de ação. A purificação ocorre por dois meios. Pelo aperfeiçoamento da razão, no sentido de
atraí-la das coisas visíveis às invisíveis, e dos bens temporais aos eternos. E pelo enxerto da
esperança, que tem o efeito de impulsionar a razão a transcender seus próprios limites, de
modo a não desacreditar daquilo que ainda lhe é vetado.
No primeiro meio de ação, a fé possibilita primordialmente aquisição de
autoconhecimento: entenda-se humildade. Vislumbra-se o fato de que o homem criado à
imagem de Deus deformou-se, caiu, perdeu sua pureza racional, porque tal pureza só era
possível na dependência a um principio superior. O homem buscou autonomia e ficou cego,
nessa “desobediência original [...] causando à razão traumas sérios que haveriam de dificultar-
lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena” (JOAO PAULO II, 1998, p. 27). Em
síntese, o orgulho e a concupiscência são a causa dessa cegueira, na qual o homem só vê
multiplicidade e temporalidade.
O primeiro passo deve ser o reconhecimento dessa condição decaída. Inicia-se uma
transmutação do desejo. A fé indica à razão a significação correta da experiência sensível que
lhe serve: “há um significado ainda invisível daquilo que é visível, e é preciso procurá-lo”
(NOVAES FILHO, 2007, 109). Certa vez a Razão perguntou a Agostinho: já vencestes a
libido? O ponto essencial é o afastamento do desejo das coisas sensíveis, tal como segue na
metáfora: “devemos evitar inteiramente as coisas sensíveis e precaver-nos muito, enquanto
vivemos neste corpo, para que nossas asas não sejam retidas pelo visgo dessas mesmas
coisas” (Solilóquios, I, XIV, 24). Para que se entenda melhor o sentido da oposição entre
visível e invisível, inclui-se outro par de termos, donde o caminho é mormente inaugurado.
Essa oposição, que indica a noção de progresso, se refere à visível-temporal e invisível-
eterno: “Passar pois do temporal ao eterno concerne à purificação da alma, à transformação de
sua capacidade” (NOVAES FILHO, 2007, p. 111).
A razão decaída recebe novos impulsos, justamente porque é atingida em sua
capacidade de valorar as realidades, ou seja, porque novos horizontes são abertos aos seus
olhos. Nesse nível, a fé passa a atuar de modo intimamente associado à esperança. A fé é
temporal, e com os termos nomeados - invisível e eterno - induz a razão a uma relação
lançada ao futuro. A esperança é algo que articula no presente as ideias de caminho, progresso
63
Tudo o que temos na alma em comum com o animal dizemos com razão que
pertence ao homem exterior [...] não é apenas definido pelo seu corpo, mas também
por certa manifestação de vida que confere vigor a todas as articulações e sentidos
corporais, instrumentos esses da percepção do mundo exterior. E quando as imagens
67
Mas, para que cumpra sua real função, a esse homem exterior é permitido o uso da
razão inferior, instância que no seu ápice constitui o que se chama ciência. Isso é importante
de ser ressaltado porque Agostinho não dividiu o homem em uma parte ruim e outra boa, não
se trata disso, já que o mal só pode advir do mau uso daquilo que em sua natureza fora criado
essencialmente bom. Ao visar essa bondade essencial, deu relevo a uma parte do ser humano
que é superior ao nível animal, mas que ainda não corresponde ao homem interior. Trata-se de
reconhecer que
essa parte de nosso ser que se ocupa da ação das coisas temporais e corporais e que
não nos é comum com os animais, certamente relaciona-se com a razão [...] ela está
entretanto como destinada ao trato com as coisas inferiores e apta a governá-las (A
Trindade, XII, 2, 3).
O homem exterior efetivamente cumpre sua função quando é dirigido e julgado pelos
parâmetros do homem interior, servindo à ascensão deste. Por isso convém assim defini-lo:
“O homem exterior tem seu valor e complementa o interior, colaborando com suas tarefas
especificas a sua maneira, mas é uma ordem inferior” (DE LA NOI, 1981, p. 5). De maneira
que, se a noção de seu devido valor é obtida com o reconhecimento de sua funcionalidade, por
outro lado, tudo o que deverá ser esclarecido sobre a imago Dei, será referente ao homem
interior, aquele que é a imagem de Deus e tem como finalidade existencial ter sido criado
para Deus. Aproxima-se desse conceito a ideia de algo como “um centro de vida ou coração,
que impulsiona um circuito de atividades, transbordando ao exterior e uma espécie de
depósito espiritual onde sobrevive o que chega à consciência [...] nele estão a razão e a
vontade” (DE LA NOI, 1981, p. 12).
Desde que o valor de instrumento do homem exterior seja mantido, ainda que
implicitamente, o trecho seguinte pode sintetizar a relação do homem interior com sua própria
renovação.
Fica claro que esse homem interior, imagem de Deus, só atua nas coisas temporais
através de seu julgamento sobre o homem exterior. Não é a ação a sua atividade própria, e sim
a contemplação das razões eternas. E isso explica a exortação de Agostinho à interioridade,
como meio de atingir a contemplação típica dessa razão superior. Pois no que concerne ao
conhecimento, é isso o que é buscado no interior: as razões inteligíveis e imutáveis do mundo
visível e temporal.
O objeto desse conhecimento é algo de difícil definição, que pode ser chamado de
ideias, razões, formas ou espécies, mas, ao mesmo tempo, é algo que Agostinho afirmou ter
sido conhecido por todos aqueles na História que puderam com justiça nomearem-se
filósofos. Ou seja, o bispo cristão desvencilhou-se do campo estrito do platonismo, negando
que a descoberta do inteligível fora exclusividade de Platão.
Duas características do cristianismo agostiniano são fundamentais: as teorias do
exemplarismo e da participação. A crença sobre a qual residem tais teorias estabelece que as
razões de todas as coisas existentes estão num ato de criação, estão “contidas na mente divina,
e na mente divina não pode existir coisa alguma que não seja eterno e imutável” (Oitenta e
três questões diversas, 46, 1). Isso significa que tudo o que existe participa de uma forma
arquetípica primordial, exemplar, eterna e imutável: as Ideias.
Mas acrescenta-se à crença principal uma segunda: a crença de que é possível
conhecer algo das ideias, ou seja, contemplá-las. Essa segunda crença é que realiza a ligação
entre o tema do conhecimento de Deus e o tema da interioridade, pois a razão superior é
considerada como o olho interior e inteligível da alma racional. Para melhor compreender
isso, algumas distinções de base devem ser consideradas.
Quanto à alma, há que negar que possa contemplar as ideias, a não ser a alma
racional, essa parte de seu ser pela qual se excele, isto é, pela mente e razão, que é
como seu rosto, ou seu olho interior e inteligível. Ademais, não toda e qualquer
alma, mesmo que racional, senão a que for santa e pura (Oitenta e três questões
diversas, 46, 2).
Que cada criatura exista por participação em seu exemplar, isso é ditado pelo
exemplarismo, no entanto, além disso, chegar à contemplação das verdades inteligíveis já é
uma forma superior de participação. O conhecimento é descoberto como algo no qual a parte
superior da alma tem sua existência; parte essa que precisa ser iluminada para como que
relembrar o que já sabia.
A separação de sujeito e objeto perde sua nitidez. A mente se recorda do
conhecimento. Não porque o tenha apreendido em existência anterior, mas por haver certa
69
equivalência entre o que é sua parte superior e o que é o campo da verdade. Essa é a
mensagem de Agostinho no diálogo O mestre: o desvelamento do mestre interior, sobre o
pressuposto de que o intelecto situa-se em Deus. (Solilóquios, II, III, 3). Ou ainda, seguindo
um texto posterior para clarificar o conceito, pressuposto de que a “alma humana está em
união com os exemplares divinos, dos quais ela depende” (O livre arbítrio, III, II, 5, 13).
O questionamento de base que impõe a noção de mestre interior a Agostinho, no
referido diálogo, trata da natureza da relação entre mestre e discípulo e da relação entre a
palavra e o ensino. Uma análise séria desses problemas deve provar, a princípio, que não há
uma correspondência imediata entre palavra e pensamento, de modo que o ensino pudesse ser
entendido como o ato de introduzir ideias em outrem pela via da linguagem. De acordo com o
que nosso autor propõe, é preciso reconhecer que em “nenhum caso, o professor teria feito
penetrar no espírito de seu aluno qualquer ideia que ali não se encontrasse ou cujos elementos
componentes ali já não se encontrassem” (GILSON, 2007, p. 144). Ou seja, para ele, todo
conhecimento ocorre dentro e a partir de dentro. Quem ensina é Cristo, o mestre interior, mas,
aquele que aprende é habitado por esse mestre que jamais esteve ausente: interior intimo meo
et superior summo meo. O que significa que da perspectiva da riqueza interior, a autoridade
da fé não ensina a verdade, somente estimula a busca, tal como se enuncia na crença de que
“o que haja nos céus no-lo ensinará aquele que interiormente nos admoesta com sinais por
intermédio dos homens para que, voltando para ele no interior, sejamos instruídos” (O mestre,
XIV, 46).
Para caracterizar o conhecimento das verdades inteligíveis é preciso distingui-lo de
outras formas de conhecimento. A distinção básica é entre conhecimentos sensíveis e
inteligíveis, mas é possível graduar detalhadamente a atividade cognoscitiva da mente
racional. Através dessa graduação traça-se um dos itinerários agostinianos a Deus. Uma boa
descrição da hierarquia das atividades da mente encontra-se na obra O livre arbítrio, inserida
no contexto de dar provas da existência de Deus. Prova essa que se apresenta justamente
quando resplandece nítida a natureza da Verdade.
A primeira pergunta poderia ser se a mente humana é mesmo capaz de chegar a
alguma verdade sobre as coisas. Agostinho lutou veemente contra o argumento dos céticos já
em Contra os acadêmicos, contudo, ali seus argumentos foram puramente lógicos. O interesse
e os argumentos agora em questão são diversos, e o fundamento da certeza é estabelecido na
irredutibilidade existencial do espírito como presença a si mesmo. Esse argumento, que a
seguir é colocado sinteticamente, foi repetido em outras obras, sempre que Agostinho
procurava ascender ou dar a prova de Deus:
70
números e suas possibilidades combinatórias. Para ele, a natureza dos números é conforme
uma lei imutável e universalmente acessível à racionalidade.
Na verdade, Agostinho jamais alcançou a plenitude do desenvolvimento dessa linha de
raciocínio. Chegara mesmo a se empenhar em um projeto de interligar todos os
conhecimentos encontrados nas ciências liberais na busca pelo conhecimento de Deus, porém,
abortou prematuramente a empresa, deixando apenas duas tentativas incipientes, uma ligada à
Dialética e, outra, à Música. A seguinte passagem de O livre arbítrio é bastante ilustrativa das
enormes barreiras que se erguem frente a quem siga por essas alturas:
[...] quando considero em mim mesmo a verdade imutável dos números e, por assim
dizer, as moradas ou o santuário ou região sublime onde habitam [...] nesse caso, eu
me sinto bem longe do mundo corpóreo. E se nessa região sublime descubro alguma
realidade, na qual talvez me seja possível pensar, nada encontro que possa ser
traduzido em palavras. Caio então no cansaço e volto aos objetos que nos cercam, a
fim de conseguir me exprimir (O livre arbítrio, II, II, 11, 30).
sua concepção da musica estar em harmonia com o amor dedicado a Deus, beleza
terrena a caminho da Beleza Suprema e criadora. A música, assim elaborada,
ascenderia a Deus e, presente Nele, liberta de toda forma corpórea, estabeleceria
morada celeste (AMATO, 2007, p. 134).
semelhantes; e dar a cada um o que lhe é devido” (O livre arbítrio, II, II, 10, 28). E outras,
que conduzem à inteligibilidade de certas normas de valoração: o íntegro melhor que o
corrompido; o eterno melhor que o temporal; o inviolado melhor que o sujeito à violação.
Todas essas regras são chamadas luminares das virtudes, consideradas verdadeiras e
imutáveis, devido ao fato de cada uma delas poder ser objeto comum de compreensão entre os
homens. Isso acontece porque tais regras não colocam em jogo formas básicas de
conhecimento, mas, mais especificamente, algumas estruturas básicas ligadas ao
funcionamento da razão: superioridade, inferioridade, igualdade e especificidade. É o que a
pergunta sugere: “poderia fazê-lo se não visse quais são as coisas inferiores a serem
subordinadas às superiores; e quais as iguais a serem postas no mesmo plano; e quais as
coisas particulares que devem ser devolvidas a cada um?” (O livre arbítrio, II, II, 10, 29).
Donde segue a conclusão:
Portanto, quanto verdadeiras e imutáveis são aquelas leis dos números, das quais,
como dizias anteriormente, apresentam-se de modo imutável e universal a todos que
as consideram; e tanto são igualmente verdadeiras e imutáveis as regras da sabedoria
(O livre arbítrio, II, II, 10, 29).
O texto bíblico como sempre é inspirador: “ela atinge com força desde uma
extremidade à outra, e dispõe todas as coisas com suavidade” (Sb 8, 1). Ela é a Sabedoria. A
abordagem do tema da busca de Deus na interioridade culmina na própria prova da existência
de Deus, ou, talvez, melhor dizer que ambas estão implicadas desde o principio: “Eu te havia
prometido, se te lembras, de haver de provar que existe uma realidade muito mais sublime do
que nossa mente e nossa razão. Ei-la diante de ti: é a própria Verdade! Abraça-a, se o podes.
Que ela seja teu gozo” (O livre arbítrio, II, II, 12, 34). A prova da existência de Deus é a
prova da dependência da razão a um principio superior; nessa prova, a Sabedoria se impõe
àquele que busca a Deus, já que Ela não é senão a Verdade, Medida suprema de todas as
coisas.
3.2.2 O conhecimento de si
sua defesa da necessidade soteriológica da graça. Nesse caso, a palavra necessidade já diz
tudo: mais uma exortação à humildade. Falou-se alhures do trauma que a desobediência
original causara na pureza racional humana. Agora é possível entender melhor do que se trata.
A psicologia também advoga a favor da humildade, desde que se compreenda a fundo a
dialética do homem exterior e do homem interior. Existe um sentido psicológico na
proposição de que a natureza humana foi profundamente ferida, ou afetada, pelo pecado de
Adão. Não se entende o sentido da humildade, se não se considera que à “rebelião da alma
contra Deus seguiu a rebelião da carne contra o espírito. Duas chagas em particular, a da
ignorância e a da concupiscência, afligem gravemente todo o gênero humano” (MORIONES,
1988, p. 205).
Destarte, como já se disse que não é preciso rebaixar-se para ser humilde, entenda-se
que o segredo da humildade em Agostinho é a graça, ou seja, a atribuição de tudo o que há de
bom a Deus e a atribuição de todos os erros ao próprio homem. O sentido disso é louvar “a
Deus em ti, não a ti mesmo. Não pelo fato de seres o que és, mas porque ele te fez; não
porque tu podes algo, mas porque ele pode em ti e por ti” (Comentário aos Salmos, 144, 7).
Ele pode em ti e por ti. Saber-se criado à imagem de Deus é também abertura às
maiores potencialidades. Nesse terceiro aspecto, mais do que nos outros dois, o conhecimento
de que se trata constitui-se fundamentalmente na unidade fé e razão. Em seu interior, é dado
ao homem conhecer-se como um ser predestinado à felicidade no gozo da sabedoria.
Desde o principio de sua cristandade, santo Agostinho aprendeu a reconhecer em si,
em sua racionalidade, os sinais de que um caminho de elevação lhe prometia um futuro gozo
do Supremo Bem. Mas, como tal percepção foi adotada por ele a partir de um plano
soteriológico, estreitamente amarrado ao campo da fé revelada, seu modo de progredir no
caminho distinguiu-se significativamente da maneira dos filósofos; inclusive daqueles de
quem mais havia se aproximado, os platônicos. Especialistas em filosofia antiga - dentre eles
G. Reale - debruçados sobre o estudo comparativo das experiências filosóficas de Platão e
Agostinho puderam daí propor a legitimidade de uma filosofia cristã a partir da ideia do
estabelecimento de uma terceira navegação. Se a segunda navegação de que se trata é aquela
em que Platão desbrava o mundo inteligível por seu próprio esforço de elevação, a terceira é
aquela que reconhece a insuficiência da razão autônoma. Navegação a ser empreendida por
quem reconhecer que “a felicidade seja considerada um dom do próprio Deus” (MOREIRA
DA SILVA, 2005, p. 52).
Efetivamente, a metáfora da navegação tem uma função central no modo como o
diálogo A vida feliz introduz o conceito de felicidade em sua relação com a busca filosófica e
76
religiosa. A seguir o raciocínio desenvolvido ali, convém admitir que, por mais que existam
diversos tipos de navegantes, todavia, a realidade do navegar em direção a uma condição
diversa de existência é universal, esse é o dado fundamental; a felicidade, outra realidade,
além da temporalidade, da multiplicidade, da finitude, da impotência e da ignorância. E como
o pensamento de santo Agostinho desenvolveu-se inteiramente dentro de um plano
soteriológico e cristocêntrico, a operação da Providência divina manteve-se situada sempre no
primeiro plano da articulação, no que se refere ao conhecimento das potencialidades humanas.
Nessa perspectiva, se o destino do homem é visto como cumprindo um plano divino, a
compreensão desse plano deve supor uma navegação: uma busca, um esforço, um caminhar;
e, noutro extremo, deve supor a graça, uma determinação transcendente.
Na sequência do mesmo raciocínio sobre as orientações primordiais do
autoconhecimento, e da mesma maneira como dois polos de forças já foram estabelecidos, a
ruptura que precede o alcançar da meta supõe um corte temporal. De um lado trata-se da
ascese do espírito pelos passos que devem ser galgados nesta vida, de outro, fé e razão se
unem na expectativa da fruição de um gozo supremo: fruição que deve se dar no estado
superior de perfeição da imagem restaurada. Ao tratar do tema da restauração da imagem, o
bispo de Hipona sempre se valeu da autoridade do Apóstolo para estabelecer tal divisão: “No
presente vemos por um espelho e obscuramente; então veremos face a face” (1Cor 13, 12).
No presente, se existe já motivação interior para a busca, se algo leva o homem a
querer encontrar felicidade, ou verdade, sabedoria e, enfim, Deus, é porque é próprio do
homem ter uma inquietude existencial quanto ao sentido do seu ser. Esse dado a priori da
inquietude conduz à base da interpretação da presença divina operante: “Certo impulso
interior que nos convida a lembrar-nos de Deus, a sentir sede dele, sem nenhum fastio, jorra
em nós dessa mesma fonte da Verdade” (A vida feliz, IV, 35).
Por mais que tal impulso não possa conduzir o homem ao gozo final nesta vida,
Agostinho buscou sempre demonstrar os progressos reais acessíveis e necessários, pois “a
perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e
perfeitamente” (A vida feliz, IV, 35). Apontou três perguntas fundamentais e norteadoras de
todo o progresso filosófico, perguntas que podem ser usadas como chave de leitura para uma
descrição e uma avaliação do progresso espiritual de um homem. A primeira se dirige à
Providência, que determina o impulso inicial; a segunda trata de qual Verdade deve ser fruída;
a terceira estabelece o vinculo que deve unir o homem à Verdade.
As respostas às duas primeiras questões já podem ser supostas pelo que se disse acima.
Quanto à terceira, há ainda um fator importante a ser considerado. O santo que decidiu buscar
77
a Deus no interior, e que o fez por crer num propósito maior para inteligência humana,
também agiu confrontado com outro dado de fé apresentado à sua racionalidade: a exortação
ao governo de todas as criaturas, veiculada nas palavras reveladas. Isso significa que o
conhecimento das potencialidades interiores que aqui se procura explicitar em suas injunções
de base prevê que o “ser racional – se for puro de todo pecado, e submisso a Deus – domina
sobre todas as coisas a ele sujeitas” (A verdadeira religião, III, 23, 44).
Vistos por essa lente, ciência e sabedoria admitem significações específicas. A
começar pela distinção prioritária a ser realizada no que concerne à intencionalidade do ato.
Por diversas vezes em sua obra, e até mesmo como síntese de sua doutrina moral, santo
Agostinho firmou a posição de que, para cumprir a reta conduta, o homem deve distinguir
entre aquilo de que se deve utilizar para um propósito maior e aquilo que deve ser objeto
imediato de gozo. Todos os bens temporais são valorados a partir dessa concepção de
utilidade e, de maneira idêntica, todas as vicissitudes da experiência sensível. No sentido
oposto, a orientação ao gozo deve se inclinar ao eterno, em vista da finalidade absoluta que é
o gozo de Deus. Em suas palavras: “devemos gozar unicamente das coisas que são bens
imutáveis e eternos. Das outras coisas devemos usar para conseguir o gozo daquelas” (A
doutrina cristã, I, 22, 20). Nisso deve consistir a perfeição do homem que caminha, na
prática, no caminho desta vida, entre os santos que “pelo entendimento, só amam a verdade;
na ação, só amam a paz; no corpo, só a saúde” (A verdadeira religião, VI, 53, 103).
Em A Trindade, um texto tardio agostiniano resumiu com clareza aquilo que desde
sempre fora para o santo a distinção entre sabedoria e ciência: “A contemplação é atribuída à
sabedoria e a ação à ciência” (A Trindade, XII, 14, 22). O critério fundamental ergue-se entre
as noções de ação e contemplação. De modo que se nomeia ciência o que é próprio da ação e,
consequentemente, restrito ao campo do uso. E é por considerar a basilar importância do
correto uso dos bens temporais, tanto como meio de purificação como de progresso, que a
ciência adquire uma função insubstituível, pois, “sem a ciência, não se pode sequer adquirir as
virtudes pelas quais levamos uma vida reta e governamos de tal modo esta mísera existência”
(A Trindade, XII, 14, 21b).
O texto bíblico diz: “a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é ciência” (Jó 28, 28).
Também o Apóstolo distinguiu entre os termos: “a um, o Espírito dá a mensagem da
sabedoria; a outro, a palavra da ciência” (1Cor 12, 8). Agostinho parecia certo do sentido de
apartar-se do mal, tanto prático como moral, de modo que não há erro em reconhecer nele o
uso do termo ciência, ora se referindo à ciência da fé, ora às ciências liberais. No tanger da
sabedoria, sustentando a nota da piedade inspirada em Jó, o culto de Deus situa-se nos lindes
78
profundo da interioridade. Esse exemplo é também anunciação de uma novidade, que consiste
“no cumprimento verdadeiro da lei” (ARENDT, 2009, p. 329). Quando santo Agostinho se
decidira por buscar a verdade no interior, ainda não conhecia bem esse exemplo, porém, com
o advento da fé cristã, instalou-se um movimento de buscar saber para amar: o que torna
presente um sentido teleológico na busca agostiniana pelo conhecimento, de cunho espiritual,
que não remete nem à pura teoria, nem à pura prática.
O livre arbítrio é a qualidade mais delicada e contraditória do homem criado à imagem
de Deus. Isso ocorre porque por ele o homem peca e se afasta de Deus e, também por ele, a
graça opera em seu retorno e unificação. Toda a complexidade da forma como Agostinho
compreendeu o progresso espiritual deriva do fato de que, para ele, o amor é como o peso da
alma, determinante de seu movimento e, em acréscimo, do fato de conceber o amor como
desejo, ou seja, ligado a um deleite: “Porque amar não é outra coisa que desejar uma coisa por
si mesma” (Oitenta e três questões diversas, 35, 1). Desejar uma coisa por si mesma equivale
ao desejo de fruição, contudo, na concepção agostiniana, a fruição não pode findar e recair no
estado de desejo, ou seja, não pode existir em função de um bem temporal; donde se conclui
que a principal conquista interior é uma eleição no campo do amor, cuja perfeição só pode
acontecer numa vida futura não determinada pela temporalidade.
“Regressando de um futuro absoluto, o homem pôs-se fora do mundo e ordenou-o.
Vivendo no mundo ele tem o amor ordenado, ama como se não estivesse no mundo mas como
se fosse o ordenador do mundo” (ARENDT, 1997, p. 44). Talvez essa frase expresse bem o
sentido da busca agostiniana, tema tão recorrente aos escritos desse mestre da espiritualidade,
que apresentou a vida humana como uma viagem de ascensão a Deus. E se conhecer a Deus
foi para ele amá-Lo, nada pode ser mais pertinente ao agostinianismo do que pensar no amor
como a mais excelente potencialidade do espírito humano.
Fez-se até aqui uma breve exposição das características gerais da experiência cristã de
santo Agostinho, caracterizada como uma busca filosófica e religiosa. Segue abaixo uma
investigação detalhada da antropologia agostiniana, de modo a esclarecer a concepção de
homem que fundamenta a crença na restauração da imagem de Deus na mente. Em seguida,
no próximo capítulo, são descritas as especificidades desse processo de restauração. Mas, na
verdade, considera-se tratar de três perspectivas da doutrina da imago Dei: primeiramente
uma perspectiva antropológica e, na sequência, as perspectivas mística e teológica.
80
17
Aproveitamos os esforços de Ludger Hölscher (1986) para enfatizar a unidade do homem agostiniano. Em
Agostinho, mesmo quando as relações entre o corpo e alma são tratadas de modo a sugerir uma separação, na
verdade subentende-se o homem como “um todo que consiste nas duas realidades distintas das substâncias
espiritual e corporal, mas que, ao mesmo tempo, constitui uma nova realidade tendo sua própria natureza única
específica como um ser psicofísico” (HÖLSCHER, 1986, p. 215).
81
homem exterior é Adão e o interior é Cristo” (Oitenta e três questões diversas, 51, 1), há que
se admitir em ambos a imagem de Deus, ou seja, no homem integral. A distinção entre eles
mostra-se somente hierárquica, entre aquele que é o homem velho a ser superado, e aquele
que é o homem novo renovado interiormente em Cristo.
Não obstante haver uma importante diferença teológica entre os termos imagem e
vestígio de Deus, no que se refere à compreensão antropológica da concepção integral do
homem criado a imagem de Deus, em complemento, toda a criação deve ser incluída nessa
categoria. A base de tal afirmação é bíblica: Deus criou todas as coisas boas e, no conjunto,
muito boas. Seguindo esse raciocínio:
Todas as criaturas possuem uma semelhança divina de menor grau, porém, somente o
homem existe, vive e entende, de maneira a caracterizar a imagem de Deus por excelência,
sem intermediários, porquanto as outras coisas possuam a imagem devido à ordem e beleza de
que participam. Pelo mesmo tipo de participação, o corpo humano também mostra alguma
semelhança – teologicamente nomeada vestígio. Na verdade, em maior grau, já que a postura
ereta é interpretada como um sinal que veicula um sentido de elevação espiritual. De maneira
que a mais alta semelhança dentre toda classe de corpos encontra-se no corpo humano por um
motivo ainda mais relevante: o corpo humano e o homem exterior guardam a possibilidade de
serem submetidos pela mente que os rege.
Se essa indeterminação do conceito de imagem serve a uma compreensão geral da
questão tratada, por outro lado, pode gerar um entendimento muito superficial e passível de
erros. Santo Agostinho concebeu uma definição mais precisa do conceito de imagem:
[...] se entende unanimemente que tenha sido criado à imagem de Deus esse espírito
no qual está a inteligência da verdade; porque se adere à verdade sem criatura
alguma intermediária. O restante do homem, querem que pareça feito à imagem,
porque toda imagem certamente é semelhante, mas nem toda semelhança é também
propriamente imagem, ainda que às vezes possa chamar-se abusivamente (Oitenta e
três questões diversas, 51, 4).
imagem, semelhança e igualdade. Essa distinção de conceitos tem valor egrégio para a
exegese da passagem bíblica que funda a doutrina da imago Dei (Gn 1, 26). R. Markus indica
- em “Imago” and “similitudo” in Augustine - que aí reside tanto um ponto de
desenvolvimento na obra do bispo de Hipona, como a originalidade de sua interpretação em
relação aos exegetas anteriores a ele18. Não significa que haja aí uma ruptura de pensamento,
mas somente uma maturação necessária para clarificar o conteúdo da doutrina.
As dificuldades que se apresentavam a Agostinho antes da introdução do terceiro
termo, a igualdade, eram referentes ao uso da correta terminologia. Num primeiro momento
houve dúvida quanto ao modo como o homem poderia ser considerado à imagem de Deus e,
nosso autor “cuidadosamente se abstém de falar sobre o homem como monumental imagem e
semelhança de Deus” (MARKUS, 1963, p. 132), preferindo o uso do termo para ao invés de
à imagem e semelhança de Deus. Mas tais dificuldades são compreensíveis, se for
considerado que ainda havia pouco discernimento sobre o tratamento da temática nos três
períodos de existência da raça humana: antes do pecado, depois do pecado e na ressurreição
final. E certamente é a partir desse discernimento que o presente trabalho deve analisar o
significado antropológico da afirmação do homem criado à imagem e semelhança de Deus.
O primeiro passo é a definição dos conceitos. Nosso santo situou da seguinte forma o
problema:
Logo, quando o termo é imagem, fala-se de algo que é imagem de alguma coisa e,
nesse sentido, traz necessariamente uma semelhança que tem somente a possibilidade de
chegar à igualdade. Quando o termo é igualdade, a semelhança é necessária e perfeita,
contudo, não necessariamente a igualdade deve provir daquilo a que é igual, de modo a
constituir imagem. Já o termo semelhança possui o significado lógico de uma coisa que se
mostra semelhante à outra, podendo tanto ser imagem ou não, como ser semelhança perfeita
ou não.
18
Segundo H. Somers em, Image de Dieu: les sources de l’exégèsis augustiniennes, a santo Agostinho não
caberia o mérito da originalidade, nem quanto a sua doutrina da imagem de Deus, nem quanto às exegeses dos
Gênesis bíblico. Para esse estudioso, a principal contribuição do bispo de Hipona teria sido a síntese crítica das
tradições precedentes. E, principalmente porque sua síntese efetivamente se erguera sobre vasta fonte de
referências, essa contribuição prestada ainda hoje mostra seu caráter extraordinário.
83
ainda resta desenvolvê-las” (GILSON, 2007, p. 387). Dentre as coisas criadas em forma
definitiva encontra-se a alma do homem, criatura espiritual.
Porém, para que o homem viesse um dia a existir concretamente, foi preciso que desde
o principio já estivessem criadas as sementes de tudo o que se desenvolve no tempo. A
concepção de Agostinho é a de que “o cosmos está grávido de causas germinais” (A Trindade,
III, 9, 16). Esse é o modo como Deus governa “externamente” o mundo. Existem forças e
faculdades que regem o comportamento do universo, de modo que cada coisa criada venha a
se manifestar temporalmente no momento exato já previsto pela ciência divina.
A primeira maneira de compreender a imagem e semelhança é tomá-la no sentido do
que foi criado desde sempre de maneira definitiva. Nesse sentido, ela equivale à criatura
racional, ou seja, o homem é semelhança do Verbo, porque assim é a criatura racional. A
Semelhança do Pai é o Filho, e a criatura racional é criada pela semelhança e à semelhança;
quanto a essa criatura, “à sua semelhança somente a alma” (Comentário literal ao Gênesis,
inacabado, XV, 59).
Outra coisa é falar de Adão, o homem concreto formado de corpo, alma e espírito,
criado à imagem de Deus. A ele se aplica mais propriamente a função do termo imagem
enquanto imagem da Trindade – tema que será mais bem abordado na perspectiva teológica
das analogias trinitárias. Quanto à semelhança, a situação é de instabilidade, pois ela se dá em
graus que, pelo pecado, pode chegar até o estado de deformação da imagem.
Considerando a presciência divina, falar de Adão já é situar-se na economia da
salvação. O paraíso de Adão é ainda uma perfeição intermediária, da qual é possível cair na
mortalidade. Não que sua natureza intelectual não fosse perfeita, mas estava suscetível a uma
escolha. Foi por isso que Agostinho conceituou a instabilidade da existência adâmica em
relação ao modo de sua criação, situando desde o principio a deliberação operante da
providência divina que:
Criou-o, porém, de tal forma, que, se sujeito a seu Criador [...] lhe cumprisse
piedosa e obedientemente os preceitos, passaria sem morrer, em companhia dos
anjos, a gozar de imortalidade feliz e eterna, mas se, pelo contrario, usando soberba
e desobedientemente do livre arbítrio, ofendesse o Senhor seu Deus, seria sujeito à
morte e viveria bestialmente, escravizado pela libido e destinado depois a suplicio
eterno (A cidade de Deus, XII, XXI).
Adão também pode ser considerado a infância da existência humana, a partir da qual
foi decidido o futuro dos homens: “todo homem, primeiramente, ao nascer e sair para a luz,
vive a infância, a primeira idade. Esta idade do mundo estende-se de Adão até Noé”
86
(Comentário literal ao Gênesis, inacabado, XXIII, 35). Assim inicia-se uma interpretação
histórico-sociológica que, levada a seu termo, permitiria tanto compreender o sentido
soteriológico da historia da humanidade como diferenciar o estado do homem adâmico da
perfeição do homem restaurado em Cristo. Para Agostinho, a vida futura será gozo eterno, não
mais sujeito à queda. Como infante, o primeiro homem mantinha a perfeição espiritual
somente como potencialidade, porque “foi criado com alma vivente, não com espírito
vivificante, reservado para prêmio de sua obediência” (A cidade de Deus, XIII, XXIII, 1).
O pressuposto fundamental que deve ser levado em conta para compreender o estado
atual em que se encontra o homem determina a impossibilidade dele vir a deixar de ser a
imagem de Deus. Esse pressuposto encontra respaldo na crença que eleva a economia da
salvação a primeiro plano, visto que “tudo o que Deus fez em Adão, foi feito visando Cristo”
(SOUZA, 2009, p. 135). Neste sentido, santo Agostinho “releva o problema do pecado como
‘deformação’ da imagem de Deus no homem. Afirma que, a Imago Dei, por ser a essência do
ser humano, não está inteiramente perdida e nem totalmente corrompida” (SOUZA, 2009, p.
136).
É possível descrever esse estado de deformação tomando como base o trecho de A
cidade de Deus citado acima, onde está dito que “se, pelo contrario, usando soberba e
desobedientemente do livre arbítrio, ofendesse o Senhor seu Deus, seria sujeito à morte e
viveria bestialmente, escravizado pela libido e destinado depois a suplicio eterno” (A cidade
de Deus, XII, XXI). Trata-se de um trecho paradigmático, por estabelecer com clareza e
precisão tanto a causa do pecado como suas consequências. Dos castigos, três são as
modalidades a se considerar: a mortalidade, a perda da liberdade, o futuro funesto dos não
redimidos.
A causa do pecado define-se por dois termos: soberba e desobediência. À primeira
vista parece simples erro de escolha ou de percurso, mas, tomada numa perspectiva
ontológica, a causa do pecado é uma falha, uma falta, algo que impede o desenvolvimento
normal da parte superior do homem e, a “esta defecção, Agostinho a chama pecado original”
(FLOREZ, 1954, p. 555).
87
Algumas pessoas poderiam pensar que, se Deus é o supremo Criador e tem ciência
absoluta, então a causa do pecado deve provir Dele. Agostinho refutou veementemente tal
solução do problema, defendendo a absoluta bondade de Deus. Arguido por seus
companheiros sobre a causa da perversidade, a resposta não poderia ser mais enfática: “Para
que o homem se faça perverso, a causa está ou nele mesmo, ou em algum outro, ou no nada”
(Oitenta e três questões diversas, 4). E, para fim de conversa, mesmo considerando o nada
como uma parcela de não ser na existência da criatura, “a causa de sua perversão retorna à
mesma vontade do homem, seja pervertido com ou sem um sedutor” (Oitenta e três questões
diversas, 4).
A solução do problema parte de uma espécie de metafísica da vontade. Agostinho
concluiu que a vontade é causa de si mesma e não pode ser determinada senão interiormente,
sem qualquer vínculo exterior. O que pode ser justo ou injusto é a própria origem interna da
causação, e não o objeto ou a ação à que a vontade se dirige. Dessa forma, como nada pode
impelir a vontade a si mesma, resulta que “ninguém é obrigado por sua própria natureza a
pecar” (O livre arbítrio, III, 16, 46). Peca-se pelo mau uso do livre arbítrio, ou seja, por uma
vontade má, chamada propriamente de cobiça ou cupidez. “Enfim, encontra-se a cobiça em
tudo o que alguém quer além do que lhe é suficiente” (O livre arbítrio, III, 17, 48).
Todavia, somente os primeiros pais tiveram a livre opção sobre a boa ou má vontade.
Tendo escolhido pelo mau caminho, tornaram-se mortais e passaram a gerar na carne. Da
carne desencadeou-se um movimento libidinoso desobediente, sinal da primeira morte, “em
que Deus abandonou a alma” (A cidade de Deus, XII, XV). Essa primeira morte constitui-se
de dois momentos, do abandono de Deus que corresponde a um desequilíbrio interno da alma,
e da morte física propriamente dita. Por esses parâmetros, na doutrina agostiniana do pecado
original, todos os seres humanos são considerados herdeiros do casal primitivo e, como tal, já
nascem condenados à morte; sem autonomia para não pecar; e sujeitos a outro tipo de escolha,
entre a possibilidade de redenção ou condenação eterna. Só que, para sua danação, essa
escolha não é tão simples quanto à dos pais primitivos, pelo contrário, supõe o esforço,
porém, de modo incompreensivelmente restrito aos eleitos pela graça divina. O trecho a seguir
alude explicitamente à separação entre o que é próprio da natureza humana e o que é
decorrência do castigo.
Na verdade. Tais são as duas reais penalidades para toda alma pecadora: a
ignorância e a dificuldade. Da ignorância, provém o vexame do erro; e da
dificuldade, o tormento que aflige [...] Ora, aprovar o falso como se fosse verdade, e
assim enganar-se sem o querer, tornando-se incapaz de se abster de atos libidinosos,
em consequência das resistências e dos dolorosos tormentos dos vínculos carnais –
88
essa não é a natureza primitiva do homem, mas, sim, o seu castigo depois de ter sido
condenado (O livre arbítrio, III, 18, 52).
conhecimento de Deus através dos vestígios dele nas criaturas, que significa “conhecimento
das coisas invisíveis do Criador por meio das visíveis da criatura” (O espírito e a letra, XII,
19), sem o auxílio da graça divina veiculada no exemplo de Cristo, o homem é tomado por
seu próprio orgulho e amor ao poder. Agostinho se valeu das palavras do Apóstolo: “se
perderam em vãos arrazoados e seu coração insensato ficou nas trevas. Jactando-se de possuir
sabedoria, tornaram-se néscios e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do
homem” (Rm 1, 21-23).
Da ignorância, como obstáculo para a junção do conhecimento à correta valoração das
coisas, segue que os tormentos decorrentes da deformação da imagem são intensificados pela
dificuldade, entendida como a impossibilidade do homem determinar livremente sua vontade.
Se o amor é o peso da alma, isso significa que a alma é dirigida por seu próprio deleite,
porque só prevalecem os bens que “de tal modo deleitam, que mantêm o ânimo” (Exposição
da epístola aos Gálatas, 49) e, se a libido não responde aos comandos do espírito, isso
significa que, por decorrência do pecado original, a razão não é capaz de determinar o objeto
do deleite. O grande tormento é ser lançado de um lado a outro por um querer essencialmente
múltiplo e inconstante.
Por sua vez, santo Agostinho não foi somente um teórico do pecado original, ao
contrário, relatou com detalhes a profunda angústia que sentia por estar sujeito a essa cisão
interior, denominada como estado de pecado. Mesmo em sua maturidade cristã, num estágio
avançado da consecução de uma vida santa e piedosa, a humildade da confissão da
incapacidade de vencer a atração da concupiscência, até nos recônditos mais profundos do
inconsciente, é reveladora da profundidade investigativa desse santo: “sobrevivem ainda na
minha mente [...] as imagens daqueles prazeres [...] Quando acordado, elas não têm força,
mas, durante o sono, chegam não somente a suscitar em mim o prazer, mas até o
consentimento” (Confissões, X, 30, 41).
língua portuguesa, optou-se neste trabalho por utilizar primordialmente o termo restauração,
que aparece com maior frequência nas obras A verdadeira religião e A Trindade.
O sentido final da restauração equivale à recuperação da semelhança perfeita à criatura
racional angélica. Não se trata de recuperar o estado do primeiro homem antes do pecado,
mas, sim, o estado em que foi o homem criado no Verbo de Deus. Com a diferença de que, na
ressurreição, a perfeição racional será coexistente ao corpo, num estado em que “com clareza
assombrosa veremos a Deus, que está presente em todas as partes [...] vê-lo-emos, por
intermédio de nossos corpos transformados, e em todos os corpos a que volvermos os olhos”
(A cidade de Deus, XXII, XXIX, 6). Basicamente, então, para apresentar essa concepção final
do homem a partir da obra de Agostinho, faz-se necessário agregar essas duas ideias, o
tratamento da ideia de perfeição racional na visão da face de Deus – que pode ser chamada de
deificação, filiação ou adoção -, de um lado, e a ideia da presença do corpo nesse estado de
imutabilidade, de outro.
Na verdade, o caráter antropológico da restauração da imagem de Deus se insere
inteiramente no contexto da cristologia dos primeiros trabalhos de Agostinho. Naquele tempo
não era tanto o problema dificílimo da união das naturezas - humana e divina - na pessoa de
Jesus que ocupava seu pensamento, mas, estava mais interessado em interpretar o mistério da
encarnação para responder aos seus interesses filosóficos (entenda-se busca pela sabedoria).
Nesse sentido, se a busca pela sabedoria já se afigurava como retorno a um estado original de
perfeição, a concepção da divindade encarnada se oferecia como a descoberta do verdadeiro
caminho.
A encarnação é vista como um ato histórico de Deus, que teria rebaixado até um corpo
humano a Autoridade da Razão divina para trazer as almas de volta ao inteligível, visto que
pela “encarnação Ele ensina ao homem seu Poder por seus Atos, sua clemência por sua
Humildade e sua Natureza por sua Doutrina” (VAN BAVEL, 1954, p. 6). O lado humano do
Cristo é entendido como uma manifestação exterior reveladora da sabedoria; é a forma como
se torna conhecida a autoridade divina, “aquela autoridade que não somente transcende em
seus milagres sensíveis toda faculdade humana, mas, também, dirigindo o próprio homem,
mostra-lhe até que ponto se rebaixou por ele” (A ordem, II, IX, 27).
Essa inserção cristológica do tema também revela três aspectos da dinâmica da
restauração da imagem. Pois, que o homem seja imagem de Deus, isso é tomado como fato,
que independe de consentimento. Porém, para que a imagem seja restaurada, “a situação ideal
é quando crê ser imagem de Deus, quando sabe ver uma relação viva entre ele mesmo e Deus,
e vive sendo consequente” (VAN BAVEL, 1988, p. 97). Pela autoridade divina e pela
91
A primeira liberdade da vontade era poder não pecar; a última será muito mais
excelente, ou seja, não poder pecar. A primeira liberdade era poder não morrer; a
ultima será muito mais vantajosa, a saber, não poder morrer. A primeira
possibilidade da perseverança era poder não deixar o bem; a última será a felicidade
da perseverança, isto é, não poder deixar de praticar o bem (A correção e a graça,
XII, 33).
terá ainda mais, de maneira que não necessitará de alimentos corporais, senão que
será vivificado para subsistir somente pelo espírito, quando houver ressuscitado no
espírito vivificante, pelo qual será também espiritual. Por outro lado, aquele corpo
que fora o primeiro, ainda que não houvesse morrido se o homem não tivesse
pecado, não obstante, fora feito animal (Retratações, I, 13, 4).
4 A RESTAURAÇÃO DA IMAGEM
Sob a fundamentação que se pretendeu dar ao tema nos primeiros capítulos, que inclui,
em síntese, a caracterização da busca religiosa e filosófica de santo Agostinho e a
apresentação de sua antropologia a partir da doutrina da imago Dei, pretende-se chegar a uma
compreensão aprofundada do processo de restauração da imagem deformada. Para esse
objetivo, a restauração será abordada em duas vias, a saber, teológica e mística, sendo que a
primeira constitui o ápice da cognição de si e de Deus e, a segunda, a aplicação prática do
conhecimento enquanto meio efetivo de transformação e ascese espiritual.
Para a via teológica, adota-se aqui a carta magna da teologia agostiniana, a obra A
Trindade. Serão esclarecidos os conceitos de imagem e vestígios de Deus. Esses conceitos
devem revelar tanto o modo como Agostinho concebeu a legitimidade do discurso sobre
Deus, como os limites do uso da razão para efetivamente produzir conhecimento direto da
realidade divina. Por sua vez, enquanto se constitui como conhecimento produzido por
analogias, o discurso em questão faz-se instrumento prioritário da restauração.
Na perspectiva mística, a abordagem buscará uma síntese possível dos principais
itinerários de ascensão a Deus propostos por santo Agostinho. Se o saber é orientado ao
estabelecimento da ordem no amor, tal como já se falou anteriormente, os progressos
espirituais deverão ser descritos em todos os campos da vida: intimidade, relação ao próximo,
vida comunitária, interpretação da História.
Para obter uma compreensão justa da proposta teológica do De Trinitate, é preciso ter
em mente as ressalvas com que a obra é introduzida pelo próprio autor. Três são as principais
possibilidades de erros a serem evitadas nesse campo. Tomar Deus por equivalente às
substâncias corpóreas. Tomá-lo por equivalente às almas. E o mais grave, expressar sobre ele
opiniões fantásticas sem fundamento comprovado na autoridade da fé ou nas experiências
comuns a todos os homens. Antes de empreender os esforços de reflexão em direção ao
conhecimento de Deus, deve-se ter em conta os cuidados necessários em relação aos dois
primeiros desses erros e, quanto ao terceiro, a necessidade de total afastamento desses que
95
estão “tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos não se apoiam nos
sentidos corporais nem no espírito criado; nem no próprio Criador” (A Trindade, I, 1, 1).
Guardadas as corretas proporções, o empréstimo de palavras derivadas ou das
experiências sensíveis ou das características da atividade mental pode ser aceito não como
erro, mas como meio para transcender a inteligência humana a partir de seus próprios
parâmetros de apreensão da realidade: assim é o caso das Escrituras sagradas, que
“acomodando-se aos pequenos, não evitou expressões designando esse gênero de coisas
temporais, mediante os quais nosso entendimento, como que alimentado, pudesse ascender
por degraus, às coisas divinas e sublimes” (A Trindade, I, 1, 2).
A fé para essa concepção de vida religiosa é alimento para a inteligência, assim como
também é instrumento de purificação, por apresentar algo como um caminho factível,
palpável, praticável. Da mesma forma é também entendida a mediação de Jesus Cristo, “não
como o poder divino pelo qual é igual ao Pai, mas na fraqueza humana na qual foi
crucificado” (A Trindade, I, 1, 3). Santo Agostinho manteve sempre em mente a
inacessibilidade de Deus Criador, visto a total transcendência daquilo que é imutável e eterno
em relação ao universo conhecido, por essência mutável e temporal. De modo que, em sua
acepção mais plena, a contemplação de Deus não se dá estritamente pela via da teologia, mas,
da mística: “Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para contemplarmos inefavelmente
o inefável” (A Trindade, I, 1, 3).
De acordo com os estudos de Fulbert Cayré, o conteúdo da segunda parte do De
Trinitate revela que o valor da teologia agostiniana como instrumento para a restauração
reside no método usado, que se explica não pela necessidade de demonstrar Deus, porém, de
mostrá-Lo. A demonstração é objeto da primeira parte da obra, que explicita e elucida o
dogma trinitário resumido nos termos: distintos em suas relações e atributos, mas inseparáveis
em suas operações “o Pai, o Filho e o Espírito Santo perfazem uma unidade divina pela
inseparável igualdade de uma única e mesma substância” (A Trindade, I, 4, 7). No intuito de
mostrar Deus, a segunda parte da obra investiga uma série de imagens trinitárias, que se
pretendem em acordo com a teologia paulina da visão em espelho e enigma19.
Há hierarquia entre as imagens oferecidas, que são múltiplas, porém, distantes da
Trindade que é Deus; a proposta é subir por degraus até aquela que é mais semelhante e que
pode ser considerada imagem verdadeira. Cayré tornou possível uma exposição mais didática
dessa sequência de imagens, dividindo-as em três grupos principais: as emprestadas da
19
1Cor 13, 12.
96
distinção entre as ideias de vestígio e imagem, da qual não se pode abdicar sem prejuízos na
compreensão da matéria em questão. Os vestígios são constituídos a partir do conhecimento
sensível em relação a qualquer criatura do universo. Existem variadas analogias trinitárias
entre o Criador e as criaturas, mas, nesse caso, as tríades são exteriores, no sentido de serem
provenientes da atividade do homem exterior ou a ele diretamente referidas. A limitação
dessas analogias reside em dois aspectos: a impossibilidade de por elas exprimir a verdadeira
unidade em sintonia com o aspecto relacional; a impossibilidade de que elas representem
Deus direta e imediatamente. O que sugere a conclusão de que para “chegar a analogias mais
profundas, é necessário passar do homem exterior ao homem interior e, para além dos
vestígios, buscar as imagens do criador em nós” (GILSON, 2007, p. 411).
Alguns dos principais exemplos de vestígios apontados por Agostinho podem ser
citados para explicitar a natureza e a limitação dessas analogias trinitárias. A trindade do
homem exterior inclui-se na categoria de vestígio, é aquela derivada das relações trinitárias na
atividade sensível, por exemplo, a visão. Na visão três realidades podem ser distinguidas: o
objeto, a imagem do objeto (visão), a atenção que direciona o sentido da vista para o objeto
específico. O que faz dessa tríade um vestígio é o fato de ela poder ser tomada como uma
semelhança imperfeita da Trindade. Nesse caso, as três realidades são completamente
distintas e, simultaneamente, perfazem certa unidade (também imperfeita). Não compartilham
da mesma substância nem demonstram uma simetria de relações, contudo, apresentam-se
como que amalgamadas numa unidade.
Derivada dessa primeira tríade da visão, uma segunda, que também compõe a trindade
do homem exterior pode ser apontada. No entanto, já se trata de uma relação trinitária
interiorizada e, por isso, um pouco mais perfeita. Essa é a tríade formada por memória, visão
interna e vontade: “quando essas três coisas estão reunidas em um só todo, essa reunião é dita
ser o pensamento (cogitatio)” (A Trindade, XI, 3, 6). Agora, a relação entre os elementos é
mais perfeita, porquanto não exista diversidade de substância na unidade formada. Todavia, a
ação da vontade sobre a preferência cedida a um ou outro conteúdo da memória é fruto de
concupiscência, porque se deriva de medo ou desejo, atração ou repulsão e, eis “a razão
porque esta segunda trindade não é a imagem de Deus: ela é produzida na alma mediante os
sentidos do corpo, criatura inferior” (A Trindade, XI, 5, 8).
Num sentido mais amplo, pelo qual todo o universo chega a constituir vestígio de
Deus, as analogias trinitárias podem assumir expressão a partir do registro de certas
características comuns a todos os seres. O fato de que santo Agostinho versou sobre essa
temática em seus primeiros escritos é prova de que, em seus constantes esforços para
98
racionalizar o mistério divino, sempre houvera essa mirada de investigação em relação aos
vestígios trinitários nas criaturas. Em um dos exemplos possíveis, encontra-se o seguinte:
“conhecida essa Trindade [...] sem dúvida alguma a mente percebe que toda criatura
intelectual, animal e corporal, recebe dessa mesma Trindade criadora: o ser para ser o que é; a
sua forma; e a direção dentro de perfeita ordem universal” (A verdadeira religião, 7, 13).
Noutro texto, tratando da mesma questão, a ideia de vestígio é ainda mais bem
definida, ao relacionar a Trindade divina à possibilidade de se perceber uma causa trina para
tudo o que existe. Para isso são estabelecidos como que três parâmetros pelos quais se dá a
existência de cada coisa: a essência, a diferença e a concordância. Pois
A pergunta pela essência busca responder ao ser de cada coisa. Se nenhuma das
criaturas possui o ser por excelência, justamente porque são temporais e tendem ao não ser,
abre-se a questão sobre a partir do que recebem o ser. A diferença se refere ao aspecto
qualitativo, visto que todas as coisas, além de não determinar originalmente sua essência,
também não a determinam qualitativamente, ou seja, não tem em si a causa de seu modo de
ser. Quanto à concordância, naquilo em que ela remete a criatura à coincidência consigo
mesma, parece tratar-se de uma questão sobre a identidade própria de cada criatura, no
sentido de que esses aspectos ditos qualitativos se organizam em cada coisa de modo a formar
uma estrutura interna, uma perfeição específica e não permutável.
Entretanto, a investigação da causa trina das criaturas encontra um desenvolvimento
significativo na obra A cidade de Deus. Para além do estudo sobre a tripartição da filosofia,
que também pode revelar a natureza trina do Criador, Agostinho apontou uma maneira
simples e objetiva de vislumbrar um vestígio Dele na criação através de três perguntas. As
três perguntas vão de encontro àquela distinção da essência, diferença e concordância, e como
que complementam o raciocínio: “é fora de dúvida ser direito da razão [...] descobrir, sob o
véu de obscura expressão [...] o secreto sinal da Trindade nas perguntas que cada criatura nos
sugere: Por quem, como e por que foi feita?” (A cidade de Deus, XI, XXIV).
A teologia dos vestígios atinge sua formulação máxima e paradigmática na trilogia:
medida, número e peso. Assim como ser, forma e ordem, esses também são atributos
existentes em todas as coisas criadas. Mas o uso desses termos acaba por prevalecer sobre os
99
outros, por serem respaldados de maior clareza e dupla autoridade, e podem ser tomados
como os vestígios por excelência daquele “que a criação e a própria Escritura atestam que
dispôs tudo em número, medida e peso” (A Trindade, XI, 11, 18; Sb 11, 21). A Medida
suprema é tomada por equivalência ao Pai. O número como que engendrado na suprema
medida faz a referência ao Filho, determinante do aspecto qualitativo essencial de cada coisa
existente. O peso garante que todas as coisas sejam ordenadas à totalidade harmônica
universal, epifania do Espírito Santo como bondade do Criador.
Em De ordine, a palavra vestígio aparece com uso semelhante, porém em contexto
diferente. Ao invés de se referir a Deus, ali essa palavra é usada para delimitar uma relação
entre o sensível e o inteligível. Tratando do uso das disciplinas liberais como meio de
elevação ao conhecimento da realidade inteligível, santo Agostinho figurou a descoberta dos
números inteligíveis por parte da razão que “refletindo em si mesma tudo isso, contemplava-o
como muitíssimo verdadeiro; mas considerava as coisas que se percebem pelos sentidos
apenas como sombras e vestígios daquelas intuídas pela mente” (A ordem, II, XV, 43).
Deixando claro com isso que o conhecimento racional não se origina do conhecimento
sensível, embora encontre uma espécie de correlação, e possa ser como que despertado pela
contemplação desses vestígios sensíveis. A importância da inserção desse comentário no
presente contexto situa-se no paralelismo possível de ser estabelecido com o que está sendo
aqui investigado. Pois, da mesma forma que do sensível é plausível alçar-se ao inteligível, os
conceitos teológicos de vestígio e imagem oferecem uma nova interpretação para o itinerário
de elevação espiritual a Deus.
imagem por sua vez é a denominação daquilo que na própria natureza humana permite
atribuir-lhe essa superioridade. Num tratado dedicado à natureza da alma, concluiu: “se há
alguma coisa mais das que Deus criou, alguma é inferior, alguma é igual à alma humana:
inferior, como a alma do animal, igual, como a do anjo; porém, melhor, nada” (A grandeza da
alma, XXXIV, 78). Com a ressalva de que isso exclui o estado da alma devido à deformação
pelo pecado.
Como já se adiantou acima, em A Trindade, Agostinho desenvolveu imagens
progressivas, com o intuito de traçar um itinerário ascendente a Deus pela via de analogias
cada vez mais perfeitas. Dividi-las em três grupos possui valor analítico e didático: as
emprestadas da atividade natural do homem; as que concernem à atividade moral do cristão; a
sabedoria sobrenatural propriamente dita. A partir dessa divisão torna-se possível delinear os
passos para a consecução do objetivo do autor que é “exercitar o leitor, a fim de que este
aprenda a procurar Deus através da imagem da Trindade que é nele, a fim de que este possa
caminhar” (TEIXEIRA, 2003, p. 179).
Contudo, primeiramente outra divisão pode ser proposta, para melhor situar a
amplitude da abordagem agostiniana: “A mente, como imagem de Deus, é essencialmente
representativa; em sua face interior se desenham alguns traços divinos que a glorificam, e
podem incluir-se em dois grupos: traços do absoluto e traços do relativo em Deus”
(CAPÁNAGA, 1957, p. 216).
Assim, os conhecimentos racionais - ou as chamadas verdades inteligíveis – são
dotados a habituar o homem ao vislumbre dos atributos de Deus, ser absoluto, através das
características de incorporeidade e imutabilidade desse tipo de conhecimento. Por outro lado,
o estudo das analogias trinitárias na mente humana revela algo da vida interior do Deus trino.
O primeiro grupo de traços deve revelar a absoluta transcendência de Deus. Deus é
conhecido como Verdade; Deus é conhecido como Sumo Bem; Deus é visado na
transcendência da Justiça. O homo religiosus agostiniano se volta para a interioridade e
descobre o Deus que é Luz da Verdade. Essa é uma primeira descoberta que revela Deus no
interior do homem. O homem descobre que o conhecimento das coisas verdadeiras depende
de uma verdade que contém a parte superior de sua interioridade. “O conceito de Bem segue o
mesmo procedimento daquele de verdade. Bondade e Verdade são conceitos absolutos que se
identificam em Deus” (TEIXEIRA, 2003, p. 152), sendo assim, a seguir o pensamento de
Agostinho, chega-se à denominação de um “Bem de todos os bens” (A Trindade, VIII, 3, 4),
espécie de critério de bondade para toda a gradação dos bens temporais e inteligíveis. Verdade
e Bondade: fundamentos transcendentes da Justiça da alma. A justiça é como uma ordenação
101
interior, ou beleza da alma. O homem não pode ver a Justiça em si, somente vislumbrar sua
existência a partir de um tipo de verdade interior que o ilumina. Para Agostinho a justiça é
como o amor de uma Forma, um modelo e, enquanto o homem não pode ainda ver essa forma
diretamente, pode “amar a essa Forma, valendo-se da fé, como [...] algo semelhante a ela” (A
Trindade, VIII, 6, 9).
No entanto, ainda que esse tipo de conhecimento revele mais a inacessibilidade do
Deus inefável, por mostrar apofaticamente a absoluta transcendência da Verdade, o modo
como o saber humano é articulado no interior da mente permite ainda a afirmação de uma
analogia a Deus. Essa é a principal via em que o De Trinitate investiga a imagem de Deus no
homem sem objetivar especificamente o âmbito relacional trinitário das analogias. Ou melhor,
a considerar somente uma das vertentes da investigação, isoladamente, encontra-se um ponto
de apoio para a articulação do primeiro grupo de traços referido acima. Trata-se da análise da
correspondência entre aquilo que Agostinho chamou verbo interior e o Verbo divino.
A análise desse verbo interior pressupõe de saída que nossa “linguagem tem algo de
corpóreo e incorpóreo” (CAPÁNAGA, 1957, p. 219). Isso significa que a analogia com o
Verbo divino não deve ser buscada nas palavras proferidas, determinadas por qualquer
idioma. A ideia de verbo interior busca definir algo mais fundamental, anterior à articulação
da linguagem e, portanto, causador desta.
Para santo Agostinho, a sonoridade da palavra proferida é um tipo de sinal de outra
“palavra”. Nesse sentido, aquilo que deve ser mais propriamente denominado verbo, não são
as palavras contidas em um discurso, mas uma realidade interior, condensada, algo que pode
ser conhecimento, ou simplesmente memória, contudo, algo que tem origem anterior às
palavras. O aparelho vocal produz sons. Os sons por sua vez servem à comunicação desse
“algo”, de acordo com as convenções do idioma de cada povo. Essa distinção de realidades
sustenta já uma analogia ao divino: “O Verbo Fez-se carne, como nosso verbo faz-se voz” (A
Trindade, XV, 11, 20).
A definição do que é o verbo humano é complexa e supõe o estabelecimento de uma
psicologia do conhecimento. Seguindo as análises de Paissac (1951, p. 59), ao considerar a
busca do parentesco do verbo ao Verbo, a psicologia acaba por conduzir a uma metafísica do
verbo; leva a estudar sua estrutura ontológica. De fato, Agostinho considerou três realidades
envolvidas na expressão do conteúdo da mente humana. As palavras proferidas situam-se
como que na etapa final do processo. A primeira instância tem a função de gerar o verbo
interior, é definida como um “saber imanente à alma” (A Trindade, XV, 11, 20).
102
dito, visto que Agostinho considerou a igualdade da mente a seu verbo. Nota-se que o sentido
da doutrina da imago Dei recebe uma complementação e torna-se mais complexo no De
Trinitate. O uso do termo imagem aparece em auxílio à teoria psicológica, e isso permitiu a
Agostinho não somente levar a busca por analogias ao extremo, como também adentrar numa
meditação sobre a natureza e as relações das Pessoas de Trindade.
A teoria do verbo mental não é somente uma analogia distante e metafórica. Ao
empenhar-se ao limite de seus esforços de reflexão, as intenções do bispo de Hipona visavam
tanto a elevação espiritual como uma descrição real das características da segunda Pessoa
divina. Ou seja, o testemunho de Agostinho efetivamente revela a busca de alguém que
almeja dizer algo da realidade mesma da vida divina. (PAISSAC, 1951, p. 58).
A pequena exposição sobre a teoria do verbo interior realizada acima já permite a
passagem para o segundo grupo de traços do divino indicado: os traços do relativo em Deus.
Isso porque a partir da análise da natureza do verbo interior, Agostinho chegou a uma nova
perspectiva frente à imago Dei enquanto imagem da Trindade. Tal perspectiva pode ser
formulada da seguinte forma: a mente com seu conhecimento unido ao amor – verbo interior
– é imagem da Trindade. A compreensão de como essa proposição pode ser verdadeira se dá
com a observação de uma trilogia no homem interior: mens (mente), notitia (notícia ou
conhecimento) e amor.
Essa primeira trilogia se enquadra no primeiro grupo de imagens trinitárias definidas
no princípio do capítulo: emprestadas da atividade natural do homem. A tese basilar pode ser
enunciada na ideia de que a vida divina é semelhante à atividade intima da alma, que se
conhece, pensa em si e se ama. Isso ocorre de modo mais perfeito em Deus, mas, em suma, é
algo da mesma natureza. (CAYRÉ, 1927, p. 105). Essa é a interpretação para a doutrina
paulina da visão de Deus em espelho.
A imagem da Trindade aparece mais clara a Agostinho quando a trilogia mens, notitia,
amor – trilogia que se refere ao engendramento do verbo interior - é aplicada ao
conhecimento da mente sobre si mesma. É preciso primeiramente vislumbrar uma relação
epistemológica perfeita da alma, quando esta se faz objeto de si mesma: “quando a alma se
conhece e aprova o conhecimento que tem de si mesma, esse conhecimento que é seu verbo,
lhe é perfeitamente igual e adequado, e isso a cada instante” (A Trindade, IX, 11, 16). A
oscilação entre o desejo que busca e o amor pelo que é encontrado estabelece uma
circularidade, ou uma constante atualização, na imagem trinitária que provém do
conhecimento da mente sobre si mesma. E por isso é possível encontrar nesses três termos
104
mente aparece, portanto, como o ato primeiro (o Pai, na divina Trindade), do qual
procede o desejo e a vontade de autoconhecer-se, ou seja, a consciência de si (o
Filho ou Verbo). Conhecendo-se, necessariamente procede também o amor de si,
(Espírito Santo), último dos três termos, unificando os outros dois numa unidade
trina (TEIXEIRA, 2003, p. 184).
20
De acordo com nota de Étienne Gilson, existe discordância quanto a essa interpretação. Por exemplo, M.
Schmaus - em Die psychologie Trinitälehre des hl. Augustinus - propõe a existência de certa confusão entre
essas duas imagens trinitárias, pois Agostinho teria evoluído em seu pensamento entre os livros IX e XIV do De
Trinitate. Para ele, a palavra notitia já estaria no livro IX com o sentido de colocação em ato, e não somente no
sentido substancial ou habitual.
105
deixando claro que, a investigação sobre as outras trilogias vem em continuação do que fora
estabelecido na primeira. Uma maneira eficaz de entender a derivação dessas trilogias em
relação à primeira delas é perceber que se trata de um desdobramento em “um duplo objeto –
consciência de si e a consciência de Deus – e que por sua vez se dividem em dois: memoria,
intelligentia, voluntas [...] e memória Dei, intelligentia Dei, amor Dei” (TEIXEIRA, 2003, p.
180). Já que, enquanto colocação em ato da trindade substancial da mente, a trilogia memória,
inteligência e vontade pode ser posta em função de si ou de Deus.
Para concluir a apresentação dos pontos mais importantes da perspectiva teológica da
doutrina do homem feito à imagem de Deus, naquilo em que isso interessa à presente
investigação, faz-se necessário analisar a trindade que se dá no conhecimento de Deus. A
trilogia que será encontrada aí pertence ao terceiro grupo, denominada como concernente à
sabedoria sobrenatural. Entretanto, as analogias trinitárias concernentes ao segundo grupo
devem ser antepostas a essa realização final. Por isso, para que a articulação integral do
raciocínio não seja ofuscada, é importante tratar de como Agostinho concebeu a imagem da
Trindade na vida moral do cristão, na qual o conhecimento da sabedoria é veiculado pela
mediação da fé.
A sabedoria sobrenatural propriamente dita não pode ser imaginada como algo
pertencente ao estágio em que se encontra a mente humana. Para a doutrina da restauração da
imagem de Deus na mente, o homem está sempre a caminho, esse é o significado de sua
temporalidade e finitude. Mesmo a mais alta racionalidade, ou seja, mesmo a razão superior
que contempla as verdades inteligíveis, encontra-se como que enraizada no mundo sensível, a
tal ponto que não pode mais do que tangenciar essas realidades altíssimas, e não sem enorme
esforço de elevação. Quanto a essas razões inteligíveis, pouquíssimas pessoas “conseguem
elevar-se [...] pela penetração do olhar da mente e, caso aí cheguem, o quanto é possível [...]
não chegam a permanecer nelas. O próprio olhar é rechaçado [...] surgindo apenas um
pensamento passageiro” (A Trindade, XII, 14, 23). Sendo assim, é justificável que o caminho
seja de elevação e purificação e, para isso, dependa da ciência e da fé.
A partir da relação entre razão superior e razão inferior no homem interior, Agostinho
desdobrou sua reflexão em dois planos interdependentes. A consideração sobre essas duas
instâncias da razão possibilitou a ele o desenvolvimento de uma percepção clara a respeito das
relações recíprocas entre ação-contemplação e ciência-sabedoria. Uma tensão dialética é
assim estabelecida e, para se compreender estruturalmente os recursos que o homem possui
para progredir no caminho da restauração da imagem, é preciso tomar parte do polo
106
constituído pela tríade razão inferior, ciência e ação, e avaliar seriamente o alcance das
possibilidades abertas nessa linha.
Falar em razão inferior não implica numa dicotomia de realidades. Em Agostinho só
existe uma substância racional ou espiritual. Na verdade, trata-se mais de uma consequência
lógica, devido à temporalidade essencial da existência humana e sua consequente impotência
para apreender a realidade senão pela materialidade e pelo movimento. Ou seja, a mente
racional participa de algo imutável e não material, entretanto, na condição de imagem
deformada, o homem não pode evitar experimentar ao mundo e a si mesmo limitado em sua
essencialidade: isso inclui o corpo e os sentidos na base de todo ato de conhecer, obviamente.
Assim, falar em uma parte da mente que se destina à ação e à ciência das coisas temporais e
corporais, e que, nessa destinação mesma diferencia o humano do animal, é abordar a
existência de algo situado no campo da razão: contudo, razão inferior: desde que o termo
inferior seja entendido como relação de derivação. E santo Agostinho não poupou esforços
para formatar a função verdadeira e idônea dessa instância nos parâmetros da economia da
salvação. Em seu ensino, toda ação propriamente humana no mundo deve ser fruto do labor
dessa razão inferior, todavia, quanto a ela, fica estabelecido que “se deriva dessa substância
racional [...] pela qual aderimos à verdade superior inteligível e imutável, ela está entretanto
como destinada ao trato com as coisas inferiores e apta a governá-las” (A Trindade, XII, 3, 3).
O uso do verbo governar assume aí um sentido específico e não admite deturpações.
Isso porque esse governo poderia ser exercido de forma perversa caso se comprometesse com
os objetivos da concupiscência. O significado desse governar se refere à ação do homem que
ama a Deus e busca viver conforme a esse amor. É um governo submetido à razão superior,
ou seja, sempre voltado para o eterno, o verdadeiro, o caritativo. Pois o fato de quase a
totalidade da alma estar comprometida com o trato da dimensão da corporeidade não significa
que ela deva viver conformada a essa limitação; conformidade que seria uma distorção de seu
anseio pela felicidade, fixando sua finalidade nos bens sensíveis. Definitivamente não é assim
que o agostiniano se coloca no mundo, pelo contrário, se deve dirigir sua atenção ao dado da
realidade material, será sob a exortação daquele que propõe que toda ação necessita ser “a fim
de que em tudo o que fizermos, sem cessar de contemplar os bens eternos a serem atingidos,
caminhemos por meio daqueles, não nos apegando senão a estes últimos” (A Trindade, XII,
13, 21).
Insinua-se uma solução de continuidade entre ação e contemplação, de modo que a
problemática aparece transposta inteiramente para o âmbito moral, no qual se impõe a
distinção irredutível entre aquilo que deve ser fruído e o que deve ser usado: uti e frui. É sob
107
essa perspectiva que o conceito de ciência adotado por Agostinho vem a ser esclarecido.
Segundo F. Cayré, no pensamento do santo, ciência equivale à investigação sobre o que se
deve fazer para caminhar para Deus: é uma ciência moral, e forma a regra da virtude. Mas não
somente isso: é a junção sobrenatural do conhecimento especulativo das criaturas e da ciência
moral, graças à luz da fé. (CAYRÉ, 1927, p. 108).
Com efeito, não é sem valor a afirmação que aproxima a ciência das virtudes, por
dizer que sem a ciência não se pode adquirir as virtudes “pelas quais levamos uma vida reta e
governamos [...] esta mísera existência” (A Trindade, XII, 14, 21b). A ciência é definida de
modo bastante sugestivo (por inspiração do Livro de Jó), como o conhecimento pelo qual se
chega a evitar o mal e desejar o bem. Isso faz com que esse conceito se estabeleça em relação
à fé e, consequentemente, a uma definição da sabedoria tal como esta se aplica à vida dos
mortais.
Em Jó 28, 28 está dito: “Eis, a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é ciência”.
Piedade é um termo que, para Agostinho, remete às ideias de culto e amor a Deus. E, se o
amor implica numa valoração distintiva das realidades que resulta em aproximação ou
afastamento, é lógico que, para chegar a induzir ao desejo do bem, a ciência deve se submeter
a um processo valorativo que ultrapasse seu próprio objeto. Esse é o lado moral da ciência,
que significa ser iluminada pela autoridade da fé, ou seja, conhecer os dados da fé.
A maneira de evitar o mal e desejar o bem poderia ser interpretada nas mais variadas
vertentes, até as mais perversas, se não estivesse intrinsecamente relacionada à busca
universal pela felicidade. Isso porque a felicidade como fim supõe uma plenitude, de tal forma
inabalável, que seria impossível, senão por meio de um bem eterno fruído por uma alma
igualmente eterna. Agostinho foi deveras perspicaz ao solucionar o problema dos erros de
interpretação sobre essa questão: a solução é a própria imposição da autoridade da fé. Curto e
grosso: é inquestionavelmente impossível à razão humana responder sobre a existência da
imortalidade ou da felicidade plena. Percebe-se que assim as alternativas são restringidas em
três: assumir a autoridade da fé, desistir da busca desesperadamente, ou escamotear a busca
pelo gozo dos bens temporais, como poder, riqueza, prazeres etc.
Se o caminho da fé é o único, então Cristo é o único caminho, é o Mediador. Um dos
segredos da cristologia agostiniana é atribuir à encarnação a junção da ciência e da sabedoria.
Sobre a ciência, já é possível entender o porquê de afirmar que tudo “o que o Verbo feito
carne fez e sofreu por nós, no tempo e no espaço [...] diz respeito à ciência e não à sabedoria”
(A Trindade, XIII, 19, 24). Em síntese: imitar o exemplo do amor, humildade e obediência de
108
Jesus é o caminho para as virtudes e a vontade reta; o que significa que é “por ele que
caminhamos até ele; e pela ciência que tendemos para a sabedoria” (A Trindade, XIII, 19, 24).
O sentido do ascetismo e da mística agostiniana já pode ser claramente vislumbrado
aqui. A sabedoria representa Deus perfeitamente e excede a fé, porém, antes de atualizar-se
como imagem no homem, ela supõe a fé como fundamento necessário nesta vida: a vida
moral do cristão, a vida ativa, conduz à sabedoria contemplativa. (CAYRÉ, 1927, p. 110).
Enquanto vive na fé, a mente humana ainda não expressa a verdadeira imagem de Deus,
todavia, Agostinho volveu grande parte de suas energias à compreensão do itinerário
ascensional a Deus e, assim, é de muito valor a percepção de que “quando se crê como
verdadeiro e se ama o que deve ser amado, nesse caso se vive conforme a trindade do homem
interior, pois se vive de acordo com o que se ama” (A Trindade, XIII, 20, 26).
De certa forma, a ciência da fé conduz a uma atualização progressiva da trindade
composta por memoria, intelligentia e voluntas. Essa é a trindade do homem interior, que,
para Agostinho, só é verdadeira quando trabalhada dentro de algumas condições ideais. Essas
condições pressupõem uma relação entre inteligência e fé, e também uma eleição (ou
transmutação) no campo do amor. Explicando a dinâmica dessa trindade, nosso autor
escreveu o seguinte trecho: “Todos os conhecimentos existentes na alma do fiel cristão que
vêm dessa fé e da vida conforme a fé, quando são retidos na memória e contemplados pela
lembrança, e agradam à vontade, eles evocam uma espécie de trindade, em seu gênero” (A
Trindade, XIII, 20, 26).
Entretanto, por mais que essa trindade da ciência e da fé represente uma importante
transformação interior em direção à restauração da imagem e, na verdade, sustente um
contínuo trabalho de elevação, antes de chegar à trilogia mais próxima da verdadeira imagem
de Deus é preciso adentrar ainda mais à trindade do homem interior em seu puro estado
autorreflexivo, para desvinculá-la de conteúdos temporais. Trata-se da mente conhecer-se
como presença a si mesma, num estado em que desvinculada “do passado, a memória assim
concebida perfaz uma trindade mais interiorizada que a tríade da ciência” (RAMOS, 2009, p.
283).
A trindade da fé deixará de existir quando a fé tornar-se conhecimento direto. Sendo
assim, o que ainda existirá dela será somente uma trindade formada pela lembrança daquilo
que um dia foi crença. Para chegar ao campo da verdadeira imagem é preciso considerar algo
que não seja passageiro. Por esse motivo, memória de si, inteligência de si e amor de si devem
constituir a trilogia mais próxima daquela em que inicia a senda da sabedoria sobrenatural.
Mesmo que a imagem de Deus verdadeira seja referida à alma que se volta para Deus, retém-
109
se, portanto, o valor da consideração de que “a trindade da alma reflexiva é a que mais se
aproxima desta, uma vez que indica o caminho da interioridade e da eternidade, em
detrimento da exterioridade e da temporalidade” (RAMOS, 2009, 283).
Na investigação agostiniana, a atividade reflexiva da mente é vista como possuindo
certa vocação para resultar em contemplação do divino. Enquanto imagem do Criador, o
homem é capax Dei – capaz de Deus -, é capaz de recordar e aderir a Deus. Quando chega a
realizar essa vocação, a mais alta trilogia é posta em exercício: memoria Dei, intelligentia
Dei, amor Dei. É pela possibilidade de recordar de Deus, de entendê-lo e de amá-lo que
Agostinho formulou uma de suas frases célebres sobre o estatuto da alma: “ela é imagem de
Deus, porque precisamente é capaz de Deus, e pode ser partícipe dele” (A Trindade, XIV, 8,
11).
O exercício dessa trindade da sabedoria só existe, portanto, quando se realiza uma
memória de Deus na mente. Nenhum homem jamais viu Deus, para dele se recordar, assim
como, também, ninguém tem qualquer recordação de uma felicidade primitiva, para que possa
almejar ser feliz. A própria razão é capaz de inspirar o desejo da felicidade através da
evocação dos conceitos transcendentes: Ser absoluto, Verdade imutável e Bem supremo. Ou
seja, não se trata de lembrar-se de ter conhecido Deus, mas de que a alma “pode ser lembrada
para se voltar para o Senhor, como que para aquela luz que já a tocava de certa forma, mesmo
quando dele estava afastada” (A Trindade, XIV, 15, 21).
A memoria Dei pode ser compreendida como participação da mente racional ao
mundo inteligível. Essa participação se expressa por certas noções fundamentais e universais
que se encontram como que impressas em todo espírito humano, em qualquer povo, lugar ou
época. Um dos maiores especialistas sobre essa temática é o agostinólogo Lope Cilleruelo,
que informa grosso modo ser Deus mesmo o objeto da memória de Deus, desde que se
perceba que o sentido disso está na afirmação de que Deus é encontrado nas noções
elementares que iluminam a vida racional: “ser, unidade, modo, número; verdade, sabedoria,
proporção, relação, beleza, harmonia, semelhança; felicidade, bondade, ordem,
obrigatoriedade, lei, causalidade; temporalidade, eternidade, espacialidade, etc”
(CILLERUELO, 1954, p. 503). E também que se perceba que viver segundo Deus é viver de
acordo com normas ou virtudes que não são mais do que extensões ou aplicações desses
fundamentos: prudência, justiça, fortaleza, temperança; incluindo a própria inteligibilidade da
fé.
Destarte, o verbo interior concebido a partir da memoria Dei não representa a
expressão de uma experiência sensível, entretanto, representa um juízo racional sobre essa
110
Ainda com Cayré, também é relevante notar que o ponto de vista de Agostinho não se
detém no aspecto ascético negativo dos místicos e de suas experiências diretas e impessoais
de Deus. Há também o aspecto positivo e filosófico. (CAYRÉ, 1927, p.112). Não se limita a
dizer o que deve ser removido da alma para que seja iluminada; porquanto mostre também o
que deve permanecer nela para ser utilizado: trata-se das chamadas primeiras noções do
espírito (ou mente), sobre o ser, a verdade, o bem. Noções das quais os primeiros princípios
intelectuais e morais derivam imediatamente, e que são a luz mesma do espírito. São noções
supremas e gerais, anteriores a conhecimentos específicos, mas, longe de serem suprimidas
pela luz superior da graça, são, ao contrario, o ponto de apoio dessa luz, como algo que
prepara e atrai essa luz, como um complemento. Esse é o papel da sabedoria, considerada
ainda nesta vida. Uma definição dessa sabedoria consiste em pensar a recuperação progressiva
do espírito do homem em suas intuições iniciais, através do amor. (CAYRÉ, 1927, p 113).
Nesse sentido, descobre-se que o ponto de vista de Agostinho sobre a restauração da
imagem de Deus na mente visa uma transformação integral da alma que se encontra em
estado de pecado. A noção de caminho encontra aí um paralelismo com a noção de progresso.
Trata-se efetivamente de algo que pode ser medido, traduzindo-se pelos dons concedidos pela
graça divina a cada um. Em suma, a “caridade, que é o dom divino mais excelente e a
expressão mais fiel de nossa liberdade pessoal, é a que faz com que Deus esteja presente em
nosso coração” (TURRADO, 1971, p. 170), ou seja, é sinal de que Deus passa a habitar
naquele que é santificado pela graça.
A medida do progresso é a liberdade. Quanto mais infundida a caridade no coração do
homem, tanto mais livre para não condescender ao pecado ele se torna. Agostinho valorizava
muito a enunciação de Jesus, frente aos judeus, como aquele que viera para cumprir a lei,
porque a plenitude da caridade no coração deve equivaler ao encontro do deleite na boa obra,
expressão máxima da liberdade. A caridade não luta contra o pecado, nem o teme diante de
Deus, ela é ordenação no campo do amor, por ser o amor de Deus e, num sentido psicológico,
equivale ao prazer numa modalidade superior, não egoísta.
Em se tratando da oposição paulina entre a graça e a lei, Agostinho postulou que a
“plenitude da lei é a caridade” (Exposição da epístola aos Gálatas, 44). Para ele, agir de
acordo com o deleite é uma necessidade humana. Entretanto, a vontade pode buscar o
contentamento do deleite em objetos completamente opostos, o que justifica o Apóstolo ter
colocado em oposição o que seriam, de um lado, as obras da carne e, de outro, os frutos do
espírito. Estes não podem conviver mutuamente com os pecados, de sorte que, quando
presentes, “não reinando o pecado em nós para obedecer a seus desejos, senão imperando a
112
justiça pela caridade, com grande deleite fazemos tudo o que conhecemos que nela agrada a
Deus” (Exposição da epístola aos Gálatas, 49).
Com exemplar humildade, a oração final do De Trinitate resume a busca de
Agostinho: “Que de ti me lembre, que te compreenda e que te ame! Faze-me crescer nesses
dons, até que me restaures totalmente” (A Trindade, XV, 28, 51). Encontra-se aí o sentido da
habitação divina pela graça, desdobrada nos dons da lembrança (ou memória), compreensão e
amor de Deus. Não obstante o afastamento de sua obra em relação a um misticismo puro,
também não caberia de forma alguma a classificação de intelectualista para santo Agostinho.
Pensá-lo como teólogo místico é pensá-lo como “teólogo da mente e do coração”
(MORIONES, 2004, p. 39).
Enquanto místico, nosso santo é teólogo da interioridade. Tal como numa teologia
negativa, seguiu numa via de eliminação ou negação, selecionando tudo o que não se faz
atributo de Deus, para tornar mais nítida a via da luz interior. Não descartou a experiência
sensível, mas selecionou aquilo que pertence verdadeiramente ao homem interior. Numa
espécie de mescla de imanência e transcendência, o amor a Deus foi descoberto como amor
da “luz, a voz, o odor, o alimento, o abraço do homem interior que habita em mim, onde para
a minha alma brilha uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo
não destrói” (Confissões, X, 6, 8). E como se realizasse uma destilação da memória,
aprofundando por camadas sobrepostas, os lances fugazes da contemplação se tornaram mais
e mais explícitos nos encontros com a luz inteligível: interior intimo meo et superior sumo
meo. Como retrato do mestre da retórica, da teologia e da mística, o trecho seguinte é muito
significativo:
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que
habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-
me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava
contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não
existissem. Tu me chamaste [...] Fulguraste e brilhaste [...] Espargiste tua fragrância
[...] Eu te saboreei [...] Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz
(Confissões, X, 27, 37).
Entretanto, a participação que o místico pode ter nesse mistério está marcada por outro
mistério: a revelação da Verdade na pessoa de Jesus Cristo. O próprio eu é identificado com o
princípio de morte e de não ser, visto que a Verdade viva é vislumbrada em sua pessoalidade
e, portanto, em caráter espiritual. Essa espécie de negação de si mesmo - enquanto condição
de transcendência - é o que explica o paradoxo da interioridade agostiniana, naquilo em que
ela define algo mais interior que o próprio interior, “porque na experiência mística ela é
percebida como contraste crucial entre uma Pessoa que se comunica com luz inefável desde
as profundezas da alma e o próprio ‘eu’, sentido como estorvo mortal para a aproximação e
união com essa Pessoa que é Amor infinito” (MUÑOZ VEGA, 1954, p. 605).
Destarte, a perspectiva mística da doutrina da imagem de Deus revela a teleologia
inerente ao plano soteriológico da antropologia agostiniana. Todavia, trata-se de uma
revelação experiencial, íntima, mas no plano metafísico, ou seja, trata-se de uma apercepção
temática que pode também ser expressa conceitualmente, fundamentada na experiência do
transcendente interior. Em síntese, para além da pura assunção da fé, o fato místico vivido
desvela o verdadeiro potencial humano, e efetivamente orienta “a estrutura íntima da alma
para uma meta interior: a união suprema com Deus” (MUÑOZ VEGA, 1954, p. 605).
A noção de deificação coroa a investigação do misticismo espiritual agostiniano. Ao
mesmo tempo em que delineia a mais alta interpretação a que chega a doutrina da restauração.
O pastor de almas aproveitava a exegese dos Salmos para elevar seus fiéis: “O Deus
verdadeiro fez deuses que nele creem, e deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus [...]
fez-nos deuses, porque nos iluminou os olhos interiores” (Comentário aos Salmos, 94, 6).
Descobre-se nessa noção também o sentido último da mística propriamente cristã, que não é
nada menos do que considerar a deificação como a grande obra de Jesus e finalidade da
encarnação. Donde decorre a exclusividade da mediação do Cristo, um processo de mediação
insubstituível em que Deus “se faz partícipe da natureza humana, e o homem se faz partícipe
da natureza de Deus” (CAPÁNAGA, 1954, p. 747).
Justificação, filiação adotiva e deificação são conceitos interligados pelo conceito de
participação. Juntamente com o aperfeiçoamento da caridade, esses termos constituem o que
há de mais essencial do legado da doutrina da graça. A deificação significa efetivamente uma
elevação sobrenatural da condição humana. Para os deuses que serão na vida futura, reservado
está um destino de imortalidade, perfeição, justiça, felicidade, sabedoria: lá a participação se
elevará à visão da face de Deus. Por outro lado, há o uso do termo adoção. Isso significa que a
participação jamais igualará os homens a Deus. Somente o Filho é Deus com Deus, gerado e
115
coeterno e, por isso mesmo, é mais correto dizer que a “filiação de cristo é perfeitíssima e
fundamento e exemplar da filiação adotiva” (CAPÁNAGA, 1954, p. 749).
(A verdadeira religião, 43, 82). Destinação esta que mostra sua grandiosidade cosmológica na
incumbência do governo sobre todas as criaturas, sob a intuição de que “se a alma racional
serve ao seu Criador, de quem, por quem e para quem foi feita, todas as demais criaturas o
servirão também” (A verdadeira religião, 43, 82).
Se a primeira restauração enfraquece a concupiscência, a segunda ataca o orgulho. O
remédio é a caridade. Agostinho descobriu na soberba certa tentativa de imitar Deus
perversamente, a tal ponto que psicologicamente pode ser definida como “apetite de unidade e
onipotência, mas dentro do plano das coisas temporais” (A verdadeira religião, 45, 84).
Tomada na perspectiva da cobiça gerada por essa tentativa perversa de imitação, a
caridade deve ser considerada remédio, justamente porque ao buscar o domínio das coisas
temporais por si mesmas, as paixões do mundo é que se tornam senhoras do espírito. O amor
a Deus liberta. Ao amar aquilo que deve ser amado e da maneira como deve ser amado, o
objeto do amor deixa de ser algo fugaz e que pode ser perdido, mesmo quando se trata do
amor ao próximo, pois, o homem que adentrou na senda da perfeição “possui dentro de si
aquele a quem ama como a si mesmo” (A verdadeira religião, 46, 86). Não se trata de apego a
essa ou aquela pessoa, mas um amor por Deus, que visa o que há de melhor em cada criatura
ou na ordenação delas. No caso do homem, ama-se a natureza humana naquilo em que ela é
potencialidade para a perfeição. Assim, de um estado penoso de luta e disputa, os homens
passam a um estado de comunhão e fraternidade no qual os “que amam a Deus e fazem a sua
vontade, formam com ele uma só família” (A verdadeira religião, 46, 89).
Deste modo, como Agostinho buscava ver a mão de Deus operando em tudo o que
acontece ao homem, chamando-o de volta a pátria, nesse caso também não foi diferente. O
orgulho - enquanto imitação - guarda alguma semelhança com aquilo para o que o homem
caminha em seu aperfeiçoamento, em resumo, “o orgulho é sombra da verdadeira liberdade e
do verdadeiro domínio. É também instrumento pelo qual a divina providência nos lembra
aquilo do que nossas paixões são sinais” (A verdadeira religião, 48, 93).
A terceira restauração serve a direcionar a busca pela verdade, e afastar o espírito das
vãs curiosidades. A curiosidade também gera a cobiça, mas seu efeito é um tipo de dispersão
do espírito na multiplicidade das coisas temporais, de modo que ele fique às voltas com suas
próprias imaginações. Para curá-la, antes de qualquer coisa é preciso compreender
corretamente a luz do espírito, para descobrir a verdade que a ilumina. Depois se deve ter em
conta o real valor da fé e da revelação da verdade nas escrituras.
Agostinho propôs que as escrituras revelam certa estratégia da divina Providência,
para conduzir os homens como que por degraus a um estado de depuração do olhar interior.
118
Essa estratégia passou pelo uso de sinais, parábolas e comparações. Com isso, o povo de Deus
foi conduzido rumo a uma inteligência da fé. Porém, visto que os fatos relatados ali são
históricos e, certamente, fazem parte de uma realidade material e temporal, o clímax da
investigação reside na questão: “de que nos serve crer nas realidades temporais para chegar a
compreender e possuir os valores eternos, fim de todas as boas ações?” (A verdadeira
religião, 50, 99).
A resposta a essa pergunta reside na abertura para a verdadeira religião, porquanto a
compreensão e a posse dos valores eternos constituam progresso no caminho a Deus. A
respeito da descoberta da natureza imutável e incorpórea da sabedoria do Criador revelada nas
escrituras, admite-se então que nisso consiste o impulso inicial para “a passagem do temporal
ao eterno, a transformação vital do homem velho no homem novo” (A verdadeira religião, 52,
101).
A tríplice restauração se opõe, portanto, a cada uma das três raízes dos piores vícios
humanos. Devido a isso, é bem claro que se deve considerar que aquilo que se opõe a esses
vícios é justamente nomeado como prática das virtudes. E isso é importante principalmente
porque, nessa concepção, está previsto que os próprios pecados imitam de certa forma a
perfeição das virtudes. Ou seja, concebe-se uma relação entre essas tendências da alma, de
modo que a curiosidade pressupõe a existência do verdadeiro conhecimento; o orgulho
pressupõe o poder absoluto; o prazer carnal almeja o pleno descanso que, na verdade, é gozo e
paz. Dentro desse contexto, a santidade dos que caminham para a restauração, dos que já
foram reformados na caridade, caracteriza-se por um tipo de vida neste mundo em que o
homem deve procurar, pelo entendimento, amar somente a verdade; na ação, amar somente a
paz; no corpo, só a saúde apreciar. (A verdadeira religião, 53, 103). Essas são as condições
para que seja possível usar bem a existência corporal, e para dirigi-la para seu verdadeiro fim
em Deus: nesta vida, dedicam-se todos os esforços em crer, ajudar o próximo a crer, amar e
conhecer a Deus e, em tudo isso, superar e transcender a própria natureza deformada no
pecado.
Não restam dúvidas de que a ideia de restauração visa sustentar e motivar um esforço
de transformação interior nesta vida e, nisso, é uma ideia de cunho profundamente moral. Não
obstante, o que realmente se espera nesta e na outra vida não é tão fácil assim de determinar.
Principalmente, a meta final da restauração é quase impossível de ser descrita com exatidão,
visto que se trata de pensar algo ainda não existente e, logicamente, algo superior aos homens.
As páginas finais da obra A Trindade são o suprassumo do pensamento agostiniano no que
119
concerne a esse assunto. Encontram-se nelas, tanto o sentido psicológico do trabalho visado
nesta vida, como a ousadia metafísica de uma descrição da meta final.
Em linguagem paulina, a perfeição se dará com a visão da face de Deus na
ressurreição final. Nesta vida, a contemplação é visão em espelho: e a imagem vista é
enigmática. Todo o trabalho teológico estudado um pouco acima se baseia, com as analogias
trinitárias propostas, na expectativa de, “pela imagem que somos nós, ver de algum modo,
como em espelho, aquele que nos criou” (A Trindade, XV, 8, 14). E o que primeiramente reza
a interpretação de Agostinho é que a semelhança que essa imagem possa ter a Deus é obscura,
ou, nas palavras de são Paulo, é um enigma. No entanto, por mais enigmática, não deve ser
descartada como incompreensível, pois se trata de visão legítima, única permitida nesta vida,
e também a que melhor revela aquilo que ainda deve ser aperfeiçoado no homem.
O homem é imagem de Deus segundo aquilo que tem de melhor, que é a alma
racional. Entretanto, essa imagem é mais bem delimitada naquilo que Agostinho nomeou
verbo interior. Sua tese é a de que realmente há semelhança entre nosso verbo e o Verbo de
Deus.
Ao escrever isso, o santo bispo se referia à “palavra (verbum), antes de ser
pronunciada, e mesmo antes de se formar pelo pensamento a imagem de seus sons” (A
Trindade, XV, 10, 19). É uma ideia que pressupõe uma divisão psicológica da atividade
cognitiva. Primeiramente é preciso que algo já esteja retido na memória, seja porque foi
experimentado pelos sentidos ou porque já fora pensado e refletido anteriormente. O verbo
interior faz-se presente no momento em que o sujeito sabe que sabe determinada coisa
enquanto verdade. Da forma como Agostinho o apresentou, não há como entender esse verbo
senão como algo imediato, tipo de expressão imediata de um saber e, portanto, algo que
possui uma temporalidade singular; mesmo que aquém da eternidade, contudo, não
pronunciado no tempo, mas como que contido num único instante do presente. O pensamento
em si já é uma tradução desse saber pela articulação de um idioma. O pensamento possui
duração, gasta um tempo para ser pronunciado interiormente, possui começo, meio e fim. E,
consequentemente, por sua vez, a fala é coisa, é som, é expressão concreta do pensamento e,
depois de pronunciada, só mantém alguma relação com o pensamento em si, quando escutada
e assimilada em seu sentido.
O Verbo de Deus fez-se carne. O verbo do homem faz-se voz. Entretanto, o verbo
humano verdadeiro é o verbo interior, e é na geração dele que a verdade é concebida. O verbo
é idêntico à ciência de que procede, tal como o Filho é idêntico ao Pai que o profere como seu
Verbo. Se o pensamento comunica fielmente o verbo interior, então ele expressa a verdade, ou
120
ainda, ao menos, a medida humana da verdade. Agostinho se valeu de Mateus 5, 37, para
defender com ainda mais autoridade essas proposições, que buscam definir a correta relação
do homem com a verdade que habita em seu interior. Ali está escrito: “a vossa palavra seja
sim, se for sim; não, se for não. Tudo o que passar disso vem do mal”.
Isso expressa bem a importante via de semelhança entre o verbo e o Verbo. O Filho é
substancialmente semelhante ao Pai, sua semelhança vai até o extremo da igualdade. O
verdadeiro verbo também comunica integralmente o conteúdo de memória donde provém,
conteúdo este nomeado “saber imanente à alma”. Nisso, o verbo não pode mentir, sua
determinação não permite permuta de significados, de modo que Agostinho pensou nessa
equivalência ao sim, sim; não, não, que define algo como uma retidão de espírito na qual
“aquele que está na verdade está no verbo” (A Trindade, XV, 11, 20).
Outra semelhança digna de nota encontra-se no modo como o verbo é o determinante
da vontade. O querer não constitui um tipo de conhecimento, porém, comunica também um
tipo de verdade interior que, para Agostinho, também provém do verbo. Essa característica do
verbo é comparada com aquela com a qual se afirma que tudo foi feito pelo Verbo de Deus.
Da mesma forma, nada é feito pelo homem sem que corresponda a uma palavra interior, o que
é o mesmo que dizer que todo ato é fruto de uma intenção do espírito.
Para essa doutrina, de nada valem as boas ações, se não corresponderem
verdadeiramente a intenções semelhantes, pois, caso contrário, seriam denominadas
hipocrisia. Ao considerar o verbo verdadeiro, encontra-se nele a origem da boa obra, desde
que haja comprometimento para reconhecer e fazer valer o preceito de que, caso exista nele
“o princípio ordenador da vida, exista também a norma do bem agir” (A Trindade, XV, 11,
20).
E, finalmente, um terceiro ponto de semelhança decorre do antecedente. Se o princípio
de toda ação é o querer, ou intenção, então o verbo pode existir sem desdobrar-se em ato, mas,
a ação não pode existir sem que a preceda o verbo. Isso se verifica, da mesma maneira que
“criatura alguma poderia existir sem Aquele pelo qual tudo foi feito” (A Trindade, XV,
11,20).
A ideia de restauração sempre esteve aliada à crença na existência de um fundamento
natural como garantia das potencialidades humanas. Como já foi descrito anteriormente, esse
fundamento é a própria doutrina da imagem de Deus, embasada na teoria sobre a criação do
homem e sobre a deformação da imagem no pecado. Todavia, a investigação da
correspondência do verbo interior humano ao Verbo divino é praticamente mérito exclusivo
da obra A Trindade. Os resultados dessa investigação oferecem subsídios para um
121
Mas então nosso verbo nunca será um falso verbo [...] Talvez, nossos pensamentos
não serão mais volúveis, indo e vindo de uma coisa a outra, mas com um só olhar
abrangeremos toda nossa ciência. Quando isso acontecer, porém, e se acontecer, a
criatura que esteve em formação possuirá a plenitude, de modo a nada lhe faltar
àquela forma, à qual deverá chegar. Contudo, nunca se há de igualar àquela
simplicidade divina na qual nada há em formação, formado ou reformado, mas que é
apensa pura forma; não sendo informe nem formável, mas uma substância eterna e
imutável (A Trindade, XV, 16, 26).
Agostinho defendeu a correta relação entre a liberdade e a graça. Para ele, era preciso
refletir sobre essa relação, sem subestimar a liberdade do homem e, ao mesmo tempo, sem
exaltá-la em demasia, a ponto de menosprezar a função da graça. Na base de seu pensamento
encontra-se a crença na predestinação dos santos, crença esta que atribui ao auxílio divino e
gratuidade da Providência “a conversão a Deus e o crescimento no mesmo Deus” (Carta 194,
7). A conversão é o advento da fé. O crescimento está divido entre o progresso na caridade e
na compreensão dos conteúdos da fé.
Em carta ao mosteiro de Hadrumeto escreveu que o “compreender com sabedoria é
próprio do livre-arbítrio” (Carta 194, 7). Entretanto, a questão é extremamente complexa,
pois a verdadeira liberdade é fruto da infusão da caridade, de modo que também se deve
atribuir à graça a possibilidade de vir a compreender. Dizendo de maneira mais objetiva,
Agostinho quis fazer-nos entender que “nosso merecimento consiste em procurá-lo; a
concessão da graça está, portanto, no fato de o encontrarmos” (A graça e a liberdade, V, 11).
Os pelagianos acreditavam que a graça estava na natureza humana, por ter sido esta
criada à imagem de Deus, sendo dotada de razão e apta a governar sobre todas as criaturas.
Todavia, acreditar nisso seria justamente o contrário do sentido da mediação do Cristo, seria
como que anular o valor de seu sacrifício e, Agostinho não pouparia esforços para vir a
corrigir esse grave erro. Jesus anunciou que não viera para revogar a lei, mas para cumpri-la.
Esse exemplo é contundente no sentido de advertir quanto ao fato de que a lei e a natureza
124
humana não são suficientes para a justificação dos homens. O erro de Pelágio foi subjugado
pela força do argumento que demonstra que, se Cristo morreu, “morreu para que a natureza
decaída em Adão fosse restaurada por ele” (A graça e a liberdade, XIV, 25).
A fé é o primeiro dom concedido, e é considerada como o alicerce do edifício.
Diferindo entre o que é próprio da natureza e o que só pode ser alcançado pelo dom,
Agostinho definiu que “o ser capaz de ter fé, assim como o ser capaz de ter caridade, é
próprio da natureza humana. Mas ter fé, assim como ter caridade, é próprio da graça” (A
predestinação dos santos, V, 10). Sendo assim, o vir a ter fé constitui o primeiro sinal da
predestinação. Pois na imutabilidade de sua presciência dos fatos, Deus já tem preparado toda
a construção do edifício, ou seja, já tem reservado a cada um dos eleitos a estrutura de sua
salvação. E nisso, quando advém o dom, confirma-se que “a graça é doação efetiva da
predestinação” (A predestinação dos santos, X, 19).
Sobre os santos, Agostinho disse que o Deus encarnado “retirou-os do mundo quando
ele vivia no mundo, mas já eram eleitos em si mesmos antes da criação do mundo” (A
predestinação dos santos, XVII, 34). Essa retirada do mundo pode ser entendida como um
tipo de vida. Outro importante fator de relevância doutrinária consiste na afirmação de “ser
dom de Deus a perseverança com a qual se persevera no amor a Cristo até o fim” (O dom da
perseverança, I, 1).
O tema da perseverança busca definir a principal característica dos eleitos que se
mantêm, tendo iniciado no caminho da fé, no amor a Cristo até o fim da vida, o que implica
também a persistência na prática das virtudes. A manutenção da própria fé vem em primeiro
lugar, a tal ponto que com “mais razão se pode dizer que perseverou no dom da fé o que foi
fiel durante um ano, ou menos, se viveu na fé até a morte, e não dizer daquele que foi fiel
durante muitos anos, mas que momentos antes da morte veio a perder a fé” (O dom da
perseverança, I, 1). Sobre esse alicerce são edificadas as virtudes da continência, da justiça,
da piedade, e outras, desde que garantidas pelo “grande dom de Deus que garante a
continuidade de todas as suas dádivas” (O dom da perseverança, II, 4).
Lê-se sobre os santos que Deus os “escolheu antes da fundação do mundo, para serem
santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1, 4). Isso é mais uma comprovação de que a
caridade é o grande dom, sendo aquilo que, infundido nos corações, os mantêm no caminho
que Agostinho denominava reto. Os santos de Deus devem sim pedir que o nome de Deus
seja santificado em seus corações; devem pedir que lhes venha o reino; devem clamar por não
cair mais em tentação; entretanto, é a caridade que explica aquilo que lhes é concedido,
125
porque não cair em tentação equivale a uma transformação íntima da vontade, ou seja,
equivale a verdadeiramente deleitar-se nas virtudes.
A autoridade do Apóstolo atinge com pertinaz contundência o argumento dos
pelagianos, cuja crença atribuía somente à natureza humana a qualificação de fruto da graça
divina. Agostinho sempre se valeu dessa autoridade, praticamente impossibilitando falsas
interpretações a respeito do tema, diante de tantas provas, como na Carta aos Filipenses,
quando Paulo objetivamente “asseverou que Deus opera em nós os dois, ou seja, o querer e o
operar” (A graça de Cristo e o pecado original, V, 6). O agir depende logicamente do querer;
o querer, em Deus, da caridade.
Compreender o que realmente significa essa operação divina é confessar o pecado
original, e assim, também a deformidade da vontade humana, incapaz de escolher livremente
pela justiça, pela continência, pela fraternidade. Essa compreensão age tal como advertência,
a partir da influência salutar da humildade, que se verifica naqueles que entendem; veem e
confessam que “Deus, não pela lei ou pela doutrina que soam externamente, mas por uma
força interna e oculta, admirável e inefável, opera nos corações humanos não apenas
revelações, mas também a boa vontade” (A graça de Cristo e o pecado original, XXIV, 25).
Finalmente, para emitir um parecer conclusivo sobre o dom da caridade como
elemento de transformação interior fundamental, que opera na restauração da imagem, é
preciso ter em mente as implacáveis limitações impostas ao homem pela transmissão do
pecado original. Agostinho não afirmou que a vocação dos eleitos consiste na plena realização
da caridade nesta vida. Pelo contrário, suas afirmações sempre visavam enaltecer em primeiro
plano a virtude da esperança, para daí sim falar em cura, mas, não no gozo e liberdade plenos,
pois que essencialmente em esperança.
A descoberta da nudez e a vergonha a que se seguiu a necessidade de cobrir as partes
íntimas, por parte de Adão e Eva, podem revelar o conflito interior dos primeiros pais. Ao
interpretar essa passagem, nosso autor destacou justamente que o casal primitivo “cuidou de
cobri-los porque se excitavam, não ao arbítrio da vontade, mas ao estímulo da sensualidade,
como se fosse a própria vontade” (A graça de Cristo e o pecado original, XXXIV, 39). Tendo
isso em consideração, para ele, pensar no aniquilamento total da concupiscência seria
desconsiderar a transmissão do pecado original. E como seu ensino fala de “maus desejos que,
não consentidos, não implicam culpabilidade, e que deixarão de existir, não nesta, mas na
outra vida” (A graça de Cristo e o pecado original, XL, 44), é preciso focalizar dois aspectos
da caridade, que entram em jogo no processo de restauração com ajuda da graça divina. O
primeiro deles é o amor a Deus, que é também amor das criaturas em Deus, e que propicia o
126
deleite em obrar bem. Entretanto, esse aspecto da caridade não chega à plenitude nesta vida e,
portanto, não aniquila a suscetibilidade à tentação. O segundo aspecto é o que
verdadeiramente se confirma no dom da perseverança, e é o que possibilita que também se
interprete a caridade, nesta vida, como a capacidade de não consentir ao mau desejo.
mas um outro tanto melhor quanto o espiritual se avantaja ao animal, quando seremos iguais
aos anjos” (Comentário literal ao Gênesis, VI, XIX, 30).
Nesse contexto, o ensino de Agostinho sugere que, o principal motivo para continuar
usando o termo renovação (ou restauração) consiste na verificação de que parte daquilo que o
homem receberá na ressurreição já estava prometido desde as origens. Nesta vida, certamente,
não há como eludir a morte. Todavia, uma parte do estado original já é restaurada, aquela que
diz respeito à justiça, pois, com a ajuda da graça, a caridade efetivamente vence o pecado pelo
não consentimento. Já naquela vida futura, também serão renovados os revestidos pela
incorruptibilidade de um corpo espiritual, mas, não porque esse estado foi perdido devido ao
erro de Adão, e sim por receberem algo no que ele “transformar-se-ia, se não tivesse merecido
a morte” (Comentário literal ao Gênesis, VI, XXIV, 35).
Em acréscimo aos esforços descritivos empreendidos, na medida em que a transmissão
do pecado original se estabelece como o marco zero da história da humanidade, a restauração
da imagem deformada acaba por ser mais bem compreendida se tomada também em sua
virtualidade prospectiva, compondo um projeto magnífico que teria recebido somente seu
início em Adão. Toda a História passa a ser interpretada em relação a esse projeto, de modo
que o próprio termo história não deve designar senão o intervalo de tempo que se dá entre a
origem e o fim. A isso dá-se o nome de escatologia, porque esse intervalo de tempo não
transcorre aleatoriamente, mas cumpre em cada movimento sua destinação.
Mais de uma vez, Agostinho falou da história do povo de Deus valendo-se de uma
separação das idades do mundo, ou eras. Na maturidade sua cautela era maior, quanto a
interpretar alegoricamente o Gênesis nesse sentido. Entretanto, apesar da temeridade de uma
interpretação mais ousada, não é sem valor que, em uma de suas exegeses, os sete dias da
criação tenham sido apresentados como sete épocas, que culminam com a ressurreição final.
A tentativa de descrever as idades do mundo implica na percepção de que toda a
História possui certa unidade, e que pode ser abordada não somente em suas partes, mas
também na sua totalidade. O fato de que o Gênesis mostre uma diferença entre os juízos
divinos sobre cada etapa da criação em relação ao conjunto final, atribuindo o qualitativo
bom, para as criaturas tomadas individualmente e, muito bom para o conjunto, sugere uma
preferência. Além disso, santo Agostinho descobriu um fundo psicológico que parece
promover ou incentivar a busca pela intelecção da totalidade. Incentivo este que pode revelar
algo de proposital no modo como os seres humanos experimentam a relação entre harmonia e
prazer. Seria como se uma divina Providência houvesse cuidado para que fossem “tamanhos a
força e o poder da integridade e da unidade que, mesmo que sejam muitas as coisas, causam
129
prazer quando se juntam e contribuem para formar um todo” (Sobre o Gênesis, contra os
maniqueus, I, XXI, 32).
Portanto, a fé na futura perfeição do homem renovado poderia ser manchada ou
deturpada por intromissões de uma propensão egoísta, que nisso visse a sedução de um poder
perverso. Isso possivelmente aconteceria, caso não estivesse claramente declarada a completa
dependência do desenvolvimento desse plano à presença de uma Providência divina operante
na História. Nessa perspectiva, a vinda do Cristo, a justificação dos santos e a futura vida feliz
adquirem significação no processo histórico do povo eleito. Para Agostinho, desde Abrão, ou
talvez desde Abel, esse povo foi como que separado da grande massa do pecado, e dirigido
rumo ao fim glorioso objeto desta investigação.
As Escrituras também foram abraçadas por ele a partir do ponto de vista da unidade
dos textos. Sob essa ótica, os textos do Evangelho cristão se colocam em continuidade aos
textos judaicos do antigo testamento, revelando um encadeamento significativo entre cada um
dos relatos bíblicos, de forma que cada qual assuma a figuração de uma etapa atravessada
pelo povo de Deus rumo à redenção em Cristo. Essas etapas foram chamadas por ele de
idades do mundo. Conseguira discernir referências a seis desses períodos singulares nos livros
sagrados e, retrocedendo ao cunho profético do Gênesis, acreditou poder sustentar “também
que as mesmas seis idades apresentam semelhanças a esses seis dias, nos quais foram criadas
as coisas que a Escritura afirma terem sido criadas por Deus” (Sobre o Gênesis, contra os
maniqueus, I, XXIII, 35).
De acordo com a curta exposição encontrada na exegese do Gênesis dirigida à disputa
com os maniqueus, uma primeira idade do mundo fundara-se nos primórdios da humanidade,
num período que Agostinho propôs se estender de Adão a Noé. O ato de fazer a luz, realizado
no primeiro dia, compara-se ao surgimento do primeiro homem, pois o nascimento equivale a
vir à luz. Essa primeira infância teria cessado traumaticamente sua existência, sob as águas do
esquecimento figuradas por um terrível dilúvio.
A segunda idade é equiparada à puerícia do homem. De Noé a Abraão, a humanidade
resguardava-se num processo de maturação, para alcançar um estágio de fecundidade. A arca
de Noé pode figurar o firmamento entre as águas. A tarde desse dia metaforiza o caos e o
desencontro na confusão das línguas entre os construtores da torre de Babel. Talvez por falta
de uma raiz integradora, essa idade não foi capaz de gerar o povo de Deus, findando na
completa dispersão e desunião dos homens. Somente por meio de Abraão foi separado o povo
de Deus, tal como a terra separada das águas no terceiro dia. Assim, o povo eleito, “adorando
130
a um só Deus, como uma terra irrigada, para que pudesse produzir bons frutos, recebeu as
sagradas Escrituras e as Profecias” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXIII, 37).
De Abraão até Davi, no intervalo de quatorze gerações, completou-se como que a
adolescência desse povo. Após o ocaso desse dia, figurado pela violação dos mandamentos,
no quarto dia os astros foram criados no firmamento do céu. A estabilidade do reino de Davi é
comparada a um firmamento, e se o sol demonstra esplendor; se o brilho da lua é como um
povo obediente reunido na sinagoga; se as estrelas são como príncipes; o quarto dia também
tem seu ocaso, pois o brilho desses astros é obscurecido como que pelos pecados dos reis.
A quinta idade prolonga-se até a chegada de Jesus. Nela o povo é mantido em
cativeiro em meio aos pagãos e, “com razão é comparada àquele quinto dia em que nas águas
foram criados os animais e as aves do céu, depois que os judeus passaram a viver entre os
pagãos, como num mar, e a ter, como as aves, uma morada instável” (Sobre o Gênesis, contra
os maniqueus, I, XXIII, 39). Mais uma vez a tarde vem com o peso dos pecados, deixando
cego o povo para reconhecer a vinda do Senhor.
A sexta idade é considerada a velhice, até mesmo no sentido do tornar-se aparente
dessa velhice do homem - aquele denominado velho por são Paulo. Dessa decrepitude
agonizante aprouve nascer o homem novo, para viver segundo o espírito. Para Agostinho, a
manhã desse dia foi a pregação do Evangelho por Jesus. Pelo texto bíblico, no sexto dia “foi
criado o homem à imagem e semelhança de Deus, assim como, nesta sexta idade, nasce na
carne nosso Senhor [...] Assim como naquele dia foram criados o homem e a mulher, assim
também nesta idade o foram Cristo e a Igreja” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I,
XXIII, 40). E também, se naquele dia o homem foi posto à frente dos animais, de maneira
semelhante nesta idade Cristo governa as almas. Portanto, aqui, todo homem é ministro e
imitador de Cristo.
O descanso do sétimo dia não pode ser senão o descanso eterno dos santos de Deus em
Deus. Agostinho temia por esse dia, dando claro sinal de não se aprovar precipitadamente,
caindo numa falsa consideração de perfeição. Entretanto, não obstante a ousadia de sua
interpretação das palavras do Gênesis, sua abordagem sempre foi restrita, limitada pela
sensata aceitação da inefabilidade divina, chegando a alegar a impossibilidade de se descrever
com palavras a maneira como Deus fizera toda a criação. Por isso, não é demais afirmar que,
sendo imperativa a impenetrabilidade dessas questões, o alegorismo acabou por se mostrar um
método mais profícuo do que interpretação literal. E, neste caso, mesmo com a tentativa de
defender a razoabilidade do sentido literal do texto, nosso autor jamais abandonou o sentido
alegórico, baseado no pressuposto de que a “exposição pela ordem dos dias retrata de tal
131
forma a história das coisas criadas que ela tem em conta sobretudo a predição das coisas
futuras” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXIII, 41).
O fechamento dessa interpretação das idades é ainda mais interessante, pois, de certa
forma, descobre-se que cada homem deve como que atravessar os mesmos degraus da história
do povo celeste. Agostinho utilizou-se dos elementos principais da criação de cada dia para
sintetizar os progressos do homem no caminho da restauração, mas a partir do sexto dia, ou
seja, na era cristã. Em suas palavras “cada um de nós tem nas boas obras e na vida justa como
que esses seis dias diferentes” (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXV). Os seis dias
são como seis etapas da ascensão para a vida espiritual, assim como segue:
No primeiro dia tem a luz da fé, quando primeiramente acredita nas coisas visíveis
[...] No segundo dia, tem o fundamento da doutrina, pela qual discerne entre o carnal
e o espiritual, assim como aconteceu entre as águas inferiores e superiores. No
terceiro dia, no qual dirige sua mente para produzir os frutos das boas obras, afasta-
se do pecado e das ondas das tentações carnais, assim como a terra seca se separa
das agitações do mar [...] No quarto dia em que, já naquele firmamento da
disciplina, o homem, lidando com os conhecimentos espirituais e os discernindo,
percebe o que seja a verdade imutável que refulge em sua alma como um sol;
percebe como a alma se torna participante da mesma verdade e comunica ao corpo a
ordem e a beleza, como a lua que ilumina a noite; percebe como todas as estrelas, ou
seja, as inteligências espirituais, cintilam e resplandecem nas trevas desta vida [...]
Fortificado pelo conhecimento destas coisas, no quinto dia, começa a agir nas
agitações do mundo turbulento, como que nas águas do mar, em favor da sociedade
fraterna [...] começa a produzir os répteis de almas vivas, ou seja, as obras que
aproveitam às almas vivas; e também grandes cetáceos, ou seja, ações deveras
poderosas [...] e aves do céu, ou seja, as vozes dos que anunciam coisas espirituais.
Mas, no sexto dia, [...] Assim se faça também o homem à imagem e semelhança de
Deus, homem e mulher, ou seja, inteligência e ação, com cuja união encham a terra
de frutos espirituais, ou seja, submetam a si a carne e as demais coisas que foram
ditas (Sobre o Gênesis, contra os maniqueus, I, XXV, 43).
que as duas sociedades dos anjos, tão díspares e contrárias entre si, uma boa
por natureza e reta por vontade, a outra, boa também por natureza e perversa
por vontade, expressas de modo mais claro noutros lugares das Divinas
Escrituras, estão, por sua vez, insinuadas com os nomes de luz e de trevas no
livro intitulado Gênesis (A cidade de Deus, XI, XXXIII).
21
Marcos R. N. Costa (1998) também defende em artigo a dupla origem da separação das cidades. Parece claro
que Agostinho pensou primeiramente numa origem sobrenatural, anterior ao advento da humanidade na terra e,
nesse sentido, “trata-se [...] de duas cidades de natureza mística ou meta-empírica, isto é, uma referência aos
conceitos metafísicos de bem e mal” (COSTA, 1998, p. 1054).
133
morrer, se não pecasse, qual o temos agora, procedente de sua natureza” (A cidade de Deus,
XIII, XXIII, 2). É da massa humana caída em Adão que Deus selecionou os predestinados
para o seu amor, ou seja, selecionou aqueles que, por amar mais a Deus que ao mundo, da
queda iniciariam o caminho de ascensão. Em um dos trechos mais célebres dessa obra assim
está dito: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao
desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial” (A
cidade de Deus, XIV, XXVIII).
Seguindo esse raciocínio, a separação entre as duas cidades torna-se visível desde os
primórdios dos tempos relatados nas Escrituras, o que levou Agostinho a atribuir a Caim e
Abel o papel de respectivos fundadores. Caim é arquétipo dos poderosos deste mundo. Dele
está dito: “O fundador da cidade terrena foi fratricida. Levado pela inveja, matou o irmão” (A
cidade de Deus, XV, V). O exemplo do fundador de Roma, também fratricida, é aproveitado
para enfatizar o sentido daquilo que aí está representado. Quanto a Abel, cuja oferenda
agradara Deus, depois de morto pelo irmão, foi substituído por Set, sendo este então
legitimamente o primeiro pai da cidade celeste na terra. O nome Set significa ressurreição, de
acordo com os estudos etimológicos de Agostinho. Sem que seja preciso aprofundar nisso
aqui, basta a indicação do sentido profético original das Escrituras, visto que “a morte e a
ressurreição de Cristo estão figuradas naqueles dois homens, em Abel, que significa Luto, e
em Set, seu irmão, igual a Ressurreição. Dessa fé nasce a Cidade de Deus, quer dizer, o
homem que pôs a esperança em invocar o nome do Senhor” (A cidade de Deus, XV, XVIII).
Segundo a tradução usada pelo bispo, assim está escrito em Gênesis 4, 26: “Também a
Set lhe nasceu um filho, a quem deu o nome de Enós. Este pôs a esperança em invocar o
nome do Senhor”. O que pode significar também que desde então começou-se a invocar o
nome de Deus. Sendo este, de acordo com os propósitos do ensino de santo Agostinho, o
verdadeiro princípio da Cidade de Deus na terra: a busca, ou seja, a invocação e culto ao
verdadeiro Criador.
134
5 CONCLUSÃO
coesa. No centro de tudo está a crença no único Deus Criador, eterno, imutável e sumamente
bom. Esse Deus é o Ser por excelência, o único que É verdadeiramente. Toda a criação foi
feita eternamente em seu Verbo. Para ele não existe o tempo, tudo o que compõe o passado, o
presente e o futuro do universo são conhecidos eternamente em sua ciência absoluta. Derivada
desses princípios situa-se a crença no mundo inteligível. Pois no principio Deus criou o céu e
a terra, opondo a criatura espiritual à criatura material. O mundo inteligível é mais verdadeiro
que o sensível, porque contém a medida, o número e o peso de tudo o que existe. Em suma,
esse outro mundo representa a crença numa determinação transcendente para o mundo
material.
Gravitando em torno do centro que é Deus está o homem. No universo agostiniano a
imagem e semelhança de Deus é a criatura criada para Deus. Como os anjos que contemplam
diretamente a face de Deus são seres puramente espirituais, o ser humano, criado em corpo
material, possui em sua mente a substância racional, idêntica à dos anjos, porém, passível de
deformidade. Em sua natureza única, paradoxalmente, podemos dizer que esse ser corporal
compartilha de duas naturezas diferentes, e por isso apresenta tendências opostas que o
dilaceram. Enquanto os sentidos do corpo têm objetos transitórios e por isso são voltados ao
efêmero, ao múltiplo, ao egoísmo, ao conflito e à falta constitutiva do desejo, a mente
racional, por outro lado, possui por objeto o imutável, e é voltada à unidade, à harmonia, à
caridade, à plenitude do desejo. Sendo assim, essa oposição de tendências faz parte da dupla
natureza humana. O homem fora criado assim por Deus. Mas Agostinho acreditou que Deus
criara o homem para Si, de modo que sua finalidade seria a resolução desse conflito, até a
equivalência final à criatura angélica. Para esse destino final reservam-se os termos filiação
adotiva e deificação. Não se trata de questionar o porquê dessa situação, como se bastasse que
os homens tivessem sido criados como anjos. É assim porque Deus quis. Os anjos são
exatamente aquilo que devem ser; e são imutavelmente perfeitos. Os homens podem vir a ser,
a possibilidade de passar de um estado a outro, alterando sua própria essência, faz parte de sua
natureza.
Agostinho também creu no Cristo como único mediador, esse dado é fundamental para
compreender corretamente o teor de sua busca religiosa. Foi um homem cristão que viveu há
mais de mil e quinhentos anos e, ainda assim, sua experiência continua a ter enorme valor
para responder aos significados possíveis da cristandade. Foi um homem que comunicou sua
crença de que a divindade descera até um corpo humano para ensinar o caminho aos homens,
e que, entretanto, mais do que seu poder, revelara seu amor. O ensinamento de Jesus foi para
ele o amor de Deus. Por esse motivo o comprometimento agostiniano com os altos propósitos
136
divinos para a humanidade se evidencia por um modo de viver pautado nesse amor. A
santidade foi para ele progredir sempre no amor. Progrediu de duas formas: purificando a si
mesmo e atuando concretamente para o bem do próximo. Uma via é o ascetismo e o amor
pelo conhecimento. A outra é o serviço comunitário.
O modo de vida agostiniano se resume pelo crescimento nas virtudes cristãs: fé,
esperança e caridade. A fé e a esperança equivalem à orientação e perseverança no caminho.
A caridade é amar por Deus, e nesse aspecto equivale a uma profunda transformação
psicológica. Essa transformação pode ser definida como liberdade. Porque uma das
percepções psicológicas mais profundas de Agostinho foi a respeito da incapacidade do
homem em determinar sua própria vontade.
Para ele a caridade não pode ser simplesmente conquistada pelo esforço pessoal, visto
ser dom da graça divina. Uma vez infundida no coração do homem, a caridade restaura a
cisão interior da alma. Ao invés de desejar coisas contraditórias; ao invés de lutar contra os
maus desejos sem conseguir alcançar o não querer; através da força para não consentir, que já
constitui alguma liberdade, a caridade progride até o deleite do bem, ou seja, até o efetivo não
querer o mal. Assim, com um esforço de reflexão, descobrimos que nesse horizonte estão
traçadas as linhas da liberdade. E se explicarmos isso por uma perspectiva psicológica,
falaremos de uma unidade do eu a ser alcançada; um eu que deve sair de uma condição de
divisão subjetiva para alcançar a autodeterminação da vontade.
E como vimos neste trabalho, o modo de vida agostiniano não constituirá jamais uma
fuga do mundo, nem muito menos uma postura passiva diante do mundo. A imagem de Deus
é a criatura que tem por dever governar todas as criaturas do universo. Agostinho não foi um
asceta extremista, a ponto de abdicar de todo conforto, da boa saúde, da boa alimentação e dos
privilégios concedidos pelo engenho humano. Na verdade, pode-se dizer até que era um
amante da cultura e, inclusive, conhecedor de muitas das ciências de seu tempo. O fator
determinante de suas escolhas pessoais era saber distinguir entre o que deve ser gozado e o
que deve ser usado para um bem maior. Mantida essa distinção, tudo o que há no mundo e
toda invenção da arte humana podem ser tidas como um bem.
Para concluir, reiteramos nossa opinião de que o uso do termo formação, em lugar de
reforma, no trecho citado no capítulo anterior, possui grande valor para a compreensão da
doutrina desse santo Doutor, e deve servir para afastar toda interpretação sobre um hipotético
pessimismo agostiniano. Pelo sentido profético que aprendemos a ler no livro do Gênesis, o
homem criado à imagem e semelhança de Deus no sexto dia da criação não é o Adão que
habitava o paraíso. Este fora formado de corpo animal e, somente em potencial, poderia ter
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ascendido à imortalidade espiritual; aquele será angélico, e não poderá cair novamente. Os
anjos não podem cair ou elevar-se, e contemplam Deus imutavelmente. Para os homens, os
erros servirão à futura perfeição; os castigos, aos méritos; a dor, à felicidade. Aquilo que
alguns autores chamam de eudemonismo agostiniano aponta justamente para um humanismo
positivo e cheio de esperança, no qual nada há de pessimismo. Agostinho ensinou sempre a
doutrina da bondade absoluta de Deus e, ainda hoje, podemos aprender muito com suas
intuições, para recuperar, talvez, a capacidade de contemplar o sentido pleno de nossa jornada
neste mundo, de modo que a longa e sofrida formação dessa criatura humana da qual todos
participamos seja compreendida em sua misteriosa grandiosidade.
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