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Defesa (desmontar a) Pierre-Gilles Guéguen Depois de ter abandonado o uso, Freud retorna ao conceito de defesa em “Inibicdo, sintoma e angustia”, com uma concepcaio mais apurada do que no inicio de seus trabalhos.! E, particular- mente, a partir dos fenémenos da neurose obsessiva que ele julga util essa retomada. Os mecanismos de isolamento, anulacao retro- ativa e regressdo pulsional efetuam-se, com efeito, sem o recalca- mento que caracteriza a neurose histérica. Os sintomas obsessivos se incrustam no eu sem responder as leis do deslocamento ou da condensagaio. Apoiando-se nessa distingdo, Lacan utiliza, por sua vez, a nocao de defesa no Semindrio 3. “Todo mundo é louco”, diz ele, subs- tancialmente, desde que, para cada um, a realidade seja, de inicio, alucinada.? Freud também o assinalou: a satisfagao pelo objeto é, para o falasser, alucinada. Lacan considera que nao é sem valor, a Propésito do que ele nomeia, 4 época, furo primordial no simbdlico, chamar de defesa o que lhe faz borda diretamente. 0 recalque, ao contrario, nao esta em relacao direta com a satisfacao pulsional: ‘ le é decorréncia da linguagem, ou seja, da articulacao significante. Portanto, igni ue [...] a experiéncia nao da testemunho de um significante ave falta, contrariamente ao bem conhecido ce visas por Freud, do esquecimento de nomes. Nao se Se Freud, S,,“Inibigao, sintoma e angiist ia”, RJ, Imago. (ESB, VX). *Lacan, J., O Semindrio, Livro 3, As ps icoses, RJ, JZE, 1988, p-95-102- 102 tulo XX Um real para o significante que falta; é, ao contrario, uma significagio, on quanto tal, estranha, que 0 sujeito nao pode, propriamente falando, comunicé-la ao Outro.’ Aexperiéncia da pulsao esta mais préxima daqucla da alug) nagiio do dedo cortado do Homem dos Lobos como do desatarrachy. mento do pénis do pequeno Hans. Jacques-Alain Miller mostra que se trata de um instante de descontinuidade temporal, pois tempo. ralidade e real sao partes relacionadas. “A defesa, diz Lacan, nog faz vislumbrar a matriz da denegagao; enquanto que o modo origi- nal do sujeito 6 a ablagao significante”. Portanto, nao é “nada mais a dizer”, nao esta tampouco do lado da falta a ser, sempre ligada, como 0 desejo, a articulacao significante.* O ultimo ensino de Lacan aparece como 0 avesso do Lacan estruturalista, desde que admitamos que ele ali ensinava que o sig- nificante impunha sua lei ao real. Seu tiltimo ensino conduziu a cé- lebre formula “Nao ha relacao sexual”. No lugar em que hd o real sem lei, nao ha saber no real e, muito menos, modo de usar 0 corpo gozante. J.-A. Miller afirma, desde 1998, que “€ 0 furo no real que determina o que pode se inscrever de semblante”. Ele conclui que “o trabalho do analista, seu ato, poderia entao ser qualificado por perturbar a defesa”. Na apresentagao do IX Congresso da AMP, Miller utiliza uma formulagao que, mesmo se aproximando desta, dela difere: O inconsciente lacaniano, o do tiltimo Lacan, esta no nivel do real e, digamos por comodidade, abaixo do inconsciente fret" diano, de modo que, para entrar no século XXI, nossa clinica deverd se centrar sobre a desmontagem da defesa, desorde- nar a defesa contra o real.® A, 4 a , anbrod? opfiler.d-A..“Orientagdo lacaniana, Huminagbes profanas”, Ligdio de 29 de nove" tae 3eA., Orientagao Lacaniana. 1, 2, 3, 4, Curso de 19 de dezembro de 1954+ La experiéncia de lo real en la cura psicoanalitica, BsAs, P 53; Orientagdo lacanian: ic ana, A experiéncia do real no ento psicanalitico, | de novembro e 2 de dezembro de 1998, dita es © Miller, J.-A, “O real ler, J.-A, “O real no 86 oso At Opsdo Lacaniana, n.63, SP, im 2018 erent do tema do IX Congresso 48 AM?" Defesa (desmontar a) Como entender a distancia entre essas duas formulacé: paradas por 15 anos? E 0 produto de uma longa elabora on eo ultimo ensino de Lacan que se apoia, sobretudo, no Semindh reo. sinthoma e no “Prefécio A edigao inglesa do Semindrio XP” Os dois enunciados supdem que 0 percurso analitico desemboca em uma queda do sujeito suposto saber e em um esvaziamento de todo o sentido. O primeiro esta mais sustentado que o segundo, deixando entender que a defesa possa reconstituir-se se ela for somente pertur- bada. Perturbar a defesa se inscreveria no que foi estabelecido pela teoria do final da andlise até 1967: a travessia da fantasia. A desmontagem da defesa supde que uma outra construgao venha no lugar do que foi esvaziado. E assim que se pode entender anecessidade, para Lacan, de passar & topologia dos nds quando de seu estudo do caso Joyce, que tinha enfrentado o defeito da defesa sem 0 auxilio da andlise. Desordenar a defesa vai no mesmo sentido. Tratar-se-ia, 14 onde foi encontrado o furo primordial, de trazer uma nova constru- cao, atando 0 conjunto simbdlico, imaginario e real, depois do esgo- tamento da decifragaio do sentido. Nova construgaéo que Lacan denomina Sinthoma. Poder-se-ia, entéo, no século XXI — no qual a ordem simbélica esta pulverizada e o real, antes encarnado pela natureza, esta de- sordenado pela aciio conjugada das ciéncias e do capitalismo —con- tar com a psicandlise para desmontar a defesa e remonta-la de outro modo, para permitir aos sujeitos sustentar uma nova ética no 103 tempo em que o Outro nfo existe e em que o real do gozo se impoe por toda parte na maior desordem? E a aposta que teremos de os tentar e verificar pelo procedimento do passe € pelo que J.-A. Miller nomeou de “ultrapasse”.® ‘Tradugdo: Luiz Fernando Carrijo da Cunha a |, IZE, 2008, * Lacan, J., “Preficio a edigdo inglesa do Semindrio XI”, Outros escritos, Rd; ree g.de maio de 2011, a ser PU- Miller, J.-A., Orientagdo lacaniana, O Ser e o Um, Ligao de blieada sob o titulo Os Um-sozinhos.

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