Os significados atribuídos ao trabalho variam conforme as diferentes abordagens
teóricas desenvolvidas por estudiosos, especialmente nas ciências humanas e sociais. Uma das bases do pensamento sociológico, Émile Durkheim, apresenta uma série de argumentos, fundamentados em sua proposta teórico-metodológica, que servem como referência para se pensar na categoria trabalho (LUKES, 2007, TIRYAKAN, 2005). Da mesma forma, um pensador contemporâneo, Zygmunt Bauman, também traz importantes provocações para se refletir sobre o tema (BAUMAN, 2004). Nesta resenha, estas duas perspectivas serão apresentadas e discutidas conforme se segue. Emile Durkheim, pensador francês do século XIX, é considerado um dos pilares da Sociologia enquanto ciência. Sua extensa obra versa sobre os mais diferentes aspectos sociais e coletivos, frutos de sua proposta de ciência social positivista, que até hoje expressam importantes reflexões sobre o mundo. No que se refere aos estudos sobre trabalho, destaca-se a obra “A Divisão Social do Trabalho” (1902). Entretanto, para compreender os significados do trabalho em Durkheim é importante apresentar alguns aspectos centrais de sua sociologia (LUKES, 2007, TIRYAKAN, 2005). Inicialmente, Lukes (2007) argumenta que o pensamento de Durkheim deve ser melhor compreendido, haja vista uma amplitude de conceitos por ele trabalhados que são de pouca proximidade de estudantes, ao grande número de dicotomias ou “oposições binárias” que o autor traz e ao próprio caráter caricaturesco (extremado, figurativo) de seu pensamento. Um desses conceitos centrais, a “consciência coletiva” refere-se ao conjunto de crenças e sentimentos comuns ao comum dos membros de uma determinada sociedade que forma um sistema determinado com vida própria. Ela possui traços específicos que fazem dela uma realidade própria. É “independente das condições particulares em que os indivíduos se encontram situados”. Nessa direção, a propriedade dos indivíduos é formada do ser orgânico psíquico isolado, ao passo que as propriedades da consciência coletiva são constituídas da combinação da pluralidade desses seres. Disso emerge a diferença entre fenômenos sociais e individuais amplamente discutida em Durkheim. Essa diferença é importante para a consideração de que no contexto social, a consciência coletiva trata da vida psíquica das sociedades. De modo geral, o pensador francês estava interessado em compreender o papel das crenças e sentimentos coletivos, sobretudo da moralidade e da religião, na sociedade. Especificamente, buscava estudar como indivíduos se vinculam à sociedade, como valores são inculcados, como mudam, afetam e são afetados por outros aspectos da vida social, bem como são mantidos e reforçados. Tais específicos, todavia, eram de difícil acesso a partir do conceito de consciência coletiva. Por isso, Durkheim emprega o conceito de “representações coletivas”. Essas representações são estados da consciência coletiva que exprimem “o modo pelo qual o grupo se concebe a si mesmo em suas relações com os objetos que afetam”. As representações referem-se tanto a modos de pensar ou perceber quanto àquilo que é pensado ou percebido. Da mesma forma, é coletiva tanto em sua origem (na concepção de sua forma) quanto em sua referência ou objeto. Essas representações são produzidas socialmente e se referem à sociedade. Representações coletivas são propriedades emergentes dos indivíduos. Essas representações formam “realidades parcialmente autônomas que vivem sua própria vida, com o poder de atrair-se, repelir-se mutuamente, formar sínteses de todos os tipos e engendrar novas representações”. Por isso, Durkheim se interessava em uma sociologia que estudasse as leis da produção coletiva de ideias. E é das representações coletivas que surgem os fatos sociais, outro conceito central no pensamento sociológico do autor. Para Durkheim, a sociologia deve se basear na realidade objetiva dos fatos sociais (a realidade própria das ciências sociais). Os fatos sociais dizem respeito a “fenômenos, fatores ou forças e, com a regra de que deveriam ser estudados como coisas, significaria que devem ser encarados como ‘realidades exteriores ao indivíduo’ e independentes do aparelho conceitual do observador” (p. 21). O autor afirma que fatos sociais exercem certo tipo de coerção aos indivíduos e existem, de modo geral em uma sociedade, independente de manifestações individuais (fora de consciências individuais). Dessa noção, emergem os três critérios distintivos dos fatos sociais: caráter externo, coerção (imposição de modos de se agir, pensar e sentir, por meio de mecanismos de autoridade que buscam conformar indivíduos a regras) e generalidade mais independência (“a forma geral é independente do comportamento individual ao mesmo em que o orienta”). No entanto, os fatos sociais, ao mesmo tempo em que são exteriores aos indivíduos, são interiorizados pelos mesmos, transmitidos do passado para o presente. “As normas podem ser impostas por meio de sanções aos indivíduos que desejam desviar-se delas. Correntes de opinião, crenças e práticas, sentimentos coletivos são “impostos” aos indivíduos quando, uma vez interiorizados, influenciam-nos a pensar, sentir e agir de certas maneiras”. Lukes (2007) também apresenta uma série de dicotomias que são marcantes no pensamento de Durkheim e que nos auxiliam a compreender sua proposta sociológica. Essas dicotomias se referem a: sociologia x psicologia; social x individual; regras morais x apetites sensuais; conceitos x sensações; sagrado x profano; e normal x patológico. Ao final, Lukes (2007) discute três formas de argumentos amplamente utilizadas por Durkheim em seus estudos. São elas: petição de princípio; argumento por eliminação e; tratamento das provas. É importante destacar que estas noções faziam parte de um conjunto de repertórios que Durkheim empregava como “armas” direcionadas à legitimidade e ao reconhecimento do status da sociologia como uma ciência à sua época, ou seja, no século XIX. Posto nesta direção, Tiryakan (2005) entende que o significado do trabalho em Durkheim passa, necessariamente, por sua proposta realista social de pensar a sociedade. O pensador francês “aceita o fato do grande crescimento da divisão do trabalho que ele considera como uma mudança estrutural a longo prazo” (TIRYAKAN, 2005, p. 218). Essa noção, no entanto, é de difícil juízo de valor, ou seja, poucos elementos trazem quanto ao caráter negativo ou positivo da mudança. Durkheim, em um primeiro momento, buscou analisar a divisão social do trabalho de uma forma sistêmica. Nesse sentido, procurou delimitar quais as funções e as causas dessa divisão, com enfoque sobretudo na estrutura e dinâmica da organização social, nas transformações dos modos de solidariedade e em mudanças demográficas. Após esses estudos, Durkheim discutiu formas anormais ou patológicas da divisão do trabalho. De modo geral, no entanto, o autor considera que em condições normais, a situação de trabalho será algo satisfatório e importante para a integração social (TIRYAKAN, 2005). Conforme o pensador francês, o foco da sociologia deve se dirigir à coesão social na vida cotidiana. Nesse sentido, “para Durkheim, a coesão social é um fenômeno moral que se estende entre dois polos aos quais se podem ligar dois conceitos: o da solidariedade e o da anomia” (p. 219). O conceito de solidariedade refere-se a um tipo de estrutura social que provê a coesão da sociedade. Disso, são apresentadas as noções de solidariedade mecânica (marcada por laços fracos de cooperação, sendo maior a coerção) e solidariedade orgânica (caracterizada pela forte cooperação). O trabalho é uma fonte de solidariedade. A anomia, por sua vez, refere-se a uma “condição anormal de desregramento que torna precária a vida em comum” (p. 222), em razão, sobretudo, da falta de confiança. Durkheim discute que em uma situação de anomia, “o trabalho e a solidariedade orgânica podem perder o seu sentido” (p. 222). Dessa forma, o trabalho industrial, da forma como se desenvolveu na França do século XIX, foi caracterizado como uma fonte de anomia, de desregulamentação, de desvalorização da natureza humana. Com a desregulamentação das relações econômicas desse período, a moralidade do trabalho foi transformada e as noções de liberdade defendidas por pensadores favoráveis ao capitalista (como Adam Smith) representavam uma situação de anomia e degradação. Dessa forma, como Tiryakan (2005, p. 225) argumenta, Durkheim “considera que o trabalho é significante e satisfatório unicamente quando é feito em um meio regulamentado e normativo, marcado pela solidariedade entre os trabalhadores”. Esse tipo de trabalho, apesar de não ser agradável, satisfaz a condição humana. Para corrigir a situação anômica dessas relações, Durkheim chama atenção para a importância das corporações (sobretudo se inspirando nas guildas do Antigo Regime) como espaços que carregam a moral e o direito profissionais. As corporações teriam funções tais como: “proporcionar auxílio mútuo a seus membros, como nas sociedades beneficentes, assim como atividades educativas, artísticas e recreativas” (TIRYAKAN, 2005, p. 225-226). A corporação serviria ainda como unidade política para o mundo. Isso contudo, não implica que Durkheim propunha uma espécie de corporatismo. O pensador afirmava, na verdade, que “a divisão do trabalho baseada na solidariedade orgânica funciona melhor quando as desigualdades diferentes daquelas das habilidades intrínsecas são reduzidas”, tanto no mercado como no trabalho profissional. Tiryakan (2005) encerra o capítulo destacando como as reflexões de Durkheim poderiam ser atualizadas para a contemporaneidade, não deixando de lado a proposta do pensador francês quanto à necessidade de laços de solidariedade orgânica para uma melhor significação do trabalho. Nesse sentido, é importante chamar atenção para fenômenos tais como a divisão internacional do trabalho, a globalização e às próprias formas de significação do trabalho que as pessoas foram construindo ao longo dos anos, em determinados contextos. Por sua vez, Zygmunt Bauman (2004) apresenta uma discussão em torno do sentido do trabalho, voltada sobretudo para uma ética do trabalho e o aspecto estético desta categoria no mundo contemporâneo, especialmente partir do consumo, Primeiramente interessado em compreender a sociedade industrial, Bauman discute que a ética do trabalho que se desenvolveu nesse período pode ser resumida em um mandamento, com duas premissas abertas e dois pressupostos tácitos. O mandamento em questão define que: “você deve trabalhar mesmo que não enxergue o que isso poderia trazer para você quanto ao que você não tenha ou não pense que precise”. A primeira premissa refere-se a noção de que “a fim de conseguir algo que uma pessoa necessita para estar viva e feliz, é preciso fazer algo reconhecido por outras pessoas como valioso e digno de ser remunerado” (p. 7). Ou seja, é sempre necessário oferecer para se receber algo em troca. A segunda premissa defende que é moralmente inaceitável estar satisfeito com já se conquistou e se acomodar, deixando de acumular mais. Nessa premissa, entende-se que o trabalho é um tipo de atividade nobre, cujo esforço é acumulativo e o descanso é indigno, a não ser quando é utilizado para se trabalhar mais no futuro. Por sua vez, o primeiro pressuposto tácito dessa ética discorre que a maioria das pessoas possuem uma capacidade de trabalho para vender, e que de fato podem aproveitar sua vida vendendo essa força e recebendo o que elas merecem em troca. Essa noção traz, de certa forma, uma aproximação com a visão marxista e universalizante do trabalho. Todavia, no contexto apresentado por Bauman, este pressuposto é amplamente apropriado pelo discurso liberal meritocrático. O outro pressuposto tácito trata que “apenas os trabalhos que possuem valor reconhecido por outros – que envolvem salários, que podem ser comprados e vendidos – possuem o valor moral que a ética do trabalho reproduz” (p. 8). Bauman entende que esse pressuposto está amplamente alinhado ao conceito de modernidade que marcou o Ocidente desde o Iluminismo. Bauman (2004) discute que essa ética se desenvolveu sobretudo na Europa, nos primeiros estágios de industrialização, e foi sendo ampliada e, de certa forma, ressignificada ao longo dos anos. Ela assim foi desenvolvida e inculcada nas pessoas para suplantar “a tradicão humana de considerar suas necessidades como dadas e não desejar mais do que o necessário para satisfaze-los” (p. 8), cenário em que o ser humano não teria um interesse nato em fazer esforços e trabalhar. Esse tipo de homem foi marcado pelos modernistas como irracional e ignorante, portanto, eticamente inaceitável para aquele grupo à época emergente. Segundo Bauman, o exercício de tornar essa nova ética como algo universal foi uma tentativa de ressuscitar atitudes básicas pré- industriais de trabalho sob novas condições que não mais as tornavam significativas. Esse processo foi uma batalha pelo controle e subordinação dos trabalhadores em direção à aceitação de uma vida para o trabalho, sem nobreza, que abolia o “direito à preguiça” e que tencionava internalizar hábitos de trabalho alienantes e não desejáveis. Durante esse período, também foi marcante a separação entre a razão (o homem) e a natureza. Um último aspecto da ética do trabalho na sociedade industrial está relacionado à mudança em direção às necessidades das pessoas por bens e capital como meios de significação de seu valor. Disso, emergiu uma lógica da acumulação, o que para Bauman, foi um dos elos da sociedade de produtores (industrial) para a sociedade de consumidores, um segundo tipo de modernidade que o autor discute na sequencia da obra. Um dos elementos marcantes na obra de Bauman é sua defesa quanto ao estatuto da “sociedade de consumidores”, a qual as pessoas vivem atualmente. “Um consumidor é uma pessoa que consume, e por consumo, entende-se como ‘usar coisas’” (p. 23). Ser consumidor também pressupõe a capacidade de se apropriar das coisas, normalmente pelo dinheiro, e destruí-las. Assim como a sociedade de produtores considera que todas as pessoas são, em essência, produtoras, a sociedade de consumidores atribui como papel central na vida das pessoas o consumo. Ou seja, a principal diferença figura na ênfase aos papeis. Além disso, na sociedade de consumidores, mudou-se o sentido da capacidade de escolhas dos indivíduos (antes constrangidos por instituições panópticas) e agora tidas como essenciais para o consumo. Isso está relacionado a uma desestabilização das relações, tornando-as mais fugazes e líquidas, negando hábitos e certezas. Para serem bons consumidores, as pessoas nunca devem desenvolver rotinas, nunca devem descansar, de modo aumentar sua capacidade de consumo. O consumo assume um caráter essencialmente individual e solitário (diferente do caráter coletivo da produção). Além disso, a capacidade de escolha pelo consumo, que está diretamente relacionada à riqueza, torna-se a principal moeda nessa sociedade. O consumo é um direito para o jubilo, não um dever/sofrimento. Portanto, não há a necessidade de regulações normativas para o consumo (como haviam para a produção) e, desse modo, a sociedade é integrada por interesses estéticos e não normas éticas. Essas transformações incorrem em efeitos nas relações de trabalho. Conforme Bauman (2004) descreve, o trabalho na sociedade de consumidores perdeu sua posição privilegiada. O trabalho é avaliado por uma análise estética, por sua capacidade de gerar experiências prazerosas pelo consumo. Nesse sentido, o trabalho deixa de ser pensado como uma vocação (no sentido da crítica de Weber à gaiola de ferro do capitalismo), um tipo de atividade estável, e as relações trabalhistas passam a ser direcionadas sobretudo à flexibilização. Essa representa uma ruptura significativa com a ética do trabalho na sociedade dos produtores. Tal tipo de sociedade, como Bauman afirma, contribui ainda mais para o aumento da desigualdade social e da distinção entre ricos e pobres. A partir da leitura desses textos, comparando especificamente as propostas teóricas de Durkheim e Bauman, que os significados do trabalho para esses dois autores apresentam certas convergências, apesar das divergências serem maiores. Em relação a aproximações, destaca-se que os dois pensadores consideravam que condições culturais e normativas da sociedade impactam na forma com que o trabalho é significado, e por isso tratam de referencias, a sua maneira, críticos (embora a crítica em Bauman seja muito mais declarada). No entanto, os dois autores diferem em relação às suas bases para se pensar o trabalho. Durkheim, por um lado, entende o trabalho como elemento de integração da humanidade, que apesar de ser dificultoso, nas condições “normais” traz solidariedade para as relações interpessoais e por isso deve ser desenvolvido. Durkheim, contudo, critica que a divisão racional do trabalho na sociedade industrial provocou mudanças nessas relações, especialmente a partir do estabelecimento de uma integração pelo trabalho baseada na solidariedade mecânica, que prejudicava a integridade humana. Bauman, por outro lado, entendia o trabalho como um tipo de atividade que o ser humano, em condições normais, não tem prazer em fazer. No entanto, disposições normativas características da revolução industrial, promoveram uma ética do trabalho que direcionou os indivíduos a novos significados para essas atividades. Bauman vai além e mostra como essas noções foram sendo mudadas na sociedade dos consumidores. Contudo, é importante destacar a importância da leitura desses dois referenciais essenciais para a formação do pensamento sociológico, direcionado à crítica ou à regulação. Tanto Durkheim quanto Bauman, apesar de não terem coexistido no mesmo período, ainda trazem contribuições atuais para esse debate.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Work, consumerism and the new poor. McGraw-Hill
Education (UK), 2004.
LUKES, Steven. Bases para a interpretação de Durkheim. COHN, G. Sociologia: para
ler os clássicos. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
TIRYAKAN, E. A. O Trabalho em Emile Durkheim. In: MERCURE, D.; SPURK, J.
(Orgs.) O trabalho na história do pensamento occidental. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2005. Cap. 9, 215-233.