Você está na página 1de 151

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

ROBERT RAUTMANN

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ EM TEMPOS PÓS-MODERNOS

CURITIBA
2016
ROBERT RAUTMANN

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ EM TEMPOS PÓS-MODERNOS

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Teologia. Área de
concentração: Bíblia e Evangelização, da
Escola de Educação e Humanidades, da
Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, como requisito parcial à obtenção
do título de mestre em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Fr. Clodovis Boff

CURITIBA
2016
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central

Rautmann, Robert
R192e Espiritualidade cristã em tempos pós-modernos / Robert Rautmann ;
2016 orientador, Clodovis Boff. -- 2016
163 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,


Curitiba, 2016
Bibliografia: f. 155-163

1. Espiritualidade. 2. Vida espiritual. 3. Teologia. I. Boff, Clodovis, 1944-.


II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação
em Teologia III. Título.
CDD 20. ed. – 200
“Àquele que está sentado no trono e ao
Cordeiro pertencem o louvor, a honra, a
glória e o domínio pelos séculos dos
séculos!” (Ap 5,13b)
AGRADECIMENTOS

“Grandes e maravilhosas são as tuas obras, ó Senhor Deus, Todo-poderoso; teus


caminhos são justos e verdadeiros, ó Rei das nações” (Ap 15,3).

Sem dúvidas minha gratidão total ao Deus Uno e Trino, Àquele que é, que era e que
vem. Ouviu todas as minhas lamentações, queixas e tristezas, mas veio até mim, me
ergueu e me amparou. Serei eternamente grato a Ele!

À Virgem Maria, mãe de todas as horas, intercessora fiel e modelo de dIscípula para
mim.

Aos santos de minha devoção – irmãos de caminhada e intercessores – São Bento,


São Bernardo, São Miguel Arcanjo, São Francisco Xavier de Laval.

À minha querida e amada esposa – Helen. O Salmo 127 (128) refere-se à esposa
como uma videira bem fecunda no coração da casa daquele que é abençoado por
Deus. Sinto-me abençoado por tê-la como minha companheira e esposa. Agradeço
por todo seu esforço dispendido durante estes longos anos de estudos acadêmicos.
Cumplicidade em partilhar um sonho meu. Espero poder recompensá-la, um dia, por
TODAS as coisas.

Aos meus queridos e amados filhos – Michel, Thabita, Rebecca e Ana Clara. Que eu
possa deixar a vocês, mais do que uma herança financeira, a convicção de que a
experiência de ser amado por Deus e retribuir este amor é a realização mais plena
do ser humano. Muito obrigado por vocês fazerem de mim uma pessoa melhor e
obrigado pelo carinho, atenção, respeito, paciência que têm comigo.

A todos os meus familiares que, de alguma forma compartilharam este percurso


comigo até aqui. Lembro com gratidão meu pai – Wilfried (in memorian) – que
sempre me instigou o desejo do saber e a minha mãe – Dirce – que acumulou
durante árduos anos a incrível missão de ser pai também. Aos meus irmãos, irmã,
cunhadas – muito obrigado!
Aliados que foram de meus esforços, gostaria de mencionar aqueles que me
auxiliaram financeiramente nos estudos acadêmicos até o presente momento: D.
Celso Marchiori (quando ainda padre), pe. André Biernaski, pe. Balbino Rodriguez
Lorenzana, pe. Bruno Tonolli, Pe. Karl Peinhopf, pe. Laércio Aquino (in memorian),
pe. Régis Soczek Bandil, Lisane Cristina Conte, Luiz Fernando e Kelly Dornelles,
Mitzi Apparecida Paschoalino Thomé, Neiva Volpatto Conte, Grupo de Oração Fonte
Viva da Paróquia do Santíssimo Sacramento, Arquidiocese de Curitiba (na pessoa
do pe. Jair Fernandes Jacon).

À Fundação CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior) e à PUC pela concessão de bolsas de estudos em momentos distintos.

Gratidão aos Mestres que ultrapassaram as fronteiras da pura observância dos


deveres de docentes. Lembro aqui pe. Valdinei, Luiz Balsan, Carlos Mendoza-
Álvarez, Clélia Peretti, César Kusma entre tantos outros.

Ao meu tutor (e, mais que isto, amigo) Ângelo Cardita, que demostrou que é
possível conjugar um agudo espírito de pesquisa científica com um efetiva prática
pedagógica, mesmo no ensino superior!

Ao meu orientador frei Clodovis Boff. Este agradecimento é minúsculo diante da


grande admiração que nutro por ele. Acompanhou-me em boa parte de minha
trajetória acadêmica, mas sua influência é bem maior que isso. Frei Clodovis
demonstra com sua vida a “teologia genuflexa” que defende arduamente e que, por
isso mesmo, é muitas vezes incompreendido. Minha gratidão por ter sido seu
orientando (um dos últimos!) e me beneficiado de sua companhia.

À Pontifícia Universidade Católica pela oportunidade de ter sido seu aluno nestes
últimos quatro anos, pela oportunidade oferecida para o estágio na Université Laval
(Québec – CA). Agradeço à coordenação do curso de Bacharelado em Teologia e
do Programa de Pós-Graduação em Teologia, bem com a todos os seus
funcionários.

MUITO OBRIGADO!
Nous sommes convoqués, comme
chrétiens, à répondre théoriquement et
pratiquement à la question : comment
vivre notre foi chrétienne en situation
pluraliste ? Mieux, quel modèle de
spiritualité chrétienne doit-on favoriser en
pareille conjoncture?
(BERGERON, 2004, p. 111)
RESUMO

A presente dissertação objetiva analisar a espiritualidade cristã no contexto da


pós-modernidade, suas tendências, experiências e prospectivas. Para este
estudo se buscará, em um primeiro momento, fundamentar o conceito de
espiritualidade cristã. A verificação se dará a partir da compreensão do termo
“espiritualidade”. Será demonstrado, em seguida, qual seja o núcleo central
da espiritualidade cristã. O conceito e o conteúdo da espiritualidade cristã ao
longo da história serão também explorados com a intenção de perceber como
eles interagiram com o seu entorno. O conceito de pós-modernidade será
trabalhado a partir dos desenvolvimentos do termo. Em seguida se
evidenciará algumas das características mais importantes da época
contemporânea, principalmente aquelas que interessam ao campo da
espiritualidade. Por fim iremos investigar as manifestações de espiritualidade
que se apresentam nos tempos atuais e, a partir destas, perceber quais sejam
as tendências e oportunidade para a espiritualidade cristã contemporânea. A
hipótese que se pretende demonstrar é que através da leitura dos “sinais dos
tempos” específicos de nossa época, pode-se delinear possibilidades de
desenvolvimento da espiritualidade cristã. Com base na pesquisa qualitativa
bibliográfica do tipo exploratório descritiva, pretende-se responder a alguns
questionamentos que derivam da insatisfação generalizada com os ideais
propostos pela modernidade; da emergência em nível global de novas formas
religiosas (“uma primavera de espiritualidade”) e de um grande reavivamento
espiritual no interno das grandes religiões instituídas.

Palavras-chave: Espiritualidade cristã. Pós-modernidade. Espiritualidade


contemporânea.
ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the Christian spirituality in the context of


post-modernity, its trends, experiences and prospects. For this study are
sought, at first, substantiate the concept of Christian spirituality. Verification
will take place from the understanding of the term "spirituality". Will be shown,
then, what is the core of Christian spirituality. The concept and content of
Christian spirituality throughout history will be also explored with the intent to
realize how they interacted with their surroundings. The concept of post-
modernity will be worked from the developments of the term. Then it will
evidence some of the most important features of the present age, especially
those that interests in the field of spirituality.
Finally we will investigate the demonstrations of spirituality that are present in
recent times and, from these, understand what are the trends and opportunity
for contemporary Christian spirituality. The hypothesis intent is to demonstrate
that by reading the "signs of the times" specific of our epoch, we can outline
development possibilities of Christian spirituality. Based on qualitative
research literature descriptive exploratory, intend to answer some questions
that derive from widespread dissatisfaction with the ideals proposed by the
modernity; the emergence globally of new religious forms ("a spirituality of
spring") and a great spiritual revival in the internal of the great established
religions.

Keywords: Christian Spirituality. Postmodernity. Contemporary Spirituality.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

1 Cor Primeira Carta aos Coríntios


1 Jo Primeira Carta de João
1 Pd Primeira Carta de Pedro
1 Ts Primeira Carta aos Tessalonicenses
AA Decreto Apostolicam actuositatem
Ap Apocalipse
Arquit. Arquitetura
At Atos dos Apóstolos
Cat. Catecismo da Igreja Católica
cf. Confira
CIA Central Intelligence Agency
Cl Carta aos Colossenses
D. Dom
DV Constituição Dogmática Dei Verbum
ECC Encontro de Casais com Cristo
Ef Carta aos Efésios
Fl Carta aos Filipenses
GE Declaração Gravissimum educationis
Gl Carta aos Gálatas
GS Constituição Pastoral Gaudium et spes
Hb Carta aos Hebreus
Is Isaías
Jo Evangelho segundo João
Lc Evangelho segundo Lucas
LG Constituição Dogmática Lumen Gentium
LS Carta encíclica Laudato Si’
Mc Evangelho segundo Marcos
MC Exortação Apostólica Marialis Cultus
Mt Evangelho segundo Mateus
NA Declaração Nostra aetate
NME Novos Movimentos Eclesiais
nº Número
ONG Organização Não Governamental
Os Oseias
p. Página
PDG Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis
PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná
RCC Renovação Carismática Católica
Rm Carta aos Romanos
SC Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium
Sl Salmos
trad. Tradução
UR Decreto Unitatis redintegratio
vol. Volume
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................... 16
2 COMPREENDENDO A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ .................. 19
2.1 DEFINIÇÕES DO TERMO ESPIRITUALIDADE ............................ 19
2.2 ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ORIGINÁRIA ................................... 24
2.2.1 Espiritualidade Fundante e Espiritualidades Fundadas ........... 24
2.2.2 Automanifestação de Deus ......................................................... 25
2.2.3 A Plenitude da Revelação ........................................................... 27
2.2.4 Mística ........................................................................................... 29
2.2.5 A missão como decorrente da espiritualidade cristã ............... 33
2.3 A ESPIRITUALIDADE NA TRADIÇÃO CRISTÃ ............................ 34
2.3.1 Desenvolvimento histórico do termo “espiritualidade” no
cristianismo................................................................................................... 34
2.3.2 A vivência da espiritualidade cristã ao longo dos séculos ...... 41
3 O CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE .................................... 64
3.1 ORIGEM DO TERMO “PÓS-MODERNIDADE” ............................. 64
3.2 PÓS-MODERNIDADE E SEUS CORRELATOS............................ 71
3.2.1 Modernidade radicalizada ou reflexiva ...................................... 71
3.2.2 Projeto inacabado de modernidade: .......................................... 72
3.2.3 Hipermodernidade ....................................................................... 72
3.2.4 Modernidade líquida .................................................................... 73
3.3 CARACTERÍSTICAS DA PÓS-MODERNIDADE ........................... 74
3.3.1 Dissolução da história ................................................................. 74
3.3.2 Da ética à estética ........................................................................ 75
3.3.2.1 Carpe diem ............................................................................................ 75
3.3.2.2 Evasão para o privado ........................................................................... 76
3.3.3 Crepúsculo da razão e explosão do sentimento ....................... 78
3.3.4 O indivíduo fragmentado ............................................................ 79
3.3.5 O boom do sagrado e o “retorno” de Deus ............................... 80
4 A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE
....................................................................................................... 83
4.1 A BUSCA DO SAGRADO .............................................................. 83
4.2 DO CONCÍLIO VATICANO II ATÉ NOSSOS DIAS ....................... 94
4.2.1 A década de Sessenta ................................................................. 97
4.2.2 A década de Setenta .................................................................... 99
4.2.2.1 A espiritualidade da Teologia da Libertação ......................................... 100
4.2.2.2 A espiritualidade popular ...................................................................... 101
4.2.2.3 Novos Movimentos Eclesiais ................................................................ 102
4.2.2.4 Revisões literárias sobre a espiritualidade ........................................... 104
4.2.3 A década de Oitenta .................................................................. 106
4.2.3.1 Tentativas de unificação ....................................................................... 106
4.2.3.2 Movimentos de New Age...................................................................... 107
4.2.3.3 Catecismo da Igreja Católica ................................................................ 108
4.2.4 A virada do Milênio .................................................................... 108
4.2.4.1 Retomada da vida consagrada e sacerdotal......................................... 108
4.2.4.2 O restauracionismo .............................................................................. 109
4.2.4.3 O interesse crescente pela vida espiritual ............................................ 110
4.2.4.4 Espiritualidade cristã através da Internet .............................................. 110
4.2.5 Algumas temáticas recorrentes na contemporaneidade ....... 111
4.2.5.1 Espiritualidade leiga (ou laical) ............................................................. 111
4.2.5.2 Justiça e solidariedade com os pobres ................................................. 113
4.2.5.3 Espiritualidade Feminista ..................................................................... 116
4.2.5.4 Redescoberta da espiritualidade Mariana ............................................ 118
4.2.5.4.1 EVOLUÇÃO................................................................................. 118
4.2.5.4.2 PROBLEMA ................................................................................ 118
4.2.5.4.3 CRISE .......................................................................................... 119
4.2.5.4.4 REDESCOBERTA ....................................................................... 119
4.2.5.5 Espiritualidade Ecológica ..................................................................... 120
4.3 CRISES E OPORTUNIDADES .................................................... 122
4.3.1 Situações de crise ..................................................................... 123
4.3.1.1 Crise da instituição ............................................................................... 123
4.3.1.2 Crise da pastoral .................................................................................. 125
4.3.1.2.1 MOVIMENTOS RELIGIOSOS DE CUNHO CARISMÁTICO ....... 125
4.3.1.2.2 PASTORAL PROPOSTAS PELAS PARÓQUIAS ...................... 126
4.3.2. Pontos polêmicos ...................................................................... 127
4.3.2.1 Fuga no espiritualismo ......................................................................... 127
4.3.2.2 A demonização do novo ....................................................................... 128
4.3.3. Oportunidades ........................................................................... 130
4.3.3.1 Um relacionamento pessoal e direto com o texto bíblico ...................... 130
4.3.3.2 Descentralização progressiva .............................................................. 131
4.3.3.3 O incremento do diálogo com outras Igrejas, outras religiões bem como a
sociedade em geral ................................................................................................ 132
4.3.3.4 O impacto das novas tecnologias ......................................................... 133
4.3.3.5 Redescoberta de formas contemplativas.............................................. 135
4.3.3.6 Bricolagem ........................................................................................... 136
4.3.3.7 A instituição que se bricola ................................................................... 137
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................... 139
5.1 INCENTIVO À PRÁTICA DA ORAÇÃO E DA MEDITAÇÃO........ 139
5.2 ESPIRITUALIDADE EM REDE .................................................... 140
5.3 COMUNIDADES AFETIVAS ........................................................ 140
5.4 ESPIRITUALIDADE DE INTEGRAÇÃO ...................................... 141
5.5 PROTAGONISMO ESPIRITUAL DE GRUPOS MINORITÁRIOS 141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 143
16

1 INTRODUÇÃO

Senso ético, responsabilidade social, busca de harmonia, rituais de


congraçamento, confiança inabalável. Talvez nenhuma dessas
características esteja necessariamente ligada à espiritualidade. Talvez as
vantagens competitivas de empresas espiritualizadas não possam nunca
ser medidas. É da própria natureza do mundo espiritual não se adequar a
medições. No fim das contas, talvez os bons resultados de levar Deus e a
espiritualidade ao mundo do trabalho sejam, bem, uma questão de fé. Mas,
como diz o rabino Bonder, "a fé e a espiritualidade lidam com estruturas não
comprováveis, não científicas, de obscuridade -- mas que são o mundo real.
O que eu digo às pessoas é para não descartar o lado da penumbra. A
maior contribuição do mundo espiritual é ensinar as pessoas a viver num
mundo sem respostas". Nessa era cheia de incertezas, não é pouca coisa
(COHEN, 2002).

Não precisaríamos realizar uma busca exaustiva na rede mundial de


computadores para encontrarmos depoimentos assemelhados a este acima. O
mundo do trabalho é “invadido” pela espiritualidade. E não somente o mundo
profissional como todas as áreas do conhecimento humano. Certamente iremos
esbarrar em termos como “espiritualidade e qualidade de vida”, “espiritualidade e
vidas passadas”, “caminho espiritual”, “jornada espiritual”, “vibrações espirituais”,
“espiritualidade e autoajuda”, “espiritualidade e ciência”, “psicoterapia e
espiritualidade” e uma infinidade de expressões similares. A espiritualidade está “na
moda” e veio para ficar. Mas não foi sempre assim.
Se hoje vivemos uma “era do espírito”, devemos recordar que há alguns anos
a concepção de transcendente, de imaterial, de espírito, de absoluto estava
praticamente extirpada de nossas sociedades (pensamos aqui no mundo ocidental).
Efetivamente passamos por uma “revolução”, uma “mudança epocal” que, se não se
deu de forma estrondosa e ostensiva, tem se mostrado intensa, contínua e profunda.
Termos como “revolução espiritual”, “revanche do sagrado”, “retorno do
religioso”, “retorno de Deus” são recorrentes nos diversos ramos da literatura.
Estas mudanças aconteceram fora dos muros da Igreja, mas também em seu
interior. E é aí que reside o assunto que nos instiga. Como reage o cristianismo
diante de um mundo que anseia por espiritualidade, ainda que esta não coincida em
seu conteúdo com a espiritualidade cristã? Quais são as bases comuns de diálogo
entre a compreensão e a vivência da espiritualidade que grassa por todos os lados e
aquela própria da tradição cristã? Existe conciliação e diálogo ou reservas e
condenações? Apenas uma resposta é válida ou são múltiplas as soluções?
17

Desta forma estamos diante de um assunto que é relevante e atual para o


mundo e o cristianismo contemporâneos. Certamente relevante igualmente para a
Teologia.
O trabalho será, então, apresentado em três capítulos que, de alguma forma,
se intercomunicam. A partir do título escolhido – “A Espiritualidade Cristã em
Tempos Pós-Modernos” – elaboramos a estrutura.
No primeiro capítulo interessa-nos compreender o termo “Espiritualidade”.
Ainda que o leitor já possua em mente um determinado conceito para este
substantivo, quisemos oferecer alguns apontamentos sobre o mesmo.
Multiplicam-se as áreas do conhecimento, as obras, as iniciativas que têm se
interessado por este termo. Justamente por isso os conceitos (ou o senso comum)
sobre o tema superabundam. Quisemos trazer à nossa pesquisa alguns textos que
exemplificam esta profusão de usos dados à palavra “Espiritualidade”.
Não nos detivemos aqui. Evidenciamos, ao contrário, o significado que a
tradição cristã confere ao termo. Para isso dissertamos, ainda no primeiro capítulo,
sobre o que se denomina “Espiritualidade Fontal” ou “Espiritualidade Originária”.
Brevemente, qual é o “núcleo duro”, determinante, para a espiritualidade
genuinamente cristã.
Folheamos, em seguida, as páginas da história da espiritualidade para dali
recolher os testemunhos do uso do termo “Espiritualidade”. Da mesma forma em
relação à sua vivência nos vários contextos e períodos. Prevenimos o leitor, neste
momento, de que a nossa pesquisa não trata de uma história da espiritualidade, mas
necessitamos, porém, desta como provocação para o cristão contemporâneo que
defronta sua fé e sua espiritualidade com o contexto e eventos hodiernos.
O segundo capítulo de nossa dissertação tem como enfoque justamente este
ambiente no qual o cristão de hoje está inserido. O termo que utilizamos é “Pós-
Modernidade”.
Aqui fizemos uma opção na utilização deste termo para designar nossa
época. Outras designações possíveis (hipermodernidade, modernidade tardia,
modernidade radicalizada etc.) são apontadas em subseção própria do capítulo. Não
nos detivemos nas discussões filosóficas e sociológicas da utilização deste ou
daquele termo, pois fugiria ao propósito de nossa pesquisa. Quisemos evidenciar,
porém, aquelas características que, segundo os vários autores, podem (e de fato o
fazem!) influenciar a vivência e a concepção da espiritualidade cristã atual.
18

Last but not least, elaboramos o terceiro e último capítulo. Examinamos a


faceta (ou melhor, as facetas) que se apresenta a espiritualidade cristã,
especialmente na Igreja Católica em nossos tempos. Repassamos, então, as últimas
décadas da história da espiritualidade (a partir do Concílio Vaticano II),
apresentando os eventos que os especialistas na área julgam importantes para a
nossa situação atual.
Sem ignorar as dificuldade e crises que nos acometem como Povo de Deus
(situações que são exploradas em subseção própria) valorizamos em nossa
pesquisa aquilo que chamamos de “oportunidades”. Poderíamos dizer que são
alguns acontecimentos, eventos, tendências que poderão ser frases-respostas do
diálogo que o cristianismo tem realizado com a sociedade e a cultura em geral. Uma
vez que chamamos também de tendências, temos a convicção de que não são
respostas prontas, acabadas, definitivas, mas expressões através das quais a
“Espiritualidade Originária” se reveste, se apresenta em nossos dias.
Karl Rahner, que foi uma de nossas inspirações na escolha do tema, através
do seu texto “Elementos de Espiritualidade na Igreja do Futuro” (RAHNER, 1992)
fala de uma “coragem aventureira” (RAHNER, 1992, p. 362) para discorrer sobre o
tema. Neste ponto queremos nos igualar a este elevado mestre. Se a sua ciência é
por demais elevada e seu conhecimento é impossível de ser alcançado por nós,
cremos de que estamos unidos nesta “coragem” de um aventureiro. Temos esta
disposição de desbravar caminhos não trilhados, cientes de que não nos compete a
definição do trajeto, mas o convite para que muitos outros possam caminhar aí e,
assim, o terreno não se torne tão hostil.
19

2 COMPREENDENDO A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

Ao iniciarmos este percurso para a compreensão das expressões da


espiritualidade cristã em nossa época, decidimos explorar o que caracteriza esta
terminologia. Inicialmente nos dedicaremos ao substantivo “espiritualidade”, sem o
caracterizá-lo imediatamente com o adjetivo “cristã”. Em seguida apresentaremos o
que se conhece como “espiritualidade fontal” ou “originária”, a fim de esclarecer o
que pertence inequivocamente ao núcleo desta espiritualidade. Só então é que
iremos percorrer as páginas da história do cristianismo para dali perceber a evolução
que o termo e o conteúdo experimentaram.

2.1 DEFINIÇÕES DO TERMO ESPIRITUALIDADE

Qual é a compreensão geral ou “popular” ao falarmos em espiritualidade?


Como se caracteriza geralmente este termo? Para nós, falantes da língua
portuguesa, nos auxiliará neste momento a definição dicionarizada.
No Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (WEISZFLOG, 1998, p. 876) o
verbete “espiritualidade” traz a definição: “qualidade do que é espiritual”. Ora,
vejamos o que temos, então, para o termo “espiritual”:

1 Relativo ao espírito. 2 Incorpóreo. 3 Alegórico. 4 Místico. 5 Devoto: Vida


espiritual. 6 Teol Do foro eclesiástico (opõe-se a temporal). Antôn (acepções
1 e 2): material.

De certa forma todas estas definições aparecerão ao longo da história da


espiritualidade – com acentos aqui ou acolá – como um sinônimo para a vivência da
espiritualidade. Não tomemos ainda, apressadamente, quaisquer conclusões. Ainda
estamos no campo daquilo que comumente é compreendido como “espiritualidade”.
É acertada a assertativa de Bradley (HOLT, 2001, p. 308)1 ao destacar o uso
do termo espiritualidade como um dos maiores desenvolvimentos do século XX

_______________
1
"One of the major developments in the century was the use of the term 'spirituality', first by Roman
Catholics and later by Protestants in its current usage. At the end of the century it was possible to
have an interdenominational, even an inter-religious conversation about spirituality and to have
common understandings of its meaning. Earlier the concept was only partially available, in such
terms as asceticism, mysticism, devotion or piety".
20

(diríamos do século XXI inclusive). A utilização do termo “transbordou” as fronteiras


das Igrejas e se tornou de uso das mais diversas áreas do conhecimento, inclusive
na vida ordinária. Pode-se adjetivar este termo (espiritualidade) com um sem-
número de outros vocábulos: cristã, ecumênica, libertadora, pentecostal, familiar,
holística, laica, oriental, curativa, dos negócios, ...
Francisco Catão (2009, p. 15), ao introduzir o capítulo primeiro de sua obra,
oferece este conceito para espiritualidade:

Conjunto das perspectivas e das atividades humanas voltadas para tudo o


que o ser humano busca como verdade, bem, beleza, justiça: realidades ou
valores que estão no horizonte da vida humana, sustentam-na e se
manifestam no dia a dia (sic).

No passado o termo era associado à vida espiritual dos monges ou monjas,


muitas vezes compreendido como vida interior. Atualmente existe uma amplitude e
compreensão maiores. Ele é utilizado, por exemplo, para descrever as diferentes
maneiras que as pessoas experimentam o transcendente, inclusive para designar
popularmente caminhos programáticos de autodesenvolvimento de capacidades
interiores (RAUSCH, 2003, p. 176).
Esta ampliação conceitual do termo “espiritualidade” é um fenômeno bastante
recente, acentuadamente a partir da segunda metade do século XX. É possível
encontrarmos reflexões sobre o tema da espiritualidade nas mais variadas areas do
conhecimento ou setores da sociedade. E, de fato, alguns nos intrigam
especialmente. Citamos as possibilidades trazidas por alguns autores como é o caso
de uma “espiritualidade ateia”. O filósofo André-Comte Sponville escreve em sua
obra “Espírito do Ateísmo”:

Os ateus não tem menos espírito que os outros. Por que teriam menos
espiritualidade? A vida espiritual não é sempre religiosa. O infinito, a
eternidade e o absoluto não são transcendentes e sobrenaturais. Como
para Epicuro ou Espinosa, o infinito, a eternidade e o absoluto não são nada
transcendentes ou sobrenaturais; eles são imanentes e naturais, são a
própria natureza. Estamos dentro do infinito (o espaço), dentro da
eternidade (o tempo), dentro do absoluto (o todo, ou seja, o conjunto de
todas as relações o qual não poderia por definição ser relativo a qualquer
2
outra coisa) .

_______________
2
Trechos de uma entrevista concedida por André-Comte Sponville e reproduzida no blog: “Filosofia
ateísta”. Disponível em http://adrianoped.blogspot.com.br/2010/06/ateismo-espiritual.html.
21

Semelhante é a visão do filósofo americano Sam Harris. Segundo ele, seria


acessível a qualquer pessoa ter experiências espirituais sem estar vinculado a uma
religião e mesmo sem crer em uma divindade. Sam Harris pertence a uma categoria
chamada de “Novo Ateísmo”3. É de sua autoria o livro “A Morte da Fé” e, ao ser
questionado sobre o motivo de um ateu escrever sobre espiritualidade assim
respondeu:

Porque transcendência e amor incondicional são algumas das experiências


mais importantes que as pessoas têm em suas vidas. Mas a maioria delas
interpreta esses episódios pela lente da religião. Isso não faz sentido,
porque cristãos, muçulmanos, judeus, budistas e ateus têm o mesmo tipo
de experiências. Então sabemos que nenhuma dessas doutrinas religiosas
4
incompatíveis pode ser a melhor explicação para seu significado .

Robert Solomon (2003, p. 33), logo no início de sua obra “Espiritualidade para
céticos” tenta oferecer uma conceituação/delimitação para o tema da espiritualidade:

Para mim espiritualidade significa as paixões nobres e reflexivas da vida e


uma viva vivida em conformidade com essas paixões e reflexões nobres. A
espiritualidade abarca o amar, a confiança, a reverência e a sabedoria, bem
como os aspectos mais terríveis da vida, a tragédia e a morte. [...] Assim,
quando tenho de resumir espiritualidade naturalizada numa única
expressão, ela é: o amor reflexivo à vida.

Três dimensões da pessoa estão envolvidas no termo “espiritualidade”


segundo Claude Flipo (2003, p. 399-400):
a) a abertura da pessoa: comumente chamada de “alma”, toda pessoa
possui uma dimensão que ultrapassa o corpo e o psiquismo. É a
alma que abre a pessoa ao transcendente, que pode se expressar
por um desejo, uma insatisfação. Entre estes, o autor cita a busca
pela inteligência, pela verdade e pelo sentido; a busca do bem
moral e a busca pela felicidade. “Esta abertura, este élan se
_______________
3
Tendo como personalidade mais proeminente o biólogo Richard Dawkinson (autor de, entre outras
obras, “Deus, um delírio”) o dito movimento nasce como uma defesa da ciência e da razão em
oposição à qualquer religião ou divindade. Evolucionistas, aqueles que se identificam com este
movimento, mostram-se radicais na defesa do ateísmo crendo de que as religiões foram
promotoras, ao longo da história, da maioria do mal na humanidade.
4
Matéria publicada pela revista Veja em 14.12.2014 e disponilizada digitalmente através do endereço
eletrônico a seguir: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/a-espiritualidade-sem-deus/.
22

manifesta em todas as religiões como nas espiritualidades


humanistas”5 (FLIPO, 2003, p. 400);
b) desenvolvimento da pessoa: estes anseios buscam se realizar
através de um crescimento interior em torno do bem, da verdade e
da felicidade. E é desta forma que se fala de via espiritual, de
tradições, de iniciações;
c) consentimento da pessoa: este desenvolvimento se realiza por meio
de uma disponibilidade e uma acolhida de uma força interior, de
uma energia que ultrapassa todas as possibilidades da pessoa.
Pode-se denominar como abandono, docilidade, entrega.
Um conceito bastante abrangente do termo nos é proporcionado pelo teólogo
Hans Urs von Balthasar e recolhido por D. Justino de Almeida Bueno em seu artigo
(1999, p. 32-33):

É a atitude fundamental, prática ou existencial, que é a consequência e a


expressão da concepção que um homem faz de sua existência religiosa –
ou mais, geralmente, de seu engajamento ético – uma determinação ativa e
habitual de sua vida a partir de suas intuições objetivas de suas decisões
últimas.

Seguindo o mesmo texto acima indicado, temos ainda que von Balthasar
distingue três componentes para a espiritualidade humana, seja ela cristã, de outras
religiões ou até mesmo de correntes de pensamentos:
a) o espírito é movimento para o Absoluto: o ser humano se define
pelo espírito, em oposição ao mundo material e animal. Para von
Balthasar o espírito é o princípio unificador e dominante. O espírito
torna-se dinamismo que busca a unidade, a elevação, a verdade da
existência, a relação com o Absoluto;
b) o espírito visa um serviço desinteressado: em segundo lugar o
espírito deseja se realizar e transformar o mundo;
c) o espírito é passividade: ou em outras palavras, se deixa mover
pelo Espírito. Como o ser humano não pode tomar-se a si mesmo

_______________
5
“Cette ouverture, cet élan se manifeste dans toutes les religions comme dans les spiritualités
humanistes”.
23

como norma absoluta, é necessário que o espírito humano se deixe


conduzir pelo Espírito Absoluto.
Parece-nos correto afirmar neste momento inicial que, obviamente, ao se falar
de espiritualidade de forma abrangente não se faz, necessariamente, a ligação a
uma tradição religiosa ou mesmo a um conjunto de crenças. Poderemos ver em
subseção posterior a evolução histórica do termo para compreender como se tornou
possível hoje falarmos em espiritualidade desvinculada de uma religião ou até
mesmo ateia. A espiritualidade além das instituições religiosas, como vimos
precedentemente, compreende algum tipo de desenvolvimento da pessoa em
termos não materiais. Poderíamos quase dizer um autodesenvolvimento. Para
muitos, um crescimento interior na identificação com um ser ou uma dimensão
superior, para outros (como na espiritualidade ateia ou cética) uma expansão do
próprio ser, uma evolução das capacidades intelectuais, afetivas ou relacionais.
Não é objetivo desta dissertação a elaboração de um quadro teórico geral a
respeito da função da espiritualidade ou mesmo da religião dentro da sociedade,
mas o que importa é saber como a espiritualidade cristã é vivenciada neste
ambiente no qual a espiritualidade em si não é rejeitada, ao contrário, é buscada.
“Somos convocados, como cristãos, a responder teórica e praticamente à questão:
como viver nossa fé cristão em situação pluralista? Melhor, qual modelo de
espiritualidade cristã devemos favorecer nesta conjuntura?”6 (BERGERON, 2004, p.
111). Se o entorno é propício para a vivência de uma relação com o transcendente
como temos visto, se há uma “explosão” de espiritualidade, terá a espiritualidade
especificamente cristã também um espaço e como deverá ela ser vivenciada?
Ao final desta subseção podemos afirmar que o termo “espiritualidade”
tornou-se de amplo domínio. Não está mais restrito a uma ou outra tradição
religiosa. Ainda assim alguns elementos são comuns ao se falar de espiritualidade,
em qualquer âmbito:
a) todo ser humano possui um centro em si que faz dele um ser aberto
ao transcendente;

_______________
6
“Nous sommes convoqués, comme chrétiens, à répondre théoriquement et pratiquement à la
question : comment vivre notre foi chrétienne en situation pluraliste ? Mieux, quel modèle de
spiritualité chrétienne doit-on favoriser en pareille conjoncture?”
24

b) este centro (nominado como alma, espírito, mente, interioridade


etc.) tende a desenvolver-se segundo critérios de crescimento;
c) aliado a esforços pessoais, o ser humano desenvolve-se
espiritualmente através de uma atitude de abandono e docilidade
àquilo que ele compreende como o Absoluto.

2.2 ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ORIGINÁRIA

Clodovis Boff (2015b, p. 374) em seu artigo “Espiritualidade e Pastoral”, no


qual procura desvendar as aproximações entre a espiritualidade e a pastoral,
evidencia uma distinção importante no âmbito da espiritualidade cristã e que
retomamos aqui.

2.2.1 Espiritualidade Fundante e Espiritualidades Fundadas

A espiritualidade cristã pode ser percebida de duas formas possíveis –


espiritualidade cristã fundante e espiritualidades cristãs fundadas. Chamamos de
espiritualidades cristãs fundadas (no plural) àquelas que derivam da primeira
(fundante). Nela encontram seu apoio. E assim, temos as várias espiritualidades “do
genitivo”. Elas privilegiam determinados aspectos, que podem ser: algum aspecto da
fé (mariana, trinitária, missionária,...), um desafio em específico (da libertação,
ecológica, de resistência,...), destinatários precisos (conjugal, da vida consagrada,
presbiteral, do operariado,...) ou mesmo uma família espiritual (jesuíta, dehoniana,
franciscana,...). Estas espiritualidades, portanto, estão direcionadas de acordo com
alguns elementos particulares. Podemos dizer que são as reverberações do som
original, primordial. E este som primeiro dizemos que é a espiritualidade fundante ou
originária. É dela que todas as outras dependem. Afirmamos isto em relação à
espiritualidade cristã. É esta afirmação que temos consignada no Catecismo da
Igreja Católica (nº 2684):

Na comunhão dos santos desenvolveram-se, ao longo da história das


Igrejas diversas espiritualidades. O carisma pessoal duma testemunha do
amor de Deus pelos homens pode ter sido transmitido, como o espírito de
Elias o foi a Eliseu e a João Batista, para que haja discípulos que partilhem
desse espírito. Uma espiritualidade está também na confluência doutras
correntes, litúrgicas e teológicas, e testemunha a inculturação da fé num
25

determinado meio humano e na respectiva história. As espiritualidades


cristãs participam na tradição viva da oração e são guias indispensáveis
para os fiéis. Refletem, na sua rica diversidade, a pura e única luz do
Espírito Santo.

Existe, portanto, uma espiritualidade cristã fontal ou originária sobre a qual se


apoiam as várias espiritualidades cristãs adjetivadas. É o que ocorre, exatamente,
ao falarmos de “espiritualidade cristã em ambiente pós-moderno” ou “espiritualidade
pós-moderna” ou ainda “espiritualidade contemporânea”.

2.2.2 Automanifestação de Deus

Passemos, a seguir, a esclarecer qual seja a Espiritualidade Cristã Fundante.


Esta tem a sua forma exemplar nos escritos neotestamentários. E
sinteticamente podemos afirmar com o Catecismo da Igreja Católica (nº 2558) que
ela é “uma relação viva e pessoal com o Deus Vivo e Verdadeiro” (cf. 1 Ts 1,9)..
Deus não permanece em silêncio aboluto e eterno. Esta manifestação de
Deus já se evidencia no Primeiro Testamento em relação ao Povo de Israel. Os
povos que circundavam os israelitas possuiam a concepção de deus ou deuses,
inclusive como criador (ou criadores). É a percepção bíblica, porém, que traz a
imagem de um Deus que, além de ser o criador, mantém sua criação e com ela
deseja interagir (cf. CATECISMO nº 285-287)7. É Deus quem deseja o ser humano e
o cria a partir de sua imagem e semelhança. Esta criação do ser humano se dá,
segundo os relatos bíblicos, a partir do amor8 (cf. Gn 1,26-27; 2,7.21-23). E é este
mesmo amor que faz com que Deus estabeleça uma relação com a humanidade,
através da eleição de Israel entre todos os povos 9: “Se Iahweh se afeiçoou a vós e
vos escolheu não é por serdes o mais numeroso de todos os povos...” (Dt 7,7). Esta
eleição não é excludente, mas exemplar (cf. Rm 9–11). São provas deste amor as
_______________
7
A compreensão bíblica refuta outras tantas possíveis explicações em relação à questão das origens,
como o panteísmo, o dualismo ou maniqueísmo, a gnose, o deísmo ou mesmo o materialismo.
8
“Deus, infinitamente Perfeito e Bem-aventurado em si mesmo, em um desígnio de pura bondade,
criou livremente o homem para fazê-lo participar de sua vida bem-aventurada” (CATECISMO, nº 1).
Ver também CATECISMO nº 27.28.29.31 etc.
9
“Aprouve a Deus, na sua sabedoria e bondade, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério
da sua vontade, segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao
Pai no Espírito Santo e se tomam participantes da natureza divina” (CATECISMO nº 51; DV nº 2).
26

promessas feitas por Deus a Abraão e sua descendência (cf. Gn 12,2-3;15,1-12.17-


20;22,15-19; Gl 3,26-29 etc.) e a Aliança realizada a partir do Sinai com Moisés e o
seu povo10. Ao dar ao Povo de Israel a Sua Lei (Ex 19–21), como forma de que O
reconhecesse como o único Deus Vivo e Verdadeiro e pudessem, através dela,
esperar o Salvador (cf. CATECISMO nº 62). Esta Aliança foi continuamente
recordada através das palavras dos profetas:

A história de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no


fato de que Ele dá a Torá, isto é, abre os olhos a Israel sobre a verdadeira
natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por
seu lado, o homem, vivendo na fidelidade ao único Deus, sente-se a si
próprio como aquele que é amado por Deus e descobre a alegria na
verdade, na justiça — a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade
essencial: “Quem terei eu nos céus? Além de Vós, nada mais anseio sobre
a terra (...). O meu bem é estar perto de Deus” (Sl 73/72,25.28) (BENTO
XVI, 2005, nº 9).

Este amor é gratuitamente oferecido por Deus ao ser humano. É um amor


eterno, sem fronteiras11. É de Sua inteira iniciativa a demonstração deste amor que
se revela ao longo da história. Ainda no Primeiro Testamento, porém, Israel, povo da
predileção de Deus, volta-se contra Aquele que o ama. Desobedece os termos da
Aliança. Em termos bíblicos dizemos que o Povo de Israel “adulterou” (cf.
CATECISMO nº 709-710).
Diante desta atitude de não aceitação por parte da humanidade poderia haver
por parte de Deus o julgamento e o repúdio:

“Como te abandonarei, ó Efraim? Entregar-te-ei, ó Israel? O meu coração


dá voltas dentro de mim, comove-se a minha compaixão. Não desafogarei o
furor da minha cólera, não destruirei Efraim; porque sou Deus e não um
homem, sou Santo no meio de ti” (Os 11, 8-9). Deus revela a outra face de
Seu amor que é o perdão (BENTO XVI, 2005, nº 10).

Entrelaçado a esta dinâmica divina do Primeiro Testamento ressoa a


manifestação bondosa de Deus na Plenitude dos Tempos (cf. Gl 4,4; Ef 1,10).

_______________
10
“Deus escolheu Abraão e fez uma aliança com ele e sua descendência. Daí formou Seu povo, ao
qual revelou Sua lei por intermédio de Moisés. Pelos profetas preparou este povo a acolher a
salvação destinada à humanidade inteira” (CATECISMO nº 72).
11
“Ao longo de sua história, Israel pôde descobrir que Deus tinha uma única razão para revelar-se a
ele e para tê-lo escolhido dentre todos os povos para ser dele: seu amor gratuito” (CATECISMO
nº 218).
27

2.2.3 A Plenitude da Revelação

“Pois Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho único, para que todo que
Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). É esta a grande novidade
contida no Segundo Testamento (cf. Ef 1,3-14; Rm 16,25-26). Ainda que tivéssemos
já no Primeiro Testamento a revelação da ação inaudita e imprevisível de Deus, esta
ação se concretiza, diríamos melhor, se encarna em Jesus Cristo. É Ele quem,
através das Suas ações, realiza em primeira pessoa tudo aquilo que ensina pelas
pregações e parábolas. Mais ainda, é pela entrega e morte na cruz que o próprio
Deus revela a Sua face amoroso de forma mais radical e dramática. A morte de
Jesus coincide com aquilo que foi Sua vida – a obediência incondicional ao Pai e o
abandono em Suas mãos. Assim como a solidariedade com todos os pecadores de
todos os tempos. “Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra
Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo — o amor
na sua forma mais radical” (BENTO XVI, 2005, nº 12). O desígnio salvífico divino (cf.
At 20,27) remete todas as coisas para “o louvor da glória” (Ef 1,6), tendo Cristo como
Centro e o amor de Deus como fundamento. Podemos afirmar que a cruz de Cristo,
enquanto sinal extremo de uma vida de doação e entrega, se torna, portanto,
alicerce da espiritualidade cristã:

a cruz se converte na revelação suprema da originalidade de Jesus (e da


face do Pai, que ele justamente procura revelar) e, por isso mesmo, na
revelação da estrutura básica de toda espiritualidade cristã: a abertura ao
Pai (obediência e transparência) e a abertura aos irmãos (dom e
solidariedade) (MAGGIONI, 1989, p. 414).

O cristianismo é religião sui generis. Ele está fundamentado definitivamente


no fato histórico da Palavra de Deus que se faz carne (cf. Jo 1,14 e DV 4). Palavra
que se entrega totalmente no amor e por amor. Ao contrário das diversas religiões,
em que o ser humano se coloca em busca de Deus através de asceses, obras,
meditações, esforços, no cristianismo é o ser humano que é buscado por Deus.

A espiritualidade cristã está toda centrada na graça de Deus, na iniciativa de


Deus, na primazia de Deus. É Deus que vem a você. Não é você que vai a
Ele. As religiões, como diz Paulo VI, são os braços do homem levantados
para o eterno, pedindo que Ele se manifeste, pedindo que Ele nos salve. O
cristianismo é o braço de Deus para nos aconchegar, para nos acolher, para
nos salvar (BOFF apud FONTOURA, 2015, p. 24).
28

Deus é quem realiza o percurso infinito entre Sua grandeza e onipotência e a


fraqueza absoluta do ser humano. Deus é quem Se revela (não apenas “dita” Suas
palavras, mas Se dá a Si mesmo12), é Deus quem salva, é Deus quem entra em
nossa história e faz Sua morada (cf. Jo 1,4). A pedra fundamental sobre a qual todo
o cristianismo está alicerçado é Jesus Cristo (cf. Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17),
autodoação de Deus (cf. DV 2.3.6).
Na encarnação realiza-se o mistério da união entre a natureza divina e a
natureza humana na Pessoa do Verbo. Neste acontecimento singular o Filho de
Deus se faz verdadeiramente homem, porém permanece verdadeiramente Deus (cf.
CATECISMO nº 464; 483)
“Mas quando veio a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, que nasceu
de uma mulher” (Gl 4,4). À missão do Filho, une-se a missão do Espírito Santo.
Como “Senhor que dá a vida”, santifica e fecunda o ventre de Maria a fim de que a
humanidade do Filho seja dela originada (cf. CATECISMO nº 485). Com a
Anunciação desta obra salvífica através do anjo inaugura-se a plenitude dos tempos.

O que a fé católica crê a respeito de Maria, funda-se no que crê a respeito


de Cristo. Mas o que a mesma fé ensina sobre Maria esclarece, por sua
vez, a sua fé em Cristo (CATECISMO nº 487).

Maria não entra como intrusa no Plano Salvífico, mas está inserida de modo
singular nesta História. Ela é, por assim dizer, a “parceira” humana da Trindade em
sua manifestação de Salvação. É ela mãe do Filho de Deus, filha predileta do Pai e
templo do Espírito Santo (cf. LG 53). Desde os primeiros momentos de sua
existência, a partir de sua concepção, Maria é enriquecida de todos os esplendores
de uma santidade toda especial (cf. LG 56). Os Evangelhos são testemunhos da
vida de Maria e de sua união singular à Trindade – através da sua eleição, da sua
resposta afirmativa à missão elevada a ela confiada, da encarnação do Filho, da
adesão à vontade do Pai mantida até ao pé da cruz – e seu vínculo a toda
humanidade – unida ao Povo eleito, aos pobres, aos discípulos. Devido a esta íntima
participação de Maria no mistério de Jesus Cristo pode-se afirmar que a Virgem
exerce uma influência muito particular na vida espiritual dos seres humanos a partir
_______________
12
“Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar-se a Si mesmo e os decretos eternos da
Sua vontade a respeito da salvação dos homens” (DV 6). Ver ainda DV 2–4.
29

de sua maternidade de graça. É a partir deste vínculo com Cristo que ela se vincula
igualmente a todos os que se tornariam membros do Corpo místico do Senhor.
Na encarnação de Jesus Cristo, na sua vida de amor, de doação, de serviço,
na sua morte e na sua ressurreição é que Ele assume, purifica, eleva e aperfeiçoa a
natureza humana (cf. Hb 10,5-7; Fl 2,6-11). Sua ressurreição é o cumprimento das
promessas contidas no Primeiro Testamento, bem como daquelas que Ele mesmo
fez em Sua vida terrestre (CATECISMO nº 652). Sua entrega completa é reveladora
do Amor gratuito, irrestrito, pessoal, incondicional e eterno de Deus pelo ser humano
- criatura de sua especial predileção. É este amor de Deus por nós que chamamos
de Mistério por excelência:

Jesus Cristo é a salvação, o ato escatológico (o ato que implica a


transformação do mundo e da humanidade no último dia), que Deus realiza
e com o qual a humanidade é libertada das potências do pecado a ele
hostis, do diabo e da morte. O centro deste acontecimento da salvação em
Cristo é constituído pela sua morte e pela sua ressurreição (ANCILLI;
CHIOCCHETTA, 2012, p. 2253).

A esta proposta oferecida gratuitamente por Deus deve corresponder uma


resposta igualmente livre do ser humano, que é a acolhida deste amor13. A salvação
é dom totalmente gratuito e é justamente o centro da experiência cristã a clareza de
que a obra salvifica de Deus é “graça”. É o abandono do cristão de forma confiante e
familiar à ação do Espírito que revela o amor do Pai e do Filho (cf. 1 Ts 4,8). O
encontro entre a proposta divina e o acolhimento feito pelo ser humano corresponde
o início do ser cristão, onde “não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo” (BENTO XVI, 2005, nº 1).

2.2.4 Mística

É justamente aqui que podemos designar o termo “espiritualidade”. O termo


tradicional é “mística”. “Mística é, portanto, imergir-se no mistério do amor de Deus
Pai, manifestado no Cristo, graças ao Espírito” (BOFF, 2015b, p. 377). A expressão

_______________
13
“A iniciativa divina na obra da graça precede, prepara e suscita a livre resposta do homem. A graça
responde às aspirações profundas da liberdade humana; chama-a a cooperar consigo e a
aperfeiçoa” (CATECISMO nº 2022).
30

utilizada pelo Catecismo da Igreja Católica em seu número 2014 é “mística” como
sinônimo de “espiritualidade”:

O progresso espiritual tende à união sempre mais íntima com Cristo. Esta
união recebe o nome de “mística”, pois ela participa no mistério de Cristo
pelos sacramentos “os santos mistérios” e, nele, no mistério da Santíssima
Trindade, Deus nos chama a todos a esta íntima união como Ele [...].
(Catecismo nº 2014).

Originalmente mística tem o significado de ocultamento ou fechamento de um


segredo que deveria ser revelado somente aos iniciados14. No cristianismo o
“segredo” é Jesus Cristo e a sua ação salvífica, que se plenifica em sua morte e
ressurreição. E este “segredo” ou mistério nos é revelado pela ação do Espírito
Santo. É Jesus quem inaugura seu Reino e abre a salvação a todos – judeus e
gentios. Portanto é a acolhida deste mistério revelado que nominamos por “mística”.
Os autores pós-apostólicos (Clemente, Orígenes) utilizavam-se deste termo
(mística) para designar o significado profundo nas Escrituras.

O processo exegético de chegar a este novo conhecimento é referido como


“místico” e o conhecimento ao qual se chega é chamado de ‘conhecimento
místico”. Assim sendo, o processo exegético se torna uma aventura
espiritual na qual a comunhão com Cristo vivente, o qual é encontrado na
meditação da Escritura, conduz o cristão até Deus (COSTA, 2006, p. 335).

Já para os padres gregos a palavra “místico” diz respeito à verdade definitiva


que Cristo veio nos trazer e que é revelada através dos Evangelhos. É o
conhecimento das coisas divinas que o cristão tem acesso por meio de Cristo.
Decidimos utilizar em nosso trabalho o termo “mística” como termo
assemelhado à espiritualidade, uma vez que a sua aplicação original (e nos estudos
recentes) é concorde com isto. Alfredo (COSTA, 2006, p. 337-345) aponta em seu
artigo como teria se dado a passagem desta primeira noção de mística para a
concepção moderna que se refere a experiências interiores individuais. Para ele a

_______________
14
A origem da palavra “mística” (do grego mystikos), um qualificativo do verbo “myo”, que significa
“fechar”, é sempre referida a um sentido religioso. Seja ligada ao conhecimento reservado a
algumas pessoas, seja a uma iniciação cultual. É relacionada a um conhecimento secreto por
excelência atribuído a uma divindade. A palavra “mística” não se encontra nas Sagradas
Escrituras, mas tem a sua introdução no ambiente cristão a partir da escola de Alexandria,
notadamente Orígenes.
31

resposta se encontra nos textos que foram atribuídos a Dionísio Areopagita15, textos
estes que teriam sido compostos, na verdade entre o fim do século V e o início do
século VI. Para Alfredo o texto a seguir é um exemplo contundente de como a
mística foi se compreendendo como uma experiência interior do indivíduo agraciado
especialmente por Deus:

16
Ao descrever o seu amado mestre , Dionísio observa que o que o
diferenciava das outras grandes figuras era a profundidade da sua
experiência espiritual. Ele superava, depois dos teólogos, todos os demais
santos iniciadores: “sendo completamente arrebatado, completamente fora
de si e tomando parte e entrando em comunhão com as coisas que ele
louvava... foi considerado um arauto divino inspirado por Deus” (I Nomi
Divini, DN 684 A apud COSTA, 2006, p. 337).

Da acolhida do mistério revelado em Jesus Cristo, pela força do Espírito, em


cada crente, nasce a experiência fundante da fé que se traduzirá em um
relacionamento pessoal com Jesus Cristo. Esta relação entre o cristão e Jesus
Cristo faz do primeiro um discípulo de uma forma original. A originalidade consiste
justamente que o discipulado se dá a partir do chamamento e da proposta do Mestre
e da resposta/adesão do discípulo. E esta adesão se dá em relação primeiramente à
pessoa de Jesus e não à sua doutrina (cf. MAGGIONI, 1989, p. 415). E é nesta
adesão incondicional e apaixonada que está alicerçada a essência da espiritualidade
cristã.
A meta daquele que foi atingido por esta experiência com o mistério é unir-se
totalmente a Jesus Cristo e participar da vida intratrinitária:

O fim último de toda a Economia divina é a entrada das criaturas na unidade


perfeita da Santíssima Trindade. Mas desde já somos chamados a ser
habitados pela Santíssima Trindade: "Se alguém me ama - diz o Senhor -,
guardará a minha palavra, e meu Pai o amará e viremos a ele, e faremos
nele a nossa morada" (Jo 14,23) (CATECISMO nº 260).

Em Jesus Cristo o próprio Deus Uno e Trino se revela. Jesus não apenas
realiza a aliança entre a humanidade e a divindade, mas Ele é o Filho igual ao Pai e
ao Espírito, ainda que distinto do Pai e do Espírito.

_______________
15
Personagem que se converte através da pregação de Paulo no Areópago de Roma e é citado no
livro dos Atos dos Apóstolos 17,34.
16
Este mestre de Dionísio teria sido Paulo, responsável por sua conversão.
32

Esta fé e esta espiritualidade estão inseridas no corpo eclesial que precede


temporalmente a cada cristão individualmente – “A fé da Igreja precede, gera,
sustenta e alimenta nossa fé. A Igreja é a mãe de todos os crentes” (CATECISMO nº
181). É na fé da Igreja que o crente assume a própria fé:

A união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos
quais Ele Se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso
pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornarão
Seus. A comunhão tira-me para fora de mim mesmo projetando-me para Ele
e, deste modo, também para a união com todos os cristãos. Tornamo-nos
“um só corpo”, fundidos todos numa única existência. O amor a Deus e o
amor ao próximo estão agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado
atrai-nos todos a Si (BENTO XVI, 2005, nº 14).

É através da Igreja que o mistério de Deus visibiliza-se na humanidade:

Ela [a Igreja] é o projeto visível do amor de Deus pela humanidade que quer
que o gênero humano inteiro constitua o único povo de Deus, se congregue
no único Corpo de Cristo e seja constituído no único templo do Espírito
Santo (CATECISMO nº 776).

O seguimento de Jesus Cristo se desenvolve em uma comunidade vivificada


pelo Espírito. O próprio Espírito é quem realiza a obra de justificação, santificação e
renovação de cada um que se dispõe a acolher este mistério. Por meio da Igreja,
dos sacramentos, da vida de oração, dos dons ordinários e extraordinários ou de
qualquer outra forma que a Ele convier que se dá esta obra17.
É responsabilidade de todo seguidor de Jesus Cristo de lhe secundar na
missão. Ele é responsável dentro da Igreja e pela Igreja, favorece a comunhão
interna e promove a missão.
“Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós, e nós
devemos dar a vida pelos irmãos” (1 Jo 3,16).

_______________
17
“Além disso, este mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos
sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas ‘distribuindo a cada um os seus dons
como lhe apraz’ (1 Cor 12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes,
as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a
renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja, segundo aquelas palavras: ‘a cada qual se
concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum’ (1 Cor 12,7). Estes carismas, quer
sejam os mais elevados, quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação
de graças e consolação, por serem muito acomodados e úteis às necessidades da Igreja” (LG 12).
33

2.2.5 A missão como decorrente da espiritualidade cristã

A experiência que se dá no encontro com o mistério de Deus e se desenvolve


no relacionamento íntimo com Cristo, tem a sua expressão imperiosa na missão ou
apostolado. A consequência lógica do seguimento que o crente faz de seu Mestre é
anunciar o Reino que Ele mesmo anunciou, é desvelar o mistério àqueles que ainda
se encontram “à sombra da morte” (cf. Mt 4,16; Lc 1,79), é ser ele mesmo um
imitador de Cristo como Paulo nos instou a fazer (cf. 1 Cor 11,1). Os apóstolos
compreenderam esta atitude incondicional de todo aquele que realizou a experiência
com o ressuscitado: “Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos (...)” (1 Jo 1,3). E
ainda nos Atos dos Apóstolos reafirmaram: “Nós é que não podemos deixar de dizer
o que vimos e ouvimos” (At 4,20).
E este anúncio não se dá somente através de belas palavras, mas de um
testemunho radical de amor ao próximo, amor que pode desembocar, inclusive no
martírio – como muitas vezes se deu e ainda se dá na história do cristianismo.
Neste anúncio o crente e a Igreja privilegiam os pobres, os marginalizados
como destinatários preferenciais da manifestação do seu amor. Assim como Cristo
que os escolheu como prediletos do Reino, neles se realiza, especialmente, a ação
cristã. Não devemos desvincular ação evangelizadora e caritativa da dimensão
espiritual da Igreja e do cristão em particular, sob o risco de tornarmos a fé (ou a
espiritualidade) intimista ou individualizante e fazer soçobrar a ação eclesial em uma
atividade meramente filantrópica18.
Ao que segue Jesus Cristo espera-se a vivência do mesmo amor que O
moveu. Um amor que anseia por um mundo a ser construído (ou reconstruído) uma
vivência social concreta e transformadora, “com opções e orientações precisas que
impregnam todas as dimensões da vida pessoal e comunitária” (MONGILLO, 1989,
p. 1947).
A espiritualidade expande-se a partir do encontro com Cristo até aos que não
o conhecem. Mais: alarga seus horizontes para reinterpretar os valores humanos da
sociedade à luz deste encontro fundamental. Para o cristianismo a ética pessoal,
_______________
18
“Podemos caminhar o que quisermos, podemos edificar um monte de coisas, mas se não
confessarmos Jesus Cristo, está errado. Tornar-nos-emos uma ONG sócio-caritativa, mas não a
Igreja, Esposa do Senhor” (PAPA FRANCISCO, Santa Missa com os cardeais - 14.03.2013).
Disponível em https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-
francesco_20130314_omelia-cardinali.html. Acesso em 27.09.2015).
34

política e social é derivada desta relação com Cristo e é justamente este elemento
novo e próprio que a Igreja é instada a oferecer à humanidade.
A espiritualidade não se encerra somente na concretização do Reino de Deus
aqui na terra, mas na sua consumação total, quando estivermos na Jerusalém
Celeste, onde haverá novos céus e nova terra e Cristo será tudo em todos (cf. Cl
3,11). Será então “o tempo da restauração de todas as coisas, e com o gênero
humano também o mundo todo, que está intimamente ligado ao homem e por
meio dele atinge sua finalidade, encontrará sua restauração definitiva em Cristo”
(CATECISMO nº 142).

2.3 A ESPIRITUALIDADE NA TRADIÇÃO CRISTÃ

Ao longo de toda a história da Igreja a espiritualidade cristã relacionou-se com


o seu entorno de alguma forma. Estas relações produziram reações e disposições
em seu interno. Dumeige (1989, p. 490) assim compreende esta marca cultural que
está presente nas várias expressões de espiritualidade:

Originária e substancialmente, não há mais do que uma espiritualidade


cristã. Mas como os cristãos, que vivem no tempo e no espaço são
limitados em sua capacidade de aceitar o evangelho de Cristo, também sua
fidelidade ao essencial foi vivida por eles com mentalidade e algumas
modalidades diferentes. [...]. Em torno das notas fundamentais
proporcionadas pelo Evangelho, há outras notas harmônicas que devem
soar em sintonia com ele.

Acompanhar a evolução histórica do termo, bem como da sua utilização


poderá resultar em uma identificação com a compreensão que se deseja dar ao
falarmos de espiritualidade cristã. Todavia, a abrangência que o vocábulo foi
adquirindo ao longo do tempo deve nos auxiliar também a alargar o conceito e
possibilitar vislumbrar novas nuances. É o que se deseja fazer a partir de agora.

2.3.1 Desenvolvimento histórico do termo “espiritualidade” no cristianismo

Dentre os inúmeros temas apresentados pela grande obra Dictionnaire de


Spiritualité em seus volumosos dezessete tomos, consta o verbete Spiritualité. Ao
iniciar a história da palavra, Solignac (1990, p. 1142ss) assevera que o substantivo
“espiritualidade” derivou-se do adjetivo “espiritual”, este uma criação do latim cristão.
35

O adjetivo foi utilizado para traduzir o grego pneumatikos nas antigas versões das
epístolas paulinas (especialmente 1 Cor 2,14 – 3,3). O advérbio “espiritualmente” já
se encontra na versão latina da Prima Clementis 47,3 (meados do segundo século)
para se referir ao termo grego pneumatikôs.
Solignac continua esclarecendo ainda que o substantivo “espiritualidade”
adquire, ao longo da história, três principais sentidos:
a) religioso: a partir do século V. Nesta acepção, o termo está
normalmente contraposto à carnalitas ou animalitas;
b) filosófico: primeira metade do século XII. Designa um modo de ser
ou um modo de conhecer. Opõe-se, aqui, a corporalitas;
c) jurídico: fim do século XII. Refere-se aos bens e funções
eclesiásticos, administração dos sacramentos, objetos de culto etc.
Seu contrário seria temporalitas.
O termo “espiritualidade” surge bastante cedo. Em um texto de Pelágio
(século V), anteriormente atribuído a São Jerônimo, encontra-se a seguinte frase:
“Age ut in spiritualitate proficias” (“comporta-te de modo a progredires na
espiritualidade”)19. A menção do substantivo em questão está inserida em uma carta
que é endereçada a um adulto que havia sido recentemente batizado. Do texto
percebe-se uma exortação firme para que o dito cristão mantenha uma vida cristã
autêntica e sem esmorecer, uma vida corajosa e que progrida.

Situada no contexto, a passagem resume as exigências da vida espiritual


em seu conjunto. Uma vez que o batizado é santificado todo inteiro, corpo e
espírito pela “graça nova” do batismo, ele deve então “aplicar-se por
20
progredir em espiritualidade”, isto é, na vida segundo o espírito
(SOLIGNAC, 1990, p. 1143).

_______________
19
A frase encontra-se na sétima carta de pseudo-Jerônimo, como já informado, texto de Pelágio na
verdade. A referência para o texto é PL 30, 114D-115A. O texto completo é o que se segue: “Quia
tibi, honorabilis et dilectissime parens, per novam gratiam omnis lacrymarum causa detersa est,
age, cave, curre, festina. Age ut in spiritualitate proficias. Cave ne quod accepisti bonum, incautus
et negligens custos amittas. Curre ut non negligas. Festina ut celerius comprehendas... Dum
tempus habemus seminemus in spiritu, ut messem in spiritualibus colligamus” (SOLIGNAC, 1990,
p. 1143). O segundo registro do termo se dá um século após, na 14ª carta de Santo Avit a seu
irmão: “Minus enim procul dubio salva observatione apparet affectus, sed ostendistis quanta
spiritualitate vos exercere delectet quod praeterisse sic doluit”.
20
“Situé dans le contexte, ce passage résume les exigences de la vie spirituelle en son ensemble.
Puisque le baptisé est sanctifié tout entier, corps et esprit, par ‘la grâce nouvelle’ du baptême, il doit
dès lors ‘se mettre en œuvre pour progresser en spiritualité’, c’est-à-dire en vie selon l’esprit”.
36

Depreende-se daí o conceito de espiritualidade, dentro da perspectiva


paulina, como a vida segundo o Espírito de Deus aberta a um crescimento a partir
da recepção do batismo. Corrobora ainda a visão de São Paulo na carta aos
Filipenses, quando afirma que persegue sua meta (Jesus Cristo) com empenho e
decisão (cf. Fl 3,13-17).
No século posterior, Dionísio, o Pequeno, ao traduzir a obra “Sobre a criação
do homem” de São Gregório de Nissa, exprime o termo grego pneumatikè, com o
latino spiritualitas, explicando-o da seguinte forma: “consiste na perfeição da vida
segundo Deus” (MONDONI, 2002, p. 13).
Até o século XI o termo “spiritualitas” é ainda raramente encontrado na
literatura. Quando aplicado, refere-se à vida espiritual em seu conjunto (SOLIGNAC,
1990, p. 1144).
Secondin (1994, p. 12-17) continua apontando em sua obra a evolução da
compreensão/conceituação do termo em questão e observa que:

Do século IX ao século XI esta palavra spiritualitas é sempre designada


como sendo uma realidade e uma atividade que provêm não da natureza,
mas da graça do Espírito Santo, presente no homem. Podemos dizer, com
termos mais nossos do que medievais, que se está designando a “vida
sobrenatural”.

Em torno de 1119-1122 Rimbaud de Liège, ao citar 1 Cor 1,13-14, esclarece


que para se conhecer a Deus é necessário que o ser humano deponha a sua
“animalidade” e se torne um homem espiritual: “Si igitur ea quae Dei sunt videre
volumus, necesse est deponamus animalitatem et assumamus spiritualitatem” (De
vita canonica 11, éd. C. de Clercq, CCM 4, 1966, p. 28 apud SOLIGNAC, 1990, p.
1145).
A espiritualidade do ser humano resgatado é distinta da “animalidade”
daquele que ainda está sob o domínio do pecado.
O termo é bastante raro nos textos de São Boaventura (oito ocorrências) e
elas estão relacionadas à qualidade do corpo ressuscitado. Eis um dos textos,
referindo-se ao Corpo eucarístico de Cristo: “alimento de natureza espiritual, ele é
como um meio termo entre a alma e Deus; é por isso que, ainda que alimento, mais
parece de natureza espiritual (spiritualitatis)” (In Sent. I, d. 37, 1, a. 2, q. 1; ad 4; éd.
Quaracchi, t. 1, p. 634 apud SOLIGNAC, 1990, p. 1146).
37

Tomás de Aquino utiliza-se frequentemente do termo em um sentido ascético.


Em outros textos ele o aplica em relação às realidades que remetem à ordem da
graça, do estado “espiritual” do homem. Para Tomás, portanto, os pecados do
espírito são mais graves que os pecados da carne, haja vista a grande diferença
entre carnalitas e spiritualitas (SOLIGNAC, 1990, p. 1146). O Aquinate conclui,
portanto que Jesus Cristo é, desde o princípio a perfecta spiritualitas, uma vez que
enquanto ser humano perfeito não poderia mais progredir (LE BRUN, 2010, p.
1186).
Entre os autores propriamente espirituais deste período (Bernardo de
Claraval, Hugo e Ricardo de São Vitor etc.) não se encontra a utilização do termo
“espiritualidade”, mas sim algumas fórmulas compostas, nas quais aparecem o
adjetivo “espiritual”, o advérbio “espiritualmente”, o substantivo “espírito”, ou mesmo,
“mente” (“mens”).
O termo é utilizado a partir do século XVII como relacionamento afetivo com
Deus, assim como a vida interior. Se a devoção era a prática possível aos cristãos
em geral, a espiritualidade era vista como algo mais elevado, reservado a pessoas
em um estágio mais avançado. João Batista Saint-Jure escreve a obra “L’homme
spirituel” (1ª ed., Paris, 1646) e assim define: “O homem espiritual não é outra coisa
que um cristão excelente, que por consequência possui mais abundantemente e
mais profundamente que os outros... o que constitui o Homem Cristão, a saber o
Espírito de Jesus Cristo”21 (cáp. 3, p. 129 apud SOLIGNAC, 1990, p. 1147).
Avançando ao século XIX o termo cai em um certo desuso. Quando utilizado
não designa um sistema de vida interior nem uma teoria em relação à vida interior. O
sentido é mais ligado à qualidade de afetos que acompanham a vida interior (LE
BRUN, 2010, p. 1186).
A noção de espiritualidade é redescoberta nas primeiras décadas do século
XX e, segundo Le Brun (2010, p. 1187), é através da obra de Henri Bremond que
temos uma história da espiritualidade (Histoire littéraire du sentiment religieux –
1916). No ano de 1917 surge o “Manuel de spiritualité” de Auguste Saudreau. A obra
é endereçada ao público em geral e é bem difundida. Neste manual a

_______________
21
“L’Homme Spirituel n’est autre chose qu’um chrestien excellent, qui par consequent possède plus
abondamment et plus profondement que les autres… ce qui constitue l’Homme Chrestien, a savoir
l’Esprit de Jesus Christ”.
38

“espiritualidade” é definida como: “a ciência que ensina a progredir na virtude e


particularmente no amor divino”22 (SOLIGNAC, 1990, p. 1149).
No ano de 1919 é fundada a revista La vie spirituelle pelos dominicanos e no
ano seguinte a Revue d’ascétique et de mystique pelos jesuítas. Em seu primeiro
número a revista alertava seus leitores: “podemos nos perguntar se é adequado o
tempo para se assumir a publicação de uma revista de espiritualidade” 23 (p. 1 apud
SOLIGNAC, 1990, p. 1149). O Dictionnaire de spiritualité surge em 1932 ainda pelos
jesuítas.
A compreensão do vocábulo no século XX irá se alargando para vida
espiritual enquanto experiência vivida – a qual implica os múltiplos estágios
anteriores, como a ascese, a mística, o desenvolvimento dos dons do Espírito, a
direção espiritual etc.
Dentro da tradição católica merece destaque, como evento marcante do
século XX, o Concílio Ecumênico Vaticano II, realizado em Roma, em quatro
sessões solenes, entre os anos de 1962 e 1965. Com uma perspectiva mais pastoral
do que dogmática, o Concílio não trouxe novas conceituações para o termo
“espiritualidade”, porém ofereceu novos enfoques para a vivência da espiritualidade
cristã. Voltaremos a este assunto na próxima seção para oferecer alguns
esclarecimentos a respeito destas novas perspectivas. Queremos apenas destacar
algumas expressões utilizadas nos documentos conciliares ao se referirem ao
“espiritual” ou à “dimensão espiritual”. Seguimos aqui a síntese realizada pela
teóloga Maria Clara Bingemer (2015, p. 366ss) no verbete “Espiritualidade” do
Dicionário do Concílio Vaticano II.
Da Constituição Dogmática Dei Verbum24 temos: “coisas espirituais” (DV 8);
“vida espiritual” (DV 21); “leitura espiritual” (DV 25). Da Constituição Dogmática
Lumen Gentium25: os batizados como “casa espiritual” (LG 10); que todos possam

_______________
22
“la science qui enseigne à progresser dans la vertu et particulièrement dans l’amour divin”.
23
“On peut se demander si le temps est bien choisi pour entreprendre la publication d’une revue de
spiritualité”.
24
“Palavra de Deus”: documento aprovado em 18 de novembro de 1965 que teve como tema a
Revelação divina e a sua transmissão.
25
“Luz dos Povos”: documento aprovado em 21 de novembro de 1964. Tem como tema a natureza e
a constituição da Igreja.
39

repartir entre si as “riquezas espirituais” (LG 13); que existe uma comunicação de
“bens espirituais” realizando uma união entre vivos e mortos (LG 49). Da
Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium26: que a “vida espiritual” não se
esgota na sagrada Liturgia (SC 12); que seja incentivada a prática de “exercícios
piedosos do povo cristão” (SC 13). Da Constituição Pastoral Gaudium et Spes27
temos: o “progresso espiritual” possa acompanhar a procura de uma ordem temporal
mais perfeita (GS 4); que a “natureza espiritual” do ser humano deve encontrar na
sabedoria a sua perfeição; que haja respeito em relação à “dignidade espiritual” dos
seres humanos (GS 22). Do Decreto Apostolicam Actuositatem28: que as atividades
dos cristãos sejam “oblações espirituais” (AA 3) e que os “auxílios espirituais” sejam
alimento para realizar a união com Cristo na Igreja (AA 4). Da declaração
Gravissimum Educationis29: que a Igreja seja zelosa em oferecer uma “formação
espiritual” a todos os alunos que frequentam instituições católicas, mas igualmente a
todos os seus filhos (GE 10).
Ainda que, como já dissemos, não tenha havido nenhum tipo de conceituação
(nova ou não) a respeito da espiritualidade cristã nos textos conciliares, pensamos
como Maria Clara (BINGEMER, 2015, p. 372), que:

O Concílio Vaticano II é certamente o marco maior dentro das fronteiras do


cristianismo histórico e constitucional para que a espiritualidade cristã possa
alçar voos maiores e respirar ares mais puros nestes tempos em que se
configura uma nova cultura para um mundo globalizado.

Recordando os cinquenta anos do término do Concílio Vaticano II, Clodovis


Boff (2015a), em uma conferência direcionada à vida consagrada, conclui que a
espiritualidade que se depreende dos textos conciliares não está à altura da teologia
do mesmo. Ainda assim, ele reconhece dois pontos especialmente importantes do
tema para o Concílio:
_______________
26
“Sagrado Concílio”: documento promulgado em 4 de dezembro de 1963. Versa essencialmente
sobre a Liturgia.
27
“Alegria e esperança”: documento promulgado em 7 de dezembro de 1965. Trata da Igreja no
mundo contemporâneo.
28
“Atividade apostólica”: aprovado em 18 de novembro de 1965. O tema central é o apostolado dos
leigos.
29
“Gravidade da educação”: aprovada em 28 de outubro de 1965. Trata a respeito do tema da
educação, mais precisamente a educação cristã.
40

a) o aspecto significativo de que o primeiro documento a ter sido


aprovado e aplicado foi justamente a respeito da Liturgia
(Sacrosanctum Concilium). Neste documento explicita-se o que já
se cria – que a Liturgia é fonte e cume de toda vida eclesial:

Contudo, a Liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao


mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força. Na verdade, o
trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se
tornaram filhos de Deus pela fé e pelo batismo, se reúnam em assembleia,
louvem a Deus na Igreja, participem no sacrifício e comam a Ceia do
Senhor (SC nº 10).

b) O acento dado pela Constituição Lumen Gentium à “vocação


universal à santidade”, dedicando-lhe todo um capítulo (cáp. V).
Ainda para Clodovis, esta “lacuna” da temática no Concílio Vaticano II se faz
compensar no período pós-conciliar através de duas instâncias:
a) o papado: com figuras de grande estatura espiritual, como o foram
Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI (acrescentamos Francisco por
nossa conta à esta lista);
b) os Novos Movimentos Eclesiais: com seus acentos de
espiritualidade.
Como veremos em seção posterior, muitas dicionários são produzidos no
período pós-conciliar. Entre as obras reproduzidas aqui no Brasil a respeito do tema,
merecem destaque os três volumes do Dicionário de Espiritualidade organizado por
Ermanno Ancilli em parceria com o Instituto de Espiritualidade Teresianum. E é
Ancilli (2012, vol. II, p. 897) que em seu verbete “Espiritualidade” expõe quatro
significados para o termo: a qualidade do que é espiritual; sinônimo de piedade
(entendida com a relação com o divinum); a ciência que estuda e transmite esta
mesma “piedade”, seus princípios e suas práticas; e, por último, a identificação com
determinada escola de espiritualidade (como quando dizemos “espiritualidade
teresiana”, por exemplo).
Ancilli (2012, vol. II, p. 897) ainda resgata alguns sinônimos para
espiritualidade como serviço de Deus ou como ciência espiritual:

[...] via de vida espiritual, método, modo ou modalidade, orientação,


mentalidade, corrente, rumo, atitude, fórmula, forma ou norma de vida,
aplicação ou interpretação particular do mesmo ideal evangélico, estilo ou
tipo ou gênero de vida religiosa, matiz, tradição espiritual, experiência,
41

caracterização. Nos documentos pontifícios recorrem com muita frequência


os seguintes sinônimos: via, método, forma, gênero de vida, doutrina
ascética, ensinamento espiritual, fisionomia ou família religiosa, espírito,
enfim escola espiritual.

Após termos realizado este percurso a respeito da gênese e desenvolvimento


do conceito “espiritualidade”, podemos compreender que o uso do termo possa
gerar um sem-número de compreensões (ou incompreensões). Pode-se entender
ainda, que estas mudanças conceituais reflitam a realidade da Igreja e do
pensamento teológico em determinados momentos. Faz-se necessário um olhar
voltado ao passado para que se possa compreender as circunstâncias de então, um
olhar em relação à realidade circundante. A espiritualidade não é um conceito vazio,
mas reflete uma relação entre a fé que se professa e a realidade própria dos que a
professam. As interrogações de de Fiores (1989, p. 345) exemplificam as
possibilidades de interação entre aquilo que é próprio da espiritualidade cristã e o
ambiente social/cultural/econômico/natural que a circunda:

Ao tentar expressar toda a riqueza da espiritualidade cristã em termos que


se harmonizem tanto com o Evangelho quanto com a nova cultura, as
interrogações se multiplicam indefinidamente: Como expressar, criativa,
mas evangelicamente, a pobreza na dinâmica do desenvolvimento? E o
absoluto da consagração a Deus em momentos em que se relativizam as
instituições da vida religiosa ou eclesiástica, os votos, o celibato? Como
expressar o fato de que o cristão está submerso na secularidade por causa
de Jesus e do Evangelho? Como mostrar que, quando ele contempla Deus
na noite luminosa da oração, constrói a fraternidade humana?

Passemos ao modo como o conteúdo deste verbete foi vivenciado ao longo


dos séculos.

2.3.2 A vivência da espiritualidade cristã ao longo dos séculos

A Bíblia é locus theologicus por excelência, porém, nela não há propriamente


o termo ou conceito de “espiritualidade”. Existem, contudo, aproximações, tais como
a expressão utilizada por Paulo – pneumatikói (1 Cor 2,13; Gl 6,1; Rm 8,9) – para
referir-se ao “homem espiritual”, meta do cristão. Paulo ainda exorta que os cristãos
possam viver na “santidade perfeita: o espírito, a alma e o corpo” (1 Ts 5,23).
A vida do cristão é compreendida, nos textos neotestamentários, como vivida
no Espírito do Ressuscitado.
42

Pode-se associar totalmente o significado de “espiritualidade”, dentro do


contexto bíblico, à própria vida cristã que se desenvolve segundo as leis de
crescimento antropológico e psicológico e que é sempre auxiliada pela graça divina,
em direção à maturidade.
A experiência espiritual que se depreende da Bíblia emana da manifestação
de Deus na existência humana. É através desta automanifestação que Deus irrompe
na história transformando-a em história salvífica. O ser humano realiza a sua
experiência espiritual ao buscar e conhecer a Deus que se revela. A espiritualidade
bíblica fundamenta-se em quatro dimensões: graça, fé, moral e louvor (MONDONI,
2000, p. 27-28).
Imediatamente após o período apostólico, nos séculos II e III, algumas
correntes gnósticas30 supõe uma dicotomia entre os aspectos espirituais e materiais,
estabelecendo uma desvinculação no ser humano entre estes dois aspectos.
Em contraposição a esta mentalidade, Irineu de Lyon31, no início do terceiro
século, afirma que é o ser humano todo, corpo e alma, que entrará na vida eterna:

Os, porém, que temem a Deus e creem na vinda de seu Filho e, mediante a
fé, põem o Espírito de Deus no seu coração, serão justamente chamados
homens puros, espirituais, viventes para Deus, porque possuem o Espírito
do Pai que purifica o homem e o eleva à vida de Deus (DE LYON, 1997,
livro V, 9, 2).

Nos primeiros três séculos do cristianismo era contundente o anúncio


querigmático da mensagem de Jesus Cristo e, diante das forças do império romano
que procuravam destruir a igreja que nascia, a espiritualidade cristã vai se
delineando através de duas manifestações esplêndidas da vida de santidade: o
martírio e a virgindade.
_______________
30
O gnosticismo, mais antigo que o próprio cristianismo, pode ser considerado como um movimento
no qual se verificam elementos orientais, gregos, judeus e cristãos, arranjados em um pensamento
de forma orgânica. Dentro deste conjunto sobressaem alguns elementos comuns, tais como o
dualismo entre o espiritual e o material – considerado como mau em si. Para os gnósticos o mundo
material teria sido constituído por anjos ou por um demiurgo (muitas vezes identificado com o Deus
do Primeiro Testamento). Outro elemento comum é a divisão da humanidade em três categorias:
os hílicos (ou materiais), os psíquicos e os gnósticos (ou espirituais) (PADOVESE, 1993, p. 324).
31
Bispo grego, teólogo e escritor nascido, provavelmente, onde se encontra hoje a atual Turquia, em
um território antigamente chamado Esmirna. Tem em “Contra Heresias” a sua obra mais
conhecida. Através dela procura defender a fé cristã primitiva da ameaça de então que era o
gnosticismo, principalmente o sistema proposto por Valentim. Data-se a sua morte em torno do ano
202, na Gália (atual França).
43

O martírio, diante da violência e perseguição sofridas nos primeiros séculos


pelos cristãos, foi considerado como o cume da perfeição cristã. A espiritualidade do
martírio concentrava-se na profissão de fé em Jesus Cristo, a ponto de assumir,
como consequência de sua entrega, até mesmo à morte martirial. A morte não era
vista, porém, como uma derrota, mas como uma assimilação a Cristo e à sua
Palavra. Um sacrifício que, pela adesão dada à verdade de Deus, pelo seguimento
radical de Jesus, passa pela morte e, ao vencê-la, revela a vitória da luz sobre as
trevas. Revela-se a importância do martírio ao se verificar que o culto aos mártires
tornava-se uma das manifestações mais significativas da piedade cristã (ANCILLI,
vol. II, 2012, p. 901).
A virgindade estava posta ao lado do martírio na vida cristã dos primeiros
séculos. Diante de um ambiente altamente corrompido e com uma moral estranha
aos princípios judaico-cristãos cada vez mais cristãos escolhiam a continência como
um valor. O ordinário de suas vidas era o comum de então, porém se destacavam
pela conduta exemplar no trabalho, no ambiente social e na família e pelo zelo no
culto e na piedade. Vários autores cristãos (Tertuliano32, Cipriano33, Clemente34,
Ambrósio35, Agostinho, entre vários outros) destacam as qualidades da virgindade
como sinal excelente e de superioridade no cristianismo (ANCILLI, vol. II, 2012, p.
901).
A espiritualidade cristã encontraria forças ainda na vida fraterna, na
celebração da Eucaristia, nas práticas ascéticas e na oração (MONDONI, 2000, p.
_______________
32
Nascido em Cartago (África) foi escritor de inúmeras obras e um excelente apologista. Autor mais
antigo a ter utilizado o termo “Trindade”. Algumas de suas obras: “Apologeticum”, “Contra os
judeus”, “Contra Marcião”, “Aos mártires”, “A oração” etc.. No meio de sua vida aderiu à doutrina do
Montanismo – movimento de profundo ascetismo, negava a absolvição em casos de pecados
graves e se consideravam inspirados diretamente pelo Espírito Santo. Tertuliano morreu em idade
avançada, aproximadamente no ano 220.
33
Considerado um dos Padres Latinos, Cipriano nasceu no século III. Converteu-se aos 35 anos de
idade, pouco tempo depois foi ordenado sacerdote e em seguida bispo. Escreveu diversas cartas.
Morreu devido à perseguição de Valeriano em 258.
34
Clemente I ou ainda Clemente Romano. Foi o quarto papa da Igreja (entre 88 e 97). Nasceu em
Roma e foi um dos primeiros a receber o batismo de Pedro. Sucedeu a Anacleto. Escreveu a
“Epístola de Clemente aos Coríntios”. Morreu na época da perseguição de Domiciano, no ano de
100 (aprox.).
35
Nascido em 340 na região da Gália que hoje é a Bélgica, Ambrósio foi arcebispo de Mediolano
(atualmente Milão) a partir de 374. Levou uma vida asceta e voltada para a caridade. Combateu a
heresia ariana. Exerceu notável influência no pensamento de Santo Agostinho. Foi um dos quatro
grande doutores da Igreja latina. Faleceu em 397.
44

29-34). Estabelecem-se os jejuns semanais e preparatórios para a recepção dos


sacramentos e da Páscoa. Aos pecados graves eram impostas penitências públicas.
Os séculos IV a VI foram de grande expansão para a Igreja, uma vez que se
encerram as perseguições com a liberdade de culto e posteriormente com a
declação do cristianismo como religião oficial do Império. A Igreja se estabelece
como uma Igreja única e, de perseguida, tornou-se perseguidora do paganismo.
Através dos Concílios os dogmas são fixados e a Igreja se organiza.
Com o sistema do catecumenato sofrendo um processo de deterioramento
até a sua total extinção, surge a vida monástica: em lugar do mártir temos a figura
do monge e a vida religiosa torna-se uma forma própria de ser cristão. Floresce a
literatura mística e ascética. A espiritualidade da fuga do mundo é compreendida
como uma antecipação da destinação final de todo batizado. Ele não pertence mais
a este mundo corrompido, mas à bem-aventurança eterna.
É no mundo oriental que surgem as primeiras experiência religiosas
monásticas cristãs, através da vida anacorética e mais tarde cenobítica.
Representantes do monasticismo oriental são os padres capadócios (Gregório de
Nissa36, Gregório de Nazianzo37 e Basílio de Cesareia38). Muitos são os textos
desta espiritualidade que propõe o caminho de perfeição em sua forma negativa, ou
seja, penitências, fuga da sociedade corrupta, afastamento das imundícies do
mundo. Havia, porém, o estímulo à pureza de coração e a união com Deus (menos
evidente). Nasce a prática das jaculatórias.

_______________
36
Teólogo, místico e escritor, irmão de Basílio Magno e Santa Macrina, a Jovem, Gregório foi neto de
Santa Macrina Maior e filho de Basílio, o Velho. Após ter sido padre e eremita, foi consagrado
bispo de Nissa na Capadócia e depois arcebispo de Sebaste. Participou do I Concílio de
Constantinopla em 381. Escritor profícuo, destacou-se na literatura mística e na teologia
especulativa. Morreu em 394 na Capadócia.
37
Também conhecido como Gregório Nazianzeno ou Gregório, o Teólogo. Nasceu em 329 na
Capadócia (atual Turquia). Foi Patriarca de Constantinopla, após ter sido bispo de Cesareia, em
seguida Sásima. Tem importante contribuição na defesa na doutrina da Santíssima Trindade
emanada do Concílio de Niceia, bem como no campo da pneumatologia. Faleceu em 389 também
na Capadócia.
38
Conhecido ainda como Basílio Magno, nasceu aproximadamente no ano 330 na cidade de
Cesareia, território da Capadócia (atualmente Turquia). Nesta cidade mesmo tornou-se bispo.
Apoiou o Concílio de Niceia. Lutou principalmente contra o arianismo e os seguidores de Apolinario
de Laodiceia. É reconhecido, juntamente com São Pacômico, como pai do monacato na Igreja do
Oriente. Padre capadócio juntamente com Gregório de Nissa (seu irmão) e Gregório de Nazianzo,
é considerado doutor da Igreja nas tradições oriental e ocidental.
45

Nesta mesma linha de conceituação, Basílio de Cesaréia, entende que o


cristão que é espiritual não é aquele que especula a respeito de sua fé tão somente,
mas quem é guiado pelo Espírito Santo, quem se deixa ser moldado por Ele. E
Basílio centra esta ação do Espírito na caridade, que é superior à gnose e a
qualquer um dos dons espirituais.
A vida monástica surge e se desenvolve na Igreja do Ocidente, especialmente
após o fim das perseguições romanas. Inicialmente foi dependente da vida
monástica oriental. Cassiano39 foi um dos difusores desta vida (ANCILLI, 2012, vol.
II, p. 902).
Não se pode falar de vida monástica sem mencionar o gênio espiritual que foi
Bento de Núrsia40. Bento soube codificar um modo de vida no qual estão unidos o
trabalho e a oração. Desta união temos o emblemático mote ora et labora,
representação da união do humano com o divino. Por esta característica os
mosteiros irão se transformar em centros de cultura espiritual, humanística e
econômica.
Com Agostinho a espiritualidade vai adquirindo um formulação própria “que se
distingue pela insistência em concentrar a atenção na mortificação interior, que tem,
porém, valor quando vinculada à caridade” (ANCILLI, 2012, v. II, p. 902). Para
Agostinho a piedade consiste no amor, que é dirigido a Deus e ao próximo – sempre
o mesmo amor. Esta caridade nos vem através da oração. É ela que nos faz desejar
Deus. Segundo Ancilli ainda, a influência da espiritualidade agostiniana se faz sentir
fortemente até o início do século XIII, mas também no existencialismo cristão, nos
filósofos cristãos contemporâneos e em alguns temas da filosofia moderna como,
por exemplo: autoconsciência, dinamismo da vontade, insuficiência do finito etc.

_______________
39
Mais conhecido como João Cassiano, nasceu provavelmente na Cítia Menor (atual Romênia),
aproximadamente no ano 360. Entrou em um mosteiro em Belém, na Palestina. Visitou vários
mosteiros do Oriente e em Constantinopla foi ordenado diácono pelo Patriarca João Crisóstomo.
Foi enviado a Roma em 404 para defender a causa de João Crisóstomo junto ao papa Inocêncio I
por João ter sido exilado. Fundou seu próprio mosteiro em 410 perto de Marselha (atual França) –
conhecido como Abadia de São Vitor. Além de ter escrito várias conhecidas Conferências,
escreveu ainda “Da instituição do monasticismo”, “Discursos espirituais” e “Da encarnação do
Senhor contra Nestório”.
40
Bento de Núrsia é considerado o pai do monacato Ocidental. Nascido em Núrsia (atual Itália) no
ano de 480, aproximadamente. Foi monge e, quando estava em Monte Cassino, dá início ao que
seria conhecida como Ordem dos Beneditinos. É irmão de Santa Escolástica e sua maior obra é a
Regra dos Mosteiros, que viria a ser a primeira regra monástica da Igreja. Morre em março de 547.
46

Entre os séculos VI e VIII os mosteiros se tornam os centros da vida litúrgica


e espiritual. A vida de piedade vai se tornando mais individualista e o clero afasta-se
do povo na celebração, ocasionando um rito celebrado, não pela comunidade, mas
pelo sacerdote em favor da comunidade. Florescem os mediadores nas orações
(santos, anjos, protetores). As relíquias adquirem um valor acentuado. É o tempo,
também, do surgimento das confissões e penitências privadas (MONDONI, 2000, p.
46-47).
Neste período temos a figura de alguns grandes monges e grandes santos,
especialmente missionários, como é o caso de Wilibrordo41, são Bonifácio42 e são
Beda43. São Gregório Magno44 é quem apresenta a prática da vida cristã em toda a
sua plenitude. Juntamente com são Bento encerra o período patrístico e abre o
medieval.
O Império Carolíngio45, no final do século VIII, realiza uma mudança no centro
literário e político da Europa – do sul para o norte. Até o século IX este movimento
realiza a unificação propagando um renascimento cultural e espiritual, através das
catedrais e abadias – favorecendo os centros de piedade, de estudo e de arte
(ANCILLI, 2012, vol.II, p. 903). A grande massa da população, porém, apelava para
o formalismo e a superstição.

_______________
41
Monge inglês nascido em 658, dedicou-se à evangelização da Alemanha, foi consagrado bispo em
695, com o nome de Clemente. Morreu em 739 no convento de Luxemburgo.
42
Nasceu em 672 na Inglaterra. Foi monge beneditino, e logo se tornou missionário, indo à Frísia
(atua região do norte da Alemanha e nordeste dos países baixos) e em seguida à Germânia.
Faleceu em 754 na Frísia.
43
Beda, o Venerável, foi monge na Inglaterra. Nasceu em 673 e escreveu várias obras científicas,
históricas e teológicas. Também escreveu comentário bíblicos utilizando métodos alegóricos de
interpretação. Sua obra mais conhecida é a “História Eclesiástica do Povo Inglês”. Faleceu em 735
e foi declarado Doutor da Igreja em 1899 pelo papa Leão XIII.
44
Nascido em 540 em Roma, Gregório Magno ou Gregório, o Grande foi papa entre 590 e 604
(quando de sua morte). Realiza uma reforma geral da liturgia e é creditado a ele a principal forma
de cantochão – por isso mesmo chamada de “canto gregoriano”. Escreveu numerosas obras:
comentários bíblicos, hagiologias, sermões e inúmeras cartas.
45
Também conhecido como Império de Carlos Magno. Representou o momento mais esplendoroso
do Reino Franco. Carlos Magno reinou entre 768 e 814. No ano 800 foi coroado imperador do
Sacro Império Romano-Germânico, pelo papa Leão III, fez assim, a defesa e a propagação da fé
cristã em suas terras. Carlos Magno morre em 814 e o Império foi governado por Luís, o Piedoso
até o ano de 840. A morte de Luís fragmenta o Império em três reinos menores e em 843 o Tratado
de Verdun oficializa esta partilha.
47

Até o fim do primeiro milênio tivemos, porém, figuras expressivas de autores


que legaram à vida espiritual sua especial contribuição. No Oriente temos São João
Clímaco46, São João Damasceno47, São Teodoro Estudita48 e Simeão, o Novo
Teólogo49. No Ocidente, Alcuíno50, Bento de Aniane51 e Rábano Mauro52.
O século X vê uma noite escura descer sobre o horizonte espiritual da Igreja –
simonia, transgressões da lei do celibato, lutas dos clérigos por terras, tomada do
papado por famílias feudais. Mesmo os mosteiros não estavam livres destes abusos
– envenenamento de abades, exigências de privilégios etc.
É deste tempo o início da reforma monástica, em Cluny53, que procurava
retornar à vivência integral do evangelho (MONDONI, 2000, p. 47-48) ), através da
restauração dos princípios já consagrados pelos beneditinos. Com a fundação do
mosteiro pelo duque Guilherme I, procurava-se retirar a interferência da autoridade
do senhor local, pois o mesmo iria reportar-se diretamento ao papa. Em suma, o
mosteiro seria um entidade independente e teria sob seu controle as novas casas
que fundasse. Tão grande foi seu crescimento que no século XII a Ordem de Cluny
contava com mais de 1200 mosteiros sob seus cuidados.
_______________
46
Nascido em 525 na Síria não se tem muitas informações sobre a sua vida. Autor da obra “Escada”
na qual relata como alma se eleva a Deus através das virtudes ascéticas. Faleceu em 606 no
Monte Sinai.
47
Ou João de Damasco (cidade de seu nascimento em 675). Foi monge e sacerdote sírio.
Considerado o último dos Padres Orientais pela Igreja Ortodoxa. Compôs hinos litúrgicos, obras
apologéticas e dogmáticas. Faleceu em 749 em Jerusalém.
48
Monge bizantino e abade do Mosteiro de Estúdio, nasceu em 759 em Constantinopla. Entre suas
obras temos cartas, coleções de catequese, orações, sermões e poemas. Faleceu em 826 na
Bitínia, atual Turquia.
49
Nascido em 949 na Galácia (atual Turquia), foi monge na abadia de Stoudios. Escreveu “Discursos
Catequéticos”, “Hinos do Amor Divino” e “Três Discursos Teológicos”. Faleceu em 1022.
50
Monge beneditino nascido em 735 na atual Grã-Bretanha. Foi conselheiro de Carlos Magno,
posteriormente abade de um mosteiro em Tours. Morreu em 804. É considerado o patrono das
universidades cristãs.
51
Monge beneditino, reformador da vida monástica. É conhecido como Segundo Bento. Nasceu em
747 no Império Carolíngio. Presidiu em 817 um concílio de abades em Aachen. Morreu em 821
nessa mesma cidade.
52
Abade nos mosteiros beneditinos de Fulda e Mogúncia, nasceu em 780 em Mogúncia. É conhecido
por ter sido o autor do hino “Veni Creator Spiritus”. Morreu em 856 em Rheingau.
53
Abadia construída em 910 por Guilherme I da Aquitânia. Estava estabelecida nela a Ordem de
Cluny. Reuniam-se nela os eclesiásticos que pretendiam o restabelecimento da superioridade da
Igreja Católica em relação ao Sacro Império Romano Germânico.
48

O sucesso da expansão se deveu, sobretudo, à espiritualidade cultivada. O


papel central reservado à Liturgia (Horas Litúrgicas, canto dos Salmos, procissões
solenes e devotas, celebrações piedosas da Santa Missa), promoção da música
sacra, renovação da arquitetura e arte sacras, a disciplina do silêncio e a
observância da Regra de Bento foram essenciais para que a sua fama de santidade
se espalhasse e suscitasse imitação em outras comunidades monásticas.
Todos estes elementos resultaram em uma grande influência na vida
consagrada de então, mas também sobre toda a Igreja Universal, combatendo,
através da purificação dos costumes, a simonia e a imoralidade do clero secular.
Já no primeiros anos do segundo milênio os beneditinos apresentam seus
melhores frutos através de Gregório VII54 e de sua ação reformadora, bem como da
grande piedade aliada à especulação dogmática de Anselmo d’Aosta 55.
Na primeira metade do século XI a experiência monástica urgia por um novo
ardor. Grandes homens carregaram este ideal – São Romualdo56 e São Pedro
Damião57 na Itália e São Bernardo58 e São Bruno59 na França. Ainda no mesmo

_______________
54
Papa da Igreja entre 1073 até 1085 quando de sua morte. Nasceu em Toscana em 1020 (aprox.).
Foi monge beneditino e em 1046 ingressou no mosteiro de Cluny. Ainda que não fosse presbítero
foi eleito papa por aclamação popular. Em 1075 publica Dictatus Papae – acerca do papel do
pontífice em relação aos poderes temporais.
55
Mais conhecido como Anselmo de Cantuária (local de seu nascimento, em 1033). Foi monge
beneditino e arcebispo de Cantuária entre 1093 e 1109. Aplicou-se à filosofia e é dele o mote:
“fides quaerens intellectum” (“a fé busca o entendimento”). Sua obra-prima foi De veritate –
afirmando uma verdade absoluta da qual todas as verdades participam. Faleceu em 1109 em
Cantuária. Foi proclamado doutor da Igreja em 1720 pelo papa Clemente XI.
56
Nasceu em 956, em Ravena. Fundador da Ordem dos Camaldulenses, Romualdo fundou vários
mosteiros após ter entrado em contato com a abadia de Cluny. Faleceu em 1027.
57
Nascido em 1007, Pedro foi monge no eremitério de Fonte Avellana, do qual se tornou prior em
1043. Foi um reformador da disciplina interna, que influenciou a vida de muitos outros mosteiros.
Era amigo de Hildebrando, que se tornaria Gregório VII. Foi feito cardeal em 1057 pelo papa
Estêvão IX. Escreveu várias obras, a mais famosa é a De Divina Omnipotentia. Morreu em 1072
em Óstia.
58
Conhecido como Bernardo de Claraval por ter sido o fundador da abadia que leva este nome
(Claraval), na diocese de Langres – França. Nasceu em 1090. Logo depois da morte de sua mãe
(quando tinha 19 anos) decide entrar na Abadia de Cister, perto de Dijon (admitido em 1113).
Participou do Concílio de Troyes em 1128 e o II Concílio de Latrão em 1139. Faleceu aos 63 anos
de idade, em 1153. Escreveu muitíssimas obras, sermões e cartas, das quais se destaca “Sermões
sobre o Cântico dos Cânticos”. Tem uma grande importância especialmente sobre as ordem dos
cistercienses e trapistas. Foi proclamado Doutor da Igreja em 1830 pelo papa Pio VIII, como Doutor
Mellifluus.
59
Apesar de ter sido o fundador da Ordem dos Cartuxos em terras francesas (região de Grenoble),
nasceu na Alemanha em 1030. Ordem de forte ascese, os cartuxos vivem quase como eremitas,
49

século surgem as primeiras análises e classificações da vida espiritual no geral e da


oração em especial com Guigo II, o Cartuxo60 e com Hugo61 e Ricardo62 da escola
de São Vítor (chamado “os vitorinos”). Estes compreendiam que a humanidade de
Cristo era convite à imitação e, através da contemplação amorosa, a alma
desposaria a Deus. Somente através da humanidade de Cristo é que o ser humano
poderia chegar a Deus, uma vez que o pecado original perturbou a ordem primeira.
Com o surgimento da burguesia, das cidades e das universidades a partir do
século XI surgem também os movimentos pauperísticos e anticlericais 63 que se
insurgiam contra os costumes suntuosos dos clérigos e voltavam-se para o
ascetismo e a caridade. Os leigos começam a reunir-se em fraternidades para
realizar obras de caridade – surgem as hospedarias, os institutos de cuidados aos
necessitados.

não o sendo pois possuem determinados momentos de convivência fraterna em áreas comuns –
igreja, refeitório e sala do capítulo. Faleceu em 1101, na Itália.
60
Monge cartuxo (distinto de Guigo I, que foi o quinto prior da Cartuxa) sem uma data precisa de seu
nascimento, escreveu “Carta sobre a vida contemplativa” – texto clássico sobre espiritualidade, no
qual propõe quatro degraus para a Lectio Divina: lectio, meditatio, oratio e contemplatio. Faleceu
em 1188.
61
Nascido em 1096 na Saxônia – Sacro Império Romano-Germânico, foi filósofo e teólogo.
Estabeleceu-se no mosteiro de São Vítor em 1115. Foi criado cardeal em 1139 pelo papa
Inocêncio II. Considerado o mais famoso teólogo antes de Tomás de Aquino. Sua obra
“Didascalicon” era referência para os estudantes e professores na Europa Medieval. Falece em
1141.
62
Não se sabe ao certo o ano de seu nascimento. Por dedução em torno de 1110. Nasceu nas Ilhas
Britânicas, talvez Escócia. Foi muito influenciado por Hugo de São Vitor que o precedeu. Foi prior
na abadia de São Vitor a partir de 1162. Algumas de suas obras: “O Livro dos Doze Patriarcas”, “A
Arca Mística”, “De Trinitate”, “Liber Exceptionum” (comentário sobre as Escrituras).
63
Movimentos originados pelo anseio de uma reforma radical no seio da Igreja, um retorno às suas
origens. Rejeitavam a forma de viver dos sacerdotes, monges e bispos de então. Criticavam-nos
de traição ao Evangelho por não praticarem a pobreza evangélica. Pregavam variadas formas de
radicalidade. Citamos alguns destes movimentos: a) albigenses ou cátaros: principalmente na
França. Um dos mais fortes movimentos, seu nome derivava da pureza que buscavam. Contra eles
foi organizada uma cruzada. Alguns consideram que sua doutrina é uma continuação do
maniqueísmo. Reunia o povo simples, mas também nobres anticlericais; b) Pátaros: Itália – tiveram
pouca duração; c) Pedrobrusianos: seguidores de Pedro de Bruys. Desprezavam o Antigo
Testamento. Negavam a hierarquia e a exterioridade e desejavam seguir apenas os Evangelhos.
Negavam ainda o valor da Eucaristia e do Matrimônio; d) Enricanos: iniciado pelo monge Enrico de
Cluny. Muito semelhante ao anterior. Via o pecado de Adão e Eva como pessoal e não como
original. Para ele a Igreja já havia perdido seu poder, justificando a desobediência a ela; e)
Valdenses: fundado por Pedro Valdo. Entendia a pregação como direito de todos, por isso
desobedeceu a ordem eclesiástica para que não pregasse. No movimento, os leigos estavam livres
para pregar, celebrar a eucaristia e confessar os pecados; f) Humilhados: ramo lombardo dos
valdenses (cf. FREHLICH, 2010, p. 37-39).
50

Com o surgimento das Ordens mendicantes nesse período inova-se a vida


religiosa, que até então era predominantemente contemplativa e monástica.
Destacam-se especialmente:
a) Ordem dos Franciscanos: fundada por Francisco de Assis64.
Provoca no início um grande desejo de renovação da Igreja e da
sociedade. Tem como características principais o amor apaixonado
por Cristo e a pobreza. Ofereceu, ainda, a oportunidade aos leigos
de terem uma vida de oração, caridade e penitência através da
Ordem Terceira. Além, é claro, da figura de Francisco, são
expoentes desta espiritualidade: Clara de Assis65, Boaventura de
Bagnoregio66, Jacopone de Todi67, Bernardino de Sena68 e
Bernardino de Feltre69;
b) Ordem dos Pregadores: Domingos de Gusmão70 foi seu fundador. A
espiritualidade da ordem, teve em seus inícios um caráter doutrinal,
contemplativo e apostólico. Desta família espiritual surgiram muitos
membros honoráveis, dentre os quais se destaca, sem sombra de

_______________
64
Nascido em Assis em 1182 fundou a ordem mendicante dos Frades Menores (Franciscanos). É
para muitos a maior figura do cristianismo desde Jesus. Não escreveu muito, porém o seu
testemunho de radicalidade na vivência do Evangelho influenciou (e influencia) gerações desde
então. Morreu na mais radical pobreza, rodeado de seus confrades em 1226.
65
Contemporânea e seguidora de Francisco de Assis, Clara nasceu em 1193 e fundou o ramo
feminino da Ordem Franciscana (também conhecido como “Damas da Pobreza”), vivendo
radicalmente o amor na mais estrita pobreza. Faleceu em 1253.
66
Foi teólogo, filósofo, ministro-geral da Ordem dos Frades Menores e também cardeal. Nasceu
cerca de 1221. Sua obra-prima é “Comentários sobre as sentenças de Pedro Lombardo”. Faleceu
em 1274 e proclamado Doutor da Igreja em 1588 pelo papa Sisto V como Doutor Seraphicus.
67
Nascido ao redor do ano 1230 em Todi (Ùmbria). Após a trágica morte de sua esposa torna-se um
penitente severo, usando o hábito da Ordem Terceira. Após dez anos é admitido como religioso na
Ordem Franciscana. Faleceu aproximadamente no ano 1306.
68
Este religioso franciscano nasceu no ano de 1380, foi um intenso pregador e trabalhou pela
reforma da Ordem Franciscana. Morreu em L’Aquila em 1444.
69
Sacerdote na Primeira Ordem Franciscana, Bernardino nasceu em Tomo no ano de 1439. Recebeu
este nome justamente em honra de Bernardino de Sena. Morreu em 1494.
70
Fundador da Ordem do Pregadores, Domingos de Gusmão nasceu em 1170 no então Reino de
Castela. Em 1216 papa Honório III confirma a regra da nova Ordem de religiosos totalmente
dedicados ao anúncio da palavra de Deus. Falece em 1221 em Bolonha, Itália.
51

dúvidas, Tomás de Aquino. Mais tarde ainda, Vicente Ferrer71, João


Dominici72, Mestre Eckhart73, entre outros.
c) Ordem dos servitas: Conhecida como Ordem dos Servos de Maria,
foi fundada em Florença (Itália) no ano de 1233 por um grupo
conhecido como “Os Sete Fundadores”74. Através de elementos em
comum (devoção à Virgem, mesma classe social, mesmo ramo de
negócios) e especialmente pela amizade, abandonaram tudo e
foram viver uma vida em comum, na austeridade, na oração, na
penitência, na caridade, na mendicância e sobretudo no testemunho
de unidade. A partir de seus exemplos muitos foram atraídos por
este estilo de vida.
Encontramos no período escolástico, provavelmente, os últimos exemplos
onde se unia a figura do teólogo e do santo. Clodovis Boff (2011, p. 182) aponta esta
escassez da figura do teólogo-santo. Da Escolástica temos, além dos já nominados
(são Tomás de Aquino, são Boaventura e santo Anselmo), santo Alberto Magno75 e

_______________
71
Nascido em 1350 em Valência, entrou em 1367 na Ordem Dominicana. Pregava a necessidade de
conversão e faleceu em 1419, na Bretanha.
72
Nasceu em Florença no ano de 1376. Com 18 anos entrou para a Ordem dos Dominicanos. Foi
prior em Santa Maria Novella. Em 1406 assistiu o Conclave que escolheu o papa Gregório XII, do
qual iria se tornar confessor e conselheiro. Mais tarde tornou-se arcebispo de Ragusa e Cardeal.
Morreu em 1419 na Hungria.
73
Eckart de Hochheim nasceu em 1260 na Alemanha, foi frade dominicano e adquiriu o título de
Mestre devido aos títulos acadêmicos obtidos na Universidade de Paris. É considerado um dos
grandes expoentes do neoplatonismo e do misticismo. Teve sua ortodoxia questionada e foi
julgado pela Inquisição por 28 argumentos suspeitos de heresia. Antes de sua morte aceitou
renegar estes argumentos, mas não viveu para receber o seu veredicto. Morreu em 1328 na
Alemanha. Na década de 90 o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – Cardeal
Joseph Ratzinger – afirmou, ao ser questionado, que Eckhart deveria ser considerado ortodoxo,
uma vez que ele havia reconhecido qualquer erro que houvesse em suas obras, que não foi
efetivamente condenado e que as acusações que sobre ele pesavam baseavam-se em
documentos que não mais existem, impossibilitando a sua verificação.
74
Não se tem conhecimento pleno do nome dos fundadores. O que se sabe é que um deles se
chamava Alexandre Falconieri e os demais são conhecidos pelos seus sobrenomes: Monaldi,
Manetto, Buonagiunta, degli Amidei, Uguccioni e Sostegni.
75
Conhecido ainda como Alberto de Colônia, nasceu em 1193 na Baviera. Foi frade dominicano e
ordenado bispo de Ratisbona em 1260. Após três anos renunciou ao cargo para morar em um
mosteiro e continuar pregando. É considerado o fundador da mais antiga universidade alemã.
Escreveu obras dos mais variados assuntos, mas notadamente as filosóficas e teológicas. Morreu
em 1280 e foi proclamado Doutor da Igreja por Pio XI, conhecido como Doutor Universalis.
52

o beato Scotus76. Da Escolástica tardia, Roberto Belarmino77 e, desde então, apenas


santo Afonso Maria de Ligório78 – “o último grande teólogo que mereceu a honra dos
altares, e isso há mais de duzentos anos atrás” (BOFF, 2011, p. 182). É Secondin
(1994, p. 12-17) ainda quem afirma que, a partir desta geração, fragmentam-se os
saberes teológicos e abre-se um número infindável de expressões de piedades
populares nas quais estão quase que ausentes uma maior reflexão teológica. Se a
piedade cristã cai em várias práticas devocionistas, a reflexão teológica afasta-se da
espiritualidade para uma teologia de caráter mais acadêmico.
Merece destaque no século XIV a mística renana. Tendo notoriedade os
dominicanos Eckhart, Taulero79 e Suso80, ela pretende investigar o centro da alma,
na qual o Deus Uno e Trino está presente. Descrevem as etapas da oração.
Elaboram uma teoria da estrutura da alma evidenciando a oração contemplativa. A
estes místicos, unem-se outros, membros do movimento místico “Amigos de Deus”
(“Gottes freunde”), que visavam a reforma da vida religiosa. Ancilli (2012, vol.II, p
906) informa que uma das mais bem sucedidas tentativas de tornar as doutrinas
místicas acessiveis ao cristão comum vem de uma obra de um personagem anônimo
deste movimento – “Theologia germanica”.
Durante o século XV nasce um movimento espiritual de destaque – Devotio
Moderna. Influenciado pela mística alemã e pela espiritualidade franciscana se
caracterizou por um suave misticismo e um forte ascetismo, um esforço para
organizar a vida interior. Fruto deste movimento seria a conhecida obra “De
imitatione Christi” (“Imitação de Cristo”).
_______________
76
João Duns Scotus nasceu em Maxton, na Escócia em 1266. Lecionou na Universidade de Paris.
Pertenceu à Ordem Franciscana, foi mentor de William de Ockham. Faleceu em 1308. Ainda que
não proclamado, é conhecido como Doutor Subtilis.
77
Jesuíta italiano, nascido em 1542. Foi feito cardeal em 1599 pelo papa Clemente VIII. Faleceu em
1621 e em 1931 foi proclamado Doutor da Igreja pelo papa Pio IX.
78
Nascido em 1696 no Reino de Nápoles. Antes de ter sido ordenado padre (em 1726) teve uma
brilhante carreira em direito. Em 1732 fundou a Congregação do Santíssimo Redentor. Em 1762 foi
nomeado bispo de Santa Agata de Godos. Escreveu “Teologia Moral” e várias obras devocionais
como “As Glórias de Maria”, “Devoção Mariana”, “O Caminho da Cruz” etc. Morreu em 1787 e foi
proclamado Doutor da Igreja (Doutor Zelantissimus) em 1871 pelo papa Pio IX.
79
Também conhecido como Johannes Tauler, nasceu em 1300 em Estrasburgo teve por mestre
Mestre Eckhart. Conhecido por seus sermões, intensamente práticos, refletindo questões de moral
e da vida espiritual. Faleceu em 1361.
80
Henrique Seuse foi igualmente discípulo de Eckhart. Nasceu em 1295. Sua obras de devoção
foram bastante populares ao final da Idade Média.
53

A percepção na Modernidade propõe uma inversão de valores em relação à


Idade Média: o olhar se desloca do divino para o humano, do teocentrismo para o
antropocentrismo, da cultura religiosa para a cultura leiga, do transcendente para o
imanente e materialista. O ser humano se vê como o próprio centro do universo e,
portanto, autônomo em relação a Deus e acredita-se como capaz de resolver os
seus próprios problemas e os do mundo.
O humanismo e a Reforma Protestante modificam o panorama da
espiritualidade medieval. Os séculos XIII a XV viram a oração ser sistematizada a
partir de métodos, as congregações religiosas assumirem definitivamente as
atividades apostólicas e, apesar das tentativas de racionalização do cristianismo, as
grandes massas ainda estavam apegadas às tradições medievais (MONDONI, 2000,
p. 57-58). Este vigor dinâmico orientado mais para ação expressa-se pelas novas
instituições de caráter notadamente apostólico, tais como os jesuítas, os mínimos81,
os teatinos82, oratorianos83 entre outros (ANCILLI, 2012, vol. II, p. 907).
Como uma reação ao paganismo da Renascença e ao erros dos protestantes
evidencia-se, nos textos de espiritualidade da época, um caráter mais de combate e
luta. A aspiração a uma vida cristã mais íntima se explica, em parte, por parte do
sucesso de Lutero, dos iluminados e do movimento bíblico.
A noção e o método de oração se tornam mais precisos entre os séculos XIII
e XVI. Principalmente através de santo Inácio de Loyola 84 e os jesuítas, o método se
fixa completamente. Para Inácio era mais importante o espírito de oração do que o
aspecto material da oração. “Sem impor longas orações (reduziu a oração mental a
uma meia hora), exigia uma oração contínua: encontrar Deus em tudo, aproveitar de
tudo para subir até Deus” (ANCILLI, 2012, vol. II, p. 908). Segundo o método de
_______________
81
Fundada por São Francisco de Paula teve aprovação definitiva de seus estatutos em 1506. Sua
proposta espiritual está resumida no ideal evangélico de conversão. Se apoia sobre três aspectos
evangélicos: humildade, penitência e caridade.
82
A Ordem dos Clérigos Regulares da Divina Providência foi fundada em 1542 por São Caetano e
João Pedro Carafa, bispo de Chiete (Teati) de onde provém o nome “teatinos”.
83
Também conhecida como Ordem de São Filipe Néri é uma Socidade de Vida Apostólica fundada
em 1565 por São Filipe Néri. Destinada aos clérigos seculares, não professam votos de pobreza ou
obediência. Dedicam-se à educação cristã da juventude especialmente e a obras de caridade.
84
Nasceu em 1491 e fundou a Companhia de Jesus (jesuítas) em 1534, após um intenso percurso de
conversão que se iniciou após ter sido ferido na batalha de Pamplona (1521). Morreu em Roma em
1556.
54

oração propagado por Inácio e seus discípulos, o esforço da vontade ocupa um


lugar proeminente no plano divino de santificação. E para tanto o orante deve aplicar
todos os meios possíveis – sua imaginação, sensibilidade e raciocínio – para tirar o
máximo proveito do tempo dedicado à oração.
A partir da segunda metade do século XVI a espiritualidade espanhola
conquista a Europa com seus ascetas e místicos que unem a ação e a
contemplação. Eis alguns deles: João da Cruz85, Teresa de Ávila86, Inácio de Loyola,
Juan de Ávila87, Luis de Granada88. A escola carmelitana de João da Cruz e Teresa
ocupa-se do recolhimento e da união com Deus. Ambos dedicam-se em descrições
precisas do desenvolvimento da vida espiritual, inclusive de experiências místicas
mais elevadas.
Aproximadamente neste período a espiritualidade italiana mostrava-se mais
orientada para ação, especialmente para a reforma da Igreja e menos especulativa,
a exemplo de Catarina de Sena89. Representa esta espiritualidade o fundador do
Oratório – Filipe Néri90. Muitos dos brilhantes santos desta época se destacam mais

_______________
85
Sacerdote e frei carmelita, nascido em 1542 na Espanha foi um dos mais importantes expoentes da
Contrarreforma. Ordenado sacerdote em 1567 conheceu Teresa de Ávila da qual foi confessor e
co-fundador dos Carmelitas Descalços. Morreu em 1591 na Espanha. Autor de várias obras de
espiritualidade, dentre as quais se destacam os poemas “Cântico Espiritual” e “A Noite Escura da
Alma”, consideradas obras-primas da literatura espanhola.
86
Conhecida como Teresa de Jesus nasceu em 1515 na Espanha. Freira carmelita e mística foi uma
das reformadoras da Ordem Carmelita e fundadora com João da Cruz da Ordem dos Carmelitas
Descalços. Suas obras estão elencadas entre as mais notáveis da literatura mística da Igreja
Católica. Algumas delas: “O Caminho da Perfeição”, “O Castelo Interior” e “Autobiografia”. Faleceu
em 1582 na Espanha e foi declarada Doutora da Igreja em 1970 pelo papa Paulo VI.
87
Chamado de “Apóstolo da Andaluzia” nasceu em Almodóvar del Campo em 1499. Foi ordenado
sacerdote em 1526 e tornou-se excelente orador. Foi o primeiro reitor da Universidade de Baeza.
Morreu em 1569 em Córdoba. De suas obras destacamos: “Audi, filia”, “Epistolário espiritual para
todos os estados, além de vários sermões e conferências. Foi proclamado Doutor da Igreja em
2012 pelo papa Bento XVI.
88
Dominicano, natural de Granada, nasceu em 1504. Foi provincial de Portugal. Rejeitou a escolha
para ser bispo de Viseu, ser arcebispo de Braga e também para se tornar cardeal. Escreveu várias
obras em castelhano. Morreu em Lisboa em 1588.
89
Pertencia a Ordem Terceira dos Pregadores (Dominicanos), mestra espiritual. Sofreu muito na sua
família por ter rejeitado o casamento, bem como a vida religiosa. Experimentou o que é conhecido
como “casamento místico”. Lutou para que o papado de Gregório XI, que estava em Avinhão
(França), retornasse para Roma. Manteve uma intensa correspondência com o papa. Morreu em
Roma, em 1380.
90
Nascido em 1515 na cidade de Florença. Fundou a Congregação do Oratório que teve a aprovação
formal por parte do papa Gregório XIII, mas com a aprovação final dos estatutos somente
dezessete anos após a sua morte, que se passou em 1595.
55

pela vida que tiveram do que pelas obras literárias, por exemplo, Carlos Borromeu91
e Camilo de Lellis92.
Seguindo para o século XVII a espiritualidade na Itália preocupava-se mais
pelo exame de consciência do que por uma tendência mística. Propagava-se a
oração mental metódica e multiplicavam-se as devoções. Consequência disto foi
uma gradual separação entre a liturgia e a piedade popular. “A liturgia ia se tornando
formalista e vazia de espírito, ao passo que a piedade popular se refugiava às vezes
em práticas devotas sem base doutrinal” (ANCILLI, 2012, vol. II, p. 910).
Esta hegemonia, tanto política como espiritual, passa para a França no século
XVII. Uma adesão a Cristo em bases bíblicas e patrísticas enriquece a
espiritualidade pela colaboração do cardeal Bérulle93 e seus continuadores. Também
é deste período Francisco de Sales94, João Eudes95, Margarida Maria Alacoque96. O
culto ao Santíssimo Sacramento irrompe vigoroso (MONDONI, 2000, p. 63-65).
Alguns princípios doutrinais que foram fundamentais para a espiritualidade francesa
deste período: “‘o mistério de Cristo’, o valor e a prática da virtude da religião, a
doutrina sobre o sacerdócio, o culto à humanidade de Cristo e aos corações de
Jesus e Maria” (ANCILLI, 2012, vol. II, p. 911).

91
Cardeal italiano e arcebispo de Mião. Nasceu em Arona em 1538. Foi promotor da contrarreforma.
Morreu em 1584 em Milão.
92
Religioso italiano, nascido em 1550 em Bucchianico. Após uma vida desordenada, marcada pelo
jogo e a bebida, converteu-se em 1574. Foi ordenado sacerdote aos 34 anos de idade. Fundou a
Companhia dos Servidores dos Enfermos (Camilianos). Faleceu em 1614, em Roma.
93
Nasceu em 1575 em Cérilly, consagrou-se à conversão dos protestantes. Fundou a Congregação
do Oratório na França, estimulado por Filipe Néri. Foi criado cardeal pelo papa Urbano VIII em
1627. Morreu em 1629 em Paris.
94
Nasceu em 1567 no ducado de Saboia, foi ordenado sacerdote e mais tarde bispo de Genebra.
Sua obra mais famosa é “Introdução à Vida Devota”, escrito especialmente para os leigos. Fundou,
juntamente com Santa Joana Francisca de Chantal a Ordem da Visitação de Santa Maria
(Visitandinas) em 1610. Morreu em 1622 em Lyon. Foi proclamado Doutor da Igreja pelo papa Pio
IX em 1877.
95
Nasceu em 1601 na Vila de Ri (França). Após ter passado pela Congregação do Oratório funda a
Congregação de Jesus e Maria (Eudistas) em 1643, com a intenção de dar formação espiritual e
doutrinal aos padres. Fundou também uma congregação religiosa – Ordem de Nossa Senhora da
Caridade e uma associação para leigos. Faleceu em 1680 no norte da França.
96
Nascida em 1647 na Borgonha, Margarida recebeu a graça de uma manifestação visível de Jesus,
que iria se repetir por dois outros anos seguintes a 1673. Foi monja da Ordem da Visitação de
Santa Maria em Paray-le-Monial propagando a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Faleceu
em 1690.
56

A mística encontra terreno desfavorável no século XVIII devido ao Iluminismo,


ao racionalismo e ao naturalismo. Duas consequências do Iluminismo sobre a
espiritualidade: a secularização e a descristianização da sociedade (ou pelo menos
da elite intelectual). Afonso de Ligório, Paulo da Cruz97, Luis M. Grignion de
Monfort98 foram pregadores de uma espiritualidade forte, porém simples.
O século XIX recebe o influxo do século anterior desta resistência à mística e,
esvaziada de reflexões dogmáticas mais sólidas, a espiritualidade refugia-se na
ascética e nos preceitos mais práticos.
A mística une-se à missionariedade e são exemplos disso Dom Bosco99, João
Maria Vianey100, Frederico Ozanan101, Henry Newman102. Renasce a literatura
mística especialmente com Teresinha do Menino Jesus103, Elisabete da Trindade104
e Columba Marmion105.

_______________
97
Nasceu em Piemonte (Itália) em 1694 e, após abandonar a carreira militar, passa por um período
intenso de discernimento que desemboca na fundação da Congregação da Paixão de Jesus Cristo
(Passionistas). Faleceu em 1775 em Roma.
98
Em 1673 nasce Luis Maria em Montfort-sur-Meu. Foi ordenado sacerdote em 1700. Além da
pregação dedicou-se à escrita. Entre suas obras temos: “O Segredo de Maria”, “O Segredo do
Rosário” e a sua mais conhecida “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria”.
Faleceu em 1716.
99
Fundador da Pia Sociedade São Francisco de Sales (Salesianos) nasceu em 1815 em Becchi.
Fundou ainda as “Filhas de Maria Auxiliadora” (Salesianas), a Associação dos Salesianos
Cooperadores (para leigos e leigas). Faleceu em 1888 em Turim.
100
Nasceu em 1786 em Ródano (França). Foi ordenado sacerdote em 1815, ainda que seus
superiores o achassem incapaz para os estudos. Se tornou um dos mais competentes confessores
da Igreja. Tornou-se pároco de Ars em 1818 e logo o local tornou-se centro de peregrinações
devido ao seu empenho em suas funções, sua vida de penitência e suas longas horas de
confissão. Faleceu em 1859. É considerado o padroeiro dos sacerdotes.
101
Nasceu em 1813 em Milão. Apaixonado pela filosofia, entra em Sorbona em 1831. Fundou em
1833 as Conferências de São Vicente de Paulo. Em 1844 tornou-se titular da cátedra de Línguas
Estrangeiras na Universidade de Sorbona. Morreu em 1853 em Marselha.
102
John Henry Newman nasceu em Londres em 1801. Foi ordenado sacerdote anglicano e um dos
líderes do “Movimento de Oxford”. Converteu-se ao catolicismo em 1845 e ordenado sacerdote em
1847. Foi reitor da Universidade Católica da Irlanda (1854). Papa Leão XIII criou-o cardeal em
1879. Faleceu em 1890.
103
Nascida Maria-Françoise-Thèrese Martin em 1873, em Alençon (França), ficou conhecida como
Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face. Com apenas quinze anos de idade
conseguiu autorização para entrar na comunidade carmelita em Lisieux. Sua obra mundialmente
conhecida é “A História de uma Alma”. Faleceu em 1897 e foi proclamada Doutora da Igreja pelo
papa João Paulo II em 1997.
57

A contemporaneidade - a partir do século XX - contempla a explosão da ideia


do progresso – seus benefícios e destruições (como foram as duas grandes guerras,
a bomba atômica, a divisão do mundo em blocos). E a partir deste período
percebemos várias correntes espirituais que estendem seus influxos até os dias de
hoje. Ancilli (2012, vol. II, p. 912-914) as apresenta em cinco formas:
a) mística-contemplativa: salienta a atenção do chamado de todos à
contemplação. Alguns teólogos representativos: Arintero106,
Garrigou-Lagrange107. Outro grupo pesquisou as relações da
mística cristã com a não-cristã: Maritain108, Maréchal109, Rudolf
Otto110, Mircea Eliade111, Elémire Zolla112 etc.;

104
Em 1880 nasce Elisabete (ou Isabel) Cates na França. Entrou no Carmelo em 1901. Distingue-se
pela sua espiritualidade trinitária e entre sua obras temos: “Elevações”, “Retiros”, “Notas
Espirituais” e “Cartas”. Faleceu em 1906.
105
Nasceu em Dublin (Irlanda) em 1858 e foi ordenado sacerdote em 1881. Mais tarde entrou na
Abadia de Maredsous (Bélgica) e professou seus votos solenes em 1891. Desta mesma abadia
tornou-se abade em 1909. Das suas obras se destacam: “Cristo, vida da alma”, “Cristo em seus
mistérios” e “Cristo, ideal do monge”. Faleceu em 1923.
106
Padre dominicano espanhol, nascido em 1860, Juan González Arintero foi especialista em ciências
naturais. Fundou a revista “A Vida Sobrenatural”. Escreveu a obra “Questões místicas e o ideal
cristão”. Para ele a mística era o caminho ordinário da vida cristã. Faleceu em 1928.
107
Frade dominicano nascido em 1877 na França. Lecionou no Angelicum entre 1909 e 1960. Ficou
conhecido por escrever contra os modernistas, mas também por seus textos espirituais de
profundo pensamento teológico. Escreveu 28 livros e inúmeros artigos. Faleceu em Roma em
1964.
108
Jacques Maritain nasceu em 1882 em Paris. Em Heidelberg conhece aquela que seria a sua
esposa – Raisa Oumansoff – uma imigrante judia. Não encontra no cientificismo de Sorbonne as
respostas de suas inquietações, pelo que decide se suicidar com Raisa. Seguem, porém, o
conselho de seu amigo em comum – Charles Péguy – não se suicidam e entram no curso de Henri
Bergson. Através de Leon Bloy aproximam-se da Igreja Católica e se convertem.
Ensinou em vários colégios e Universidades. Influenciou a ideologia da democracia-cristã. Possui
um vasto elenco de obras. Morreu em 1973 em Tolosa.
109
Joseph Maréchal nasceu em 1878 em Leuven (Bélgica). Entrou na Congregação dos Jesuítas em
1895 e se doutorou em biologia em 1905. Estudou a psicologia da mística. Faleceu em 1944.
110
Nasceu em 1869 no Norte da Alemanha. Foi um eminente teólogo luterano. Se tornou professor
da Universidade de Breslau em 1915 e em 1917 na Universidade de Marburg, um dos mais
prestigiados seminários protestantes de então. Faleceu em 1937. Influenciou vários teólogos e
filósofos da religião do século XX. Sua obra mais conhecida é “O Sagrado”.
111
Nascido em 1907 em Bucareste foi professor, historiador das religiões, mitólogo, filósofo e
romancista. Escrevia fluentemente em oito idiomas (francês, romeno, italiano, alemão, inglês,
hebraico, persa e sânscrito). Fez parte dos Círculos Eranos. Foi profícuo escritor. Entre outras
obras, citamos: “Cosmos e História: O Mito do Eterno Retorno”, “O Sagrado e o Profano: A
Natureza da Religião”, “Ritos e Símbolos de Iniciação”, entre vários outros. Faleceu em Chicago
em 1986.
58

b) cristocêntrica-eclesial: valoriza a centralidade do mistério de Cristo,


a atenção e participação da missa, a dimensão mística e sagrada
da Igreja e uma espiritualidade mais escatológica, ecumência,
dinâmica apostólica e socialmente comprometida. São
representantes desta corrente: Journet113, Rahner114, Congar115,
Schillebeeckx116, de Lubac117 etc.);
c) bíblica-litúrgica: procura ressaltar as riquezas doutrinais e espirituais
da Escritura (como Barsotti118). Em relação ao aspecto litúrgico
deve-se apontar Dom Guéranger119 (ainda no século XIX),

112
Escritor, filósofo e historiador italiano era conhecedor da doutrina esotérica e estudioso da mística
ocidental e oriental. Nasceu em 1926 em Torino na Itália. Fundou a revista “Conoscenza
Religiosa”, em 1969. Algumas de suas obras: “O sincretismo”, “A origem do trascendentalismo”, “A
potência da alma” entre várias outras. Faleceu em 2002.
113
Charles Journet nasceu em 1891 e foi teólogo suíço. Amigo de Maritain, foi professor de teologia
dogmática em Friburgo e Genebra. Escreveu a obra em dois volumes “A Igreja do Verbo
Encarnado”, examinando a natureza e o significado da Igreja. Participou do Concílio Vaticano II,
bem como da revisão do Catecismo Holandês. Foi criado cardeal pelo papa Paulo VI em 1965.
114
Um dos mais importantes teólogos católicos do século XX. Nasceu em 1904 na Alemanha. Além
da dogmática, ecumenismo, pluralismo religioso, ética, Rahner produziu muitos textos de cunho
espiritual. Participou como teólogo do Concílio Vaticano II. Foi um dos fundadores da revista
Concilium (em 1965). Escreveu inúmeras obras (vários livros e mais de 800 artigos). Faleceu na
Áustria em 1984.
115
Yves-Marie-Joseph Congar nasceu em Sedan (França) em 1904. Foi ordenado padre em 1930.
Durante a II Guerra Mundial este preso em campo de concentração. Durante o Concílio Vaticano II
participou na qualidade de consultor. Sua área específica foi a eclesiologia, para a qual trouxe
importantes contribuições. Em 1994 foi criado cardeal pelo papa João Paulo II. Faleceu em 1995
em Paris.
116
Teólogo belga, Edward Schillebeeckx nasceu na Antuérpia em 1914. Sendo dominicano foi
ordenado padre em 1941. Foi professor na Universidade de Lovaina (Bélgica), mais tarde, de
Nimega (Holanda). Foi conselheiro no Concílio Vaticano II. Foi um dos fundadores da revista
Concilium. Dentre suas inúmeras obras, destacamos: “Jesus, a história de um vivente” e “Cristo e
os cristãos”. Faleceu na Holanda em 2009.
117
Henri-Marie de Lubac nasceu no ano de 1896, na França. Foi professor de Teologia Fundamental
e de História das Religiões. Participou como perito do Concílio Vaticano II e fundou, com outros
teólogos, a revista Communio. Foi criado cardeal em 1983 pelo papa João Paulo II. Morreu em
1991 em Paris.
118
Nascido em 1914 e falecido em 2006, pe. Divo Barsotti foi profícuo escritor (estima-se em mais de
quinhentos títulos – livros e artigos). Tornou conhecidas na Itália as figuras dos santos russos
Sergei, Serafim e Silvano. Fundou em 1948 a Comunidade dos Filhos de Deus, hoje espalhada por
todo o mundo.
119
D. Prosper-Louis-Pascal Guéranger foi abade de Solesmes e fundador da Congregação da Ordem
de São Bento na França. Nasceu em 1805, aprofundou-se na Patrística e foi um inspirador do
movimento francês de restauração litúrgica. Entre suas obras temos: “Instituições litúrgicas” e “O
ano litúrgico”. Faleceu no ano de 1875.
59

Beauduin120, Festugière121, Odo Casel122, Romano Guardini123. Mais


proximamente outros aprofundaram-se nas relações da liturgia e
espiritualidade, tais como Bouyer124, Daniélou125, Vagaggini126 etc.;
d) patrística: retoma o tesouro espiritual dos Padres da Igreja como
retorno às fontes da piedade cristã. Alguns nomes: de Lubac,
Danièlou, von Balthasar127 etc.;
e) abertura aos valores terrenos: Teilhard de Chardin128 reflete sobre a
necessidade de ultrapassar a visão dualista da espiritualidade. Para
_______________
120
O monge beneditino Lambert Beauduin nasceu na Bélgica em 1873. Foi pioneiro do Movimento
Litúrgico e do Movimento Ecumênico. Faleceu em 1960.
121
Maurice Festugière nasceu em 1870. Foi ordenado padre em 1900 e eleito abade da Abadia
beneditina Saint-Benoit de Maredsous. Se destaca pela sua aproximação filosófica e
fenomenológica da liturgia. Faleceu em 1950. Uma de suas obras: “A Liturgia Católica”.
122
Monge beneditino e teólogo liturgista, Odo Casel nasceu em 1886 em Coblenza (Alemanha) e foi
ordenado sacerdote em 1911. Sua obra-prima é “O Mistério do Culto Cristão”. Faleceu em 1948.
123
Sacerdote, escritor e teólogo, nasceu em Verona no ano de 1885. Foi professor em Tübingen e em
Munique. Apesar de ter sido escolhido como cardeal em 1965, pelo papa Paulo VI, Guardini
declinou. Entre as suas várias obras, se destaca: “O Espírito da Liturgia”. Faleceu em Munique no
ano de 1968.
124
Ministro luterano que se converteu ao catolicismo em 1939, Louis Bouyer nasceu em 1913 em
Paris. Tornou-se sacerdote católico e foi professor no Instituto Católico de Paris. Pertenceu à
Comissão Teológica Internacional por dois mandatos e foi consultor para liturgia do Concílio
Vaticano II. Faleceu em 2004 em Paris.
125
Jean Danièlou nasceu em 1905 na França e foi ordenado padre jesuíta em 1938. Fundou com
Henri de Lubac a revista Source Chrétiennes em 1944. Foi arcebispo e em 1969 criado cardeal
pelo papa Paulo VI. Faleceu em 1974. Suas obras versam principalmente sobre os Padres da
Igreja.
126
Nascido na Itália em 1909 se tornou monge e teólogo na Congregação Camaldulense da Ordem
de São Bento. Foi um dos expoentes do Movimento Litúrgico italiano. Foi professor de Liturgia no
Instituto Regina Mundi, na Itália. Entre suas obras principais temos: “O senso teológico da Liturgia”.
Faleceu em 1999.
127
Hans Urs von Balthasar nasceu em Lucerna (Suíça) em 1905 e se tornou sacerdote em 1936.
Fundou a Comunidade de São João, juntamente com Adrienne von Speyr (uma viúva convertida
ao catolicismo). Foi um dos fundadores da revista Communio. Era amigo pessoal de Joseph
Ratzinger e o teólogo preferido do papa João Paulo II. Defendia uma “teologia genuflexa”. Foi uma
das grandes ausência no Concílio Vaticano II. Não recebeu o barrete cardinalício em 1988 pelas
mãos do papa João Paulo II, pois faleceu dois dias antes.
128
Pierre Teilhard de Chardin nasceu em 1881. Foi padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo.
Buscou idealizar uma visão conciliadore entre a ciência e a teologia. Em vida recebeu várias
críticas e condenações acerca de seus trabalhos, pesquisas, estudos e textos. São várias as suas
obras, citamos: “O Meio Divino”, “Hino do Universo”, “O Fenômeno Humano”. Faleceu em 1955 em
Nova York. Após um reconhecimento oficial de sua obra em 1981, seu pensamento foi aos poucos
sendo incorporado ao discurso oficial da Igreja.
60

Teilhard o mundo, a partir da compreensão da criação e mais ainda


da encarnação, não é profano. Propõe uma comunhão com Deus
através da terra (CHARDIN, 1959 apud DE FIORES, 1999, p. 16-
17). Em Marie Dominique-Chenu129 o trabalho humano adquire
valor de objeto de reflexão teológico e é a continuação da criação
do mundo e construção do Reino de Deus. A humanização se
realiza concretamente na história humana e a pessoa é um ser-em-
relação e se realiza completamente quando está em comunidade
(CHENU, 1955 apud DE FIORES, 1999, p. 18).
Philippe Roqueplo alerta para alguns perigos possíveis à
espiritualidade do ser humano atual – realizar o encontro com Deus
somente nos momentos ditos religiosos, sem dar significado
espiritual à sua vida completa; não integrar completamente os
valores da oração e dos sacramentos (ROQUEPLO, 1972 apud DE
FIORES, 1999, p. 18-19).
Fundamental é assinalar o maior evento eclesial do século XX, que foi o
Concílio Vaticano II e seus desdobramentos, como já salientado na subseção
anterior. É através dele que se redescobre a pessoa do Espírito Santo, a dignidade
da pessoa humana, a antropologia teológica, a volta às fontes e a abertura ao
mundo.
Como mencionado em subseção precedente, retomamos aqui algumas
compreensões do que seja a espiritualidade cristã advinda dos documentos do
Concílio Vaticano II.
Diante dos novos desafios que se apresentavam à Igreja Católica,
especificamente a secularização e a pluralidade, houve a necessidade de uma
reapresentação do cristianismo. O mundo de então não era mais teocêntrico e o
religioso não era mais a matriz do conhecimento. A proposta cristã “não era mais a
única, mas uma entre tantas” (BINGEMER, 2015, p. 372). A Igreja era instada a
dialogar com este mundo e nele encontrar a Deus. A espiritualidade cristã, portanto,
era reproposta levando em conta este panorama.

_______________
129
Nascido na França em 1895, tornou-se padre dominicano. Foi professor da Sorbonne e participou
do Concílio Vaticano II na qualidade de consultor. Um dos fundadores da revista Concilium.
Faleceu em 1990. Entre suas obras está: “Povo de Deus no mundo”.
61

Diante deste quadro, uma espiritualidade que fosse apenas verticalidade ou


que se apresentasse como fuga mundis não encontraria pontos de diálogo com o
mundo. Era necessário que a espiritualidade cristã se encarnasse na história e nas
realidades humanas. Significativo é o parágrafo com o qual a Constituição
Dogmática Gaudium et Spes inicia:

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de


hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não
encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por
homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua
peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da
salvação para comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e
intimamente ligada ao gênero humano e à sua história (GS 1).

A espiritualidade cristã deve, ao identificar-se com a história própria da


humanidade, preocupar-se definitivamente com as questões deste mundo. Para a
percepção cristã, o mundo não deve ser olhado de forma ingênua e alienada como
se fosse isento do pecado e da maldade, nem tampouco como se fosse território
diabólico, estranho à cosmovisão cristão. Todo e qualquer desafio que, da parte do
mundo se coloca diante da proposta cristã, deve ser confrontado com uma atitude
de compreensão e transformação.
A luta pelo bem comum deve permear a espiritualidade cristã, pois ela deve
ser eminentemente solidária e social. Maria Clara (BINGEMER, 2015, p. 369) cita a
Constituição Gaudium et Spes, percebendo aí uma característica da espiritualidade
que emana do Concílio Vaticano II – uma espiritualidade que recupera a dimensão
comunitária e social da santificação e da salvação:

[...] onde os seres humanos são chamados a desenvolver em si mesmos e


no mundo em que vivem novas e renovadas atitudes, cultivando “em si
mesmos e difundindo na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira
a tornarem-se realmente, com necessário auxílio da graça divina, homens
novos e construtores duma humanidade nova” (GS 30) (BINGEMER, 2015,
p. 369).

A espiritualidade cristã deve propiciar a inseparabilidade destes dois deveres:


o amor ao próximoeo amor a Deus, como equivalentes. Ambos como consequência
do mandamento de Jesus Cristo expresso no Segundo Testamento, mas já
igualmente manifestado no Primeiro. O amor a Deus e amor ao próximo são
62

correspondentes, portanto, segundo a ótica cristã. O olhar do cristão deve se


projetar para o alto em direção do Eterno e Transcendente, mas igualmente um
olhar horizontal em direção ao seu próximo e as realidades seculares que o cercam.
Esta preocupação perpassa os documentos conciliares. Assim se expressa a
Constituição Pastoral Conciliar ao sublinhar o descompasso entre o crescimento das
realidades terrenas e aquelas relacionadas às realidades espirituais: “[...] procura-se
com todo o empenho uma ordem temporal mais perfeita, mas sem que a
acompanhe um progresso espiritual proporcionado” (GS 4).
O Concílio foi antecedido de vários movimentos e, destacamos aqui, o
Movimento Bíblico, que teve a sua origem nas décadas de vinte e trinta do século
passado e se aproveitou dos avanços de várias ciências auxiliares, como a
linguística, a arqueologia, a ciência comparada das religiões etc. Comprovadamente
este movimento teve uma influência decisiva na elaboração da Constituição Dei
Verbum e é deste documento que percebemos o estímulo dado à leitura das
Sagradas Escrituras como fonte de espiritualidade: “[...] assim também é lícito
esperar um novo impulso de vida espiritual, se fizermos crescer a veneração pela
palavra de Deus, que ‘permanece para sempre’” (Is 40,8; cf. 1 Pd 1,23-25)” (DV 26).
Outra perspectiva apontada por Maria Clara (BINGEMER, 2015, p. 371),
ainda no mesmo verbete “Espiritualidade”, a respeito da influência do Concílio
Vaticano II, é a de que a espiritualidade cristã deve não somente tolerar os
elementos de espiritualidade das outras religiões, mas que, no diálogo sincero e
franco possa, inclusive, redescobrir novas compreensões para si. É nessa
perspectiva que a Declaração Nostra Aetate (sobre a Igreja e as religiões não-
cristãs) afirma:

Exorta, por isso, os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo
diálogo e colaboração com os sequazes doutras religiões, dando
testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os
bens espirituais e morais e os valores sócio culturais que entre eles se
encontram (NA 2 – grifo nosso).

Pode-se, concordando com a afirmação de Maria Clara (BINGEMER, 2015, p.


367), resumir as posições do Concílio Vaticano II a respeito da espiritualidade cristã
desta forma:
63

[...] embora o Concílio não tenha a pretensão nem a intenção de criar e


apresentar uma espiritualidade própria sua, diferente da que foi
desenvolvida pela Igreja até o momento do evento conciliar, preocupa-se,
sim, em mostrar a importância de uma espiritualidade que integre espírito e
corpo, história e eternidade, humano e divino, mística e política.

Para Danilo as linhas de força da espiritualidade cristã pós-conciliar podem


ser traduzidas no sentimento eclesial e comunitário, na ânsia do absoluto, no retorno
às fontes da vida cristã (Bíblia, liturgia, Padres), na abertura ao mundo, e no
engajamento (MONDONI, 2000, p. 72-76).
Concluindo este nosso longo percurso, podemos entender que esta vivência
da espiritualidade não aconteceu sempre de forma pacífica, cordial e consensual,
mas, ainda assim, no decorrer dos séculos houve um enriquecimento da linguagem
e da práxis teológica da Igreja. As vivências da espiritualidade cristã ao longo da
história são resultantes das vidas vividas de inúmeros cristãos e cristãs anônimos,
dos religiosos e religiosas, dos santos e santas que, no anseio de melhor responder
à interpelação da fé, experimentaram a relação com o Deus Uno e Trino. E esta
experiência foi alargada ou apequenada, acomodada ou confrontada de acordo com
cada contexto histórico. É partindo desta premissa que este estudo acredita
entender as novas formas de espiritualidade cristã. À semelhança de outros tantos
na história, o cristão pós-moderno (teólogo, clérigo, religioso, leigo, com um cargo
eclesial ou apenas um batizado) relaciona-se com Deus e com o mundo,
influenciando e sendo influenciado pelas aspirações espirituais que surgem
atualmente. Queremos demonstrar que as características da pós-modernidade e as
reflexões teologais a partir dela poderão definir novos estilos ou modalidades para a
espiritualidade cristã:

As grandes elaborações teológicas, hoje, são as que se conjugam com o


pentagrama da esperança e, não mais com as grandes abstrações
dogmáticas. O cristianismo deve saber propor menos doutrina e mais
espiritualidade, menos organização e mais valores vitais (SECONDIN, 2002,
p. 13).

A tradição cristã sempre soube repropor seu conteúdo doutrinal, bem como
sua reflexão sobre a espiritualidade de acordo com cada cultura ou época histórica.
Pensamos que não será diferente agora na pós-modernidade, e é este processo de
“acomodamento”, por assim dizer, que estamos a contemplar.
64

3 O CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE

“Pós-modernidade” - termo que teve sua utilização generalizada e foi utilizado


por inúmeras áreas do conhecimento e tem a sua compreensão dada como suposta
por todos da mesma forma. Na verdade estamos diante de uma palavra polissêmica
e que, inclusive, é muitas vezes substituída por outras expressões que poderão
apontar para significados diferentes.
Neste capítulo iremos explorar este termo e o faremos a partir da origem do
mesmo. Em seguida estabeleceremos algumas distinções com seus correlatos.
Evidenciaremos algumas características principais do período de tal forma que se
possa compreender as possibilidades que se apresenta à fé cristã e,
consequentemente, à espiritualidade.

3.1 ORIGEM DO TERMO “PÓS-MODERNIDADE”

Recorrendo ao Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis


encontramos dois significados para o substantivo pós-modernismo:

1 Estilo artístico que, seguindo-se a um estilo denominado modernismo,


representa uma reação contrária ao mesmo, ou afastamento de seus
princípios. 2 Arquit Estilo caracterizado pelo uso de materiais tradicionais e
o retorno a algum estilo mais antigo (especialmente o clássico).

De forma bastante ampla e genérica podemos dizer que “pós-modernismo”


(ou “pós-modernidade”) é o termo utilizado para designar aquelas mudanças
ocorridas nas artes, na arquitetura, na moda, nas ciências em geral a partir de 1950.
Seria possível definir alguma data precisa em que se deu a gênese da pós-
modernidade? Alguns autores julgam que sim. Vejamos:

Simbolicamente o pós-modernismo nasceu às 8 horas e 15 minutos do dia 6


de agosto de 1945, quando a bomba atômica fez boooom sobre Hiroshima.
Ali a modernidade – equivalente à civilização industrial – encerrou seu
capítulo no livro da História, ao superar seu poder criador pela sua força
destruidora. Desde então o Apocalipse ficou mais próximo (SANTOS, 2004,
p. 7).
65

Já Harvey, ao vincular o termo à esfera da arquitetura (a segunda noção


oferecida pelo nosso dicionário citado acima), recorre uma data bastante precisa da
entrada na pós-modernida, data esta apontada por Charles Jencks:

Charles Jencks data o final simbólico do modernismo e a passagem para o


pós-modernismo às 15h32min. de 15 de julho de 1972, quando o projeto de
desenvolvimento da habitação Pruitt-Igoe, de St. Louis (uma versão
premiada da "máquina para a vida moderna" de Le Corbusier), foi
dinamitado como um ambiente inabitável para as pessoas de baixa renda
que abrigava. O centro dessa obra, como diz o seu título, era insistir que os
arquitetos tinham mais a aprender com o estudo de paisagens populares e
comerciais (como as dos subúrbios e locais de concentração de comércio)
do que com a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários. Era hora,
diziam os autores, de construir para as pessoas, e não para o Homem
(HARVEY, 2008, p. 45).

Perry Anderson dedica toda uma obra (“As origens da pós-modernidade”)


para explorar as origens do pós-modernismo130 e, segundo as suas pesquisas, o
termo é bastante mais antigo que os eventos já mencionados:

[...] a ideia de um “pós-modernismo” surgiu pela primeira vez no mundo


hispânico, na década de 1930, uma geração antes do seu aparecimento na
Inglaterra ou nos Estados Unidos. Foi um amigo de Unamuno e Ortega,
Frederico de Onís, quem imprimiu o termo postmodernismo. Usou-o para
descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo [...] a ideia
de um estilo “pós-moderno” entrou para o vocabulário da crítica
hispanófona, embora raramente usada por escritores subsequentes com a
precisão que ele lhe dava; mas não teve maior ressonância (ANDERSON,
131
1999, p. 9-10) .

Em torno de uns vinte anos após o surgimento do termo no mundo


hispanófono, Arnold Toynbee, ao retomar a sua obra Study of History (iniciada em
1934), classifica a época logo após a guerra franco-prussiana132 de “idade pós-
_______________
130
No prefácio de sua obra Anderson explica que seu livro teve origem a partir de uma introdução do
livro de Frederic Jameson – The Cultural Turn – para o qual ele foi convidado a escrever a dita
introdução. Ao perceber que sua introdução havia ficado demasiado extensa, decidiu publicar o
referido texto na forma de uma obra independente.
131
Gostaríamos de anotar que o livro bastante interessante da professora Mary Rute Gomes
Esperandio: “Para entender Pós-Modernidade” se remete, igualmente, ao texto que ora utilizamos.
Preferimos recorrer à fonte por uma questão de enfoque.
132
Também chamada de guerra franco-germânica teve lugar entre 19 de julho de 1870 e 10 de maio
de 1871. Foi um conflito resultante das acomodações de poder que se seguiram às Guerras
Napoleônicas (entre 1803 e 1815). A guerra se inicia por uma provocação do chanceler prussiano
Otto von Bismarck. Ela se encerra através do Tratado de Frankfurt. Por este Tratado a França
passou o domínio da região da Alsácia-Lorena para o Império Alemão e foi obrigada ao pagamento
de uma elevada indenização de guerra.
66

moderna”. Esse termo utilizado por Toynbee tinha uma conotação negativa em
relação à modernidade. Para ele a “vida Moderna sadia, segura e satisfatória tinha
milagrosamente chegado para ficar, como um eterno presente” (ANDERSON, 1999,
p. 12). O período que se seguiria (violentado pelas duas Grandes Guerras)
evidenciava que, estando à beira de um colapso nuclear, a civilização ocidental
tornou-se universal, contudo “prometia enquanto tal apenas a ruína mútua de todos”
(ANDERSON, 1999, p. 12).
Seus argumentos e o pessimismo com o qual carregava o termo pós-
modernismo caíram no esquecimento e a sua obra foi abandonada. Mas em 1951,
Charles Olson em uma carta dirigida ao poeta Robert Creeley fala de um mundo
“pós-moderno” que estaria situado imediatamente após a época imperial dos
Descobrimentos e da Revolução Industrial. Dizia ele: “A primeira metade do século
XX foi o pátio de manobras em que o moderno virou isso que temos, o pós-Moderno,
ou pós-Ocidente” (OSLSON apud ANDERSON, 1999, p. 12-13).
Ao final da década de 50 o termo reapareceu através de dois teóricos. O
sociólogo Charles Wright Mills utilizou-o para:

indicar uma época na qual os ideais modernos do liberalismo e do


socialismo tinham simplesmente falido, quando a razão e a liberdade se
separaram numa sociedade pós-moderna de impulso cego e conformidade
vazia (ANDERSON, 1999, p. 18-19).

Já o crítico social e literato americano Irving Howe valeu-se do termo para:

descrever uma ficção contemporânea incapaz de sustentar a tensão


modernista com uma sociedade circundante cujas divisões de classe
tornavam-se cada vez mais amorfas com a prosperidade do pós-guerra
(ANDERSON, 1999, p. 19).

Ambos compreendiam que a época de então corresponderia a uma involução


do modernismo, caracterizado como um período de falência dos seus ideais.
Na década de 60 o crítico Leslie Fiedler realizou uma conferência organizada
pela CIA como uma frente intelectual durante o período conhecido como Guerra
Fria. Na ocasião a “literatura pós-moderna” acolhia e representava uma geração de
jovens americanos excluídos por terem objetivos muito distantes daqueles
propalados pela sociedade de então. Uma geração que se dava ao desinteresse, às
lutas pelos direitos civis e aos alucinógenos (cf. ANDERSON, 1999, p. 19).
67

Ao abordar os desenvolvimentos pelos quais o termo passou na década de


setenta, Perry Anderson marca como decisivo o lançamento, em 1972, de um
periódico intitulado “Revista de Literatura e Cultura Pós-Modernas”. Nesse número
inicial havia um ensaio fundamental de autoria de David Antin com o título
“Modernismo e Pós-Modernismo: abordando o presente na poesia americana”.
Explorava-se então o vigor do presente pós-moderno que se desenvolvia às custas
da decadência da ortodoxia poética dos anos 60.
É de Ibn Hassan, no ano de 1980, um esquema classificatório das diferenças
dos paradigmas modernos e pós-modernos (Tabela 1). Em sua publicação “The
Question of Postmodernism” Hassan levantava um problema mais complexo a se
resolver – se o conceito de pós-modernismo poderia ser aplicado como fenômeno
social ou se estava restrito a uma tendência artística. Igualmente perguntava-se:
“neste caso, como se juntam e separam os vários aspectos desse fenômeno –
psicológicos, filosóficos, econômicos, políticos?” (ANDERSON, 1999, p. 26). Esta
percepção era pioneira – estender o conceito de pós-moderno a outros campos que
não somente o da arte ou literatura. Na introdução de sua obra “The Postmodern
Turn” Hassan indica o que ele considerava uma viragem do pós-moderno:

o próprio pós-moderno mudou, dando, a meu ver, a guinada errada.


Encurralado entre a truculência ideológica e a ineficácia desmistificadora,
preso no seu próprio kitsch, o pós-modernismo tornou-se uma espécie de
pilhéria eclética, refinada lascívia de nossos prazeres roubados e
descrenças fúteis (HASSAN apud ANDERSON, 1999, p. 27-28).

Porém foi a arte, à qual Hassan menos deu atenção, que impulsionou o termo
para o domínio público.

Tabela 1: Diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-modernismo

Modernismo Pós-modernismo
romantismo / simbolismo parafísica / dadaísmo
forma (conjuntiva, fechada) antiforma (disjuntiva, aberta)
Propósito jogo
Projeto acaso
Hierarquia anarquia
68

domínio / logos exaustão / silêncio


objeto de arte / obra acabada processo / performance / happening
distância participação
criação / totalização / síntese descriação / desconstrução / antítese
presença ausência
centração dispersão
gênero / fronteira texto / intertexto
semântica retórica
paradigma sintagma
hipotaxe parataxe
metáfora metonímia
seleção combinação
raiz / profundidade rizoma / superfície
interpretação / leitura contra a interpretação / desleitura
significado significante
lisible (legível) scriptible (escrevível)
narrativa / grande histoire antinarrativa / petite histoire
código mestre idioleto
sintoma desejo
tipo mutante
genital / fálico polimorfo / andrógino
paranoia esquizofrenia
origem / causa diferença-diferença / vestígio
Deus Pai Espírito Santo
metafísica ironia
determinação indeterminação
transcendência imanência
Fonte: Hassan apud Harvey (2008, p. 48)

No campo filosófico a noção de pós-modernidade tem o seu primeiro registro


através da conhecida obra “A Condição Pós-Moderna” de Jean-François Lyotard que
foi publicada em 1979 em Paris. Lyotard já tinha estado em contato com Hassan
através de uma conferência em 1976 e assumido este conceito. Para Lyotard o
69

conceito de pós-modernidade compreende o conhecimento como principal força


econômica da produção dentro de uma sociedade pós-industrial. A pós-modernidade
é caracterizada, para Lyotard, como a perda da credibilidade das metanarrativas,
que foram os mitos justificadores da modernidade133. As narrativas entretanto não
desaparecem, adquirem, porém, uma forma muito mais reduzida, miniaturizadas.
Sem dúvidas esta obra de Lyotard foi a que trouxe maior repercussão a
respeito da pós-modernidade entre o público em geral e até hoje é uma das mais
citadas quando o tema é mencionado.
Um ano após a publicação da obra de Lyotard, o filósofo e sociólogo alemão
Jürgen Habermas134 pronuncia um discurso em Frankfurt, ao receber uma
premiação. O título de seu discurso era “Modernidade – um projeto incompleto”. Era
uma abordagem crítica em relação à ideia da pós-modernidade. Não foi exatamente
uma crítica à obra de Lyotard que, segundo Anderson (1999, p. 44), Habermas
provavelmente não conhecia. Em que exatamente a modernidade, segundo
Habermas, havia falhado? Anderson (1999, p. 45) nos esclarece a distinção do
pensamento de Habermas a esse respeito:

O projeto iluminista da modernidade tinha duas vertentes. Uma era a


diferenciação pela primeira vez entre ciência, moralidade e arte, não mais
fundidas numa religião revelada mas como esferas de valor autônomas,
cada uma governada por suas próprias normas: verdade, justiça, beleza. A
outra era a soltura desses domínios recém-libertados no fluxo subjetivo da
vida cotidiana, interagindo para enriquecê-la. Foi este programa que perdeu
o rumo. Porque, em vez de penetrar os recursos comuns da comunicação
diária, cada esfera tendeu a desenvolver-se em uma especialidade
esotérica, fechada ao mundo dos significados ordinários.

Habermas considerava que o projeto da modernidade não havia sido ainda


realizado, acreditava, porém, que as chances disso acontecer não eram muito boas.

_______________
133
Lyotard reconhecia duas destas metanarrativas – a Revolução Francesa que pretendia pelo
conhecimento ser instrumento da humanidade para realizar heroicamente a sua própria libertação;
e a outra, oriunda do idealismo alemão, que enxergava a verdade sendo progressivamente
revelada através do espírito. Anderson (1999, p. 39) afirma ainda que Lyotard, nos anos
posteriores à publicação de seu livro, acrescentou à esta lista outras tantas metarrativas que,
segundo ele, teriam sido eclipsadas: “a redenção cristã, o progresso iluminista, o espírito
hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista, o equilíbrio keynesiano”.
134
Nascido em 18 de junho de 1929, membro da Escola de Frankfurt. Aposentou-se em 1994 quando
estava lecionando na Universidade Johann Wolfgang von Goethe, em Frankfurt. Continua ativo,
porém, através da pesquisa, palestras, conferências e publicações. É conhecido por seu trabalho
sobre a modernidade. Trata igualmente dos fundamentos da teoria social e da epistemologia.
Pesquisa a democracia nas sociedades que estão sob o capitalismo avançado.
70

Segundo Anderson ainda (1999, p. 46) esta dificuldade residia justamente na


definição que Habermas tomava de modernidade, que seria uma “mera
diferenciação formal das esferas de valor”. Este projeto de modernidade se
constituiria em um “amálgama contraditório de dois princípios opostos:
especialização e popularização”. Tal proposta tornar-se-ia muito mais impraticável
do que inconclusa por tentar semelhante síntese.
Certamente este percurso histórico do aparecimento e desenvolvimento do
termo nos auxilia a entender as várias utilizações do mesmo ao longo do tempo,
bem como perceber que nem sempre foi um conceito inteiramente compreendido e,
ainda hoje, é repleto de ambiguidades.
Anderson (1999, p. 20) tem uma síntese aguda sobre as dificuldades que se
têm na utilização do termo “pós-modernismo”. Para ele o moderno, do ponto de vista
estético ou histórico, está sempre referenciado ao presente absoluto. Desta forma,
para se definir qualquer período posterior há que se converter o que é “moderno” em
algo relativamente do passado. Nesse sentido a utilização do prefixo “pós” aponta
que o que se segue – modernismo – está intrínseco ao próprio conceito que se
pretende definir.
Ao recorrermos ao adjetivo “pós-moderno” para nos referir ao ambiente no
qual a espiritualidade cristã está sendo analisada, deparamo-nos, portanto, que o
termo pode abrigar significados diversos e não há consenso quando da utilização do
mesmo. Clodovis Boff (2014, p. 469) aponta este amplo uso de termos correlatos,
não, porém, unívocos:

Há hoje pensadores que recusam a designação “pós-moderno” e a


problemática que lhe é subjacente: o distanciamento do moderno. Em vez
do pós-moderno, preferem falar em “modernidade radicalizada” ou
“extremizada” (A. Giddens), em “projeto inacabado da modernidade” (J.
Habermas), em “modernidade tardia”, em ‘hipermodernidade” (G.
Lipovetsky) ou em “nova modernidade” (R.J. Schreiter).

Os termos possuem nuances interpretativas, mas todos os autores estão de


alguma forma, concordes que a época a que se referem está situada em um período
posterior à modernidade, como continuidade ou descontinuidade. Alguns entendem
que se vive ainda hoje a Modernidade e, portanto, designar nossos tempos como
pós (posteriores) seria um erro interpretativo. Rubem Amorese, ironicamente, expõe
desta forma a dificuldade:
71

O que é a pós-modernidade? Resposta: não sei. E tem mais, ninguém sabe.


Se soubessem, não a chamavam de "pós alguma coisa". Chamavam-na
pelo nome. Mas chamam-na de pós-modernidade porque só sabem até a
modernidade (AMORESE, 2012).

Silva (2008, p. 40) compreende da mesma forma a dificuldade em nomear a


época contemporânea, mas faz a opção pelo termo “pós-modernidade”: “De
qualquer forma, pós-moderno foi o termo que se encontrou para descrever este
período. Ele quer expressar, antes de qualquer coisa, 'um esgotamento da
modernidade’”.
Clodovis Boff (2014, p. 470) nos oferece uma série de vocábulos que são
utilizados ao se referir à pós-modernidade, como que a evidenciar essa conotação
de descrédito da modernidade: “crise, ceticismo, relativismo, debolismo,
incertização, risco, secularização radical, desconstrução, destradicionalização,
desdogmatização, desideologização, depressão, desesperança e, enfim, niilismo”.

3.2 PÓS-MODERNIDADE E SEUS CORRELATOS

3.2.1 Modernidade radicalizada ou reflexiva

Anthony Giddens é quem defende a utilização desta terminologia. Giddens é


um sociólogo britânico nascido em 1938. Segundo a sua interpretação não estamos
em uma sociedade pós-moderna, mas em uma modernidade tardia que é marcada
pela radicalização dos traços básicos da modernidade e uma sociedade que é
reflexiva – incorpora novos conhecimentos de forma rotineira e que, desta forma são
reorganizados. Este novos conhecimentos são absorvidos através de três meios de
acesso do indivíduo:
a) um exponencial aumento de conhecimentos propiciado pelas
diversas áreas do conhecimento;
b) um contato crescente do indivíduo com especialistas das mais
diversas áreas;
c) uma intensa divulgação de informações especializadas pelos meios
de comunicação.
72

Para Giddens (e os autores afins) a ideia de uma modernidade reflexiva traz a


concepção de muitas modernidades possíveis – não existiria apenas a modernidade
da sociedade industrial.

3.2.2 Projeto inacabado de modernidade:

Jürgen Habermas (já apresentado anteriormente) exprime-se nestes termos


em seus estudos. É considerado, ainda, um dos últimos representante da escola de
Frankfurt.
Para Habermas a pós-modernidade é apenas um “estado de consciência” e
não um “estado de cultura”. Aquilo que se entende por pós-modernidade está
somente no discurso dos que se decepcionaram com o projeto da modernidade.
O filósofo compreende que, ainda que esta época ambicione expulsar uma
modernidade enferma – que em nome da razão produziu as piores barbáries já
vistas pela humanidade, tais como as Guerras Mundiais, as expansões imperialistas,
a destruição dos recursos naturais, a fome e a miséria – permanece hesitante na
decisão de qual caminho seguir. Portanto a ruptura com a modernidade é somente
um desejo da cultura que se manifesta apenas no discurso.

3.2.3 Hipermodernidade

O teórico que cunhou este termo foi Gilles Lipovetsky, em meados dos anos
1970. Lipovetsky é um filósofo francês nascido em 1944, autor de obras como: “O
luxo eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas”, “Do luxo Sagrado ao Luxo
Democrático”, “A terceira mulher”, “O Império do Efêmero: a Moda e Seu Destino
nas Sociedades Modernas”, “A era do vazio: Ensaios sobre o Individualismo
Contemporâneo” (sua obra mais importante), “Os Tempos Hipermodernos” (em
colaboração com Sébastien Charles) entre outras.
Para Lipovetsky (e outros autores ligados à este termo), a hipermodernidade
seria a ideia da exacerbação da modernidade ou seja, ela não está em oposição à
concepção de modernidade. A hipermodernidade representa o momento atual da
sociedade humana e os valores criados pela modernidade são exarcebados – a
ênfase no progresso técnico científico, a valorização da razão humana e o
individualismo. Lipovetsky compreende a hipermodernidade como uma:
73

Sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela


flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios
estruturantes da modernidade, que precisam adaptar-se ao ritmo
hipermoderno para não desaparecer (LIPOVESTKY; CHARLES, 2004, p.
26).

O termo hipermoderno é preferido ao termo pós-moderno, pois este último


não consegue exprimir o mundo atual. A modernidade não chegou ao seu fim,
segundo Lipovestsky, pois ela passou do pós ao hiper – uma cultura do excesso.
Tudo está sempre em movimento, as mudanças ocorrem em um ritmo alucinante e
para acompanhar estas transformações surgem a flexibilidade e a fluidez. De acordo
com Lipovetsky ainda, a pós-modernidade “não terá sido mais do que um estágio de
transição, um momento de curta duração. E este já não é mais o nosso”.
(LIPOVETSKY; CHARLES, 2004, p. 58).

3.2.4 Modernidade líquida

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em suas obras mais antigas, utilizou-


se do termo “pós-modernidade”. Porém nos demais livros optou pela expressão
“Modernidade Líquida”. Para Bauman, os tempos atuais têm características de
“liquidez”. Uma modernidade em uma fase líquida, leve e suave.
Ao dar a característica de liquidez à época contemporânea, Bauman quer
ressaltar que, assim como os líquidos que mudam sua forma a todo instante, que
acomodam-se ao recipiente no qual são inseridos, assim é a Modernidade atual. Se
no passado a Modernidade “sólida” construía seus valores, crenças e tradições de
uma forma consistente, duradoura, agora a Modernidade “líquida” dissolveu esta
solidez, esta dureza. Bauman percebe as instituições, anteriormente consideradas
incontestáveis e seguras, passando por graves crises, como é o caso da Família, da
Religião, do Estado.
74

3.3 CARACTERÍSTICAS DA PÓS-MODERNIDADE

3.3.1 Dissolução da história

Já estava na obra de Lyotard a ideia do fim das grandes narrativas – ou


metanarrativas (como apontamos acima) – “Simplificando ao extremo considera-se
‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos” (LYOTARD, 2009, p.
xvi). Segundo Lyotard a metanarrativa tem uma função legitimadora da vida como
um todo e esta legitimidade está ancorada em uma ideia a realizar. Ela tem função
orientativa de toda as realidades humanas. A professora Mary Rute (ESPERANDIO,
2007, p. 50) explica os dois tipos de metanarrativas – especulativas e de
emancipação:

A narrativa de especulação diz respeito à crença de que o conhecimento


forma um ideal unitário capaz de explicar tudo no universo por meio de uma
única teoria. A narrativa de emancipação oferece esperança de libertação
futura ao povo. O que ambos os tipos têm em comum é a ideia de
“liberdade universal, absolvição da humanidade inteira” (Lyotard, 1993, p.
39). São as grandes narrativas que estruturam e justificam instituições
sociais, práticas políticas, leis, escolhas éticas, modos de pensar na vida
cotidiana e na relação com o outro. Foram as grandes narrativas de
emancipação que guiaram, segundo Lyotard, o pensamento e a ação dos
séculos 19 e 20.

A modernidade tinha se caracterizado pela crença generalizada de que a


humanidade caminhava, inexoravelmente, para um brilhante futuro, o progresso não
possuia limites, tudo estava ao nosso alcance. Sabia-se o que fazer e sabia-se ainda
que resultado teríamos. Foi assim com o esforço de transmissão da educação pelo
Iluminismo, a expectativa de uma sociedade reconciliada através da luta de classe
pregada pelo marxismo e o empenho na revolução tecnoindustrial difundido pelo
capitalismo. E eis o século XX, com suas mazelas, guerras, destruições tornando-se
um “cemitério de esperanças” (GONZÁLEZ-CARVAJAL, 2000, p. 609).
González-Carvajal (2000, p. 609) recolhe ainda o parecer de Vattimo,
esclarecendo como o nosso progresso tornou-se espelhismo: “o momento que se
pode chamar de nascimento da pós-modernidade em filosofia é a ideia
(nietzscheana) do eterno retorno do igual; o fim da época da superação”. Para
muitos pesquisadores é o fim da história, ou pelo menos das grandes histórias, uma
vez que restam ainda as narrativas individuais, pequenas, parciais. Os teóricos da
75

pós-modernidade repudiam os sistemas que pretendem a tudo explicar tais como o


cristianismo, o marxismo, o cientificismo, o feminismo etc. (MOREIRA, 2005, p. 42).
E, segundo Moreira ainda, uma vez que a história única ou possibilidade de uma
identidade única são inviáveis, resta o diálogo entre as culturas, as etnias, os
gêneros e entre os grupos. Desta forma se buscaria um nivelamento das diferenças,
o “fortalecimento das identidades culturais, o fortalecimento dos recortes e das
contribuições específicas de cada grupo” (MOREIRA, 2005, p. 42).

3.3.2 Da ética à estética

Uma vez que a história foi considerada “extinta” ou apenas uma ilusão,
restaria à humanidade um caminhar errante, pois não temos uma “origem” nem
tampouco um “destino”. O pensamento de Vattimo se orienta neste sentido: “A
filosofia não pode nem deve ensinar para aonde nos dirigimos, e sim a viver na
condição de quem não se dirige a parte alguma” (VATTIMO apud GONZÁLEZ-
CARVAJAL, 2000, p. 609).
Segue-se então apenas duas recomendações ao ser humano pós-moderno:

3.3.2.1 Carpe diem

As satisfações não devem ser adiadas. A orientação é o consumo, o prazer, o


gozo. Em substituição à modernidade que obstinada pela produção, pela
construção, pela realização, temos agora a aparência, o fausto, o aparato, enfim, o
hedonismo. É o momento presente e suas possibilidades que interessa o ser
humano atual. Fixa-se no hoje, pois não se controla o futuro e já não se tem mais
influência sobre o passado. Aquilo que se pode tocar e sentir é o que basta. O
comentário de Libânio (2004, p. 104-105) em relação ao jovem pós-moderno é
igualmente válido aos sujeitos das várias idades:

Essa juventude pós-moderna é fruitiva. Estabelece o dogma principal do


prazer em torno do qual erige os cultos, os ritos, os símbolos. E busca um
prazer a curto prazo, imediato, presente. Revive o carpe diem – “goza do
presente” - de Horácio, ou como diz um slogan espanhol: “Las flores no las
quieren para el funeral, sino ya” – “As flores não as querem para o funeral,
mas para já”. Expressão consumada do individualismo pós-moderno. Cabe
desfrutar logo e não adiar as satisfações. Não são valores o trabalho, o
76

esforço, o ideal americano moderno do self-made man, o mérito, a


emulação, a competitividade, a concorrência. Muito bem resumiu-lhe o
sentimento o verso de Vinícius de Moraes: “infinito enquanto dure”.

Já não há lugar para grandes esforços e, neste sentido, a luta por grandes
ideais perde seu sentido, uma vez que basta apenas o prazer atual.

3.3.2.2 Evasão para o privado

Uma vez que não existem mais convicções pelas quais lutar, que a história é
uma ilusão e, portanto, não pode ser construída, a sugestão ao indivíduo pós-
moderno é recolher-se em seu lar para ali desfrutar das benesses, das
comodidades, dos prazeres pessoais. “A pós-modernidade é o tempo do ‘eu’ e do
intimismo”135 assevera González-Carvajal (1993, p. 162). Cresce a indiferença em
relação às grandes questões da vida, àquilo que importa ao conjunto da população –
seja a sociedade onde se vive ou até mesmo o conjunto da humanidade. González-
Carvajal (2000, p. 609) cita uma frase de Raymond Ruyer que poetisa bem esta
orientação: “é necessário que os cérebros individuais aprendam a produzir o mel da
fartura, cada qual em seu alvéolo”.
A noção de autonomia e direitos individuais tiveram uma alteração – o dever
ético é reconfigurado para uma “estética do gozo” e podem se expressar muito mais
como uma “realização pessoal”, que é buscada a todo custo (aliás, percebe-se que
foi estabelecido um critério para a confirmação de qualquer projeto de vida – “sentir-
se bem”). É o sujeito (e não mais outras instâncias coletivas) que é estabelecido
como ponto de partida e chegada.

Ou seja, o “que se é” e o “que se pretende ser” deve caber no espaço da


preocupação consigo. Elementos como família, Pátria, Deus, sociedade e
futuras gerações só interessam ao “sujeito autônomo pós-moderno como
meios de auto-realização pessoal” (SPERANDIO, 2007, p. 64).

_______________
135
“La postmodernidad es el tiempo de ‘yo’ y del intimismo”.
77

Desta forma ganham respeito todas as iniciativas que valorizem o “eu”, tais
como grupos de encontro, cuidados com o corpo, terapias de sentimento,
pedagogias de contato etc.
Clodovis Boff (2014, p. 477) ainda recorda a ligação do indivíduo pós-
moderno com o mito de Narciso136 – preocupado apenas consigo mesmo e com a
sua autossatisfação. Ao contrário do mito preponderantemente moderno de
Prometeu137 – louvado por Ésquilo, mais tarde Goethe, Fichte e Marx. Segundo a
mitologia, teria sido Prometeu que, desafiando a autoridade de Zeus, roubou o fogo
do céu e trouxe-o a terra. Assim, proporcionou o progresso da humanidade.
Podemos também fazer um paralelismo entre dois outros personagens da
mitologia grega – Apolo138 e Dionísio139. Para tanto utilizamos a comparação de
Miranda resgatada por Leandro e Maria Lucia (PETARNELLA; SOARES, 2010, p.
167-168). A modernidade é retratada pelo mito de Apolo. Apolo representa a
harmonia, a beleza, a ordem e a razão. Assim Miranda considera que Apolo
representaria um tempo da humanidade dominado pela razão, pela ânsia da
perfeição. Período em que o ser humano estaria no centro do universo e a razão
seria a responsável última pela emancipação da raça humana. Ainda assim Apolo
_______________
136
Considerada uma das criaturas mais lindas, era filho de Cefiso e Liríope. Seu nome significa torpor
(de onde vem narcótico). Certo dia, ao passear por um bosque foi seguido pela ninfa Eco – que,
por um castigo de Hera, era obrigada a repetir os últimos sons que ouvisse. Percebendo que
estava sendo seguido, fez várias perguntas, mas obteve apenas o eco de suas perguntas como
resposta. Angustiou-se por querer amar o que não via. Em seguida aproximou-se de um lago,
debruçou-se às suas margens e contemplou a sua própria face na superfície. Enamorou-se pela
imagem que via (seu próprio reflexo) e, pensando ser a pessoa com quem havia dialogado,
mergulhou no lago e morreu afogado.
137
Heroi da mitologia grega, seu nome significa, literalmente, “premeditação” – denota a sua prévia
intencionalidade e planejamento antecipado de seus intentos. Filho de Jápeto e de Ásia, teve como
irmãos Atlas, Epimeteu e Menoécio. Foi cocriador com Epimeteu da raça humana. Concedeu à
humanidade o poder de pensar e raciocinar. Preferia a companhia dos humanos a dos deuses.
Para favorecer à humanidade roubou o fogo do Olimpo, assim os serem humanos poderiam
sobrepujar os demais seres vivos.
138
Uma das divindades principais da mitologia greco-romana. Filho de Zeus e Leto, irmão gêmeo de
Ártemis (deusa da caça e da virgindade). Era identificado com o sol e a luz da verdade. Símbolo da
inspiração profética e artística. Presidia sobre as leis da religião e as constituições das cidades.
Deus da beleza, da perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da razão.
139
Também conhecido por Dioniso. Deus grego equivalente a Baco na mitologia romana. Era filho de
Zeus e da princesa Semele – único deus do Olimpo que tinha por mãe uma mortal. Semele teria
sido assassinada no sexto mês de gestação e Zeus toma Dionísio e costura-o em sua coxa.
Passando-se o tempo de “gestação” Zeus retira a costura e o entrega a Hermes. Dionísio é criado
como menina, mais tarde é transformado por Zeus em menino. Depois disso perambula pela Ásia
ensinando os povos a cultivarem a uva para o fabrico do vinho. Por isso é conhecido como o deus
do vinho.
78

representa uma fase de transição entre dois momentos da vida humana – a


juventude e a vida adulta. A modernidade, portanto, levaria o ser humano a um
estágio mais amadurecido, pronto, pleno. Um caminho com destino certo.
Já Dionísio, na mitologia grega, representaria os excessos, os ritos e o lazer.
É ainda associado aos ciclos vitais, ao vinho e à loucura. É interessante que a
Dionísio também é atribuído a paternidade do teatro. A humanidade contemporânea
ao ser associada a este mito é figurada pela veleidade, pelas coisas fugazes, por
breves momentos de prazer quase que entorpecidos. Ainda que associado aos ritos,
não podemos vincular Dionísio à ordem, às regras – justamente ao contrário – seus
rituais eram orgiásticos, extáticos, caóticos.

3.3.3 Crepúsculo da razão e explosão do sentimento

Para o indivíduo moderno a razão era trabalhosa e incorruptível e, através


dela, o ser humano poderia desenvolver todas as suas capacidades e assim, sair do
estado de rudeza e de simplicidade de onde tinha vindo (cf. KANT apud
GONZÁLEZ-CARVAJAL, 2000, p. 609). O indivíduo pós-moderno sabe-se um ser
precário, finito, condicionado e, portanto, deve desistir do sonho dogmático da razão
e aceitar que a ele não é possível atingir o absoluto, o incondicionado e o infinito.
“[...] é muito mais saudável renunciar aos discursos oniabrangentes, e nos
contentarmos com um pensamento frágil. A razão morreu, mas graças aos pós-
modernos, ninguém vestirá luto por ela” (GONZÁLEZ-CARVAJAL, 2000, p. 610). Ao
contrário, podemos quase afirmar que o velório da razão foi realizado em uma
grande festa, a razão destronada e morta e em seu lugar a subjetividade assumia o
comando. É o que González-Carvajal (1993, p. 165) chama de homo sentimentalis
que desbancou o homo sapiens da modernidade. Clodovis Boff (2014, p. 487) fala
em abandono da vocação à verdade:

Enquanto há uns que falam no “adeus à verdade” (G. Vattimo), outros dão
“adeus aos princípios” (O. Macquard). Uns dão vivas ao “princípio da
anarquia”, outros gritam “abaixo os fundamentos”. Enquanto uns falam da
“produção da verdade” (M. Foucault), outros clamam pela “invenção de si
mesmo” (J.-Cl. Kaufmann). Uns pretendem desconstruir ideias de
“substância”, “essência”, “natureza”, “sujeito” e outras do gênero (J.
Derrida), já outros lançam um novo rótulo “pós”: pós-isso ou pós-aquilo.
79

Uma vez que já não há certezas absolutas nas quais se deva confiar, a
humanidade fica à mercê de opiniões que rapidamente se modificam. Não há a que
se apegar – tudo pode ser correto e racional sob determinados aspectos ou
situações
Estas várias concepções de mundo e da humanidade são freneticamente
difundidas pelos vários meios de comunicação – rádio, televisão, imprensa e,
sobretudo, a internet através das várias plataformas digitais. Estas últimas não
somente democratizaram o acesso a todo tipo de informação, mas fizeram dos
consumidores de informação ativos produtores de notícias e conhecimentos.
As múltiplas racionalidades oferecidas pelos inúmeros canais à disposição do
indivíduo realizam neste um processo de escolha/descarte praticamente subjetivo,
não vinculado à coerência que o conjunto das informações possa ter. Temos uma
palavra que pode nos auxiliar na compreensão deste processo – fragmentação (do
saber, do eu, dos valores, das tradições, do conhecimento, das relações etc.). O
indivíduo pós-moderno olha a realidade como se estivesse a contemplar através de
um caleidoscópio – sua visão é particular e, mesmo para si, mudará rapidamente.

3.3.4 O indivíduo fragmentado

Se na modernidade falava-se em tensões e conflitos, pode-se conviver, para o


indíviduo pós-moderno, sem dramas e paixões. Ao abandonar a disciplina da razão
(como aludido acima) decide-se ser guiado pelos sentimentos. Sem uma lógica
única e, ainda, com reações contraditórias, o pós-moderno torna-se uma
composição descoordenada de personagens. Desta forma as escolhas de vida, de
ideias, de filosofias, de espiritualidade se fazem sem a preocupação de verificar uma
coerência do conjunto.

O pós-moderno não se apega a nada, não tem certezas absolutas, nada lhe
surpreende, e suas opiniões são suscetíveis de rápidas modificações.
Passa a outra coisa com a mesma facilidade com que muda de
140
detergente (GONZÁLEZ-CARVAJAL, 1993, p. 171).

_______________
140
“El postmoderno no se aferra a nada, no tiene certezas absolutas, nada le sorprende, y sus
opiniones son suscetiples de modificaciones rápidas. Pasa a otra cosa com la misma facilidad com
que cambia de detergente”.
80

3.3.5 O boom do sagrado e o “retorno” de Deus

O ressurgimento de várias práticas espirituais ou religiosas deve-se, em


grande parte, a uma reação diante da incapacidade da racionalidade moderna em
oferecer algum sentido para a vida. Já Marvin Harris, citado por González-Carvajal
(2000, p. 612) possui uma opinião um tanto diferente. Para ele:

[...] o boom do esoterismo não se deveria tanto ao desejo de encontrar


sentido último para a vida, quanto ao desejo de encontrar soluções de tipo
messiânico para os problemas econômicos e sociais que surgiram nestas
últimas décadas: desemprego, inflação, alienação do trabalho, sentimento
de isolamento e solidão, insegurança urbana etc.

Mais do que nunca se percebe uma busca do sagrado de forma independente


de qualquer instituição religiosa. Qualquer pessoa pode arrogar-se a si o título de
guru, mestre, pastor, bispo, apóstolo. E haverá sempre quem os siga. “Em resumo
[...] em questões de religião, a modernidade se negou a crer no que era digno de
credibilidade, a pós-modernidade não tem dificuldades em aceitar o incredível”141
(GONZÁLEZ-CARVAJAL, 1993, p. 175).
Wilmar Luiz Barth (2012, p. 103) analisa este fenômeno vinculando-o com as
escolhas pessoais fragmentadas surgidas na pós-modernidade:

Na verdade, o que existe é a formação do “coquetel religioso”. O homem


pós-moderno vive a religião à la carte, de tipo self- service, numa
mistura de vários aspectos que mais interessam e satisfazem as
exigências e necessidades momentâneas. Na busca do sentido da vida,
cria-se o deus e a religião pessoal [...]

Não podemos supor, porém, que estamos rodeado de charlatães e vigaristas.


Se constatamos um incremento das ofertas religiosas e esotéricas é porque existe
uma autêntica inquietude religiosa que busca ser preenchida. Postula ainda
González-Carvajal (1993, p. 175) que não se deve descartar a possibilidade de que
em tudo isso possa haver algum tipo de crítica ao cristianismo, que nos últimos anos
teria se expressado com traços de moralismo e intelectualismo.

_______________
141
“En resumen [...] em questiones de religión, la modernidad se negó a creer lo que era digno de
credibilidad, la postmodernidad no pone reparos a tragarse lo increíble”.
81

Crê-se ainda que esta inquietude esteja ligada aos eventos trágicos e
desumanos do século XX, percebe-se, então, que o apelo a Deus (ou ao sagrado)
retorna com vigor a partir da segunda metade do século.
Não iremos nos deter longamente neste ponto, uma vez que retornaremos a
ele na seção seguinte para introduzirmos a questão da espiritualidade na época
contemporânea. Basta dizer que, ligado ao processo de fragmentação, o indivíduo
pós-moderno relaciona-se com a figura do sagrado, com a religião, com as crenças,
a partir de uma eleição pessoal de valores, ritos, símbolos que lhe façam sentido. À
imitação do sistema capitalista com oferta e demanda, no “mercado religioso” o
crente fará o papel do consumidor ou cliente que, no intento de satisfazer a sua
necessidade (real ou criada) de religião ou espiritualidade, irá aplicar seus esforços
naquilo que melhor lhe aprouver.
Clodovis Boff (2014, p. 507) percebe que este anseio pelo sagrado denota
uma mudança cultural que está prestes a se manifestar:

É um sinal dos tempos, que como observamos, não diz respeito ao povo,
que sempre foi decididamente “teoverso”, mas às classe privilegiadas que,
depois de séculos de jejum religioso, voltam suas mentes para o sagrado.
Desponta, pois, no mundo todo, uma primavera de espiritualidade. Embora
nem sempre isento de certa superficialidade teológica e espiritual, e de
contradições tanto de conteúdo como de forma, o atual formigamento do
sagrado, essa espécie de comichão que toma conta de todo o corpo social,
é sinal inequívoco de que a cultura está para mudar de pele.

Como uma inclinação não prevista na curva histórica desenhada,


principalmente a partir dos séculos XV e XVI, essa característica da pós-
modernidade tem sido uma questão desafiadora para os cientistas da religião, os
sociólogos, antropólogos, os psicólogos e os teólogos. Verdadeiramente defrontar-
se com a repentina busca desenfreada por Deus, pelo sagrado, pela espiritualidade
por uma grande maioria da população do planeta é questão de primeira ordem para
os teólogos, o que justifica nosso interesse pelo presente tema.
Em relação a este “formigamento” do sagrado sugerido por Clodovis que não
pode ser acondicionado totalmente em uma forma religiosa tradicional, conclui-se
que o indivíduo pós-moderno nutre certa deconfiança das Igrejas, que para ele são
controladoras de pensamento e conduta. Este indivíduo pode ser um crente, um
ateu, alguém sem-religião, um “buscador”. Retomamos aqui, então, a questão
primeira – como vive especificamente o cristão diante deste ambiente complexo? Ou
82

ainda, como a espiritualidade cristã tem respondido a este apelo pelo espiritual que
está “no ar”?
Sucede então o próximo ponto.
83

4 A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE

Neste capítulo iremos explorar as manifestações de espiritualidade no


contexto da pós-modernidade. Destacaremos, primeiramente, a relevância da
temática do retorno do Sagrado em nosso tempo. Parece-nos evidendente que a
humanidade esteja buscando avidamente algum tipo de experiência religiosa – é
melhor enfatizarmos – experiência espiritual. Ainda que diversas pesquisas
enfatizem o decréscimo relativo à população dos crentes ligados às diversas
denominações religiosas, é indubitável o frenesi causado por assuntos ligados à
questão espiritual.
Em seguida iremos percorrer as décadas da história recente, apontando os
acontecimentos mais relevantes no cenário da religião ou da espiritualidade –
notadamente cristã. Tomaremos como ponto de partida a metade do século XX
aproximadamente, uma vez que, como vimos, não há consenso em quando se inicia
propriamente a época pós-moderna.
Por fim iremos nos deter em apontar as perspectivas em relação à
espiritualidade cristã.

4.1 A BUSCA DO SAGRADO

Fala-se em “revolução espiritual”142 no contexto de pós-modernidade. As


causas desta efervescência espiritual, quando se pensava que Deus estaria morto
ou de que não haveria mais espaço para a transcendência, são muitas. Entre os
pesquisadores destaca-se como uma das principais causas o desencanto com a
Modernidade e as suas promessas não completamente realizadas – que acreditava
no ser humano como bastante capaz de solucionar todas as questões que lhe
afetavam enquanto indivíduo ou como ser social. Assim se expressa Maria Clara
Bingemer:

_______________
142
Tacey (2004, p.11) utiliza este termo para introduzir a temática de seu livro: “A spirituality
revolution is taking place in Western an Eastern societies as politics fails as a vessel of hope and
meaning. This revolution is not to be confused with the rising tide of religious fundamentalism,
although the two are caught up in the same phenomenon: the emergence of the sacred as a
leading force in contemporary society”.
84

Se na modernidade parecia que tudo apontava para um mundo sem Deus e


sem perspectiva de religiosidade, na pós-modernidade ocorre uma volta ao
transcendente. Há um ânsia cada vez maior de experiências e de práticas
religiosas (BINGEMER, 2013, p. 19).

Ao final dos anos sessenta Peter Berger já apontava para o que ele chama de
“índices de transcendência”143 no mundo de então. Estes não seriam mais do que
vagos rumores, mas que se deveria estar atento a eles e volver a atenção à sua
origem144 (BERGER, 1972, p. 151).
Garrido (1996, p. 617-622) no epílogo de seu livro oferece uma análise da
espiritualidade contemporânea e constata que o fenômeno da volta do espiritual,
coincide com o desencanto das utopias. Este fenômeno se desenvolve na complexa
conjuntura da cultura urbana e secularizada, que tem como uma de suas
características a pluralidade – o que traz ainda mais dificuldades à analise.

É exagerado dizer que o espiritual está na moda, porém não seria tão
exagerado afirmar que é atual, que interessa vivamente, para pelo menos
um grande número de homens e mulheres, muitos dos quais raramente
145
frequentam nossas igrejas. (GARRIDO, 1996, p. 620) .

Bruno Secondin interessa-se bastante por essa nova espiritualidade e suas


influências sobre a espiritualidade cristã. É a ela que dedica sua obra:
“Espiritualidade em diálogo: novos cenários da experiência espiritual”. E, ao
discorrer sobre esse novo cenário para a espiritualidade, verifica: “um crescente
interesse pela espiritualidade. Muito se espera dessa sabedoria de vida, e no
mercado editorial abundam coleções e dicionários, introduções e atualizações”
(SECONDIN, 2002, p.102).

_______________
143
Pode-se considerar esta expressão de Peter Berger como os sinais que “invadem” a nossa frágil
realidade humana. Podemos exemplificar como sendo o desejo de confiança, o amor paternal e
maternal, conjugal e filial, a alegria do perdão e da bondade, o desejo de justiça, a busca pela
verdade.
144
“Si, de nos jours, les indices de transcendance ne sont plus que de vagues rumeurs, rien ne nous
empêche de nous mettre à l’écoute de ces rumeurs – et peut-être de remonter jusqu’à leur source”.
145
“Es exagerado decir que lo espiritual está de moda; pero no sería tan exagerado afirmar que es
actual, que interesa vitalmente, por lo menos a un grand número de hombres y mujeres, muchos
de los cuales no suelen asistir a nuestras iglesias”.
85

Com um título bastante sugestivo 146 a obra de Jean Vernette inicia justamente
apontando para esta “nova paisagem”:

A falência dos grandes sistemas ideológicos, a insatisfação ligada ao


materialismo do cotidiano, um certo vazio político incapaz de fornecer
razões de ação e esperança, a falta de consenso sobre as grandes
questões éticas abriram uma rachadura no coração do ser humano do
século XXI. E assim abriu-se um espaço para a busca espiritual, certamente
147
“mística” (VERNETTE, 2002, p. 7).

Uma vez que Jean Vernette tem se dedicado intensamente para compreender
a busca por espiritualidade nas últimas décadas148, gostaríamos de trazer aqui
algumas de suas considerações encontradas no livro acima referido.
Logo no primeiro capítulo Vernette (2002, p. 8) fala de “aventura espiritual”.
Com isto quer dizer que a espiritualidade não está mais delimitada no âmbito das
grandes religiões e de seus dogmas. E se pode dizer que esta aventura nem mesmo
é religiosa, muitas vezes. Como já havíamos apontado no primeiro capítulo desta
dissertação, e Jean Vernette confirma, esta “aventura” assume muitas vezes, as
características de uma busca de sabedoria ou de sentido. Ainda que esta demanda
seja voltada para uma “mística da imanência”, o autor acredita que isto se funda em
uma aspiração que todo o ser humano possui do sagrado e que brota a partir dele
mesmo e do mistério de sua liberdade. Esta necessidade do sagrado é tão humana,
por assim dizer, como a necessidade de amor e a necessidade do pensar. Nesta
perspectiva, o sentido de “sagrado” está ligado intimamente ao absoluto que se
encontra em seu próprio ser, mas que o ultrapassa. É nesta relação que temos,
então, uma “re-ligação” consigo e com o absoluto.

_______________
146 e
“Le XXI siècle sera mystique ou ne sera pas” – “O século XXI será místico ou não será”.
147
“La faillite des grands systems idéologiques, l’insatisfaction liée au materialisme du quotidian, un
certain vide du politique incapable de fournir des raisons d’agir et d’espérer, l’absence de
consensus sur les grandes questions éthiques ont creusé une béance das le cœur de l’homme du
e
XXI siècle. Ils ont libéré un espace pour la recherché spirituelle, voire ‘mystique’”.
148
Algumas das obras do autor sobre o tema que poderão ser consultadas: “Des chercheurs de Dieu
hors frontiers” (1979), “Jésus dans la nouvelle religiosité” (1993), “Peut-on prédire l’avenir?” (1989),
“Le New Age” (1992), “Nouvelles spiritualités, nouvelles sagesses” (1999) entre outras.
86

Jean Vernette aponta que o final do século XX viu este “retorno do espiritual”
em uma modernidade dita desencantada. A secularização 149, cujo tema muitos
sociólogos já trataram, não é sinônimo de irreligião. Este interesse pelo espiritual
nasce neste contexto, pois ainda que possamos perceber certa indiferença em
relação aos aspectos religiosos e aqueles relativos ao ser humano, a questão do
sentido aflora com intensidade. No contexto desta sociedade secularizada as
indagações metafísicas de sempre se fazem ouvir – questões sobre a vida e a
morte, o sofrimento e o amor.
É ainda Jean Vernette que nos oferece uma tipologia150 através da qual ele
aproxima certas vias espirituais contemporâneas que se formam (ou que se
reestruturam) neste ambiente de “renascimento do espiritual”. Vejamos:

a) experiências de mística selvagem ou espiritualidades “vagabundas”:


que trilham caminhos pessoais além de qualquer revelação exterior.
São experiência ditas “brutas” ou “a-religiosas”. Cada um é livre
para escolher seu próprio caminho e seu próprio mestre espiritual.
Vernette transcreve uma experiência desta busca:

Eu via um oceano de consciência sem limites, infinito. Tão longe quando


poderia ir minha vista, percebia brilhantes ondas que surgiam de todos os
lados e ... sobre mim com um barulho terrível. Em mim um fluxo contínuo de
felicidade inefável, totalmente desconhecido, me inundava e eu sentia a
presença da Mãe divina (VERNETTE, 2002, p. 17).

b) vias de matriz oriental: influenciam o Ocidente desde o século XVI,


mas tem o ponto culminante nos anos 60, na contracultura
americana (os hippies, por exemplo). A atração se dá pelo acento à
experiência e não aos dogmas. Seduzem, pois são extremamente
acolhedoras e não excludentes. As experiências pessoais,
imediatas e sensíveis são estimuladas. Para o hinduísmo, por

_______________
149
Uma definição bastante interessante e suscinta de secularização nos é apresentada por Stefano
(DE FIORES 1999, p. 53): “[…] um processo histórico de emancipação do controle religioso e
metafísico, que leva o homem a se conscientizar da própria consistência e da consistência do
mundo, e a viver de acordo com isso”.
150
Será em torno a esta tipologia que Jean Vernette irá desenvolver os capítulos da obra que ora
utilizamos.
87

exemplo, a tolerância se funda no caráter necessariamente relativo


da verdade.
O que um ocidental busca nestas vias? Um mestre espiritual
interior, respostas sobre a vida além da morte, uma nova
oportunidade em uma futura reencarnação, um ritmo de vida menos
estressante e que seja pautado pela interioridade, afastado das
coisas superficiais e efêmeras.
c) buscas de uma religião ou uma espiritualidade mundial (como por
exemplo, a Nova Era): resumidamente podemos apontar que a ideia
essencial é a de que a humanidade está próxima de uma mudança
de era astrológica (da era de Peixes para a de Aquário) neste início
de milênio. Uma Nova Era em que haverá uma tomada de
consciência espiritual e planetária, ecológica e mística, de harmonia
e de luz, marcada por mudanças psíquicas profundas. Esta Nova
Era coincidirá com a vinda de um avatar espiritual.
Várias práticas estão interligadas nesta espiritualidade – todas
baseadas em uma concepção “holística” do ser humano e do
mundo: técnicas de expansão da consciência, medicina da alma,
astrologia, “channeling”, terapias naturais etc.
d) via gnóstica: a busca de iluminação interior e não uma conversão a
um Outro, como nas religiões abraâmicas. Estão em busca de uma
iluminação salvadora. Esta iluminação é considerada como
infinitamente superior à fé e à razão. Pertencem a este grupo: a
Teosofia, a Antroposofia, a Rosa-Cruz, certos grupos franco-
maçônicos etc.;
e) mística do paganismo: reivindicam o seu paganismo e a sua mística
como sendo aquela que será a religião do século XXI. São
manifestações desta mística: as formas modernas da religiosidade
arcaica, o paganismo teórico, o cristianismo neo-pagão e o
gnosticismo. Alguns eventos vão ganhando forças: o Halloween (em
lugar da Festa de Todos os Santos), a celebração do solstício de
inverno (em lugar da Festa de Natal), a celebração do solstício de
verão (em lugar da Páscoa) – estas últimas para o hemisfério Norte;
88

f) mística laica: possibilidade pensada de se elaborar uma


espiritualidade distinta daquela religiosa. Não está relacionada a um
Absoluto “fora” do ser humano, um Deus que nos “imponha” uma
verdade exótica. Refere-se a uma:

capacidade de analisar rigorosamente o real, de avançar as hipóteses para


lhe dar sentido, de aceder ao simbólico pela linguagem, de se interrogar
sem cessar na e pela reflexão crítica e o debate com os outros, de constituir
a memória da história dos homens, de produzir as obras de arte e de
151
ciência (VERNETTE, 2002, p. 135).

g) grandes tradições da espiritualidade: vindas do Oriente temos o


Hinduísmo e o Budismo. Do Ocidente, o Judaísmo, Islamismo e
Cristianismo – seja através de suas expressões tradicionais seja
pelos novos caminhos surgidos.
Neste ponto o autor esclarece que mesmo as religiões abraâmicas
não permaneceram indiferentes a este “surto” de espiritualidade
contemporânea. O termo que ele utiliza é “movimentos de
reavivamento”. Dentro do cristianismo temos: para as Igrejas vindas
da Reforma protestante – o Pentecostalismo; para a Igreja Católica
– a Renovação Carismática e as Novas Comunidades. Para o
Judaísmo e o Islamismo – a reedição dos mestres do hassidismo e
o sufismo respectivamente.
Para Vernette, finalmente, o específico desta espiritualidade do final de
milênio (e início do novo milênio) é o deslocamento: da religião para a sabedoria; da
doutrina para a indagação e busca; do racional para o emocional; do dogma para a
experiência pessoal; da busca de saúde para busca de salvação.
Quando falamos em “busca do sagrado, como poderíamos compreender este
termo – “sagrado”? Partimos dos significados usuais e, para tanto, nos utilizaremos
do Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis. No verbete que nos
interessa temos os seguintes significados:

_______________
151
“Capacités d’analyser rigoureusement le réel, d’avancer des hypothèses pour lui donner sens,
d’accéder au symbolique par le langage, de s’interroger sans cesse dans et par la réflexion critique
et le débat avec d’autres, de cosntituer la mémoire de l’histoire des hommes, de produire des
œuvres d’art et de science”.
89

Adjetivo (particípio de sagrar) 1 Que recebeu a sagração; que se sagrou. 2


Relativo, inerente, pertencente, dedicado a Deus, a uma divindade ou a um
desígnio religioso: A Escritura Sagrada. 3 Digno de veneração ou respeito
religioso pela associação com Deus ou com as coisas divinas; santo,
santificado: O sagrado coração de Jesus. 4 Pertencente à religião ou ao
culto religioso, ou relacionado com eles: Música sagrada. 5 Que recebeu um
caráter de santidade, mediante certas cerimônias religiosas. 6 Que, pelas
suas qualidades ou destino, merece respeito profundo e veneração
absoluta; venerável. 7 Diz-se de uma coisa em que não se deve mexer ou
tocar. 8 Que não se deve infringir; inviolável.

Maria Clara Bingemer, que tem se debruçado sobre esta emergência do


sagrado e da espiritualidade na atualidade, em seu artigo sobre a experiência de
Deus (BINGEMER, 2001a, p. 804), recolhe a partir dos textos de Rudolf Otto a
seguinte definição para o sagrado:

O Sagrado acontece na vida humana cada vez que alguém experimenta o


sentimento de um poder sobre o qual ele ou ela não tem controle racional e
consciente. O Sagrado é, portanto, aquilo que o ser humano sente que vem
sobre ele ou o penetre desde o seu interior. Experimenta-o como absoluto
que não é possível controlar ou manipular. Por essas características, a
experiência do Sagrado provoca, simultaneamente, temor e fascínio,
exaltação e alegria indizível, medo e pavor.

Nada mais propício que a pós-modernidade para o “retorno” ou “revanche” do


sagrado, pois ele entra como resposta aos maiores problemas existenciais. Encontra
um novo espaço e valorização, não mais nos moldes de outrora. “As pessoas
voltam-se sequiosas por tantas dúvidas, por tanta frustração, por tanta repressão
das dimensões de sua existência, gritam por uma experiência nova, diferente”
(LIBANIO apud PELLÁ, 2006, p. 97). Acrescente-se, ainda que, nessa nova onda do
sagrado, ocorre o fenômeno da privatização, da ausência de compromisso, de
paganização propriamente. Há maior interesse pelo esotérico, pelo emocional, pela
diversificação, pelo sincretismo. Há um deslocamento nítido: das instituições para o
indivíduo, da imposição para a escolha. Na lógica urbana, a fé:

impacta mais pelo seu testemunho público, social e político do que pelo
religioso. O lado religioso fica entregue à subjetividade dos indivíduos. Outra
novidade: na cidade, a religião entra, independentemente dos seus desejos,
em concorrência com outras expressões religiosas (LIBANIO apud PELLÁ,
p. 98).

Carlos Mendoza-Álvarez fala mesmo em “revanche” do espiritual. Revanche


que surge em uma hora incerta nas ruínas dos mitos da modernidade. Um tempo de
90

renascimento dos fundamentalismos, ressurgimento de uma religião de contornos


emocionais, mas também de uma espiritualidade que é ultrapassamento de si,
experiência de gratuidade e perdão, “uma possibilidade de transcendência vivida no
seio da imanência” (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2011, p. 31-34).
A modernidade hegemônica se caracterizou, como já visto, o evidente apelo à
razão e uma sistemática negação de qualquer realidade sobrenatural. O
desenvolvimento das várias ciências e saberes ocasionou à humanidade (ainda que
não com esta intenção direta) a crença de que a existência de uma divindade, se
não impossível é, ao menos, irrelevante.

Enfim, era uma convergência gigantesca que vinha de todas as ciências -


ciências naturais, antropologia, psicologia, sociologia política, da prática das
pessoas (ateísmo prático e indiferentismo), das cosmovisões circulantes
para reduzir a religião ao silêncio e Deus a um retiro afastado de nossa
realidade. A secularização impunha-se como evidência. Discutia-se lhe a
interpretação (LIBÂNIO, 2002, p. 16-17).

Evidentemente estamos em um período que confunde aqueles que pregavam


o fim da religião ou da espiritualidade. A tecnologia, a técnica, o cientificismo não
obtiveram êxito como substitutos dos anseios mais profundos do ser humano.

Após longos séculos de racionalismo, com a negação da realidade


sobrenatural e a crença no Universo como um sistema fechado, o homem
se viu preso a uma solidão cósmica aterrorizadora e letal, pois ficou sem
absolutos por quais determinar o certo e o errado. Diante disso o homem
pós-moderno busca fugir desta solidão procurando resgatar sua
espiritualidade perdida e sufocada, sobretudo pelo materialismo dialético de
Karl Marx. De sorte que o homem pós-moderno não pode mais ser
conceituado como animal (caso do darwinismo), nem como máquina (caso
do capitalismo). Hoje as evidências da busca humana pela espiritualidade
apontam para o homem como místico. Isto é, como quem não vive sem o
sagrado, mas que dele precisa para se mover (BATISTA, 2008, p. 3).

Ao contrário de muitas previsões da era moderna, o ser humano não retirou


Deus da sociedade e tampouco se tornou indiferente aos apelos do transcendente.
É uma grande “explosão” de espiritualidades que se tem visto. Busca-se o
relacionamento com o sagrado em situações antes não imagináveis. Equivoca-se,
porém, quem entende aí uma redescoberta do homem contemporâneo ao Deus
bíblico ou cristão. Para o indivíduo pós-moderno esta ânsia pelo transcendente
encontra um sem-número de opções à sua disposição no “mercado da fé”. E é
exatamente isto que ocasiona esta busca – a escolha de suas opções religiosas
91

para responder este anseio pelo sagrado se dá tal como uma compra em um
supermercado: tomam-se os “produtos” de acordo com a sua conveniência.

O boom religioso revela isto: seitas, cultos, esoterismos, filosofias orientais,


yoga etc., num verdadeiro “misticismo difuso e eclético”, onde se vive a
preferência religiosa e o “suave consumismo religioso”. A razão disso se
encontra também no fato de o sagrado ter-se libertado do domínio da
religião, isso é, qualquer pessoa pode atribuir-se o título de “bispo”,
missionário e oferecer o serviço religioso como qualquer serviço de tele-
entrega rápida e soluções milagrosas (BARTH, 2012, p. 103).

O próprio Instrumentum Laboris do Sínodo dos Bispos (“A Nova


Evangelização para a transmissão da fé cristã”), realizado em outubro de 2012,
corrobora este pensamento:

As características do modo secularizado de entender a vida confirmam o


comportamento habitual de muitos cristãos. A “morte de Deus” anunciada
nos decênios passados por tantos intelectuais deu lugar a uma estéril
mentalidade hedonista e consumista, que conduz a formas muito
superficiais de afrontar a vida e as responsabilidades. [...] As respostas à
necessidade religiosa assumem formas de espiritualidade individualista ou
formas de neopaganismo, ao ponto de se impor um ambiente geral de
relativismo (SÍNODO DOS BISPOS, 2012, nº 53).

Este novo retorno do sagrado pode ser compreendido enquanto desencanto


com a suposta panaceia proposta pela modernidade em relação a todos os males.
As ciências, a tecnologia e o conhecimento não souberam resolver as questões
urgentes e emergentes diante das quais a humanidade se defrontou. Nesta situação
o indivíduo ergue seu olhar das possibilidades seculares para um horizonte de
transcendência tentando encontrar a resolução de seus males. Risco desta atitude é
a fuga do ser humano de enfrentar suas realidades próprias através de um apelo
desmedido ao sagrado.

Com efeito, as buscas por soluções por parte dos sujeitos religiosos, são
ancoradas, paradoxalmente, na própria incerteza que o homem pós-
moderno se encontra: sem referência segura, apático socialmente e dando
adeus às ilusões; passa a dar valor a tudo que se refere a sensações, como
escapismo para algum tipo de sentido além da realidade (PATRIOTA, 2012,
p. 5).
92

Logo no início de seu livro “Vers un nouveau christianisme”, a socióloga


Danièle Hervieu-Léger152 (1986, p. 9) aponta para este debate acerca da
“efervescência religiosa” – que ela nomina de “retorno do religioso” ou de “volta do
sagrado”153. Ela oferece duas grandes alternativas. De uma parte este retorno seria
consequência de uma “força” regressiva e irracional que desperta a cada época em
que as dificuldade e incertezas se revelam de forma mais intensas. De outra parte
temos que a dimensão religiosa – inegavelmente constitutiva do ser humano de
todas as épocas e culturas – desafia o aparente triunfo da razão e do positivismo
dos últimos duzentos anos. Mas a autora ainda ressalta que entre uma e outra
alternativa (que para ela são os pólos opostos deste debate) existem várias outras
tendências que buscam explicar este fenômeno contemporâneo.
Não temos como falar da emergência do sagrado sem nos recordarmos da
conhecidíssima frase de Karl Rahner nos idos dos anos sessenta: “O cristão do
próximo milênio ou será místico ou não será”.
Retirada de seu texto Elemente der Spiritualität in der Kirche der Zukunft
(RAHNER, 1980, p. 375) no qual Rahner analisa como seria a espiritualidade na
Igreja no futuro, temos a sua conhecida frase, na terceira reflexão do artigo. No
início dela lemos: “Já foi dito que...”. Ainda que não informado, queremos crer que
Rahner teria se referido ao intelectual francês André Malraux 154, que pensara na
hipótese de uma ascensão da espiritualidade / mística na sociedade.
André Malraux teria dito que: “o século XXI será religioso (espiritual ou
místico) ou não será”. De fato, esta frase não consta em nenhuma das obras de
Malraux, nem em qualquer outro texto a ele atribuído. Ela é inúmeras vezes citada e
muitas vezes parafraseadas para outras situações: “o século XXI será feminista ou
não será”, “o século XXI será ecológico ou não será”, “o século XXI será jurídico ou

_______________
152
Pesquisadora universitária especialista em sociologia das religiões. Nascida em Paris em 1947,
tem doutorado em Sociologia e Letras e Ciências Humanas. Consagrou seus estudos na
interpretação teórica da modernidade religiosa, como a secularização, a individualização do crer, a
transformação das instituições entre outros.
153
“Retour du religieux” e “renouveau du sacré”.
154
Escritor francês nascido em novembro de 1901 e falecido em novembro de 1976. Amigo pessoal
de Albert Camus e Charles de Gaulle. Participou da resistência francesa durante a ocupação
nazista na Segunda Guerra Mundial. Foi Ministro da Cultura do governo de Charles de Gaulle entre
1959 e 1969.
93

não será” etc.155. A sua autoria nesta frase é questionada e, inclusive o próprio
Malraux, em uma entrevista ao semanário Le Point de 10 de dezembro de 1975,
teria dito que não se poderia afirmar que o então próximo século seria religioso, pois
era algo que ele não poderia saber, mas o que ele então sustentava era de que não
excluiria um evento espiritual em escala planetária. A questão de fundo, que
impulsionou Malraux a fazer esta afirmação (se de fato o fez) ou semelhante, era
seu questionamento em relação à discrepância de nossa sociedade, que havia
avançado muito em tecnologia, mas que se defrontava com um vazio de sentido:

[…] nossa crise é esta, da civilização mais poderosa que o mundo já tenha
conhecido. [...] Diante de nós, não é a natureza do homem que está em
questão, é a sua razão de ser [...] E nossa reposta é: “Para que conquistar a
156
Lua e ali suicidar?

Malraux entendia que todas as civilizações anteriores à nossa foram


ordenadas por valores supremos, geralmente religiosos. A civilização de então,
desde o século XIX, tinha como valor fundamental a ciência e não qualquer outro
valor transcendente. Portanto ela seria capaz de “destruir a terra, mas não de educar
um adolescente”157.
E se há alguma certeza nesta “previsão” (Malraux irá mesmo dizer – previsão
de “feiticeiro”158) é a incerteza de como se daria esta “revolução espiritual” ou
“renascença religiosa”. Uma nova religião? Uma metamorfose do cristianismo?
Malraux colocava a única esperança de nossa civilização na retomada dos valores e
da transcendência. E, ao final de sua vida teria dito ao seu amigo Olivier Germain-

_______________
155
Para uma visão bastante abrangente dos debates a respeito desta afirmação atribuída a André
e
Malraux ver o artigo de Brian Thompson – “Nul n’est prophète: Malraux et son fameux XXI siècle”,
disponível em http://www.malraux.org/images/documents/2009_3_thompson.pdf.
156
“[…] notre crise est celle de la civilisation la plus puissante que le monde ait connue. [...] En face de
nous, ce n’est pas la nature de l’homme qui est en cause, c’est sa raison d’être [...]. Et notre
réponse, c’est : “A quoi bon conquérir la Lune, si c’est pour s’y suicider?” Entrevista de André
Malraux com Paul-Marie de la Gorce para L’Actualité (maio, 1970) disponível no site anteriormente
indicado.
157
André Malraux, diante da Comissão de liberdades da Assembleia Nacional em 12 de maio de 1976.
Site anteriormente citado.
158
Entrevista de André Malraux com seu amigo Tadao Takémoto. A referência sobre tal entrevista
encontra-se no mesmo site já citado.
94

Thomas: “prepare-se para o imprevisível”. Preparados ou não, estamos agora diante


da confirmação de sua “previsão”.

4.2 DO CONCÍLIO VATICANO II ATÉ NOSSOS DIAS

Apesar de que, de fato, algumas características da pós-modernidade


contradizerem frontalmente certos valores cristãos, não se deve avaliar nosso
contexto como excessivamente hostil à espiritualidade cristã, ao contrário, como um
desafio donde surgirão (e estão surgindo como se verá) expressões novas de
espiritualidade em resposta ao espírito desta época. Sheldrake (2005, p. 24)
entende que a pós-modernidade é um tempo especial para o cristianismo, o que não
ocorreu com a modernidade. De modo similar, ainda que metaforicamente, Secondin
(2002, p. 117) assim se expressa em relação ao momento próprio que vivemos:

Estamos como que presos entre o crepúsculo e a alvorada. Cabe a nós


escolher entre o pranto nostálgico do dia que está se extinguindo e a
antecipação profética do 'novo dia'.

A espiritualidade cristã contemporânea não está mais reduzida, como em


muitos momentos ao longo da história da espiritualidade, a um receituário de
práticas ou devoções aceitas e realizadas por todos indistintamente. Para se
compreender o espírito da época atual é necessário que a visão do cristianismo seja
alargada em relação às multiformes expressões que coexistem neste universo e
que, não obstante existam alguns conflitos pontuais entre as mesmas, de modo
geral convivem em um mesmo espaço geográfico.
Uma das características da pós-modernidade é o pluralismo que faz conviver
o antigo com o moderno, até mesmo entre opostos. Schiavo (2005, p. 45) esclarece
este ponto de modo geral, mas que vale aqui em relação à espiritualidade:

Em muitos contextos, como na arte, na literatura ou no cinema, o arcaico


convive e interage com o hipermoderno sem que isso seja tido como
problema (veja, por exemplo, filmes recentes como “Harry Potter” e “O
Senhor dos Anéis”). Na religião, acontece o mesmo: a mescla de
mensagens, a justaposição do arcaico com o supermoderno, a
sobreposição de elementos vindos de universos contrastantes (veja, como
exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus, que combina a arquitetura
pós-moderna dos seus templos de vidro azul e ar-condicionado com o sal
grosso, as práticas arcaicas de magia e muitos elementos tirados do
catolicismo popular). Além disso, como num cardápio de restaurante, o
indivíduo passa a “montar” seu próprio sistema religioso com “pedaços” de
95

religiões ou partes de sistemas filosóficos-religiosos diferentes. Já não é


tanto a instituição religiosa em si que decide, são os indivíduos que
escolhem e organizam seu “estilo de religiosidade”, mesmo que numa
combinação eclética de elementos que faria arrepiar os cabelos dos
teólogos...

Apresentam-se no panorama atual expressões de espiritualidade


antiquíssimas como é o caso da espiritualidade beneditina, vivenciada através de
milhares de mosteiros femininos e masculinos no mundo inteiro, bem como, por
leigos e leigas pertencentes a ramos ligados a estes mesmos mosteiros ou até
mesmo individualmente, alimentados por literatura ligada a esta espiritualidade,
assim como por retiros, conferências etc.
Pode-se afirmar o mesmo em relação às demais famílias espirituais
tradicionais como é o caso da espiritualidade franciscana, dominicana, inaciana,
carmelitana, salesiana, vicentina, para citar apenas as mais expressivas.
Igualmente encontramos a espiritualidade de acento mariano. Esta
espiritualidade, que teve um forte impulso a partir do século XIX, sofreu alguns
reveses (como veremos mais à frente), mas se encontra viva até hoje, seja pela
propagação das devoções próprias, seja pelas peregrinações a vários santuários
marianos.
Salientam-se também os impulsos que tiveram as espiritualidades bíblicas,
litúrgica, patrística e ecumênica desde a primeira metade do século XX em diante –
expressas nos movimentos respectivos que desembocaram nas discussões
conciliares e nos textos específicos do Concílio Vaticano II.
Em meio a todas estas expressões de espiritualidade (que já são antigas,
comparando-se à rapidez de mudanças de nossa época), o que se deve destacar
como próprio deste tempo?
Augusto Guerra (1989, p. 508) compreende a espiritualidade cristã
penetrando todas as realidades da vida como o específico desta época:

[...] Há um aspecto que nos parece essencial e específico ou distintivo


destes mesmos anos, e a ele queremos limitar-nos: a entrada da
espiritualidade na problemática mais real da vida. Neste sentido, pode-se
dizer que a espiritualidade do séc. XX é esforço por tornar presente e
predominantemente a concepção ativa da espiritualidade.
96

João Paulo II em uma de suas audiências semanais compreendia também a


espiritualidade hodierna nesta relação estreita com a realidade terrena que, pela
ação do Espírito Santo, fica assim transfigurada:

A espiritualidade do cristão aparece assim na sua verdadeira luz: ela não é


uma espiritualidade de fuga ou rejeição do mundo, mas nem sequer se
reduz a uma simples atividade de ordem temporal. Penetrada pelo Espírito
da vida efundido pelo Ressuscitado, ela é uma espiritualidade de
transfiguração do mundo e de esperança na vinda do Reino de Deus.
Graças a ela, os cristãos podem descobrir que as realizações do
pensamento e da arte, da ciência e da técnica, quando são vividas no
espírito do Evangelho, testemunham o expandir-se do Espírito de Deus em
todas as realidades terrenas. Deste modo, não só na oração, mas também
na fadiga quotidiana despendida para a preparação do Reino de Deus na
história, faz-se ouvir a voz do Espírito e da esposa que invocam: “Vem!...
Vem, Senhor Jesus” (Ap 22,17.20). É a estupenda conclusão do Apocalipse
e, pode-se dizer, o selo cristão da história (JOÃO PAULO II, nº 5).

A relação entre o crente e o mundo que o cerca, no âmbito da espiritualidade


(também, é claro, para os outros campos da teologia), não é mais vista como um
“perigo”, uma “distração” que atrapalhe ou desvirtue o crescimento espiritual do
indivíduo. É justamente na (re)descoberta do aperfeiçoamento de toda criação que o
católico compreende o objetivo de sua espiritualidade. Augusto Guerra resgata a
compreensão da espiritualidade “nova” segundo a acepção utilizada primeiramente
pelo padre Chenu (assim como cunhou a expressão “espiritualidade da matéria”):

O aperfeiçoamento da criação em todas as suas dimensões (econômica,


política, social e religiosa) se converte no objetivo da espiritualidade. A
matéria, tão avaramente gozada como hipocritamente desprestigiada, é o
campo de trabalho, doloroso, mas entusiasta, da nova espiritualidade.
espiritualidade e mundo, ou história, começavam a se reconciliar (GUERRA
1989, p. 508).

Cabe indicar, ainda, alguns dados que Karl Rahner (1992, p. 361-369),
prospectivamente (o artigo havia sido publicado já em 1977 – como citado
anteriormente em alemão) prevê para a espiritualidade “do futuro”:
a) a nova espiritualidade deverá manter uma identidade com toda a
espiritualidade vivida ao longo da história da Igreja. Haverá de ser
referenciada também, necessariamente, a toda História Salvífica e
inserida na comunidade eclesial;
b) deverá se concentrar nos aspectos essenciais da Revelação cristã;
97

c) precisará ser sustentada por uma experiência pessoal e direta com


Deus e com seu Espírito, que obrigará a decisões pessoais até
mesmo contra a opinião pública;
d) esta experiência no Espírito, não obstante ser pessoal, deverá ser
realizada em um ambiente comunitário;
e) há de ser vivenciada em uma nova eclesialidade, em uma Igreja de
pecadores, de tensões, de dores e angústias, menos triunfalista,
mas ainda assim, necessária para a autêntica experiência no
Espírito.
A convivência harmônica entre as diversas expressões de espiritualidade
citadas e a ação sempre nova do Espírito Santo na vida da Igreja e dos cristãos
configurará a relação entre o ser humano inserido no contexto da pós-modernidade
e o Deus Vivo e Verdadeiro (cf. 1 Ts 1,9).
Neste ponto do trabalho, como forma de explorarmos as variadas expressões
da espiritualidade cristã surgidas (ou estabelecidas) na pós-modernidade, optamos
por apresentar, a seguir, um panorama a partir da metade do século XX (em termos
do catolicismo – a partir do encerramento do Concílio Vaticano II). Estamos cientes
de que algumas expressões podem representar mais uma realidade moderna do
que propriamente pós-moderna.

4.2.1 A década de Sessenta

Logo após o término do Concílio Vaticano II percebe-se um clima de


inquietação entre os escritores de espiritualidade. Desconforto este que não foi
causado pelo Concílio, mas resulta de uma ansiedade diante do novo, daquilo que
foi proposto e não se sabia ainda como se realizaria. Foi um tempo em que a Igreja
Católica saiu de uma situação acomodada em vista de um êxodo cultural (cf. DE
FIORES, 1999, p. 51).
Ainda que o próprio Concílio Vaticano II não tivesse tratado diretamente do
tema “Espiritualidade” (como vimos em seção precedente) e outras questões se
sobrepuseram nas discussões nos anos posteriores (tais como a reforma litúrgica, a
liberdade e a “democracia” no interno da Igreja, a leitura mais branda do mundo
exterior e, principalmente, a ação social da Igreja), a espiritualidade cristã assume
grande importância no período pós-conciliar. É assim que, já em 1968, percebe Karl
98

Rahner: “O problema da piedade nos documentos do Concílio, o problema da


espiritualidade do futuro, continua a ter enorme importância. De fato, corretamente
entendido, ele é o verdadeiro e decisivo problema” (RAHNER, 1968 apud DE
FIORES, 1999, p. 49).
Stefano de Fiores ainda coloca o teólogo Urs von Balthasar como ponto
médio entre “‘os azedos discursos dos transcendentalistas sobre a profanidade do
real’ e os ‘discursos arrebatadores dos teilhardianos sobre a sacralidade do
cosmos’” (DE FIORES, 1999, p. 52-53). Os adjetivos utilizados por de Fiores são
retirados do próprio livro de von Balthasar – “Quem é o cristão”. Desta mesma obra
temos o alerta do teólogo sobre a renovação da Igreja propalada então e eivada de
certas ambiguidades: “Ir de Deus ao mundo pode ser autêntica missão cristã, tarefa
cristã diante do mundo, mas pode também ser fuga de Deus, medo do escândalo da
cruz, traição a Cristo” (BALTHASAR, 1966 apud DE FIORES, 1999, p. 51).
O tema da secularização159 ganha destaque expressivo no campo editorial.
Diferentemente do secularismo160 que acolhe a chamada “teologia da morte de
Deus”161, a secularização compreende a autonomia das realidades terrenas a partir
do entendimento da entrega que o Criador faz de sua obra à criatura, fazendo dela o
seu responsável e cuidador. Como consequência deste pensamento temos a
rejeição do sagrado enquanto contraposição do dito profano, mas também a
percepção de que todas as coisas podem transparecer a realidade do totalmente

_______________
159
Derivada do latim clássico “saeculum”, literalmente “século”, mas também “idade” ou “era”. No
latim eclesiástico significaria “o mundo” ou “a vida do mundo”. No século XVII se referia ao
abandono da vida sacerdotal ou religiosa, alcançando no século XIX um significado cultural tal
como processo de mundanização vivido pela sociedade em seu conjunto.
160
Termo cunhado pela Londoner Secular Society em Londres que compreendia a vida humana
prescindindo da figura de Deus ou mesmo da religião.
161
Conhecida também como “Teologia radical”, surgida na década de 60, se relaciona com o conceito
de secularização. A revista “Times” de outubro de 1965 estampava em sua capa a pergunta “Deus
está morto?” e apresentava um artigo que é considerado decisivo para esta teologia. Tal artigo
identificava quatro teólogos ligados a Teologia da morte de Deus: Thomas Altizer, Paul van Buren,
William Hamilton e Gabriel Vahanian. Destes, é Hamilton quem publica a obra “A nova essência do
cristianismo” e ele se faz a pergunta de Epicuro a partir de uma explosão com uma bomba em que
dois seus amigos (ambos cristãos) morreram e um terceiro (que era ateu) ficou ileso. Hamilton
mesmo respondeu: “Dizer que Deus morreu é dizer que deixou de existir como ser transcendental
e se tornou imanente ao mundo. As explicações não teístas substituíram as teístas. É uma
tendência irreversível; é preciso fazer-se a ideia da morte histórico-cultural de Deus. É preciso
aceitar que Deus se foi e considerar o mundo secular como normativo intelectualmente e bom
eticamente” (retirado do site Instituto Humanitas Unisinos, disponível em
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507829-william-hamilton-o-teologo-da-morte-de-deus).
99

Outro. Quer-se ultrapassar o dualismo entre uma vivência cristã e uma existência
laica no mundo. O Reino de Deus se apresenta já iniciado e a vida em geral pode
ser vivida no Espírito de Deus (cf. DE FIORES, 1999, p. 53-54).
No âmbito do mundo protestante (mas com uma influência determinante que
extravasa quaisquer limites denominacionais) surge a figura de Martin Luther
King162. Pregando a não-violência como forma de resposta às atitudes
segregacionais contra a população negra norte-americana, obteve a aprovação da
lei sobre os Direitos Civis pelo Congresso dos Estados Unidos. Seu projeto é
embalado por um “sonho” que partilha em um discurso realizado em Washington
diante de uma multidão reunida. Esta sua visão é essencialmente evangélica e tem
como fonte a vida de Jesus Cristo. Vejamos suas palavras:

O amor é o poder mais duradouro que existe no mundo. Essa força criativa,
tão magnificamente exemplificada na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, é
o mais poderoso instrumento disponível na busca humana da paz e da
segurança. [...] A ação não-violenta tem influência sobre os corações e
sobre as almas daqueles que nela se envolvem: dá lugar a um novo
respeito a si próprio; desperta recursos de força e coragem que eles não
têm consciência de possuir; enfim, abala de tal modo a consciência do
opressor, que a reconciliação se torna uma realidade (KING, 1963 apud DE
FIORES, 1999, p. 53).

4.2.2 A década de Setenta

Em um processo iniciado na década anterior, muitos abandonam a religião de


seus pais. Os motivos são vários – decepção, desejo de autoafirmação, ascensão
de grupos espiritualistas, movimentos de libertação etc. A busca pela espiritualidade
além das fronteiras das religiões aumenta exponencialmente. Uma pesquisa do
Instituto Gallup feita em 1978 revelou que: “dez milhões de americanos se voltaram
para religiões orientais e nove milhões estavam envolvidos em alguma forma de
cura espiritual” (ELKINS, 1998, p. 27).
O cenário brasileiro era tomado pela ditadura militar e, com ela, uma forte
presença da censura e de perseguições políticas. É neste contexto que surgem
_______________
162
Pastor protestante e ativista dos Estados Unidos. Nascido em janeiro de 1929 e falecido em abril
de 1968. Um dos mais importantes líderes do movimento pelos direitos civis dos negros nos
Estados Unidos na década de 60. É conhecido pela sua campanha em favor da não-violência e do
amor ao próximo. Recebeu em 1964 o Prêmio Nobel da Paz. Foi assassinado no Tenessee, um
pouco antes de uma marcha que iria realizar na cidade de Memphis.
100

expressões fortes e de resistência, como é o caso da Teologia da Libertação e as


Comunidades Eclesiais de Base, bem como o incentivo, por parte da hierarquia, de
formas de piedade popular.

4.2.2.1 A espiritualidade da Teologia da Libertação

A Teologia da Libertação é um movimento sócio-eclesial surgido no âmbito da


Igreja da América Latina nos fins da década de 60. “Pretende ser um novo modo de
se fazer teologia, a partir da perspectiva dos pobres, ‘de baixo para cima’”163 (HOLT,
2001, p. 324). Encontrou seus momentos mais intensos e decisivos ao longo das
décadas de 70 e 80. Através de uma análise crítica da realidade social, realizando
uma releitura dos textos bíblicos, especialmente do Antigo Testamento, procurou
sempre estar ao lado dos pobres e oprimidos, realizando com eles um projeto de
libertação.
É de um dos iniciadores da Teologia da Libertação uma das definições que
podemos utilizar para compreender qual seria a sua espiritualidade: “espiritualidade
que procura enraizar-se no terreno preparado pela situação de opressão-libertação”
(GUTIERREZ apud DE FIORES, 1999, p. 55). É no canto do Magnificat (Lc 1,46-55)
– considerado como um dos textos bíblicos que melhor expressam a essência desta
espiritualidade – que encontramos as suas três características essenciais:
a) conversão ao próximo: com as implicações teóricas e práticas. Este
próximo é todo ser humano explorado, marginalizado, oprimido e
desprezado (cf. Lc 1,48.52-54);
b) gratuidade: vivida como dom e comunhão com o Senhor e com
todos os seres criados (cf. Lc 1,49-51);
c) alegria cristã: que nasce da fé em Cristo e da esperança da
realização de suas promessa (cf. Lc 1,46-47).
O documento conclusivo da III Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano - Puebla (CELAM, 1979, nº 297) ressaltava a coincidência do cântico do
Magnificat com a espiritualidade vivenciada pelos povos mais sofridos e
marginalizados:
_______________
163
“It advocates a new way of doing theology, from the perspective of the poor, from the ‘bottom up’”.
101

o Magnificat é espelho da alma de Maria. Neste poema conquista o seu


cume a espiritualidade dos pobres de Javé e o profetismo da Antiga Aliança.
É o cântico que anuncia o novo Evangelho de Cristo. É o prelúdio do
Sermão da Montanha. Aí Maria se nos manifesta vazia de si própria e
depositando toda sua confiança na misericórdia do Pai. No Magnificat
manifesta-se como modelo "para os que não aceitam passivamente as
circunstâncias adversas da vida pessoal e social, nem são vítimas da
alienação, como se diz hoje, mas que proclamam com ela que Deus ‘exalta
os humildes' e se for o caso ‘derruba os poderosos de seus tronos'..." (João
Paulo II, Homilia Zapopán, 4 - AAS LXXI p. 230)

Para Gutierrez a espiritualidade da Libertação é “uma maneira nova de seguir


Jesus” e representa a ação concreta de Deus em meio a seu povo, especialmente o
povo latino-americano que sofre escandalosamente as mazelas do empobrecimento
e da opressão dos governos alheios à sua situação. Esta década representa um
tempo especial da Igreja da América Latina que encontra nas comunidades de base
a sua expressão mais significativa. E é através delas que a espiritualidade da
libertação vai sendo forjada, pela solidariedade com os mais pobres, pela oração e,
inclusive, pelo martírio.

4.2.2.2 A espiritualidade popular

Dentro de uma sociedade cada vez mais secularizada e com avisos


“proféticos” de que iríamos ver o fim da religião, na década de setenta temos a
intensificação da religião dita popular e que, de fato, nunca foi abandonada pelos
mais simples. Vê-se o aumento dos ritos, das peregrinações, dos ex-votos. O que
surge como novidade é a reinterpretação da Igreja Católica, através de congressos e
estudos, do valor da piedade popular. É desta época a exortação apostólica pós-
sinodal de Paulo VI (1975) – Evangelii Nuntiandi. Em seu número 48 refere-se à
religiosidade popular como um dos aspectos da evangelização. Confessa, inclusive,
a depreciação que se tinha por ela: “Encaradas durante muito tempo como menos
puras, algumas vezes desdenhadas [...]”; “Ela acha-se freqüentemente aberta à
penetração de muitas deformações da religião, como sejam, por exemplo, as
superstições. Depois, ela permanece com freqüência apenas a um nível de
manifestações cultuais, sem expressar ou determinar uma verdadeira adesão de fé.
Ela pode, ainda, levar à formação de seitas e pôr em perigo a verdadeira
comunidade eclesial”. Tem-se então a sua revalorização: são objetos de
102

“redescoberta”, “traduz em si uma certa sede de Deus”, “suscita atitudes interiores


que raramente se observam alhures no mesmo grau”, é preciso “aperceber-se das
suas dimensões interiores e dos seus inegáveis valores” e, por fim, poder vir a ser
“um verdadeiro encontro com Deus em Jesus Cristo”.

4.2.2.3 Novos Movimentos Eclesiais

Os Novos Movimentos Eclesiais (NME) carregam este adjetivo (“novo”) pelo


simples fato de que a maioria deles teve seu início após o Concílio Vaticano II.
Alguns, porém, ainda que fundados em anos anteriores, viram seu florescimento no
período pós-conciliar, principalmente a partir da década de 80. O adjetivo “novo”
quer também designar que carregam em si uma novidade em relação à vida
consagrada existente na Igreja até então. Muitas vezes são comparados às ordens
mendicantes surgidas na Idade Média.
Uma das características importantes destes NME é a figura que o leigo
exerce em seu interno. Até então tínhamos famílias religiosas, ordens ou até mesmo
movimentos nos quais o sacerdote exercia o papel de líder e o leigo estava a ele
subordinado. Alguns casos pré-Vaticano II, nos quais leigos eram os coordenadores
de movimentos (como foi a Ação Católica, a Pia União da Filhas de Maria ou até
mesmo o Apostolado da Oração), a ação do assistente eclesiástico era notável,
chegando a “exercer autoridade intelectual, moral e administrativa de tal natureza
que, de forma considerável, tolhia a autonomia do movimento” (MAUÉS, 2012, p.
860). Hoje, os sacerdotes, na sua maioria, se engajam simplesmente como
membros do movimento. Deve-se notar ainda que muitos destes NME formam os
seus sacerdotes, em seminário próprios ou não, e estes ficam à disposição dos
respectivos Movimentos.
Outro aspecto importante é a organização da vida comunitária. São de vários
níveis. Autorregulam-se e, ainda que se coloquem à disposição de estruturas já
existentes (como dioceses ou paróquias) criam suas próprias organizações que vão
das mais simples (reuniões, encontros) até as mais complexas (casas de vida
comum, seminários, conventos).
Em relação à espiritualidade vivenciada por estes NME pode-se dizer que
abarca um extenso leque de possibilidades. Muitos seguem estritamente certas
103

escolas de espiritualidades já consagradas (beneditina, jesuíta, carmelitana etc.), há


uma grande maioria que concebe sua espiritualidade como um combinado mais ou
menos harmonizado entre várias vertentes espirituais. Há os que absorvem
elementos não-católicos ou mesmo não-cristãos. Enfim, como eles próprios se
intitulam como “novos”, há que se esperar que algo de novo também em relação à
espiritualidade esteja surgindo.
Aos poucos estão sendo reconhecidos oficialmente pela Igreja e dela
ganhando estatutos canônicos próprios. O caso da Opus Dei é o mais notável, pois
já em 1982 recebeu do então papa João Paulo II o estatuto de Prelazia Pessoal 164. A
maioria deles, no entanto, tem recebido o estatuto de Associação Privada (ou
Pública) de Fiéis.
Elencamos a seguir alguns dos Movimentos Eclesiais surgidos (ou que
tiveram seu desenvolvimento ou aprovação) no pós-Concílio, com o país e a
respectiva data de fundação165:
a) Movimento Apostólico de Schoenstatt – 1914 – Alemanha;
b) Opus Dei – 1928 – Espanha;
c) Regnum Christi – 1941 – México;
d) Movimento dos Focolares (Obra de Maria) – 1943 – Itália;
e) Movimento de Cursilhos de Cristandade – 1948 – Espanha;
f) Comunhão e Libertação – 1954 – Itália;
g) Caminho Neocatecumenal – 1964 – Espanha;
h) Renovação Carismática Católica (RCC) – 1967 – Estados Unidos;
i) Treinamento de Liderança Cristã (TLC) – 1967 – Brasil
j) Encontro de Casais com Cristo (ECC) – 1970 – Brasil;
k) Comunidade Canção Nova – 1978 – Brasil.
l) Comunidade Católica Shalom – 1982 – Brasil;
m) Oficinas de Oração e Vida – 1984 – Chile;
_______________
164
Categoria prevista pelo Concílio Vaticano II no seu decreto Presbyterorum Ordinis. Se no caso da
Prelazia Territorial a delimitação espacial é necessária como determinante da porção do povo de
Deus que a ela é conferida, para a Prelazia Pessoal o vínculo se dá exclusivamente por afinidade e
de modo individual em qualquer parte do mundo. O pastor próprio é denominado de Prelado.
165
Para uma visão completa de todos os NME e Associações de Leigos que são oficialmente
reconhecidos pela Igreja Católica, o Conselho Pontifício para os Leigos mantém um repertório
atualizado constantemente. Neste repertório encontramos um breve histórico, a identidade, a
estrutura, os contatos, bem como o endereço eletrônico de cada um deles.
http://www.laici.va/content/laici/fr/sezioni/associazioni/repertorio.html.
104

E precisamente no governo de João Paulo II que os NME (e aqui incluímos as


Associações de Leigos e as Novas Comunidades) encontram um apoio significativo
de suas atividades e se desenvolvem nos níveis local, regional e internacional. O
magistério de João Paulo II (bem como o de Bento XVI) está permeado de
incentivos ao desenvolvimento destas novas expressões e de exortações para que
as Igrejas locais propiciem a acolhida das mesmas. Cardeal Stanislaw Rylko,
presidente do Conselho Pontifício para os Leigos, ao fazer a apresentação no site do
elenco oficial dos NME e Associações, assim se expressa:

O papa [João Paulo II] vê nos Movimentos um dos frutos mais significativos
da primavera da Igreja que eclodiu com o Concílio Vaticano II, um “motivo
de esperança para a Igreja e para os homens” de nosso tempo, uma obra
do Espírito que constitui a Igreja como abundância de vida nova, que flui na
história dos homens. Em um mundo cada vez mais secularizado, onde a fé
é colocada à dura prova e muitas vezes é abafada ou enfraquecida, os
Movimentos e as Comunidades Novas, portadoras de uma novidade
inesperada e impactante, são a “resposta suscitada pelo Espírito Santo a
este dramático desafio do fim do milênio, (uma) resposta providencial”. No
pensamento de João Paulo II, uma etapa rica de expectativa e esperança
166
se abre diante das associações leigas na Igreja (RYLKO).

4.2.2.4 Revisões literárias sobre a espiritualidade

Além da literatura comum que se vai multiplicando neste período, merecem


destaque as obras de maior envergadura e que realizam sínteses da formas de
espiritualidades que estão a surgir. Os dicionários de espiritualidade procuram
explorar as temáticas que surgem no período pós-concílio. Seguindo o texto
elaborado por de Fiores (1999, p. 65-66) resumimos aqui as obras mais conhecidas
nessa área:

_______________
166
“Le Pape voit dans les mouvements un des fruits les plus significatifs du printemps de l’Église qui a
éclos avec le Concile Vatican II, un ‘motif d’espérance pour l’Église et pour les hommes’ de notre
temps, une œuvre de l’Esprit qui constitue l’Église comme flux de vie nouvelle, qui coule dans
l’histoire des hommes. Dans un monde toujours plus sécularisé, où la foi est mise à dure épreuve et
souvent étouffée et éteinte, les mouvements et les communautés nouvelles, porteurs d’une
nouveauté inattendue et bouleversante, sont la ‘réponse, suscitée par l’Esprit Saint, à ce
dramatique défi de fin millénaire, [une] réponse providentielle’. Dans la pensée de Jean-Paul II, une
étape riche d’attentes et d’espérances s’ouvre devant les associations laïques dans l’Église”.
105

a) Léxico de Espiritualidade: tendo Vladimir Truhlar como organizador.


Esta obra não foi traduzida para o português. Teve a sua edição
original em 1973 pela Editora Queriniana. Sendo seu título original
Lessico di spiritualità, ele é dirigido, segundo a intenção do autor,
não somente aos cristãos, mas aos não-cristãos e ateus inclusive.
Ainda na introdução da obra, Truhlar (apud DE FIORES,1999, p.
65) assim traduz o seu propósito: explorar os temas como eles se
apresentam “na viva, movimentada e pluriforme existência
hodierna” e enfatiza a sua contemporaneidade – procura responder
“àquelas questões propostas hoje à teologia espiritual”;
b) Dicionário Enciclopédico de Espiritualidade: organizado por
Ermanno Ancilli. Sua primeira edição data de 1975 e foi publicado
pelas Edizioni Studium di Roma. O Dicionário que temos atualmente
(1990) é, na verdade, uma revisão completa e atualizada por Ancilli
em colaboração com o Pontifício Instituto de Espiritualidade
Teresianum, no qual o professor havia exercido seu magistério
durante muitos anos167. A obra tem a intenção de oferecer uma
síntese ampla, articulada e acessível dos grandes temas de
espiritualidade no pós-Concílio. Tem uma perspectiva clássica,
procurando ser um disseminador da doutrina católica sobre
espiritualidade;
c) Novo Dicionário de Espiritualidade: organizado por Stefano de
Fiores e Tullo Goffi e publicado originalmente no ano de 1979. No
Brasil em 1989 sem o adjetivo “Novo”, mas somente “Dicionário de
Espiritualidade”.
Torna-se uma das maiores referências na área. Segundo os
autores, houve a escolha por verbetes que expressassem o
concreto em oposição ao abstrato (como “Filhos de Deus”,
“Trabalhador”, “Vidente” etc.; ao invés de “Graça”, “Trabalho”,
“Aparições” etc.). Apresenta uma espiritualidade encarnada em

_______________
167
Cabe ressaltar aqui que o Dicionário em questão está traduzido para o português. A obra foi uma
coedição de Loyola e Paulinas. O que causa surpresa é de que, ainda que a edição revisada e
ampliada, em sua língua original, tenha sido publicada em 1990, tivemos acesso em nossa língua
apenas em 2012!
106

diálogo com o mundo contemporâneo, com as diversas religiões e


com as diversas disciplinas. Procura uma “atualização da
espiritualidade segundo as situações de vida” (cf. DE FIORES,
1999, p. 66).

4.2.3 A década de Oitenta

Podemos assinalar esta década já como pós-moderna. As características


próprias foram exploradas na seção anterior. Em se tratando da espiritualidade a
situação é igualmente complexa. Se nos anos logo após o Concílio Vaticano II a
inovação e as experiências são palavras de ordem, nessa década tenta-se ordenar
os múltiplos sujeitos eclesiais que surgiram. Como o clima era de incerteza a
respeito dos rumos tomados pela Igreja nas décadas anteriores ganha espaço
algumas correntes restauradoras ou neoconservadoras. Logo no início da década,
Gregory Baum (1981 apud DE FIORES, 1999, p. 68), na revista Concilium, postula
que as Igrejas “voltem a uma forma mais autoritária de religião e novamente
imponham como normas as antigas virtudes da aplicação, dedicação, sacrifício e
espírito de renúncia”. Uma representação destas correntes são os fundamentalismos
(presentes também nas várias religiões mundiais) pretendendo que, em “nome da
revelação de Deus em estado puro” rejeitar “ao mesmo tempo a hermenêutica, o
pluralismo e o pensamento prospectivo ou relativista, bem como o desenvolvimento
da filosofia da história” (DE FIORES, 1999, p. 68).
Algumas tendências que surgem (ou se consolidam) nesse período:

4.2.3.1 Tentativas de unificação

A Igreja é instada a dialogar com o mundo contemporâneo, dialogar com as


várias disciplinas, ser uma presença profética e, ao mesmo tempo reelaborar sua
espiritualidade. João Paulo II surge como a grande personalidade religiosa que
levará a Igreja a ultrapassar os umbrais do terceiro milênio. Na pessoa dele busca-
se realizar esta unificação entre o antigo e o novo (cf. DE FIORES, 1999, p. 69).
Para ele a época de então era “particularmente faminta de Espírito, porque faminta
107

de justiça, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade e de


dignidade humana” (JOÃO PAULO II apud DE FIORES, 1999, p. 69). Os
Movimentos Eclesiais (já mencionados na subseção anterior) e os grupos
representavam para ele uma renovação da vida espiritual e uma real contribuição
para a retomada da oração entre os fiéis. Ainda é de Fiores quem define a
espiritualidade de João Paulo II da seguinte forma: trinitária, antropológica,
cristológica e mariana.

4.2.3.2 Movimentos de New Age

Por não se tratar de uma forma de espiritualidade cristã, não nos deteremos
neste item. Queremos apenas salientar quatro características que definem este tipo
da espiritualidade. Características que, por sua vez, realizam algum tipo de
influência nas expressões da espiritualidade cristã contemporânea. São elas:
a) uma concepção holística da ciência (o universo como feixes de
ondas de energias correlatas e que interagem, unicidade de tudo);
b) o fascínio pelas religiões orientais (mestres espirituais, técnicas de
meditação, a relação entre os princípios yin e yang, os aspectos
femininos, intuitivos e acolhedores);
c) o xamanismo e o contato com o além-mundo (xamãs, transes,
médiuns, psicografia, channeling);
d) o esoterismo e astrologia (teosofia, corpo astral, predições).
Através do Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso a Igreja Católica
emitiu um documento intitulado “Jesus Cristo Portador de Água Viva: uma reflexão
cristã sobre a ‘Nova Era’” em fevereiro de 2003168. O documento pretendeu
responder às várias questões suscitadas pela Nova Era, bem como oferecer um
auxílio para o diálogo com aqueles que são influenciados por estas ideias.

_______________
168
Além da obra impressa, possível de ser adquirida em livrarias, está disponível no endereço
eletrônico do Vaticano o texto digital em quatro idiomas. Espanhol, francês, italiano e inglês. Para o
acesso do texto em espanhol ver:
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/documents/rc_pc_interelg_doc_2003
0203_new-age_sp.html.
108

4.2.3.3 Catecismo da Igreja Católica

Oficialmente lançado em 1992, porém com uma história que se inicia a partir
do Sínodo dos Bispos de 1985. Apresenta-se em quatro partes a saber: Profissão de
Fé, Celebração do Mistério Cristão, o Decálogo, a Oração Cristã. A última parte,
dedicada de forma explícita à espiritualidade cristã oferece seus elementos
essenciais. As dimensões que são apresentadas para a espiritualidade são as já
reconhecidas: trinitária, cristológica, pneumatológica, eclesial, litúrgica, implicada
com o mundo e escatológica.

4.2.4 A virada do Milênio

Nesta subseção encontramos a nossa realidade atual. É impressionante


perceber que há não muito tempo falava-se do novo milênio e de todas as
conquistas, invenções, tecnologias, prosperidades que ele traria à humanidade. Via-
se, também, com um certo receio – correntes milenaristas falavam do fim dos
tempos, da extinção da raça humana. Mas eis-nos aqui, já distantes quase duas
décadas do início do milênio!
Um sintoma bastante característico deste período (aproximadamente duas
décadas e meia) e unânime estre os analistas é ritmo acelerado de mudanças que
temos visto. O campo das tecnologias é aquele em que mais se nota esta marca.
Mas outras áreas também refletem este aumento da velocidade das mudanças – a
política, a economia, a sociedade e seus costumes, o conhecimento, os valores etc.
Algumas características que desejamos apontar:

4.2.4.1 Retomada da vida consagrada e sacerdotal

Assim como as Ordens e Congregações religiosas, a vida sacerdotal também


sofreu terrível crise nos anos posteriores ao Concílio. Especialmente nos países
então chamados de Primeiro Mundo. Muitas vocações foram abandonadas,
cresceram os questionamentos sobre a validade e a pertinência da identidade
sacerdotal e religiosa.
109

Lentamente, porém de forma consistente, a situação tem se revertido. Com o


amadurecimento da teologia do sacerdócio, o aumento do número e da qualidade
das vocações e o impulso do Magistério da Igreja, percebe-se uma mudança neste
quadro.
Em relação à vida religiosa o processo é semelhante. Acrescente-se aqui,
ainda, as fundações mais recentes, que, pela proximidade histórica com o fundador
e seu carisma fundacional, demonstram um renovado vigor. Muitas são aquelas que
têm unido cada vez mais uma generosa dedicação aos mais pobres e
marginalizados com uma intensa e profunda vida de oração (SESÉ, 2005, p. 300-
301).

4.2.4.2 O restauracionismo

Especialmente durante os governos de João Paulo II e Bento XVI se


manifestou um desejo expresso de um processo de “recristianização” da Europa. Se
nas décadas posteriores ao Concílio Vaticano II a Igreja se percebia perdendo o seu
protagonismo histórico, retoma-se, em algumas situações, o desejo de se retornar à
antiga disciplina. Muitas vezes confundida com uma Nova Evangelização, o
restauracionismo abriga, como toda ideologia, interesses não tão honestos.
Interesses que podem ser a recuperação do poder (político, temporal) da Igreja na
sociedade, uma sacralização da autoridade, uma atitude de soberba e superioridade
perante outras instâncias sociais. Surgem desta vertente alguns grupos que
pretendem o retorno à época pré-conciliar como forma de proporcionar certezas e
seguranças diante de um mundo cada vez mais plural e complexo.
Libânio (2005, p. 811), ao explorar em seu texto a Igreja que gostaria de ver
construída, descreve assim este comportamento:

Entretanto, sobretudo nas últimas décadas, ela [a hierarquia] tem


modificado o comportamento geral em relação à vida interna da Igreja. Em
vez de favorecer experiências criativas, tem exercido um processo de
triagem e de fixação de algumas experiências julgadas válidas por ela. E, ao
mesmo tempo, fecharam-se as portas para tentativas novas. Esse
movimento recebeu vários nomes: “neoconservadorismo” (J. Comblin,
Gonzáles-Faus), “inverno da Igreja” (K. Rahner), “volta à grande disciplina”
(J.B. Libanio).
110

Diante desta característica, Garrido propõe um desafio que possa dar


credibilidade e sentido ao ser cristão: “possibilitar uma nova identidade ‘desde
baixo’, a partir da subjetividade pessoal e a experiência eclesial da fé sem poder”
(GARRIDO, 1996, p. 619).

4.2.4.3 O interesse crescente pela vida espiritual

Nos últimos decênios o interesse pela vida dos santos, dos mestres e autores
clássicos da espiritualidade cristã vem crescendo. As publicações sobre o assunto,
desde biografias, estudos hagiográficos, obras completas com edições críticas,
reedições de textos clássicos de espiritualidade estão na ordem do dia das várias
editoras. E há os que, a partir destes autores e obras, reescrevem ou popularizam
as diversas correntes de espiritualidade cristã.

4.2.4.4 Espiritualidade cristã através da Internet

Assim como afetou a humanidade como um todo, a rede mundial de


informações trouxe mudanças significativas no perfil espiritual do indivíduo da pós-
modernidade.
O desenvolvimento de websites, blogues, portais etc. proporcionou que se
possa ler um texto de Juliana de Norwich, encontrar um retiro de final de semana,
acompanhar a publicação de um documento pontifício, inclusive frequentar um curso
de bacharelado de teologia à distância!
Porém, o que mais tem impactado na utilização da internet são as redes
sociais que proporcionam interações, contatos com pessoas de qualquer parte do
mundo, com interesses afins. Pode-se discutir sobre Thomas Merton, reunir um
grupo para conversar sobre a influência da espiritualidade hindu ou, até mesmo,
realizar uma oração comunitária ou uma direção espiritual através da tela de um
computador, um notebook ou um smartphone.
111

4.2.5 Algumas temáticas recorrentes na contemporaneidade

4.2.5.1 Espiritualidade leiga (ou laical)

Durante séculos a perfeição evangélica, bem como a vivência integral da


espiritualidade, foi atribuída quase que exclusivamente à vida religiosa e ao
cumprimento dos seus votos (pobreza, obediência e castidade). Porém temos na
história da Igreja vários exemplos de que a tradição religiosa também foi vivenciada
por leigos e leigas. É o caso de Pais e Mães da Igreja que foram leigos169. Assim
como as beguinas170 e os beguinários nos séculos doze e treze, juntamente como os
movimentos que se seguiram, como foi o caso de São Francisco de Assis.
Um importante impulso para o desenvolvimento da espiritualidade leiga foi o
relevo concedido pelo Concílio Vaticano II (LG 42) ao chamado universal à
santidade: “Todos os cristãos são, pois, chamados e obrigados a tender à santidade
e perfeição do próprio estado”. Juntamente com a constatação de que é no batismo
que se funda toda e qualquer espiritualidade: “os fiéis que, incorporados em Cristo
pelo batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo,
da função sacerdotal, profética e real de Cristo”.
A espiritualidade laical é nutrida através de duas vertentes diferentes: a Igreja
– pelos sacramentos e pela Palavra de Deus – e a relação com o mundo –
encontrando a presença de Deus em meio às coisas ordinárias e diárias. Esta
presença de Deus no mundo está baseada na teologia da criação e na encarnação
do Verbo.

_______________
169
Justino, Tertuliano, Santa Luzia, Perpétua, Felicidade, Águeda, inúmeros mártires e cristãos e
cristãs anônimos são exemplos.
170
Mulheres leigas católicas que tinham vida ascética comum no início do século XII. A nomenclatura
deriva de um padre de Liège – Lambert de Bègue – que pregava a constituição de uma associação
de mulheres que vivessem vida religiosa, sem porém professarem os votos. Surgiram nos Países
Baixos, mas se espalharam para outros lugares. Seu modo de vida não contemplava a esmola e
não renunciavam às propriedades. Poderiam deixar suas comunidades e se casarem quando
desejassem. Sua rotina incluia a oração, participação na missa, penitências, vigílias e a caridade
com os mais pobres. Cada comunidade era independente. Duas beguinas importantes – a mística
Hadewijch de Antuérpia e Marcella Pattyn (a última beguina, falecida em 2013). A relação do
movimento das beguinas com a Igreja Católica foi muito conturbado. Foram alvo de muitas
acusações, foram proibidas, condenadas e até perseguidas. Já no século XV foram reabilitadas
pelo papa Eugênio IV, porém seu número foi descrescendo. O número de beguinas no início do
século XX era de mil, diminuindo para apenas nove na década de 60.
112

O próprio Concílio Vaticano II, em sua Constituição Dogmática Lumen


Gentium explora esta relação do cristão (especialmente o leigo) com toda a criação
e afirma que “[...] também os leigos, como adoradores agindo santamente em toda
parte, consagram a Deus o próprio mundo” (LG 34). É na sua inserção no mundo
que o leigo exerce seu sacerdócio comum, através das coisas ordinárias, cotidianas.
Ofertando completamente sua vida, o leigo vê todas as suas realidades naturais
transfigurarem-se pela ação do próprio Cristo que, pelo seu mistério da encarnação,
eleva consigo toda a coisa criada:

Assim todas as suas obras, preces e iniciativas apostólicas, vida conjugal e


familiar, trabalho cotidiano, descanso do corpo e da alma, se praticados no
Espírito, e mesmo os incômodos da vida pacientemente suportados,
tornam-se “hóstias espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo” (LG 34).

Sem medo de errar, pode-se afirmar que o leigo possui (deve possuir) não
somente o protagonismo da evangelização como já declarado pelo Magistério
Eclesial em diversos documentos (especialmente Christifideles laici e Documento de
Santo Domingo), mas também o protagonismo de uma “nova espiritualidade” capaz
de traduzir toda a riqueza da espiritualidade cristã para o cenário atual. Porque é
próprio da vocação laical a inserção nas realidades temporais, pode-se supor que
caberá aos leigos a importante missão de ser o novo modelo de santidade para esta
época. Paul Ricoeur (1965 apud DE FIORES, 1989, p. 354) falando da
sobrevivência da espiritualidade cristã, assim se expressa:

Só poderão sobreviver – e unicamente – as espiritualidades que levam em


conta a responsabilidade do homem, que atribuem valor à existência
material, ao mundo técnico e, em geral, à história. Deverão morrer as
espiritualidades de evasão, as espiritualidades dualistas... Num sentido
geral, acho que as formas de espiritualidade incapazes de considerar a
dimensão histórica do homem haverão de sucumbir sob a pressão da
civilização técnica.

De Fiores (1999, p. 11), em sua introdução da obra “A ‘nova’ espiritualidade”


justamente constata a ascensão de uma “nova” espiritualidade em relação ao
desenvolvimento do laicato no cenário eclesial: “Esta expansão da espiritualidade
cristã do recinto da elite religiosa à área mais vasta do laicato é uma das
características da 'nova espiritualidade'”.
113

O matrimônio e a vida familiar são elementos importantes na vivência da


espiritualidade laical. Acrescentamos também os vínculos de amizade. Todas elas
imprimem à espiritualidade uma dimensão relacional. É na família que cada um dos
membros poderá realizar a experiência da segurança, da alegria e do amor de Deus.
Um aspecto muitas vezes descurado nas discussões a respeito da espiritualidade
laica dentro do matrimônio é a relação sexual entre os esposos que é o que plenifica
e é ápice do amor já existente.
A espiritualidade dos casais (e também familiar) tem sido alvo de atenção de
muitos Movimentos surgidos no pós-Concílio (alguns já apontados anteriormente). O
acompanhamento muitas vezes é realizado para casais de namorados, noivos em
vistas da recepção do sacramento. E é continuado no pós-matrimônio, na chegada
dos filhos e na maturidade do casal. Estes Movimentos redescobrem nas Sagradas
Escrituras e no Magistério da Igreja valiosas lições de espiritualidade que podem ser
vividas pelos leigos que abraçam esta vocação.
Mesmo aqueles(as) leigos(as) que não abraçam a vocação matrimonial,
encontram acolhida em vários Movimentos Eclesiais e, através deles, descobrem
possibilidades da vivência da espiritualidade leiga, seja em ambientes eclesiais, seja
na vida secular.
Não é pertinente a esta dissertação explorar a teologia do laicato, mas se
ressalta que o resgate ou a nova compreensão do que seja a espiritualidade dos
leigos e leigas abre possibilidades nova para a espiritualidade cristã responder aos
desafios desta época.

4.2.5.2 Justiça e solidariedade com os pobres

Uma tendência forte surgida no final do século anterior no âmbito da teologia


foi a Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos pobres. Desenvolvida a
partir destas temos a Espiritualidade da Libertação (apontada em subseção
anterior). Um tal acento de espiritualidade não é nova no espectro da história da
Igreja. Podemos olhar para São Francisco de Assis e o seu desejo de desposar a
114

“Senhora Pobreza”. Vemos em Charles de Foucauld171 e a sua espiritualidade


desenvolvida em uma vida vivida entre os pobres de tribos da região do Saara.
Outro exemplo é da ativista católica norte-americana Dorothy Day172 que dedicou
sua vida em favor dos pobres, especialmente as mulheres. Era leiga e através de
sua revista católica The Catholic Worker quis divulgar as injustiças contra os
operários, os pobres, a situação do trabalho infantil e a exploração contra os negros.
Muitos NME e Novas Comunidades dedicam-se a estar entre os mais pobres e
aqueles marginalizados, como é o caso da Comunidade da Arca de Jean Vanier173.
A primeira comunidade foi fundada em 1964 e atualmente existem mais de mil
comunidades espalhadas pelo mundo. Em uma conferência em 2006 Jean Vanier
afirmou que: “entrar em comunhão com o pobre nos muda, nos transforma, nos faz
mais humanos e é um caminho de conhecimento de Deus”174.
O surgimento da Espiritualidade da Libertação está contextualizado no
continente latino-americano no início da década de 70, como brevemente já
mencionado, em meio a sociedades brutalizadas por governos ditatoriais e violentos.
Uma espiritualidade de discipulado e que, muitas vezes trouxe como consequência o
martírio. Centenas de padres, religiosas, religiosos, pastores protestantes e leigos
foram mortos em nosso continente desde o fim do Concílio Vaticano II. Mártir deste

_______________
171
Charles Eugène de Foucauld de Pontbriand foi religioso católico e eremita. Nascido em setembro
de 1858 e morto em dezembro de 1916 na Argélia. Após uma carreira militar decide se tornar
explorador no Marrocos. Torna-se trapista depois de um período de reflexão. Em 1897 deixa a
Trapa para buscar uma vocação religiosa autônoma. Nesse processo é ordenado sacerdote e se
estabelece na Argélia entre os tuaregues. Foi assassinado por assaltantes de passagem. Após a
sua morte se inicia a Ordem dos Pequenos Irmãos de Jesus sob seu carisma.
172
Jornalista católica americana. Nascida em novembro de 1897 e falecida em novembro de 1980
viveu a sua juventude como ativista social e anarquista, chegando a trabalhar como jornalista em
uma publicação marxista nos Estados Unidos. Após o nascimento de sua filha (1927) aproxima-se
da Igreja Católica e é batizada. Funda em 1932 o Movimento Operário Católico com o padre Peter
Maurin. Visitou muitos países levando a sua causa e publicou várias obras. Faleceu em um abrigo
para pobres, trabalhando entre as pessoas comuns em vistas de uma mudança social.
173
Filósofo, teólogo e humanitário canadense. Nascido em setembro de 1928 fundou em 1964 a
comunidade L’Arche que se dedica aos cuidados das pessoas com deficiências de
desenvolvimento. A Arca está presente no mundo inteiro através de centenas de comunidades.
174
Disponível em http://www.zenit.org/pt/articles/o-pobre-transforma-nos-e-nos-cura-recorda-jean-
vanier-fundador-da-comunidade-a-arca. Acesso em 5 de novembro de 2015.
115

período foi o arcebispo de Guatemala D. Oscar Romero175, em vias de ser


canonizado atualmente.

Seu empenho [da Igreja Católica na América Latina e no Caribe] em favor


dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem
ocasionado, em muitos casos, a perseguição e inclusive a morte de alguns
de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos
recordar o testemunho valente de nossos santos e santas, e aqueles que,
inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o
Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo
(CELAM, 2007, nº 98)

Segundo Galilea (1984, p. 9), um dos mais expressivos representantes da


teologia latino-americana, expressa em cinco pontos os acentos que a
espiritualidade da libertação procura desenvolver em nosso continente. Ele assevera
ainda que este elenco está em consonância com o Documento de Puebla, com as
experiências das comunidades cristãs e com as orientações oficiais da Igreja. São
eles:

a) a contemplação e a ação tem sido redescobertos a partir da


experiência de Deus na história e na missão;
b) o critério da prática cristã é o conhecimento, o amor e o seguimento
de Jesus histórico, pela força do Espírito;
c) o amor fraterno (justiça, comunhão, participação, reconciliação,
misericórdia) tem a primazia na espiritualidade;
d) o seguimento de Jesus se dá pela opção preferencial pelos pobres
e a sua libertação integral. Ele se concretiza na pobreza evangélica;
e) o testemunho cristão até as últimas consequências – inclusive a
perseguição e o martírio.
Seguindo a apreciação que Thomas Rausch (2003, p. 180-191) faz da
espiritualidade, tomamos a sua enumeração das características atribuídas a uma
espiritualidade de justiça e solidariedade aos pobres:

_______________
175
Nascido em agosto de 1917 em uma pequena cidade de El Salvador, D. Romero é ordenado
sacerdote em 1942. Foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador em 1970 e bispo da diocese de
Santiago de Maria em 1974. Em meio a repressões militares, celebra uma missa pelos cinco
camponsese assassinados (em 1975). Escreve uma carta ao então presidente Molina. Em 1977 foi
nomeado Arcebispo de San Salvador. Teve uma vida devotada aos que eram perseguidos e
utilizou de seu ministério para denunciar as atrocidades. Em 24 de março de 1980 foi assassinado
enquanto celebrava uma missa na capela de um hospital.
116

a) estar firmemente enraizada na oração e contemplação: é através


delas que se pode compreender verdadeiramente a realidade;
b) simplicidade de vida: é praticamente impossível vivenciar esta
espiritualidade mantendo-se um alto padrão de vida, envolvido em
confortos e facilidades inacessíveis aos pobres e marginalizados. É
necessário confrontar a sua vida com momentos intensos de
vivência junto aos despossuídos;
c) consciência global: possuir a sensibilidade de pertença ao conjunto
dos seres humanos, ultrapassando barreiras segregadoras como
etnia, sexo, situação social ou econômica;
d) compromisso com a justiça: todo cristão é instado a se colocar ao
lado da justiça e defender aqueles que de alguma forma têm seus
direitos retirados. Esta característica adquire uma dimensão
profética ao se proclamar a verdade e agir conforme ela.

4.2.5.3 Espiritualidade Feminista

Dentro do espectro da Teologia da Libertação surge um campo especial de


estudos e lutas – a promoção da mulher, que busca conquistar espaços merecidos
na sociedade e nas Igrejas. Identificada com a Teologia Feminista 176, a
Espiritualidade Feminista abrange uma grande extensão de posições defendidas –
algumas ultrapassam a tradição cristã e se voltam para a Europa pré-cristã com
suas religiões naturais e o culto à Deusa Mãe. Retorna com força movimentos desta
natureza, como por exemplo a Wicca177 – outras tomaram um caminho mais no
interno das Igrejas.

_______________
176
Movimento com representações em várias tradições religiosas, como o budismo, o cristianismo e o
judaísmo. Faz uma releitura de todo arcabouço teológico a partir de uma perspectiva feminina.
Dentre os objetivos desta teologia temos o aumento do papel e da participação da mulher no clero
e nas esferas de autoridade, contra uma opressão feminina e a manutenção de privilégios
masculino legitimados por uma ideologia religiosa. Introduzem a metodologia da suspeita e da
desconstrução de conceitos teológicos. Neste aspecto visam denunciar a manipulação dos
elementos da religião em vistas de políticas que visam o favorecimento de um grupo em detrimento
de outros.
177
Religião neo-pagã originada principalmente na Europa pré-cristã. Tem como princípio a crença na
existência de poderes sobrenaturais e nos princípios masculinos e femininos que interagem com a
117

Esta espiritualidade passa pela crítica das forças e movimentos que oprimem
as mulheres e as alienam de si. Entre eles pode-se citar o patriarcalismo – seja na
sociedade, na família ou nas Igrejas – as estruturas rígidas e hierarquizadas.
Palavras-chaves desta espiritualidade são: igualdade, inclusivismo e mutualidade.
Procura-se superar os pensamentos e atitudes dicotômicas como: corpo/espírito,
espiritualidade/sexualidade, transcendência/imanência, razão/sentimento,
sagrado/secular.
Anne Carr explora esta questão: “é provável que haja diferenças entre a
espiritualidade feminina e a masculina” (CARR apud DE FIORES, 1999, p. 79). Esta
espiritualidade feminista surge da mensagem cristã e da experiência das mulheres e
“exige a libertação de todos os grupos oprimidos” (CARR apud DE FIORES, 1999, p.
80). Em busca de um Deus amoroso e não patriarcal atribui bastante importância à
experiência mística. Diante deste Deus pode-se adorá-lo como mãe e irmã ou
mesmo como amigo ou amiga.
Algumas características desta espiritualidade (segundo Sandra M. Schneiders
apud RAUSCH, 2003, p. 185-186).

a) entranhada na experiência das mulheres;


b) baseada na corporeidade: particularmente nos aspectos femininos
específicos tais como a menstruação, a gestação, o parto e a
amamentação, temáticas esquecidas nas espiritualidades
tradicionais;
c) ecológica: relaciona-se com todo o universo;
d) vivenciada em rituais que privilegiam a alegria, a participação e o
envolvimento;
e) relacionada com aspectos políticos como o desenvolvimento social
e a justiça.

natureza. Celebra ritos que marcam os ciclos da vida. É vista como “religião natural”. É politeísta,
porém com duas divindades principais – a Deusa-Mãe (associada à fertilidade ao amor pela vida e
ao renascimento) e o Deus Cornífero (associado à caça, à sexualidade, à morte e à magia).
118

4.2.5.4 Redescoberta da espiritualidade Mariana

Coube a de Fiores (1989, p. 683-697) a missão de escrever o verbete acerca


de Maria no Dicionário de Espiritualidade. Logo no seu início ele estabelece um
percurso da atitude dos católicos em relação à Maria desde os anos anteriores ao
Concílio Vaticano II até nossos dias. Para ele, passamos por quatro fases: a)
evolução; b) problema; c) crise e d) redescoberta. Vejamos detidamente estes
momentos para, então, percebermos como é vivenciada, atualmente, espiritualidade
mariana.

4.2.5.4.1 Evolução

O século XX foi conhecido como a “era de Maria”. Foi principalmente durante


o pontificado de Pio XII178 que através de atos oficiais179, realçou-se a figura de
Maria na vida do cristão. Vários estudos, congressos, peregrinações, novas
devoções surgiram com estes incentivos pontifícios. O culto mariano é considerado
elemento característico da espiritualidade cristã:

A verdadeira devoção, a da tradição da Igreja..., tende essencialmente à


união com Jesus sob a orientação de Maria... Vai-se a Jesus por meio de
Maria. Maria é, portanto, o caminho para Jesus Cristo, que é caminho,
verdade e vida (PIO XII apud DE FIORES, 1989, p. 683-684).

4.2.5.4.2 Problema

Uma vez que as devoções marianas tiveram um forte impulso, acompanhadas


muitas vezes de excesso de zelo, surgiram algumas restrições ou reservas. Duas
tendências opostas tornam-se mutuamente excludentes – uma piedade totalmente
voltada para Maria e uma outra onde ela esta totalmente ausente.

_______________
178
Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli foi eleito papa em 2 de março de 1939 e governou a
Igreja até sua morte, em 9 de outubro de 1958.
179
Especialmente: a consagração do mundo ao Coração Imaculado de Maria (1942), proclamação do
dogma da Assunção (1950), celebração do Ano Mariano no centenário da definição da Imaculada
Conceição (1954).
119

A questão mariana que se punha à mesa era a necessidade de harmonizar o culto a


Maria com os outros aspectos essenciais do cristianismo. Pode-se dizer que era
uma questão de proporcionalidade e equilíbrio.

4.2.5.4.3 Crise

Apesar do Concílio Vaticano II ter apontado posições equilibradas para o culto


mariano180, o período pós-conciliar registrou uma diminuição e um descrédito
contínuo do mesmo. Várias práticas tradicionais em honra à Maria foram
desaparecendo (p. ex. rosários e terços recitados, procissões, associações, culto às
imagens etc.).
De Fiores (1989, p. 685) aponta duas causas prováveis desta regressão pós-
conciliar:
a) falta de assimilação da doutrina do Concílio Vaticano II;
b) diversidade de alguns conteúdos do culto em relação às
concepções antropológicas de então. Em outras palavras – falta de
uma saudável inculturação das práticas cultuais.

4.2.5.4.4 Redescoberta

Ainda que continue havendo cristãos que mantenham devoções a Maria do


tipo sentimentalista ou outros que lhe repulsem, nota-se uma redescoberta do papel
de Maria no âmbito da espiritualidade cristã (especialmente da liturgia). De Fiores
(1989, p. 685-687) aponta três âmbitos nos quais esta redescoberta é mais
expressiva:

a) comunidades religiosas: a devoção mariana tornou-se mais


profunda, sólida, madura e comprometida. Procura-se viver o
exemplo de Maria, que é vista como mulher simples, serviçal,

_______________
180
Ver por exemplo LG 50-69 (especialmente 66-67, acerca do culto à Virgem Maria), SC 103, UR
14-15.
120

discípula, guia na fé. Simplifica-se as práticas cultuais em vista de


uma presença mariana discreta, diária e eficaz;
b) Movimentos Eclesiais: procura-se compreender o papel de Maria a
partir de uma experiência centralizada em Cristo: “a Jesus, por
Maria”. São exemplos desta vivência: Movimento dos Focolares
(Obra de Maria), Renovação Carismática Católica, Comunidades
Eclesiais de Base, Comunidades Novas.
c) liturgia renovada: Procurou-se ver a íntima união de Maria com
Cristo. A mariologia é, assim, elemento integrante e confirmação da
cristologia. Esforça-se por “incluir, de maneira mais orgânica e com
mais estreita coesão, a memória da Mãe no ciclo anual dos
mistérios do Filho” (MC 2 apud DE FIORES, 1989, p. 687).
Juntamente com a teologia cristocêntrica, a liturgia procurou colocar
em evidência as relações de Maria com a Igreja, vendo-a como
membro, mãe, tipo e modelo da Igreja.

4.2.5.5 Espiritualidade Ecológica

O desenvolvimento da ciência que conhecemos por Ecologia é justamente um


acontecimento recente – da metade do século XX em diante. A atenção que ela
recebeu foi justamente motivada pelo desencanto com a Modernidade – a sua
ambivalência entre o progresso intensamente (diríamos insanamente) buscado e as
consequentes degradações resultantes no meio ambiente. Fala-se hoje em
desastres ambientais que poderão ter como consequência a extinção total da raça
humana sobre a Terra ou até mesmo o desaparecimento de toda forma de vida.
Enquanto a espiritualidade foi compreendida apenas como vida interior,
fechada no indivíduo, a dimensão ecológica foi ignorada. “A consciência ecológica
atual contribuiu ao solicitar a espiritualidade cristã a se sintonizar na dimensão
cultural-política” (GOFFI, 2012, p. 835). O ser humano, enquanto ser espiritual, deve
se perceber como responsável por tudo o que acontece na terra:

Além de ser o caminho que conduz às profundezas do indivíduo, a


espiritualidade cristã favorecerá também a inserção de todos nas
121

preocupações de ordem ecológica na proporção da responsabilidade de


cada um” (SPINSANTI, 1989, p. 302).

É ele, também, o encarregado de possibilitar a felicidade presente, terrena. O


amor humano deve, como o amor divino, tudo vivificar e cuidar. Este nosso amor
tem como finalidade a realização do:

senhorio de Cristo sobre todo o universo, segundo o desígnio salvífico de


Deus trinitário. “Por meio dele [o Filho], Deus Pai criou o universo e agora o
constituiu como Senhor de todas as coisas” (Hb 1,2). Uma missão espiritual
que o fiel realiza não isoladamente, mas com o Espírito, que torna a
humanidade atual cada vez mais consciente de que “agora o que conta é
Cristo, que é tudo e está em todos” (Cl 3,11) (GOFFI, 2012, p. 836).

Dedicando um carta inteira ao tema da ecologia 181, papa Francisco concebe a


ecologia como o cuidado que cada ser humano deve ter em relação à “casa
comum”. Para o papa a ação libertadora e salvadora de Deus é intimamente e
inseparavelmente ligada à Sua ação criadora (LS nº 73). Justamente na segunda
parte do sexto capítulo de sua carta, papa Francisco procura estabelecer algumas
“motivações que derivam da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado
do mundo” (LS nº 216). Fala-se então de conversão ecológica, que precisaria levar
em conta algumas exigências:
a) ter um relacionamento com o mundo que nos rodeia como
derivação do encontro com Jesus (LS nº 217);
b) uma conversão integral que se manifeste em uma relação sadia
com a criação, à exemplo de São Francisco de Assis (LS nº 218);
c) uma união de força e de contribuições – uma conversão comunitária
(LS nº 219);
d) contemplação do mundo como união de todos os seres através da
ação do Pai – uma comunhão universal (LS nº 220);
e) convicção de que cada criatura reflete algo de Deus e tem algo a
nos transmitir (LS nº 221).

_______________
181
A carta encíclica “Laudato Si’” foi entregue no dia 24 de maio de 2015 e trata, justamente, sobre o
cuidado da casa comum.
122

4.3 CRISES E OPORTUNIDADES

No texto já citado do teólogo Karl Rahner (RAHNER, 1980, 368-381 trad.


SECONDIN; GOFFI, 1994, p. 361-369) é oferecido uma “previsão” sua de como
seria a espiritualidade na Igreja do futuro. Em nenhum momento ele coloca a
perspectiva de quando será este futuro. Ele também não se ilude em perceber a
dificuldade de se fazer qualquer tipo de prognóstico acerca deste futuro:

Mas o que sabemos do futuro da Igreja? Apesar da moderna futurologia,


quão pouco podemos prognosticar a respeito do futuro profano! O futuro da
Igreja também escapa – e como! – aos programas e cálculos dos homens
da Igreja e dos seus ministros (RAHNER trad. SECONDIN; GOFFI, 1994, p.
361).

Na esteira desse seu raciocínio ele adverte a tentação de se pensar que nada
de surpreendente pode acontecer no interno da Igreja, pois ela está assentada
“sobre a rocha da eternidade de Deus”. Imediatamente desfaz este equívoco
lembrando do acontecimento eclesial central do século XX – o Concílio Vaticano II –
que abalou o “monolitismo” da Igreja de então. Mais ainda, estando em meio a
grandes mudanças, afirma que o próprio “Concílio não foi a causa, mas sobretudo
uma espécie de catalisador” (RAHNER, trad. SECONDIN; GOFFI, 1994, p. 361).
Diante de todas estas “impossibilidades” Rahner arrisca-se a “prever” o que
seria a espiritualidade do porvir. Ele ressalva ainda que ao falar em perspectiva não
se preocupa em desmembrar o que pertenceria à espiritualidade de então e o que
poderia ser a espiritualidade do amanhã, nas palavras dele: “não devemos nos
preocupar demais se estamos falando de uma espiritualidade já existente hoje (ou já
possível hoje) ou de uma espiritualidade que só amanhã será possível”. Com esta
mesma reserva iniciamos esta subseção intitulada “Crises e Oportunidades”.
Esta perspectiva será apresentada em três pontos:
a) situações de crise;
b) pontos polêmicos e;
c) oportunidades.
123

4.3.1 Situações de crise

Com o risco de cairmos em um lugar-comum gostaríamos de recordar que ao


falarmos em crise, estamos apontando para outra palavra também – oportunidade.
Cada vez que uma situação se nos apresenta como perigosa, difícil, complicada,
certamente é nos apontada uma oportunidade de crescimento, de amadurecimento.
O mesmo raciocínio vale para a Igreja e a espiritualidade cristã.

4.3.1.1 Crise da instituição

Como instituição global a Igreja Católica (com certa razão as demais Igrejas
cristãs e, inclusive, as religiões tradicionais) não se encontram mais no centro das
discussões e debates. Desde épocas remotas o cristianismo esteve umbilicalmente
ligado ao poder temporal – Impérios, Reinos e Estados – o que se conhecia como as
duas espadas de poder – espiritual e temporal182. A Igreja possuía o poder espiritual
e determinava quem possuiria o poder temporal, que lhe era submisso. Já há muito,
porém, esta associação está desfeita – pelo menos na sua forma oficial. De uma
identificação integral com o poder, lentamente este vínculo foi sendo desconstruído
e temos que atualmente o cristianismo (nas suas múltiplas manifestações) é
composto em muitos países de uma minoria, com as implicações próprias. Era o que
já “previa” o então teólogo Joseph Ratzinger na década de setenta:

Da igreja de hoje sairá também esta vez uma igreja que terá perdido muito.
Se fará pequena, deverá começar completamente de novo. Não poderá
ocupar muitos dos edifícios que foram construídos em uma conjuntura mais
propícia. Ao diminuir o número de seus adeptos perderá muito de seus
183
privilégios na sociedade (RATZINGER, 1973, p. 76) .

_______________
182
Recordamos aqui a Bula “Unam Sanctam” do Papa Bonifácio VIII, declarada em 18 de novembro
de 1302. Nesta Bula define-se os âmbitos de exercícios do poder espiritual e temporal: “As
palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão
em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para
a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela
mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade
do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser
submissa à autoridade espiritual”.
183
“De la iglesia de hoy saldrá también esta vez una iglesia que ha perdido mucho. Se hará pequeña,
deberá empezar completamente de nuevo. No podrá ya llenar muchos de los edificios construidos
124

Se esta diminuição numérica do cristianismo é muitas vezes vista como um


problema, uma crise, uma questão a ser resolvida, muitos autores, entre ele o
italiano Paolo Cugini (2012, p. 141), avaliam esta situação como uma oportunidade
que justamente esta época tem fornecido à Igreja de Cristo como uma nova chance
de se posicionar de maneira mais autêntica ao lado do Evangelho. É o momento em
que cada cristão poderá viver as parábolas narradas por Jesus a respeito do
fermento, do sal e da luz (cf. Mt 5,13-16).
Essa diminuição de influência se dá também no âmbito da espiritualidade.
Com o crescimento do mundo muçulmano em terras até então cristãs, com o
aumento da oferta de novas espiritualidade desvinculadas de tradições religiosas, a
espiritualidade propriamente cristã tende a perder espaços na sociedade, na cultura,
na educação etc.
Da parte da instituição vemos que uma resposta recorrente a esta situação é
uma retomada pura e simples de modelos antigos – sejam litúrgicos, normativos ou
espirituais – como forma de manutenção daquela situação anterior, mais conhecida
e segura. Assim se expressa Agenor Brighenti:

Diante do novo, em meio à crise, frente a uma religiosidade sincrética e


difusa, a tentação mais forte das religiões institucionais é a reação neo-
integrista: apegar-se à tradição e querer uma identidade religiosa clara, sem
componentes sincretistas. Provas disso são o fundamentalismo e o
integrismo, tanto no seio do islamismo como do judaísmo e do cristianismo
(BRIGHENTI, 2001, p. 48).

Esta (re)ação de retorno da parte da instituição tende a recrudescer as


tentativas de diálogo entre esta e a sociedade/cultura/ciência. Movimento este que é
o avesso da tentativa realizada pelo Concílio Vaticano II. Aliás é próprio desta
tentativa de retorno a desqualificação da visão eclesial e pastoral trazida pelo
Concílio Vaticano II. É ainda Agenor quem traz esta reflexão:

Diante da crise de identidade, a postura fundamentalista não deixa de ser


uma visão catastrófica da realidade presente, na medida em que pensa que
não foram os tempos que mudaram, mas sim foi a identidade atual que
fracassou por ter-se desviado da forma originária. A solução é trazer para o
hoje a identidade de ontem, aquela que deu certo em seu tempo
(BRIGHENTI, 2004, p. 127).

en la coyuntura más propicia. Al disminuir el número de sus adeptos, perderá muchos de sus
privilegios en la sociedad”.
125

É carectarístico do ambiente pós-moderno a pluralidade, a diversidade de


opções, de visões, de interpretações do mundo. É compreensível, portanto, que
tentativas de retorno ao passado como forma de interpretação tenham seu espaço
no leque de possibilidades atuais. Torna-se, porém, uma saída fadada ao fracasso
se for pensada como única forma de diálogo possível, ou como percursos
necessários que a instituição deva fazer para resgatar a sua “pureza” em sua
confissão de fé, ou em sua expressão de espiritualidade.

4.3.1.2 Crise da pastoral

O teólogo já citado Paolo Cugini (2012, p. 142-144) refere-se à esta crise


pastoral através de dois tipos distintos de ações que provém da Igreja:

4.3.1.2.1 Movimentos religiosos de cunho carismático

Para Cugini estes Movimentos carregam um conteúdo antigo, obsoleto, mas


que é reproposto de uma forma alegre e expansiva. Em sua opinião eles são uma
resposta pastoral que percebe as mudanças advindas da pós-modernidade como
negativas e a realidade como algo mundano e demonizado. É a incapacidade de
realizar um diálogo franco e aberto com a cultura que faz com que estes movimentos
recorram a discursos de retorno ao passado – em sua doutrina e espiritualidade.
Concordamos apenas em parte com esta crítica feita por Cugini no que diz
respeito ao tema da espiritualidade. Vejamos:
A visão dualista e simplista da realidade (Bem x Mal; Deus x diabo; Igreja x
“mundo”) é proposta em muitos dos encontros, eventos, atividades realizadas por
estes movimentos. Lentamente, porém, uma percepção dialogal com a sociedade e
a cultura vai permeando os discursos. Ainda, contudo, se compreende a ação
pastoral (e consequentemente a própria espiritualidade) como um embate a ser
realizado, uma cruzada santa contra as expressões da sociedade. Com um pouco
de paciência, porém, pode-se verificar as inúmeras ações voltadas para o social
realizadas por estes Movimentos. E, seguramente, estas ações estão
126

fundamentadas em uma espiritualidade que se sente exigida a dar uma resposta


concreta de amor diante da dura realidade que a cerca, como consequência da
relação íntima e pessoal com Deus.
Ainda ao contrário de Cugini, pensamos que foi através dos movimentos ditos
carismáticos (mas se poderia aqui incluir os demais já enumerados em seção
anterior) que o leigo encontrou um espaço próprio de expressão individual e também
coletiva de manifestação de sua espiritualidade. Durante muitos séculos (como
desenvolvemos no primeiro capítulo) o protagonismo da disseminação da
espiritualidade cristã era prerrogativa dos clérigos, dos religiosos e religiosas. Com o
ressurgimento da importância dada à vocação laical (especialmente pelos
documentos conciliares) vai se desenvolvendo uma reinterpretação da
espiritualidade cristã a partir dela.
Pensamos que, neste aspecto, os Movimentos de cunho carismático (como
nominado por Cugini) representam uma oportunidade para a Igreja, mais do que um
sintoma de crise.

4.3.1.2.2 Pastoral propostas pelas paróquias

Cugini aponta algumas limitações da ação pastoral realizada pelas paróquias


e que se traduz em uma diminuição de participantes: a falta de criatividade (em
relação à liturgia, aos sacramentos, às devoções). A inculturação com a comunidade
local não é realizada e somente a ação social é algo que pode ser mencionada
como “avanço” e, ainda assim, ela é realizada de forma desconectada com a ação
litúrgica. Existe uma sobrecarga de eventos sem vínculos uns com os outros e sem
um sentido explícito além de aglomerar pessoas com o objetivo de levantar fundos.
Cugini ainda ressalta que as atividades pastorais se ressentem de uma reflexão e
um pensar juntos, a partir do território próprio em que são realizadas.
Evidentemente que há algo aqui relevante a ser considerado. O modelo
pastoral realizado através das paróquias está sendo minuciosamente escrutinado
nos últimos anos. Acredita-se que esteja ultrapassado, pois foi pensado para uma
sociedade de maioria rural. Em um ambiente urbano ou urbanizado encontra-se,
então, desafinado. Deve-se levar em conta, porém, que esta pastoral é altamente
democrática, pois ao se colocar o critério geográfico como parâmetro de pertença
127

realiza a integração de todos fiéis católicos moradores de determinado lugar. Em


termos da espiritualidade é inegável que o centro da vida sacramental continua
sendo a paróquia, a capela central, a diocese. A espiritualidade, contudo, não deve
ser confundida com a vida sacramental. Se da vida sacramental sabemos que
advém a força do Espírito, entendemos também que o próprio Espírito age além dos
sacramentos instituídos. É isso que recolhemos do documento conciliar Lumen
Gentium:

Além disso, este mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de
Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas
“distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz” (1 Cor 12,11),
distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as
quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos,
proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja,
segundo aquelas palavras: “a cada qual se concede a manifestação do
Espírito em ordem ao bem comum” (1 Cor 12,7) (LG 12).

4.3.2. Pontos polêmicos

Como é a relação da espiritualidade cristã diante do panorama pós-moderno


que se abre diante dela? É certo que o momento é plural, amplo e está aberto a
múltiplas interpretações. O que estamos tentando empreender é descobrir chaves
interpretativas ou pontos referenciais que possam ser utilizados na análise do perfil
espiritual do crente de hoje.
Se passamos por certas “crises”, quais seriam, então, as tentações ou
questões polêmicas pelas quais a espiritualidade cristã poderia passar? Seguimos
em linhas gerais os estudos do pesquisador Paolo Cugini (2012, p. 144-147), bem
como do especialista em espiritualidade Bruno Secondin (2002, p. 93-117) que
agrupam grosso modo essas tentações em duas categorias:

4.3.2.1 Fuga no espiritualismo

Diante do complexo mundo em que vivemos, quando as incertezas dominam


as discussões e as (re)ações são eivadas de elementos ambíguos, a tentação, no
domínio da espiritualidade é o fechamento em si mesmo, o intimismo. Este tipo de
espiritualidade é derivada do medo de enfrentamento das situações corriqueiras da
128

vida, com seus problemas e percalços. A alienação de si, ou a fuga da realidade, é a


solução que está à mão para uma grande parte dos cristãos. Exatamente ao fugir de
suas responsabilidades como homem e mulher, como cidadão, como leigo ou
sacerdote pensa-se que se está resolvendo a questão. Este tipo de atitude é típica
de uma época de crise ou crise epocal. Evidentemente que a perda de pontos
referenciais, de certezas absolutas induzem a um desnorteamento do indivíduo e da
coletividade. O diálogo é espinhoso, o enfrentamento da realidade é fatigante, a
assunção de suas próprias responsabilidade é tarefa hercúlea. Apela-se, então, a
um tipo de espiritualidade que o leve para outras esferas, para uma
(pseudo)realidade que ocupe sua mente e coração e que, por alguns momentos, o
desconecte do mundo real. São muitas as tendências de espiritualidade que sofrem
esta tentação de evadir-se do concreto e factual.
A espiritualidade cristã, ainda que orientada para o alto, para o
Transcendente, como é óbvio depreender, tem dois importantes alicerces que são
acontecimentos fundantes e exemplares: a criação e a encarnação. E é justamente
este último evento que distingue nitidamente a espiritualidade cristã de qualquer
outra manifestação ou tendência espiritualista ou espiritualizante:

Se o específico do cristianismo é a encarnação do Verbo, do Filho de Deus,


então este eixo evangélico deveria gerar uma espiritualidade encarnada,
atenta à história, ao homem e a mulher no seu caminho histórico (CUGINI,
2012, p. 144).

4.3.2.2 A demonização do novo

Em muitos momentos da história do cristianismo surgiram situações novas


que fizeram com que a instituição dificultasse a expansão ou propagação da dita
“novidade” como reação de medo diante do desconhecido. Como ilustração
tomamos o exemplo que Cugini (2012, p. 146) utiliza: diante das pesquisas
histórico-críticas levantadas por biblistas protestantes e na sequência por
católicos, a reação do magistério da Igreja foi de censura ao movimento
modernista através do papa Pio X184. No decorrer dos anos esta probição foi

_______________
184
“Faça-se o mesmo [“ser removido” – nota nossa] [...] [com] aqueles que se mostrarem amigos da
novidade em matéria histórica, arqueológica e bíblica [...]” PDG 3,2.
129

sendo atenuada até chegar ao Concílio Vaticano II e ao documento Dei Verbum


que estimula os estudos das ciências bíblicas185.
Cremos que a pura e simples aceitação pela sociedade eclesial de
qualquer proposta que seja dada como “nova”, somente por trazer uma novidade,
não é a atitude correta. O que se sublinha aqui é a necessidade do diálogo com o
tempo presente. Como já apontamos, uma das características mais evidentes da
pós-modernidade é o pluralismo – em todos os níveis. Se no passado a reação
da instituição foi de uma distribuição acentuada de anátemas e censuras, é
exigida agora que a posição seja de diálogo como forma de escuta da realidade.
E esta postura já tem sido revista, principalmente a partir do Concílio Vaticano II.
Em seu discurso de abertura o então papa João XXIII revelava a via pela qual a
Igreja iria trilhar:

A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a
maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o
remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às
necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que
renovando condenações (JOÃO XXIII, 1962, VII, 2).

Paolo Cugini vai mais longe ao compreender este diálogo como essencial
para o desenvolvimento da teologia (diríamos da teologia espiritual também):

Além do mais, a recusa de um diálogo positivo e frutuoso com a pós-


modernidade, impede a própria teologia de elaborar um projeto teológico à
altura da contemporaneidade. Aquilo que nestas poucas linhas almejamos
indicar é uma retomada vigorosa de um diálogo corajoso com a cultura pós-
moderna, que saiba oferecer caminhos novos, propostas autênticas para a
humanidade desnorteada que encontramos no dia-a-dia (CUGINI, 2012, p.
147) .

De acordo com Bruno Secondin (2002, p. 96-97) os lugares de autenticação


da proposta de fé são a história e o mundo e é através da sociedade e da cultura
que a linguagem eclesial vai se atualizando. Os grandes temas (como por exemplo a
questão ecológica, a queda das grandes ideologias, a busca pela paz, as
desigualdades sociais, as ondas migratórias, o terrorismo etc.) que são discutidos

185
“O sagrado Concilio encoraja os filhos da Igreja que cultivam as ciências bíblicas para que
continuem a realizar com todo o empenho, segundo o sentir da Igreja, a empresa felizmente
começada, renovando constantemente as suas forças” (DV 23).
130

em nível global realizam um impacto no plano eclesial e aos poucos vão delineando
novas formas de vivência da fé e de expressões de espiritualidade.

4.3.3. Oportunidades

Como salientamos na introdução deste nosso trabalho, fizemos a opção de


ressaltar as experiências (ou manifestações) de espiritualidade contemporâneas que
se revelam como oportunidade.
Interpretamos como oportunidade tudo aquilo que, sem descurar do que é
essencial à fé cristã, se apresentam com uma “roupagem” adequada aos tempos e
ao ambiente que vivemos. Cremos que são tentativas de traduzir a vasta experiência
espiritual cristã em termos (e categorias) adequadas ao indivíduo pós-moderno.

4.3.3.1 Um relacionamento pessoal e direto com o texto bíblico

Todas as construções sistemáticas produzidas pela modernidade, todos os


avanços realizados pelas várias disciplinas interrelacionadas com a teologia
trouxeram admiráveis compreensões novas ao estudo bíblico e enfoques que não
haviam sido anteriormente explorados. Porém o contraponto tem sido a quase
obrigatoriedade de que estas “lentes”, por assim dizer, sejam indispensáveis para o
contato com o texto bíblico. A pós-modernidade traz a ocasião ao cristianismo de
“abordar o texto sagrado, ou seja, a Bíblia, para escutá-lo do jeito que ele é”
(CUGINI, 2012, p. 148). Dizendo isto não se apregoa a leitura fundamentalista da
Bíblia, mas a utilização dos vários métodos apenas como aquilo que
verdadeiramente são – instrumentos científicos. Estes deverão servir de forma
auxiliar e não substitutiva. A Palavra poderá, então, expressar-se como ela mesmo
é, estimulando uma relação direta com o leitor, seja ele quem for, e provocando uma
resposta pessoal e imediata.
131

4.3.3.2 Descentralização progressiva

Em sintonia com o ponto anterior, a Palavra de Deus é cada vez mais


escutada e interpretada no contexto comunitário e individual. Ela se torna mais
personalizada e menos filtrada pela Instituição. Se a pós-modernidade tem como
uma de suas características o protagonismo do indivíduo, a sua centralidade nos
processos, não será diferente no contexto da religião, da espiritualidade. E, sim, esta
característica é um desafio, mas certamente uma grande oportunidade para o
cristianismo. De fato, a vivência da espiritualidade cristã é, em última instância, uma
experiência relacional com uma pessoa – Jesus Cristo. Como tem sido
reiteradamente apontado especialmente nos documentos dos três últimos papas – a
Verdade, a Vida, cerne da teologia cristã, habitou no meio de nós, fez a sua morada
entre os seres humanos. Em outras palavras – Ela se fez carne na pessoa de Jesus
Cristo. E é o envolvimento com Ele que faz de alguém um cristão, mais do que uma
aceitação simplesmente racional de conceitos teóricos. Envolvimento que engloba
todo o ser humano: razão e emoção, sentidos, corporeidade, historicidade.
Segundo Paolo Cugini (2012 p. 150-151) este aspecto pode auxiliar na
redescoberta do sentido autêntico da Eucaristia “não como um mero rito para ser
celebrado, mas como uma relação vital na qual deve (sic) entrar”. Mas uma relação
que não se torna intimismo, mas vivência comunitária e pertencimento ao corpo
eclesial:

Nada, então, daquele preceito devocional (tipicamente moderno) que visa


somente uma salvação individual, mas um esforço contínuo e reiterado de
criar laços autênticos de amizade e de amor em nome do Amor que se
manifestou em Cristo Jesus (CUGINI, 2012, p. 150).

Secondin (2002, p. 98) concorda com esta perspectiva da fé para a


atualidade, pois

tem se configurado cada vez mais como uma ‘escolha-resposta’ pessoal


consciente e comprometedora e cada vez menos como uma relação de
hábitos religiosos ou a repetição de esquemas costumeiros e talvez até
obsoletos.

Na segunda “previsão” do texto de Karl Rahner já citado, se afirma que a


espiritualidade “deverá concentrar-se com extrema clareza sobre os elementos mais
132

essenciais da piedade cristã”. E continua adiante mostrando uma intuição aguda do


futuro que ainda lhe era distante:

Nessa situação, torna-se inevitável e indispensável a concentração em


torno das convicções cristãs últimas, inclusive no âmbito da espiritualidade.
Sem dúvida que no futuro haverá uma piedade mariana e a veneração aos
santos. E se pode apenas esperar – também baseados nos fundamentos
últimos da fé – que tais formas de piedade continuem a existir ou
readquiram mais vitalidade. Mas se falará de Jesus e não do Menino Jesus
de Praga; se falará de Maria e menos de Lourdes e de Fátima. Mesmo no
futuro haverá uma piedade eucarística, incluindo (assim se espera) a
adoração ao Senhor presente sob as espécies eucarísticas. O que não quer
dizer que no futuro o culto eucarístico, com todas as suas manifestações,
ocupará o mesmo lugar que teve no passado (RAHNER, 1992, p 364).

Para Rahner cada vez mais importará os elementos essenciais e será


abandonado tudo aquilo considerado como adorno ou acessório. A espiritualidade
se deslocará para “a redução dos elementos ‘espirituais’, do ponto de vista
quantitativo e exterior, em favor de uma melhor qualidade espiritual, mais próxima
das fontes genuínas” (SECONDIN, 2002, p. 96).

4.3.3.3 O incremento do diálogo com outras Igrejas, outras religiões bem como a
sociedade em geral

Fenômeno mais intensamente vivido desde o Concílio Vaticano II é a


proposta da Igreja dialogar com outras tradições religiosas e com todos os homens
de boa vontade186. Não se fala mais em retorno à unidade daqueles que saíram. O
propósito do diálogo é se fazer uma caminhada juntos, recuperar a plenitudade da
unidade na complementaridade. O batismo validamente administrado é reconhecido
como incorporação no Corpo de Cristo, ainda que haja divergências. “Aqueles que
creem em Cristo e foram devidamente batizados estão constituídos numa certa
comunhão, embora não perfeita, com a Igreja Católica” (UR nº 3). Reconhece-se
ainda as outras Igrejas e comunidades cristãs como instrumentos de salvação e
graça (VIRGULIN, 2012, vol. II, p. 837). Além disso, em relação às Igrejas Orientais,
louva-se sua tradição litúrgica e espiritual, sua exposição dos mistérios cristãos e a
_______________
186
Constituição Apostólica de convocação do Concílio; Inter Mirifica 24; Apostolicam Actuositatem
8.11.14; Gaudium et Spes 22
133

sua história. Em relação aos cristãos provenientes da comunidades nascidas a partir


da Reforma Protestante se acentua o amor e zelo pelas Sagradas Escrituras, assim
como suas obras de caridade e a vivência cristã. Se antes reinava um certo clima de
desconfiança das partes, hoje a proposta da Igreja é a da relação dialogal, em todos
os níveis, não de uma forma proselitista, mas buscando cumprir o mandato de Jesus
do amor fraterno.
Stefano (VIRGULIN, 2012, vol. II, p. 838) assim define o que seja a
espiritualidade ecumênica:

o conjunto de atitudes, valores ou aspectos que são exigidos ou explicitados


pelo fato de se abrir e se devotar à santa causa da unidade dos cristãos. Ela
se fundamenta em um ardente desejo de realizar o projeto de Cristo
concernente à unidade dos seus seguidores: pressupõe uma informação
correta sobre as causas das divisões, sobre a situação atual dos cristãos
divididos e as vicissitudes contemporâneas do movimento ecumênico.

Esta espiritualidade será tanto mais elevada quanto for a vivência do


sofrimento pelas divisões que ainda persistem e o anseio pela unidade eclesial no
Espírito de Cristo. São muitas as manifestações atuais que, através da oração
comunitária, expressam estes sentimentos. E é através da oração que os crentes se
submetem à vontade de Deus, qual seja, a unidade entre si como reflexo do mistério
do Deus Uno e Trino (cf. Jo 17,20-22).

4.3.3.4 O impacto das novas tecnologias

Há quem coloque, como Secondin (2002, p. 97), esta característica entre os


pontos polêmicos ou tentações para a fé cristã e a sua espiritualidade. Claro que em
relação às novas tecnologias e ao alcance que através da internet elas podem ter,
não se deve ter a inocência de que sempre serão utilizadas de forma correta e
coerente. Secondin (2002, p. 97) mesmo, neste trecho, vai alertar que “o impacto
das novas tecnologias sobre a vida, e sobre a própria autocompreensão humana, foi
devastador: o homem está criando jugos para si mesmo, demandando a todo o
sistema ‘racionalizado’ a direção de sua própria vida”.
Ainda assim, pensamos que a utilização adequada das novas tecnologias
será uma incrível oportunidade para a Igreja. Então vejamos: através delas a
134

comunidade cristã poderá realizar uma “presença”, ainda que virtual, junto as
pessoas que necessitem. E isso é correto afirmar se consideramos ainda que:

segundo alguns estudos, dentro de 10 a 15 anos, os 30 por cento dos


casados terão se conhecido através da Internet. Este dado nos ajuda a
conhecer uma das grandes características da cultura da era digital: os seres
humanos conhecem melhor seus amigos da internet que seus vizinhos do
bairro. Porém, ao mesmo tempo, nos diz que a Internet, longe de ser um
simples instrumento de informação se converteu em um âmbito onde se tem
lugar profundas relação humanas (MARADIAGA, 2007, p. 51).

É por isto que a internet tem:

a impressionante capacidade de ultrapassar a distância e o isolamento,


levando os indivíduos a entrarem em contato com as pessoas de boa
vontade que nutrem os mesmos interesses e que participam nas virtuais
comunidades de fé para se encorajarem e auxiliarem umas às outras
(PONTIFÍCIO CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS, 2002, nº
5).

Este relacionamento, ainda que virtual, deve estar baseado na verdade e na


partilha que exige dos cristãos uma presença honesta e aberta, responsável e
respeitadora do outro, conforme alertou o papa Bento XVI em sua Mensagem pelo
Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2011:

Quando as pessoas trocam informações, estão já a partilhar-se a si


mesmas, a sua visão do mundo, as suas esperanças, os seus ideais.
Segue-se daqui que existe um estilo cristão de presença também no mundo
digital: traduz-se numa forma de comunicação honesta e aberta,
responsável e respeitadora do outro. Comunicar o Evangelho através dos
novos meios de comunicação significa não só inserir conteúdos
declaradamente religiosos nas plataformas dos diversos meios, mas
também testemunhar com coerência, no próprio perfil digital e no modo de
comunicar escolhas, preferências, juízos que sejam profundamente
coerentes com o Evangelho, mesmo quando não se fala explicitamente
dele. Aliás, também no mundo digital, não pode haver anúncio de uma
mensagem sem um testemunho coerente por parte de quem anuncia.
(BENTO XVI, 2011).

Obviamente que todo este processo é muito novo. Se a relação da Igreja com
a mídias sociais é recente, que diremos da relação com a internet e as novas
tecnologias! Já está claro que com o advento destas inovações temos uma
possibilidade de compartilhamento de informações nunca visto antes na história da
humanidade. Grande parte das experiências espirituais realizadas ao longo dos
135

séculos, bem como aquelas que ora se desenvolvem, estão disponíveis


imediatamente a uma imensa parcela da humanidade.
Há que se frisar ainda a grande exposição dos organismos eclesiais (oficiais
ou não) através das novas tecnologias. A começar pelo papa Francisco que tem as
suas mensagens de cunho espiritual repercutidas pelo Twitter, diariamente, para
mais de 22 milhões de seguidores! Através do uso da internet é possível: realizar
uma visita no interior de diversas igrejas e santuários (inclusive templos da Igreja
Ortodoxa e mesquitas), acompanhar missas, eventos, peregrinações on-line, ouvir
padres, pastores, líderes religiosos em seus pronunciamentos ou orações, estudar
(com acompanhamento ou não) doutrinas das mais variadas possíveis, ser alertado
(quando desejar) das leituras do dia, do santo do dia, dos compromissos de oração,
acender uma vela virtual (!) em uma capela igualmente virtual (!!). Poderíamos seguir
enumerando, quase infinitamente, as possibilidade que se nos dão as variadas
tecnologias, porém para o nosso estudo basta termos apontado algumas das
capacidades e do alargamento da compreensão da religião e da espiritualidade
advindas das tecnologias atuais.

4.3.3.5 Redescoberta de formas contemplativas

Já fizemos um detalhamento, em seção anterior, a respeito do atual


incremento de busca por formas de espiritualidade. As grandes tradições espirituais
contemplativas, como o monaquismo, o eremitismo, a espiritualidade ortodoxa são
novamente colocadas em evidência – seja no mundo cristão como no mundo
secular. Busca-se, entretanto, formas novas de contemplação vindas de tradições
orientais, como a yoga, os mantras, meditação, técnicas de concentração etc. Nessa
mesma linha segue a análise de Bruno Secondin (2002, p. 100):

O mesmo se pode dizer a respeito de temas como a paz, a não-violência, a


profundidade, a ascese e o jejum, a felicidade, a tolerância, o respeito pela
vida, a busca de sentido.

Essa é uma demanda que se encontra por toda parte e, sem dúvidas, no seio
das igrejas cristãs. Donde nos vem a próxima subseção.
136

4.3.3.6 Bricolagem

Processo que, apesar de se realizar frequentemente na história das religiões,


apresenta características próprias neste período da pós-modernidade e adquire um
significado próprio. Queremos nos deter mais longamente neste elemento, por
perceber especificamente aqui, um “desafio” e uma “oportunidade” ainda não
suficientemente estudada ou talvez não compreendida como movimento de
aproximação do cristianismo em relação ao fenômeno do retorno do sagrado já
anteriormente desenvolvido nessa dissertação.
O termo bricolagem surge nos Estados Unidos na década de 50 dentro do
contexto do “do it yourself”, especialmente como forma de evitar os altos valores de
mão-de-obra. O antropólogo Claude Lévi-Strauss utiliza este termo em sua obra “O
pensamento selvagem” (1989, p. 32-49) em relação aos mitos. Lévi-Strauss explica
que a tarefa do bricoleur, ao contrário daquela do engenheiro, está condicionada
pela matéria-prima disponível, o universo de seu instrumental é fechado e com estes
elementos ele pode ressignificar os fatos, organizando-os e reorganizando. O
bricoleur acumula os objetos em vistas de uma utilização futura, pois, segundo ele,
poderão servir em algum momento. Esta “estocagem” de objetos é derivada de sua
maneira de pensar. Ele recolhe objetos pensando em seu uso futuro, concebendo
novas utilizações, precavendo-se em uma eventual necessidade. A sua percepção
do objeto não é do que ele possui em si ou de suas características atuais, mas do
que poderá vir a ser, das suas possibilidades.
Lévi-Strauss indicava que o bricoleur imprime aos seus projetos alguma coisa
de si mesmo. Um contato pessoal e direto com os objetos. Esta ação mediata é um
prazer pessoal para ele. Na ação de transformar o objeto naquilo que ele deseja, é o
próprio bricoleur que se transforma igualmente. Não há em sua ação a ganância do
lucro ou da rentabilidade, próprios do mundo dos negócios (cf. THUDEROZ; ODIN,
2010, p.16).
A partir desta obra, o vocábulo é emprestado pelos sociólogos e cientistas da
religião, bem como os teólogos para buscar uma compreensão de alguns
fenômenos dentro do universo religioso. Aproximando os significados anteriores usa-
se “bricolagem” para referir-se à atitude de harmonização que os indivíduos
(chamados “buscadores” espirituais) realizam utilizandos elementos dos vários
137

sistemas de crença e criando para si um sistema personalizado que produza sentido


espiritual e de vida.

O fiel escolhe dogmas que ele acha aceitáveis, segue ritos e práticas éticas
conforme julga conveniente para ele próprio. [...] A religião tradicional
baseia-se na promessa de uma recompensa momentosa no pós-morte, mas
o individualismo moderno tem pressa, prefere um ter a uma dupla promessa
insegura (sic), entender desfrutar satisfação desde esta vida, com a maior
rapidez e plenitude possíveis (LEPARGNEUR, 2004, p. 284).

Segundo Philippe St-Germain (2011, p. 25) o bricoleur realiza uma tarefa


dupla – de análise retrospectiva – ao se voltar para um conjunto, a um composto já
constituido – mas também de síntese, uma vez que ao rearranjar elementos
heterogêneos forma um novo conjunto. Os elementos assim rearranjando, não terão,
necessariamente, as mesmas funções originais. Desta forma, ainda que a
bricolagem não realize nenhum tipo de criação ex nihilo, forçosamente algo novo
surgirá desta tarefa de síntese.
O indivíduo pós-moderno age, também em sua dimensão religiosa, como a
figura do bricoleur. Diante das várias opções a ele oferecida, realiza uma tarefa de
síntese, ainda que estes mesmos elementos não tenham conexões entre si, ou
ainda que sejam, do ponto de vista doutrinal, diatralmente opostos. Por que razão
escolher este componente e não outro? As razões são várias, mas certamente
passarão pelo quesito da conveniência e da facilidade de acesso. Para este sujeito
contemporâneo é o conjunto formado por estes vários elementos que adquire
significado para ele. Aliás, é o próprio “buscador” religioso que infere sentido a este
composto por ele realizado. Outros termos também utilizados para categorizar este
painel religioso é “religião à la carte” ou ainda religião “hors piste” (BÉRAUD, 2010,
p. 320).

4.3.3.7 A instituição que se bricola

Diante de um novo tipo de crente, as instituições religiosas que “administram”


os bens simbólicos do sagrados e que detém o poder sobre os sistemas de crença,
amoldam o seu discurso e sua prática para atender a demanda. Isto ocorre de
138

maneira mais ou menos intensa ou explícita. Relacionando diretamente esta atitude


com uma prática mercadológica assim se expressa Karla Patriota (2012):

Prega-se o que os consumidores-alvo anseiam. Promete-se o que os


clientes potenciais precisam. E, assim, cria-se uma relação contratual entre
“anunciante” e mass media. Dessa forma, o pronto atendimento das
carências mais latentes do homem, ancoradas pelo inegociável desejo de
autorrealização e consumo desenfreado, faz com que as igrejas da pós-
modernidade usem estrategicamente os meios de comunicação de massa,
e através deles, convoquem e “arrebanhem” para as suas dependências,
este novo sujeito religioso.

A relação instituição religiosa ↔ participante passa por um processo de


inculturação que se apresenta como faces da mesma moeda. Por um lado o que a
instituição possui ela oferece: sua tradição, seus ritos, suas convicções, sua moral,
seus dogmas, mas ao mesmo tempo, neste diálogo com os indivíduos
contemporâneos, ela é influenciada e se transforma. Diferentemente da inculturação
dentro da modernidade, aquela realizada na pós-modernidade se dá através de um
experiência de espiritualidade interior, do silêncio, e da contemplação (CARDITA,
2014, p. 179-181).
É de se notar, também, que a capacidade das instituições religiosas,
notadamente a Igreja Católica, de “bricolar” não é algo de totalmente novo.
Historicamente pode-se verificar esta “negociação” entre a crença individual e
aquela proposta pela instituição que resulta em uma nova acomodação, como
aponta Céline Béraud (2010, p. 325).
Passaremos, agora, às considerações finais.
139

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta jornada precisamos tecer algumas reflexões sobre o trajeto


realizado.
À nossa volta avolumam-se pilhas e pilhas de livros, artigos, textos em geral.
Dentro do computador outras centenas de arquivos digitalizados. Uma dissertação
prestes a ser concluída e a sensação de que, apesar dos esforços, não
vislumbramos sequer uma pequena parcela da imensidão que é o assunto em
questão.
André Malraux, ao ser indagado sobre como seria o próximo século, disse
que fazia uma “previsão de feiticeiro” e Karl Rahner, na redação de seu artigo sobre
a Igreja do futuro falava de uma “coragem aventureira”. Como parte final deste
trabalho gostaria, então, de elaborar algumas “previsões aventureiras” para a
espiritualidade cristã pós-moderna (atual e futura). Ciente de que nada mais são do
que algumas expectativas nossas, forjadas por uma vida confessada e vivida como
cristão e lapidada pelas pesquisas acadêmicas. Faremos isto em cinco pontos:

5.1 INCENTIVO À PRÁTICA DA ORAÇÃO E DA MEDITAÇÃO

Fica evidente, após toda a nossa pesquisa, que o tema “espiritualidade”


ganhou forças em nossas sociedades. A temática não é mais propriedade exclusiva
das igrejas e instituições religiosas – como explanado amplamente ao longo do
trabalho. A questão que se coloca então às igrejas é:

Contrariamente ao que se diz, não é a indiferença dos crentes que


caracteriza nossa sociedade. É o fato que esta crença escapa em muito do
187
controle das grandes igrejas e das instituições religiosas (HERVIEU-
LÉGER, 1999, p. 42).

O encantamento com o tema “espiritualidade” atinge em cheio as tradições e


instituições religiosas. Estas se veem diante de multidões de fiéis e “novos-fiéis” em
busca de experiências espirituais. Cresce então o esforço de responder a estas
_______________
187
“Contrairement à ce qu’on nous dit, ce n’est donc pas l’indifférence croyante qui caractérise nos
sociétés. C’est le fait que cette croyance échappe très largement au contrôle des grandes églises et
des institutions religieuses”.
140

demandas através de comunidades afetivas (ou geográficas ainda) que


proporcionam ao indivíduo pós-moderno ambientes, períodos, cursos nos quais a
oração ou meditação é privilegiada. Notadamente na Igreja Católica são os NME e
as Comunidades Novas (expressões eclesiais que têm registrado importante
crescimento numérico) que promovem intensamente a vida interior, as experiências
espirituais (retiros, encontros, grupos de oração, novenas, peregrinações, oficinas de
oração, missas etc.). Não nos cabe nesta pesquisa definir se todas estas
manifestações são ortodoxas do ponto de vista do conteúdo da fé ou se estão
alinhadas com o Magistério da Igreja. Certamente muitas destas iniciativas estão
sofrendo um processo de inculturação com seu entorno – falamos acima de
bricolagem. O tempo e as interações irão permitindo que os cristãos possam
examinar tudo e abraçar o que é bom (cf. 1 Ts 5,21). A constatação, porém, que faz,
é de que a “demanda” por espiritualidade de nossa sociedade tem buscado ser
suprida pela Igreja através dos seus mais variados canais.

5.2 ESPIRITUALIDADE EM REDE

Em consonância a este ponto, percebemos as tentativas do cristianismo


oferecer subsídios de espiritualidade através da internet. Como apontamos acima ao
falarmos das oportunidades, a internet, as redes sociais e as plataformas digitais, se
desenvolveram absurdamente nos últimos quinze anos. E a tendência é de que,
cada vez mais, ocupem os espaços e os tempos dos indivíduos. Aos poucos a Igreja
vai discernindo as possibilidades de presença virtual junto as crentes. Ainda que a
nossa geração tenha uma compreensão limitada do que seja o mundo virtual, as
novas gerações, nascidas neste ambiente digital, pouco distinguem do que é o
virtual e o real. Pensamos de que a presença física sempre será insubstituível
porém, a Igreja perceberá cada vez mais a necessidade de ser parte integrante
deste “novo mundo”.

5.3 COMUNIDADES AFETIVAS

Como a face inversa da situação acima, a Igreja investirá cada vez mais seus
esforços na constituição de pequenas comunidades de vida cristã. Ao invés das
grandes paróquias e grandes templos (ainda que muitos se manterão por um bom
141

tempo), os cristãos irão se reunir em pequenos grupos para celebrar os sacramentos


e também suas vidas. Já vemos inúmeras iniciativas – as Comunidades Eclesiais de
Base, as Comunidades Novas, as Associações de Leigos, aqueles que estão fora de
suas pátrias, os cristãos que vivem em países onde são minoritários etc. Estas
agregações irão fortalecer os vínculos fraternos e, principalmente, a espiritualidade,
enquanto ligação entre o que se vive e o que se professa.
Cada vez mais esta vinculação entre os crente se dará mais por vínculos
afetivos que por proximidade geográfica. Nos grupos acima citados já se percebe
que a relação entre os membros se dá por elementos comuns, tais como situação
social, interesses específicos, carisma, amizade etc. Uma vez que as distâncias
estão diminuindo cada vez mais, e as possibilidades de encontro se tornam
possíveis graças às tecnologias, o cristão se vinculará mais facilmente aos quais ele
tenha algum tipo de relação de tipo afetiva.

5.4 ESPIRITUALIDADE DE INTEGRAÇÃO

Já dissemos que, aos poucos, o protagonismo da espiritualidade dentro do


cristianismo está passando da vida religiosa e consagrada para a vida laical.
Pensamos que esta tendência irá se desenvolver.
Ao lado das já consagradas escolas de espiritualidades (surgidas,
principalmente, através da vida consagrada) os cristãos irão descobrir (como já
estão) a inseparabilidade da vida interior e vida secular (trabalho, estudos, família,
lazer, amizade etc.). Vários exemplos começaram a surgir (especialmente no pós-
Concílio) – alguns NME, as espiritualidades da libertação, feminista, ecológica, do
trabalho etc.

5.5 PROTAGONISMO ESPIRITUAL DE GRUPOS MINORITÁRIOS

Como derivação do ponto anterior, temos que os grupos minoritários (em


termos de número ou de influência) surgem como importantes vias que
(re)apresentam certos aspectos da fé e da espiritualidade que eventualmente
tenham sido esquecidos. Recordamos aqui a espiritualidade feminista, acentuando
valores como a misericórdia, o cuidado, o amparo, a acolhida entre outros. Podemos
dizer o mesmo com relação a outros grupos – cristãos de países pobres, negros,
142

povos nativos, pessoas com deficiências, imigrantes, apátridas, ciganos,


homoafetivos etc.
Cada vez mais estes grupos oferecerão sua cosmovisão ao conjunto dos
cristãos e desta mútua influência, a espiritualidade cristã será enriquecida.

Encerrando este ciclo, cremos que este trabalho deva ser interpretado
segundo o provérbio popular: “Ex digito gigas”. Ainda que extenso, fica-nos a
impressão de que estamos apenas diante do “dedo” deste “gigante” que é a
Espiritualidade Cristã.
143

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORESE, Rubem. Pós-modernidade e o desafio da Aliança. 2012. Disponível


em: <http://www.monergismo.com/textos/pos_modernismo/pos_alianca.htm>
Acesso em: 12 nov 2015.

ANCILLI, Ermanno. História da Espiritualidade Cristã. In: ______; PONTIFÍCIO


INSTITUTO DE ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (Orgs.). Dicionário de
Espiritualidade. Vol. II. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2012. p. 900-916.

ANCILLI, Ermanno; CHIOCCHETTA, Pietro. Espiritualidade. In: ANCILLI, Ermanno;


PONTIFÍCIO INSTITUTO DE ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (Orgs.). Dicionário
de Espiritualidade. Vol. II. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2012. p. 897-899.

______. História da Salvação. In: ANCILLI, Ermanno; PONTIFÍCIO INSTITUTO DE


ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. Vol. III.
São Paulo: Paulinas; Loyola, 2012. p. 2247-2253.

ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,


1999.

BARTH, Wilmar Luiz. Pós-Modernidade e Cosmovisão Cristã. Teocomunicação.


Porto Alegre, v. 45, nº 2, p. 89-108, 2012. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/veritas/ojs/index.php/teo/article/viewFile/1775/130
>. Acesso em: 1 nov 2015.

BATISTA, Ivan Carlos Rufino. A busca pós-moderna pela espiritualidade: Um


texto introdutório. Manaus, 2008. Disponível em <
http://pt.scribd.com/doc/39836930/busca-pos-moderna-pela-espiritualidade> Acesso
em: 1 out 2015.

BENTO XVI, papa. Deus caritas est. 2005. Disponível em:


<http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-
xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html>. Acesso em: 22 nov 2015.

______. Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital: Mensagem


para o 45º dia mundial das comunicações sociais. 2011. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/benedict-
xvi/pt/messages/communications/documents/hf_ben-xvi_mes_20110124_45th-world-
communications-day.html>. Acesso em: 1 nov 2015.
144

BÉRAUD, Céline. Bricoler pour ne pas innover? Le cas de certaines pratiques


rituelles catholiques. In: ODIN, Françoise; THUDEROZ, Christian (Ed.). Des
mondes bricolés? Arts et sciences à l’épreuve de la notion de bricolage.
Lausanne: Les Presses polytechniques et universitaires romandes, 2010. p. 319-
330.

BERGER, Peter. La rumeur de Dieu: signes actuels du surnaturel. Paris: Centurion,


1972 [orig. 1969].

BERGERON, Richard. Hors de l’Église plein de salut: pour une théologie dialogale
et une spiritualité interreligieuse. Montréal: Médiaspaul, 2004.

BINGEMER, Maria Clara. Eucaristia e experiência de Deus: a importância da


Eucaristia no atual contexto de busca do Sagrado. REB, Petrópolis, nº 244, p. 803-
824, dez. 2001a.

______. Espiritualidade: Desafio para a Igreja. Que Deus buscamos? Saudade e


desejo do Divino na Pós-Modernidade. Cadernos de Teologia, Campinas, nº 10, p.
50-72, dez. 2001b.

______. O mistério e o mundo: paixão por Deus em tempos de descrença. Rio de


Janeiro: Rocco, 2013.

______. Espiritualidade. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes.


Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2015.

BOFF, Clodovis. Teologia e santidade. REB, Petrópolis, nº 281, p. 181-187, jan.


2011.

______. O Livro do Sentido. Vol I. São Paulo: Paulus, 2014.

______. A espiritualidade na Vida Consagrada: a 50 anos do Vaticano II. Curitiba,


2015a. Disponível em: <http://misericordia.org.br/formacoes/a-espiritualidade-na-
vida-consagrada/>. Acesso em: 10 jan 16.

______. Espiritualidade e pastoral. REB, Petrópolis, nº 298, p. 369-389, abr./jun.


2015b.
145

BRIGHENTI, Agenor. A Igreja do futuro e o futuro da Igreja: Perspectivas para a


evangelização na aurora do terceiro milênio. São Paulo: Paulus, 2001.

______. A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulus,
2004.

BUENO, Justino de Almeida. Reflexões sobre uma espiritualidade para o século XXI.
A Ordem, Rio de Janeiro, nº 97, 1999, p. 30-62.

CARDITA, Ângelo. Les ‘liturgies jeunes’, une question d’'inculturation’? Ecclesia


Orans, nº 31, p. 171-195. 2014.

CATÃO, Francisco. Espiritualidade Cristã. São Paulo: Siquem; Paulinas, 2009.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

CELAM. Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano.


Documento de Puebla. 1979. Disponível em: <
http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI2013090618
2452.pdf?PHPSESSID=6fa1b33e3b82de1acf51b1db1e7654e7>. Acesso em 17 jan
2016.

______. V Confência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe.


Documento de Aparecida. 2007. Disponível em:
<http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI201309061
82426.pdf?PHPSESSID=6fa1b33e3b82de1acf51b1db1e7654e7>. Acesso em: 1 fev
2015.

COHEN, David. Deus ajuda? Revista Exame. Disponível em:


<http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/758/noticias/deus-ajuda-
m0050467>. Acesso em: 15 jan 2015.

COSTA, Alfredo Sampaio. Teologia e Espiritualidade: em busca de uma colaboração


recíproca. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, nº 38, p. 323-348, 2006.

CUGINI, Paolo. O futuro do cristianismo: um debate com a pós-modernidade.


Curitiba: CRV, 2012.
146

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionária Etimológico Nova Fronteira da Língua


Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

DE FIORES, Stefano. Maria. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI, Tullo (Orgs.).


Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.

______. A “nova” espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1999.

DE LYON, Irineu. Contra as Heresias. São Paulo: Paulus, 1997.

DUMEIGE, Gervais. História da Espiritualidade. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI,


Tullo (Orgs). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.

ELKINS, David. Além da religião. São Paulo: Pensamento, 1998.

ESPERANDIO, Mary Rute Gomes. Pós-Modernidade. Coleção Para entender. São


Leopoldo: Sinodal, 2007.

FLIPO, Claude. Spécificité de la spiritualité chrétienne. La Vie spirituelle, nº 749, p.


399-402, 2003.

FONTOURA, Juliana. Espiritualidade: um encontro profundo com Deus. Entrevista


com Clodovis Boff. Presença Marista, Curitiba, nº 7, p. 24-25, ago. 2015.

FREHLICH, Arno. Um olhar panorâmico na origem da espiritualidade mendicante.


Cadernos da ESTEF, Porto Alegre, nº 45, p. 35-45, 2010.

GALILEA, Segundo. As raízes da espiritualidade latino-americana. São Paulo:


Paulinas, 1984.

GARRIDO, Javier. Proceso humano y Gracia de Dios: apuntes de espiritualidad


cristiana. 2ª ed. Maliaño: Sal Terrae, 1996.

GOFFI, Tullo. Ecologia. In: ANCILLI, Ermanno; PONTIFÍCIO INSTITUTO DE


ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. Vol. II.
São Paulo: Paulinas; Loyola, 2012. p. 834-836.
147

GONZÁLEZ-CARVAJAL, Luis. Ideas y creencias del hombre actual. 3ªed..


Santander (ESP): Sal Terrae, 1993.

GONZÁLEZ-CARVAJAL, Luis. Pós-Modernidade. In VILLA, Mariano Moreno (Dir.).


Dicionário de pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000. p. 608-612.

GUERRA, Augusto. História da espiritualidade. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI,


Tullo (Org.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da


Mudança Cultural. 17ª ed.. São Paulo: Loyola, 2008 (1992).

HERVIEU-LÉGER, Danièle. Vers un nouveau christianisme: Introduction à la


sociologie du christianisme occidental. Paris: CERF, 1986.

______. Le pélerin et le converti: la religion en mouvement. Paris: Flammarion,


1999.

HOLT, Bradley. Spiritualities of the Twentieth Century. In: MURSELL, Gordon. The
Story of Christian Spirituality: Two thousand years, from East to West. Oxford:
First Fortress Press, 2001.

JOÃO PAULO II. Audiência de 2 de dezembro de 1998. Disponível em:


<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/audiences/1998/documents/hf_jpii_a
ud_02121998_po.html>. Acesso em: 12 nov 2015.

JOÃO XXIII, Papa. Discurso de sua santidade Papa João XXIII na abertura
solene do SS. Concílio. 1962. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/john-
xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe_19621011_opening-council.html>.
Acesso em: 15 jan 16.

LE BRUN, Jacques. Spiritualité. In: AZRIA, Régine; HERVIEU-LÉGER, Danièle.


Dictionnaire des faits religieux. Paris: Quadrige; PUF, 2010.

LEPARGNEUR, Hubert. O cristianismo na Pós-modernidade. REB, Petrópolis, nº


254, p. 275-293, abr. 2004.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus, 1989 [or.


1962].
148

LIBANIO, João Batista. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

______. Jovens em tempo de pós-modernidade: considerações socioculturais e


pastorais. São Paulo: Loyola, 2004.

______. A Igreja que sonhamos construir. REB, Petrópolis, nº 260, p.787-816, dez.
2005.

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos. São


Paulo: Barcarolla, 2004.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 12ª edição. Rio de Janeiro:


José Olympio, 2009.

MAGGIONI, Bruno. Experiência Espiritual na Bíblia. In: DE FIORES, Stefano;


GOFFI, Tullo (Org.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p.
394-431.

MARADIAGA, Óscar Andrés Rodríguez. Discípulos y misioneros em La era digital.


Teologia e Questão, Taubaté, nº 12, 2007.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Movimentos eclesiais católicos e modernidade: uma


igreja em transformação. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 55, nº 2, p. 857-
897, 2012.

MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos. O Deus escondido da pós-modernidade. São


Paulo: É Realizações, 2011.

MONDONI, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã. São Paulo: Loyola, 2000.

MONGILLO, Dalmazio. Seguimento. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI, Tullo (Orgs.).


Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 1041-1048.

MOREIRA, Alberto da Silva. Fé Crista e Cultura Pós-Moderna. In SCHIAVO, Luigi


(Org.). Mística e Pós-Modernidade: Culturas – Sociedade – Religião. Goiânia:
UCG, 2005. p. 35-54.
149

PADOVESE, Luigi. Gnosticismo. In: PACOMIO, Luciano (Ed.). Lexicon: Dicionário


Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003. p. 324-325.

PATRIOTA, Karla Regina Macena Pereira. O fragmentado sujeito pós-moderno e


a religião midiática. Disponível em: <
http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st4/Patriota,%20Karla%20Regina.pdf>. Acesso
em 08 mai 2015.

PELLÁ, Angelo Virgilio. Tendas e tabernáculos: religião e pós-Modernidade. São


Paulo: Paulinas, 2006.

PETARNELLA, Leandro; SOARES, Maria Lucia de Amorim. A tensão


modernidade/pós-modernidade como força propulsora das simbioses
contemporâneas e o contidiano escolar. Conjectura, v. 15, nº 2, p. 165-174,
mai./ago. 2010.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS. Igreja e Internet,


2002. Disponível em: <
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/pccs/documents/rc_pc_pccs_d
oc_20020228_church-internet_po.html>. Acesso em: 01 nov 2015.

RANHER, Karl. Schriften zurTheologie. Band XIV. Zürich; Einsiedeln; Köln:


Benziger Verlag, 1980.

______. Elementos de Espiritualidade na Igreja do Futuro. In: GOFFI, Tullo;


SECONDIN, Bruno. Problemas e perspectivas de Espiritualidade. São Paulo:
Loyola, 1992. p. 361-369.

RATZINGER, Joseph. Fe y Futuro. Salamanca: Sigueme, 1973.

RAUSCH, Thomas. Catholicism in Third Millennium. 2th edition. Collegeville (MN):


The Liturgical Press, 2003.

RYLKO, Stanislaw. Une ligne constante dans la vie de l’Église. Disponível em:
<http://www.laici.va/content/laici/fr/sezioni/associazioni/prefazione-del-card--
stanisaw-ryko.html>. Acesso em: 20 jan 2016.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. Coleção Primeiros Passo nº


165. São Paulo: Brasiliense, 2004 (1986).
150

SCHIAVO, Luigi. Mística e pós-modernidade: Cultura-Sociedade-Religião. Goiânia:


Universidade Católica de Goiás, 2005.

SECONDIN, Bruno; GOFFI, Tullo. Curso de espiritualidade: experiência,


sistemática, projeções. São Paulo: Paulinas, 1994.

______. Espiritualidade em diálogo: novos cenários da experiência espiritual. São


Paulo: Paulinas, 2002.

SESÉ, Javier. Historia de la Espiritualidad. Pamplona: Universidad de Navarra,


2005.

SHELDRAKE, Philip. Espiritualidade e teologia: vida cristã e fé trinitária. São


Paulo: Paulinas, 2005.

SILVA, Jessé Perreira da. A pós-modernidade como condição. In: MARASCHIN,


Jaci; PIRES, Frederico Pieper (Orgs.). Teologia e pós-modernidade. São Paulo:
Fonte Editorial, 2008. p. 37-59.

SÍNODO DOS BISPOS. XIII Assembleia Geral Ordinária: A Nova Evangelização


para a Transmissão da Fé Cristã. Instrumentum Laboris. 2012. Disponível em :
<http://www.vatican.va/roman_curia/synod/documents/rc_synod_doc_20120619_inst
rumentum-xiii_po.html>. Acesso em: 15 jan 2016.

SOLIGNAC, Aimé. Spiritualité. In: VILLER, Marcel; CAVÁLLERA, Ferdinand; DE


GUIBERT, Joseph; RAYEZ, André. Dictionnaire de Spiritualité. Vol. 14. Paris:
Beauchesne, 1990. p. 1142-1156.

SOLOMON, Robert. Espiritualidade para céticos. Rio de Janeiro, Civilização


Brasileira, 2003.

SPINSANTI, Sandro. Ecologia. In: DE FIORES, Stefano; GOFFI, Tullo (Orgs).


Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. p. 292-304.

ST-GERMAIN, Philppe. La culture des contraires: Écletisme, syncrétisme et


bricolage. Montreal: Liber, 2011.

TACEY, David. The spirituality revolution: the emergence of contemporary


spirituality. Hove (CA); New York (EUA): Brunner-Routledge, 2004.
151

THUDEROZ, Christian; ODIN, Françoise. L’artiste, entre le bricoleur et l’ingénieur.


Une revisite de Lévi-Straus. In ______ (Ed.). Des mondes bricolés? Arts et
sciences à l’épreuve de la notion de bricolage. Lausanne: Les Presses
polytechniques et universitaires romandes, 2010. p. 3-30.

VERNETTE, Jean. Le XXIe siècle sera mystique ou ne sera pas. Paris: PUF,
2002.

VIRGULIN, Stefano. Ecumenismo. In: ANCILLI, Ermanno; PONTIFÍCIO INSTITUTO


DE ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. Vol.
II. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2012. p. 836-840.

WEISZFLOG, Walter (Ed.). Michaelis: moderno dicionário da língua portuguesa.


São Paulo: Melhoramentos, 1998.

Você também pode gostar