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Resenha Crítica – Tema 2

André Luiz de Paiva

Os significados atribuídos ao trabalho variam conforme as diferentes abordagens


teóricas desenvolvidas por estudiosos, especialmente nas ciências humanas e sociais.
Uma das bases do pensamento sociológico, Émile Durkheim, apresenta uma série de
argumentos, fundamentados em sua proposta teórico-metodológica, que servem como
referência para se pensar na categoria trabalho (LUKES, 2007, TIRYAKAN, 2005). Da
mesma forma, um pensador contemporâneo, Zygmunt Bauman, também traz
importantes provocações para se refletir sobre o tema (BAUMAN, 2004). Nesta
resenha, estas duas perspectivas serão apresentadas e discutidas conforme se segue.
Emile Durkheim, pensador francês do século XIX, é considerado um dos pilares
da Sociologia enquanto ciência. Sua extensa obra versa sobre os mais diferentes
aspectos sociais e coletivos, frutos de sua proposta de ciência social positivista, que até
hoje expressam importantes reflexões sobre o mundo. No que se refere aos estudos
sobre trabalho, destaca-se a obra “A Divisão Social do Trabalho” (1902). Entretanto,
para compreender os significados do trabalho em Durkheim é importante apresentar
alguns aspectos centrais de sua sociologia (LUKES, 2007, TIRYAKAN, 2005).
Inicialmente, Lukes (2007) argumenta que o pensamento de Durkheim deve ser
melhor compreendido, haja vista uma amplitude de conceitos por ele trabalhados que
são de pouca proximidade de estudantes, ao grande número de dicotomias ou
“oposições binárias” que o autor traz e ao próprio caráter caricaturesco (extremado,
figurativo) de seu pensamento. Um desses conceitos centrais, a “consciência coletiva”
refere-se ao conjunto de crenças e sentimentos comuns ao comum dos membros de uma
determinada sociedade que forma um sistema determinado com vida própria. Ela possui
traços específicos que fazem dela uma realidade própria. É “independente das condições
particulares em que os indivíduos se encontram situados”. Nessa direção, a propriedade
dos indivíduos é formada do ser orgânico psíquico isolado, ao passo que as
propriedades da consciência coletiva são constituídas da combinação da pluralidade
desses seres. Disso emerge a diferença entre fenômenos sociais e individuais
amplamente discutida em Durkheim. Essa diferença é importante para a consideração de
que no contexto social, a consciência coletiva trata da vida psíquica das sociedades.
De modo geral, o pensador francês estava interessado em compreender o papel
das crenças e sentimentos coletivos, sobretudo da moralidade e da religião, na
sociedade. Especificamente, buscava estudar como indivíduos se vinculam à sociedade,
como valores são inculcados, como mudam, afetam e são afetados por outros aspectos
da vida social, bem como são mantidos e reforçados. Tais específicos, todavia, eram de
difícil acesso a partir do conceito de consciência coletiva.
Por isso, Durkheim emprega o conceito de “representações coletivas”. Essas
representações são estados da consciência coletiva que exprimem “o modo pelo qual o
grupo se concebe a si mesmo em suas relações com os objetos que afetam”. As
representações referem-se tanto a modos de pensar ou perceber quanto àquilo que é
pensado ou percebido. Da mesma forma, é coletiva tanto em sua origem (na concepção
de sua forma) quanto em sua referência ou objeto. Essas representações são produzidas
socialmente e se referem à sociedade.
Representações coletivas são propriedades emergentes dos indivíduos. Essas
representações formam “realidades parcialmente autônomas que vivem sua própria vida,
com o poder de atrair-se, repelir-se mutuamente, formar sínteses de todos os tipos e
engendrar novas representações”. Por isso, Durkheim se interessava em uma sociologia
que estudasse as leis da produção coletiva de ideias.
E é das representações coletivas que surgem os fatos sociais, outro conceito
central no pensamento sociológico do autor. Para Durkheim, a sociologia deve se basear
na realidade objetiva dos fatos sociais (a realidade própria das ciências sociais). Os fatos
sociais dizem respeito a “fenômenos, fatores ou forças e, com a regra de que deveriam
ser estudados como coisas, significaria que devem ser encarados como ‘realidades
exteriores ao indivíduo’ e independentes do aparelho conceitual do observador” (p. 21).
O autor afirma que fatos sociais exercem certo tipo de coerção aos indivíduos e
existem, de modo geral em uma sociedade, independente de manifestações individuais
(fora de consciências individuais). Dessa noção, emergem os três critérios distintivos
dos fatos sociais: caráter externo, coerção (imposição de modos de se agir, pensar e
sentir, por meio de mecanismos de autoridade que buscam conformar indivíduos a
regras) e generalidade mais independência (“a forma geral é independente do
comportamento individual ao mesmo em que o orienta”).
No entanto, os fatos sociais, ao mesmo tempo em que são exteriores aos
indivíduos, são interiorizados pelos mesmos, transmitidos do passado para o presente.
“As normas podem ser impostas por meio de sanções aos indivíduos que desejam
desviar-se delas. Correntes de opinião, crenças e práticas, sentimentos coletivos são
“impostos” aos indivíduos quando, uma vez interiorizados, influenciam-nos a pensar,
sentir e agir de certas maneiras”.
Lukes (2007) também apresenta uma série de dicotomias que são marcantes no
pensamento de Durkheim e que nos auxiliam a compreender sua proposta sociológica.
Essas dicotomias se referem a: sociologia x psicologia; social x individual; regras
morais x apetites sensuais; conceitos x sensações; sagrado x profano; e normal x
patológico. Ao final, Lukes (2007) discute três formas de argumentos amplamente
utilizadas por Durkheim em seus estudos. São elas: petição de princípio; argumento por
eliminação e; tratamento das provas. É importante destacar que estas noções faziam
parte de um conjunto de repertórios que Durkheim empregava como “armas”
direcionadas à legitimidade e ao reconhecimento do status da sociologia como uma
ciência à sua época, ou seja, no século XIX.
Posto nesta direção, Tiryakan (2005) entende que o significado do trabalho em
Durkheim passa, necessariamente, por sua proposta realista social de pensar a
sociedade. O pensador francês “aceita o fato do grande crescimento da divisão do
trabalho que ele considera como uma mudança estrutural a longo prazo” (TIRYAKAN,
2005, p. 218). Essa noção, no entanto, é de difícil juízo de valor, ou seja, poucos
elementos trazem quanto ao caráter negativo ou positivo da mudança.
Durkheim, em um primeiro momento, buscou analisar a divisão social do
trabalho de uma forma sistêmica. Nesse sentido, procurou delimitar quais as funções e
as causas dessa divisão, com enfoque sobretudo na estrutura e dinâmica da organização
social, nas transformações dos modos de solidariedade e em mudanças demográficas.
Após esses estudos, Durkheim discutiu formas anormais ou patológicas da divisão do
trabalho. De modo geral, no entanto, o autor considera que em condições normais, a
situação de trabalho será algo satisfatório e importante para a integração social
(TIRYAKAN, 2005).
Conforme o pensador francês, o foco da sociologia deve se dirigir à coesão
social na vida cotidiana. Nesse sentido, “para Durkheim, a coesão social é um fenômeno
moral que se estende entre dois polos aos quais se podem ligar dois conceitos: o da
solidariedade e o da anomia” (p. 219). O conceito de solidariedade refere-se a um tipo
de estrutura social que provê a coesão da sociedade. Disso, são apresentadas as noções
de solidariedade mecânica (marcada por laços fracos de cooperação, sendo maior a
coerção) e solidariedade orgânica (caracterizada pela forte cooperação). O trabalho é
uma fonte de solidariedade. A anomia, por sua vez, refere-se a uma “condição anormal
de desregramento que torna precária a vida em comum” (p. 222), em razão, sobretudo,
da falta de confiança. Durkheim discute que em uma situação de anomia, “o trabalho e a
solidariedade orgânica podem perder o seu sentido” (p. 222). Dessa forma, o trabalho
industrial, da forma como se desenvolveu na França do século XIX, foi caracterizado
como uma fonte de anomia, de desregulamentação, de desvalorização da natureza
humana.
Com a desregulamentação das relações econômicas desse período, a moralidade
do trabalho foi transformada e as noções de liberdade defendidas por pensadores
favoráveis ao capitalista (como Adam Smith) representavam uma situação de anomia e
degradação. Dessa forma, como Tiryakan (2005, p. 225) argumenta, Durkheim
“considera que o trabalho é significante e satisfatório unicamente quando é feito em um
meio regulamentado e normativo, marcado pela solidariedade entre os trabalhadores”.
Esse tipo de trabalho, apesar de não ser agradável, satisfaz a condição humana. Para
corrigir a situação anômica dessas relações, Durkheim chama atenção para a
importância das corporações (sobretudo se inspirando nas guildas do Antigo Regime)
como espaços que carregam a moral e o direito profissionais.
As corporações teriam funções tais como: “proporcionar auxílio mútuo a seus
membros, como nas sociedades beneficentes, assim como atividades educativas,
artísticas e recreativas” (TIRYAKAN, 2005, p. 225-226). A corporação serviria ainda
como unidade política para o mundo. Isso contudo, não implica que Durkheim
propunha uma espécie de corporatismo. O pensador afirmava, na verdade, que “a
divisão do trabalho baseada na solidariedade orgânica funciona melhor quando as
desigualdades diferentes daquelas das habilidades intrínsecas são reduzidas”, tanto no
mercado como no trabalho profissional.
Tiryakan (2005) encerra o capítulo destacando como as reflexões de Durkheim
poderiam ser atualizadas para a contemporaneidade, não deixando de lado a proposta do
pensador francês quanto à necessidade de laços de solidariedade orgânica para uma
melhor significação do trabalho. Nesse sentido, é importante chamar atenção para
fenômenos tais como a divisão internacional do trabalho, a globalização e às próprias
formas de significação do trabalho que as pessoas foram construindo ao longo dos anos,
em determinados contextos.
Por sua vez, Zygmunt Bauman (2004) apresenta uma discussão em torno do
sentido do trabalho, voltada sobretudo para uma ética do trabalho e o aspecto estético
desta categoria no mundo contemporâneo, especialmente partir do consumo,
Primeiramente interessado em compreender a sociedade industrial, Bauman discute que
a ética do trabalho que se desenvolveu nesse período pode ser resumida em um
mandamento, com duas premissas abertas e dois pressupostos tácitos. O mandamento
em questão define que: “você deve trabalhar mesmo que não enxergue o que isso
poderia trazer para você quanto ao que você não tenha ou não pense que precise”. A
primeira premissa refere-se a noção de que “a fim de conseguir algo que uma pessoa
necessita para estar viva e feliz, é preciso fazer algo reconhecido por outras pessoas
como valioso e digno de ser remunerado” (p. 7). Ou seja, é sempre necessário oferecer
para se receber algo em troca. A segunda premissa defende que é moralmente
inaceitável estar satisfeito com já se conquistou e se acomodar, deixando de acumular
mais. Nessa premissa, entende-se que o trabalho é um tipo de atividade nobre, cujo
esforço é acumulativo e o descanso é indigno, a não ser quando é utilizado para se
trabalhar mais no futuro.
Por sua vez, o primeiro pressuposto tácito dessa ética discorre que a maioria das
pessoas possuem uma capacidade de trabalho para vender, e que de fato podem
aproveitar sua vida vendendo essa força e recebendo o que elas merecem em troca. Essa
noção traz, de certa forma, uma aproximação com a visão marxista e universalizante do
trabalho. Todavia, no contexto apresentado por Bauman, este pressuposto é amplamente
apropriado pelo discurso liberal meritocrático. O outro pressuposto tácito trata que
“apenas os trabalhos que possuem valor reconhecido por outros – que envolvem
salários, que podem ser comprados e vendidos – possuem o valor moral que a ética do
trabalho reproduz” (p. 8). Bauman entende que esse pressuposto está amplamente
alinhado ao conceito de modernidade que marcou o Ocidente desde o Iluminismo.
Bauman (2004) discute que essa ética se desenvolveu sobretudo na Europa, nos
primeiros estágios de industrialização, e foi sendo ampliada e, de certa forma,
ressignificada ao longo dos anos. Ela assim foi desenvolvida e inculcada nas pessoas
para suplantar “a tradicão humana de considerar suas necessidades como dadas e não
desejar mais do que o necessário para satisfaze-los” (p. 8), cenário em que o ser humano
não teria um interesse nato em fazer esforços e trabalhar. Esse tipo de homem foi
marcado pelos modernistas como irracional e ignorante, portanto, eticamente inaceitável
para aquele grupo à época emergente. Segundo Bauman, o exercício de tornar essa nova
ética como algo universal foi uma tentativa de ressuscitar atitudes básicas pré-
industriais de trabalho sob novas condições que não mais as tornavam significativas.
Esse processo foi uma batalha pelo controle e subordinação dos trabalhadores em
direção à aceitação de uma vida para o trabalho, sem nobreza, que abolia o “direito à
preguiça” e que tencionava internalizar hábitos de trabalho alienantes e não desejáveis.
Durante esse período, também foi marcante a separação entre a razão (o homem) e a
natureza.
Um último aspecto da ética do trabalho na sociedade industrial está relacionado
à mudança em direção às necessidades das pessoas por bens e capital como meios de
significação de seu valor. Disso, emergiu uma lógica da acumulação, o que para
Bauman, foi um dos elos da sociedade de produtores (industrial) para a sociedade de
consumidores, um segundo tipo de modernidade que o autor discute na sequencia da
obra.
Um dos elementos marcantes na obra de Bauman é sua defesa quanto ao estatuto
da “sociedade de consumidores”, a qual as pessoas vivem atualmente. “Um consumidor
é uma pessoa que consume, e por consumo, entende-se como ‘usar coisas’” (p. 23). Ser
consumidor também pressupõe a capacidade de se apropriar das coisas, normalmente
pelo dinheiro, e destruí-las. Assim como a sociedade de produtores considera que todas
as pessoas são, em essência, produtoras, a sociedade de consumidores atribui como
papel central na vida das pessoas o consumo. Ou seja, a principal diferença figura na
ênfase aos papeis.
Além disso, na sociedade de consumidores, mudou-se o sentido da capacidade
de escolhas dos indivíduos (antes constrangidos por instituições panópticas) e agora
tidas como essenciais para o consumo. Isso está relacionado a uma desestabilização das
relações, tornando-as mais fugazes e líquidas, negando hábitos e certezas. Para serem
bons consumidores, as pessoas nunca devem desenvolver rotinas, nunca devem
descansar, de modo aumentar sua capacidade de consumo.
O consumo assume um caráter essencialmente individual e solitário (diferente
do caráter coletivo da produção). Além disso, a capacidade de escolha pelo consumo,
que está diretamente relacionada à riqueza, torna-se a principal moeda nessa sociedade.
O consumo é um direito para o jubilo, não um dever/sofrimento. Portanto, não há a
necessidade de regulações normativas para o consumo (como haviam para a produção)
e, desse modo, a sociedade é integrada por interesses estéticos e não normas éticas.
Essas transformações incorrem em efeitos nas relações de trabalho. Conforme
Bauman (2004) descreve, o trabalho na sociedade de consumidores perdeu sua posição
privilegiada. O trabalho é avaliado por uma análise estética, por sua capacidade de gerar
experiências prazerosas pelo consumo. Nesse sentido, o trabalho deixa de ser pensado
como uma vocação (no sentido da crítica de Weber à gaiola de ferro do capitalismo),
um tipo de atividade estável, e as relações trabalhistas passam a ser direcionadas
sobretudo à flexibilização. Essa representa uma ruptura significativa com a ética do
trabalho na sociedade dos produtores. Tal tipo de sociedade, como Bauman afirma,
contribui ainda mais para o aumento da desigualdade social e da distinção entre ricos e
pobres.
A partir da leitura desses textos, comparando especificamente as propostas
teóricas de Durkheim e Bauman, que os significados do trabalho para esses dois autores
apresentam certas convergências, apesar das divergências serem maiores. Em relação a
aproximações, destaca-se que os dois pensadores consideravam que condições culturais
e normativas da sociedade impactam na forma com que o trabalho é significado, e por
isso tratam de referencias, a sua maneira, críticos (embora a crítica em Bauman seja
muito mais declarada). No entanto, os dois autores diferem em relação às suas bases
para se pensar o trabalho. Durkheim, por um lado, entende o trabalho como elemento de
integração da humanidade, que apesar de ser dificultoso, nas condições “normais” traz
solidariedade para as relações interpessoais e por isso deve ser desenvolvido. Durkheim,
contudo, critica que a divisão racional do trabalho na sociedade industrial provocou
mudanças nessas relações, especialmente a partir do estabelecimento de uma integração
pelo trabalho baseada na solidariedade mecânica, que prejudicava a integridade humana.
Bauman, por outro lado, entendia o trabalho como um tipo de atividade que o ser
humano, em condições normais, não tem prazer em fazer. No entanto, disposições
normativas características da revolução industrial, promoveram uma ética do trabalho
que direcionou os indivíduos a novos significados para essas atividades. Bauman vai
além e mostra como essas noções foram sendo mudadas na sociedade dos
consumidores.
Contudo, é importante destacar a importância da leitura desses dois referenciais
essenciais para a formação do pensamento sociológico, direcionado à crítica ou à
regulação. Tanto Durkheim quanto Bauman, apesar de não terem coexistido no mesmo
período, ainda trazem contribuições atuais para esse debate.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Work, consumerism and the new poor. McGraw-Hill


Education (UK), 2004.

LUKES, Steven. Bases para a interpretação de Durkheim. COHN, G. Sociologia: para


ler os clássicos. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977.

TIRYAKAN, E. A. O Trabalho em Emile Durkheim. In: MERCURE, D.; SPURK, J.


(Orgs.) O trabalho na história do pensamento occidental. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes,
2005. Cap. 9, 215-233.

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