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Códigos de HONRA nos tempos atuais

Códigos de honra podem parecer relíquias do passado — conjuntos de regras que dizem respeito a
socieda-des arcaicas, ou rigidamente estruturadas. O
filósofo inglês Kwame Anthony Appiah, hoje professor da
Universidade Princeton, nos Estados Unidos, pensa de outro
modo: a honra é, hoje, mais importante do que nunca.
“Quando falamos em honra, estamos falando em direito ao
respeito, e isso definitivamente não saiu de moda, faz parte
de nosso vocabulário moderno”, diz ele.

Kwame Anthony Appiah No seu livro mais recente, O Código de Honra: Como
Ocorrem as Revoluções Morais, Appiah tenta reabilitar a honra para os
tempos atuais. Segundo o pensador, ela estaria relacionada a uma característica básica da psicologia
humana: o desejo de ser respeitado pelos pares. Um código de honra nada mais seria do que o
conjunto de regras que ditam quais comportamentos dão direito ao respeito e quais causam
vergonha dentro de um certo grupo. Assim, a honra estaria em constante mutação, evoluindo junto
com a sociedade e suas práticas.
Nascido na Inglaterra, criado em Gana e residente os Estados Unidos, o filósofo reúne uma série de
exemplos de todo o mundo para mostrar como mudanças em códigos de honra já levaram a uma
sociedade melhor. Nesta entrevista ao site de VEJA, ele explica como conhecer essas histórias — o
fim da escravidão, da prática de amarrar os pés de mulheres chinesas e dos duelos entre cavalheiros
europeus  — pode ajudar a melhorar o mundo de hoje:

Muitas pessoas pensam que os códigos de honra são relíquias do passado. Porquê?
A principal razão é boa. Acontece que os antigos códigos de honra eram sexistas e antidemocráticos, e
agora vivemos em uma sociedade que se considera antissexista e democrática. Então, se os códigos de
honra fossem só isso — se eles só existissem nessas formas excludentes — haveria uma razão para sermos
totalmente céticos quanto a eles. Mas eu não penso que isso seja tudo. Quando falamos em honra,
estamos falando em direito ao respeito, e isso definitivamente não saiu de moda, faz parte de nosso
vocabulário moderno. Uma das características da democratização de nossa política é o reconhecimento de
que todos têm direito ao respeito — queremos ver isso em nossos códigos legais e nas práticas sociais da
vida moderna. Para usar a honra no mundo de hoje, tivemos que nos livrar de seu caráter antidemocrático
e violento. Se houvesse alguma outra palavra que não tivesse essas associações — e não remetesse ao
passado—, eu não veria problema em usarmos, mas não conheço essa palavra. Então, eu digo que
devemos usar a palavra honra admitindo que ela já teve essas associações ruins e afirmando que é muito
importante nos livrarmos delas.

Onde podemos ver os códigos de honra funcionando hoje em dia? 


Em vários lugares. Nós temos, por exemplo, os códigos de honra profissionais. Podemos pensar no código
dos advogados, que faz com que eles sigam suas regras e se respeitem. Eu não entendo esse código e não
sou governado por ele, mas ele gera obediência e respeito entre pares. Como esse, existem outros códigos
de ética profissional, como o dos médicos e o dos professores. Outro exemplo claro são os militares. Eles
têm uma preocupação profissional com a honra, usam seu código como um modo de disciplinar uns aos
outros. Eles são pessoas para quem fornecemos ferramentas que podem ser usadas para matar, por isso,
precisam desse controle mais rígido, feita a partir da honra e da vergonha. Além desses casos, existe a
honra coletiva, que surge a partir do modo como nos identificamos. Um exemplo óbvio disso é a honra
nacional: você precisa ser um brasileiro para estar preocupado com a honra do Brasil. Eu devo-me ver
como um americano para me preocupar com as coisas honradas ou vergonhosas que são feitas em nome
dos Estados Unidos.

Então a honra pode estar próxima da moral?


Falando psicologicamente, a honra é distinta da nossa tendência moral. Elas podem ter interseções —
algum código de honra pode eventualmente apoiar um bem moral—, mas elas nunca são completamente
idênticas. Costumamos usar a honra para pensar em coisas que pouco têm a ver com a moralidade.
Por exemplo, podemos escolher honrar grandes pensadores, artistas e esportistas — e o modo como eles
se destacam não são modos morais. Picasso não era um grande herói moral, mas todos o honramos como
artista. Por outro lado, a honra também pode ir contra a moralidade, levando a assassinatos, por exemplo.
Logo, elas não são a mesma coisa, mas podemos tentar torná-las compatíveis. E, assim, tornar a honra mais
democrática e menos violenta.

É possível descobrir quando surgiu o primeiro código de honra? 


Eu penso que os códigos sobre os quais vive-mos descendem de
códigos antigos que, por sua vez, descendem de códigos ainda mais
antigos, que têm origem antes da própria História — antes de termos
qualquer tipo de registro. Se pensarmos nos textos mais antigos que
conhecemos, podemos nos lembrar dos textos egípcios, da poesia
homérica e do que hoje chamamos de Antigo Testamento. Já nesses
livros é possível encontrar honra por todos os cantos. Ela é tão antiga
quanto a História.

Segundo Appiah, a psicologia da honra tem uma ligação com a autoconfi-


ança e com poder olhar o mundo nos olhos. "Quando as pessoas são
capacitadas com senso de honra lembram que merecem respeito, andam
literalmente com a cabeça erguida. Podemos ver o respeito próprio que
têm, e elas podem senti-lo estufando o peito e endireitando as costas".

Mas esses códigos podem mudar? Afinal de contas, nós


não vivemos sob as mesmas regras que governavam os gregos antigos.

Esse é um ponto crucial de minha tese. Hoje, quando alguém lê a Ilíada, e se depara com a história de
Aquiles, chega à conclusão de que ele era louco. Não existe outro modo de falar, tudo que ele faz parece
loucura aos olhos de hoje. Mas, de algum modo, nós podemos entender por que ele faz aquelas coisas. Ele
está em busca do respeito a que pensa ter direito. Ele entra e sai da guerra, sempre em nome da honra.
Nós podemos entender suas ações, mas também sabemos que é muito diferente de nosso modo de nos
comportar. Se alguém que conhecemos hoje em dia agisse assim, nós o mandaríamos para o psiquiatra.

Essas mudanças no que consideramos honrado ou vergonhoso também aconteceram mais


recentemente? 

Antes do século XVIII, a resposta a um artigo que você considerasse ofensivo em um jornal poderia ser
desafiar o editor para um duelo. Eles costumavam pensar que um cavalheiro era uma pessoa que estava
disposta a lutar, tanto por sua honra quanto pela honra de seu rei, de seu país. Com o tempo, nós muda-
mos, passamos de uma sociedade onde o alto status entre os homens era associado com a violência para
uma sociedade onde esse mesmo status passou a ser associado ao autocontrole. Essa é uma invenção do
século XIX: a ideia de que não se deve responder com violência a uma provocação, que o verdadeiro caval-
heiro nunca faria mal a alguém. Ou seja, os códigos de honra mudam ao longo do tempo, eles não estão
fixados eternamente. E isso é bom, pois significa que, quando vemos que a honra está do lado errado,
podemos tentar mudar essa situação.

Nesse caso e em outros que o senhor analisa, mudanças no código de honra são capazes
de acabar com uma prática antiga de forma muito rápida, no tempo de uma geração. Como
isso é possível?

Isso também foi uma surpresa para mim. Há algo de positivo nesse fato, porque uma geração, em termos
históricos, não é muito tempo - embora seja um tempo grande na vida de uma pessoa. O que isso sugere é
que para acontecer essa mudança, uma nova geração cresce com uma visão diferente da anterior. Não é
como se as pessoas mudassem de ideia, mas como se uma nova geração tivesse uma nova imagem do
mundo da honra. Como se ela tivesse uma versão diferente do código. Eu vi isso acontecendo aqui nos
Estados Unidos, na questão da atitude perante os homossexuais. Quando vim para esse país, no começo
dos anos 1980, os homossexuais sofriam bastante preconceito. Era comum eles apanharem, serem ataca-
dos ou até presos, simplesmente por andar de mãos dadas na rua. Hoje, quando descrevo esse cenário
para meus alunos de 19 anos, eles acham tudo isso muito estranho. Eles nem chegam a pensar que é erra-
do. É um comportamento tão estranho para eles que parece simples loucura. Eles já possuem uma versão
diferente do código de honra. A conclusão desse raciocínio é uma evidência de que os seres humanos não
são muito recetivos aos argumentos morais. Se fossem, poderíamos simplesmente mudar a mente das
pessoas mais velhas. Mas, ao contrário, a esperança de mudança está sempre entre os mais jovens.

Podemos aprender com essas revoluções morais do passado? 


Elas não nos fornecem um livro de regras, mas dão-nos pistas para seguir. O ponto principal é que elas nos
dão esperança: o facto de as pessoas passarem milhares de anos fazendo a mesma coisa não significa que a
prática não possa ter fim. Pense no caso da escravidão. Até o século XIX, nós podíamos encontrar escravos
em todos os lugares. Durante uma aula, surpreendi meus alunos ao contar que conheci pessoas que eram
escravas, porque a escravidão só foi abolida no Gana nos anos 1920. Mas hoje esse tipo de escravidão aca-
bou completamente, mesmo estando espalhada por todos os cantos do mundo durante milhares de anos.
Essa é primeira lição que podemos aprender: que práticas antigas podem ser mudadas. A segunda lição é
que, se quisermos mudar os códigos de honra, não podemos contar só com os argumentos morais. Veja
bem, Aristóteles defendia a escravidão na Grécia antiga, mas, na mesma época, já havia pensadores que a
atacavam. Nós podemos discordar dos códigos de outras sociedades, mas também podemos compreendê-
los. Isso significa que podemos interagir com as pessoas do outro lado, independente das diferenças que
existam, e tentar levá-las para um caminho melhor. E, é claro que, ao fazer isso, eles também poderão
tentar nos levar a um comportamento melhor.

Como a opinião do resto do mundo pode mudar o comportamento dentro de um país?


Foi o que aconteceu no fim do Apartheid, por exemplo. Parte dos sul-africanos ainda acreditavam no siste-
ma, mas já não podiam andar de cabeça erguida perante o resto do mundo. Os outros países estavam
olhando e julgando suas ações. Você pode até suportar isso por algum tempo, mas não para sempre. Então
é uma estratégia que funciona. Mas precisa ser feita com muito cuidado, ou pode ter o resultado inverso.
Há exemplos históricos famosos onde esse tipo de intervenção em outras sociedades foi contraproducente.
Um dos mais famosos é o modo como a Igreja de Escócia criou um programa para acabar com a circuncisão
feminina no Quênia, nos anos 1930. Ele não só não levou ao final da prática, mas a fez ser exercida com
mais vigor – como um tipo de resistência anticolonial. A circuncisão acabou se tornando um símbolo de
identidade nacional, e ainda acontece em alguns lugares do país.

Então não é sempre que a vergonha internacional é uma boa arma para mudar um
comportamento?
Na verdade, a vergonha por si deve ser usada com muito cuidado. O que me levou a começar a pesquisar
sobre honra foi o caso da amarração dos pés entre as mulheres da China, que aconteceu até o século XIX.
Ele era um hábito inicialmente associado com a honra das nobres chinesas, mas no final passou a ser visto
como uma vergonha. Quando eu comecei a estudar esse caso, minhas pesquisas eram voltadas para a
cidadania global, e me interessei pelo assunto porque era um exemplo de como pessoas de uma sociedade
podiam influenciar o comportamento de outras, em outra parte do mundo. Acontece que, na China, a
razão de a pressão internacional ter funcionado é que os críticos estrangeiros da prática, — um grupo for-
mado por missionários cristãos e mulheres de empresários europeus vivendo no país —, eram profunda-
mente respeitosos à civilização chinesa. Eles não gostavam da amarração de pés, mas não tinham desprezo
pela China. Quando as críticas vieram, elas vieram de pessoas que estavam olhando nos olhos dos chineses,
os tratando com respeito. E isso funcionou. Eu acho que se eles simplesmente apontassem o dedo à sua
cara e dissessem que a prática era uma vergonha, não funcionaria. Você precisa ter como pano de fundo
um diálogo respeitoso. A vergonha não precisa ser apontada, ela surge espontaneamente na pessoa com
quem você está dialogando, como resposta à visão que você tem de suas práticas.

O senhor consegue ver algum código de honra ainda em funcionamento no mundo de hoje
que deveria ser mudado? E como fazer isso?
Existem inúmeros. Uma das questões que mais me choca no momento são os assassinatos por honra
realiza--dos em países como o Paquistão, em que meninas são mortas por agir de modo que suas famílias
consideram desonroso — fazendo sexo fora do casamento, por exemplo. A dificuldade nesse caso é que
esse tipo de crime é mais comum em sociedades muçulmanas (isso hoje em dia, antigamente a prática era
comum no mundo todo, inclusive em sociedades cristãs). O problema é que o fato de os assassinatos de
honra acontece-rem principalmente no mundo islâmico causa uma impressão de guerra de civilizações, que
eu penso ser incorreta. Veja bem, eu tenho respeito pelo Islã e muitos outros americanos também têm —
muitos inclusive são muçulmanos —, mas a sociedade americana como um todo é profundamente islamo-
fóbica e ignorante em relação a esse assunto. Assim, qualquer crítica que venha daqui pode ser facilmente
rejeitada por alguém do Paquistão. As sociedades muçulmanas tendem a responder às cíiticas morais
vindas do Ocidente dizendo: “é claro que vocês não aprovam o que fazemos, vocês não nos respeitam e
não respeitam as nossas ideias. Não devemos nos preocupar com o que vocês pensam”. Minha impressão
sobre esse tema é que deveríamos, simplesmente, ficar quietos. Deveríamos deixar os críticos internos à
prática no Paquistão — e eles existem aos montes — fazer o seu trabalho. Nós podemos ajudar, enviando-
lhes dinheiro, por exemplo, mas o que dizemos como americanos ou ocidentais não pode ajudar muito. Até
termos uma relação mais respeitosa com as sociedades muçulmanas, de lado a lado, acho que nossos
argumentos morais não vão funcionar muito bem em um país como o Paquistão.

O senhor acha que seria possível no futuro, com o contato cada vez maior entre as diferen-
tes sociedades, existir um único código de honra para todo o mundo? 
Bom, essa é uma pergunta para um profeta responder, e não sou um profeta. Mas o que acho que seria
desejável é conseguirmos um acordo global. Não em termos de uma grande teoria moral, mas sobre alguns
padrões básicos em relação ao que deveria ser garantido a todos os seres humanos do mundo. E isso está a
acontecer. Temos um exemplo a acontecer agora mesmo no mundo. Os países ao redor do planeta diferem
em inúmeras coisas, mas apenas dois deles ainda não concordaram que, não importa o que você faça
durante uma guerra, não deve matar seu adversário usando armas químicas. São a Síria e a Coreia do Norte
— as últimas nações que sobraram. E a Síria está a ponto de assinar o acordo. Hoje, a maioria dos países dá
apoio verbal aos direitos humanos. Isso não quer dizer que eles cumpram esses princípios o tempo inteiro
— as condições nas quais os prisioneiros são tratados nas cadeias americanas e a prisão de ativistas na
China mostram isso claramente — mas eu diria que esse compromisso verbal é um primeiro passo. A partir
do momento que dizemos que vamos fazer algo, podemos ser cobrados por isso.

Isso poderia levar todas as sociedades a seguirem os mesmos princípios? 


Não imagino que todas as sociedades — ou todos os grupos dentro de uma sociedade — vão acabar a
pensar do mesmo modo sobre todas as questões normativas. Por exemplo, eu cresci entre Gana e Inglater-
ra. As estruturas das famílias são diferentes nesses dois lugares. Na tradição da família de meu pai, ganesa,
você pertence à família de sua mãe, e a autoridade masculina em sua vida é o irmão da sua mãe. Na Ingla-
terra, você pertence à família de seu pai e é ele o principal homem em sua vida. Não acho que exista qual-
quer razão para pensar que alguma dessas estruturas é melhor que a outra. São apenas dois modos dife-
rentes de se organizar. Talvez o modo britânico seja melhor adaptado à economia do mundo moderno,
onde as pessoas não vivem mais cercadas por toda a sua família, mas em pequenos casais. Assim, o conví-
vio direto com o tio fica difícil. Mas não havia nada de moralmente errado com o modo como se vivia antes.
Do mesmo modo, todos podemos concordar com a democracia, mas algumas sociedades podem escolher o
presidencialismo e outras o parlamentarismo. Nós podemos concordar com o quadro básico dos direitos
humanos — todos devem ter acesso a boa nutrição, cuidados médicos e direitos políticos — mas podemos
discordar quanto aos motivos de esses direitos serem desejáveis. Os católicos poderão dizer que isso é
desejável porque todos são filhos de Deus. Um ateu terá uma teoria diferente, porque ele não acha que a
moral vem de Deus. Tudo bem. Na verdade, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, grande
parte do mundo concorda sobre algumas premissas básicas. Isso está a acontecer, não é uma profecia

Entrevista de Guilherme Rosa em Revista Veja

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