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Copyright O 2005 by Laurence Hallewell

Título do original:
Books in Brazil: A History of the Publishing Trade

1” edição brasileira 1985 (Edusp / T. A. Queiroz Editor)


2* edição brasileira rev. e ampl. 2005 (Edusp)
3º edição brasileira 2012 (Edusp)

A meu pai,
Herbert Joseph Hallewell
(26.4.1882-28.9.1964),
contemporâneo quase exato de
Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento
Monteiro Lobato, que tantas
Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da usp.
Adaptada conforme normas da Edusp. lembranças me trouxe dele,
na fisionomia e na maneira de pensar, de
Hallewell, Laurence
O Livro no Brasil: Sua História / Laurence Hallewell;
reagir, de lutar e de realizar.
|trad. de Maria da Penha Villalobos, Lólio Lourenço de
Oliveira e Geraldo Gerson de Souza] — 3. ed. - São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
TOI6 P.; 13 X 21 cm.

Inclui bibliografia.
Inclui índice remissivo.
Apêndice 1: tabelas.
Apêndice 11: moeda e taxas de câmbio.
ISBN 978-85-314-1365-0

r. Livros (Brasil) 2. Livros (Editoração) 3. História do


livro 1. Título.

CDD-002.0981

Direitos em língua portuguesa reservados à


Edusp — Editora da Universidade de São Paulo
Av. Corifeu de Azevedo Marques, 1975, térreo
05581-001 — Butantã — São Paulo — sp — Brasil
Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150
SAC (11) 3091-2911 — Fax (11) 3091-4151
www.edusp.com.br — e-mail: eduspQusp.br

Printed in Brazil 2012

Foi feito o depósito legal


SUMÁRIO

Prefácio da Terceira Edição (2012) 17


Apresentação 19
Agradecimentos 21

RR
Nota Prévia 2s
Nota sobre as Estatísticas 27

DOa
Prefácio da Edição Americana (1982) 29
Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 33

ANTÔNIO ISIDORO DA FONSECA

A Introdução da Censura 67
À Impressão no Além-mar 72
O Brasil dos Avis e dos Habsburgos 73
Os Jesuítas no Oriente Português 76
Os Jesuítas no Brasil 78
Os Holandeses no Brasil 81
A Restauração Portuguesa 82
e
À Impressão no Recife no Governo de Francisco de
Castro Moraes 84
A Chegada de Isidoro da Fonseca 8s
A Obra de Isidoro no Rio de Janeiro 89
Restrições Coloniais 92
A Publicação em Portugal 94

CONCEIÇÃO VELOSO E PAULO MARTIN

O Primitivo Comércio de Livros no Rio de Janeiro 99


O Contrabando 103
A Chegada do Príncipe Regente ro6
Conceição Veloso II
A Impressão Régia 112
A Livraria Paulo Martin 118
O Fim do Monopólio do Governo na Impressão 122
N. L. Vianna e Outros Nomes Novos 123
$zr. O Comércio de Livros no Rio de Janeiro do O Progresso Técnico 187
Primeiro Reinado 125 José Maria Corrêa de Frias 190
$22. Evaristo da Veiga 126 Belarmino de Mattos 193
À Situação Posterior 200

SILVA SERVA
OUTROS EDITORES DAS PROVÍNCIAS
As Províncias no Começo do Século xix 131
O Início da Impressão em Minas Gerais 135 Publicações no Pernambuco Rebelde 203
Silva Serva e o Início da Impressão na Bahia 136 Pernambuco depois de 1824 207
A Livraria Catilina 142 À Impressão na Paraíba 210
$53. Publicações no Pará 212
A Tipografia em Outras Províncias 213
PLANCHER

O Início em Paris 147 BAPTISTE LOUIS GARNIER


$28. No Exílio rso
$29. À Linha Editorial Política de Plancher sr $55. A Expansão Ultramarina do Comércio Livreiro Francês 219
$30. Ficção e Periódicos 152 56. Garnier Fréres 221
$31. O Caráter de Plancher 153 $57. Impressões em Paris 223
$32. Sua Influência sobre a Impressão no Brasil 156 58. O Papel Brasileiro 226
$33. A Litografia 157 $59. A Tipografia Franco-americana 228
$34. Villeneuve 159 São. A Personalidade de B. L. Garnier 230
$35. J. C. Rodrigues 16r S6r. Os Direitos Autorais 233
S62. Os Romances e o Folhetim 236
Livros de Poesia 240
PAULA BRITO Os Livros Escolares 241
As Traduções 244
$36. Louis Mongie 165 Os Métodos Comerciais 245
$37. Paula Brito e a Petalógica 167 À Fortuna de Baptiste Louis Garnier 247
$38. A Personalidade de Paula Brito 167
$39. O Começo da Vida 168
$40. A Imperial Typographia Dous de Dezembro 172 LAEMMERT
$41. O Mercado Feminino 174
$42. As Edições Literárias de Paula Brito 175 Lombaerts 251
$43. A Liquidação 177 Leuzinger 252
E. x H. Laemmert: O Começo 254
Souza Laemmert 255
JOSÉ MARIA CORRÊA DE FRIAS E A Typographia Universal 257
BELARMINO DE MATTOS $73. Publicações Laemmert de História, Ciência e Literatura 261
$74. Livros Práticos, Técnicos, Médicos e Didáticos 263
$44. A Situação Histórica Especial do Maranhão 181 $75. As Traduções Editadas por Laemmert 266
$45. Os Primórdios da Impressão no Maranhão 18s (76. A Pirataria dos Direitos Autorais 268
$77. Laemmert & Cia. 272 S1o3. O Modernismo 360
$78. O Anuário do Brasil 273 Sro4. Os Métodos Revolucionários de Lobato 363
Sros. Monteiro Lobato & Cia. 366
$106. Outros Editores de São Paulo 368
IO. HIPPOLYTE GARNIER Sroz. A Melhoramentos 371
$ro8. Os Livros para Crianças 374
$79. O Declínio do Comércio Livreiro na Década de 1890 277 frog. A Depressão do Pós-guerra 376
São. A Reconstrução 283 SrIo. A Falência 380
S81. À Política Editorial 286
ç82. Outras Saídas para o Autor Brasileiro 290
$83. Copyright Internacional e Compra de Direitos 292 I4. OCTALLES MARCONDES FERREIRA
ç84. Traduções para o Francês e para o Espanhol 294
$85. Novamente os Irmãos Garnier 295 SrII. A Fênix Nacional 385
Ç86. Briguiet-Garnier 296 Sri2. A São Paulo Editora e a Revista dos Tribunais 389
Sr13. Impostos sobre Papel Importado 392
Srr4. A Edição de Obras Didáticas e Literárias 397
TI. FRANCISCO ALVES Srrs. O Mercado Português 399
SrIr6. O Mercado Africano 403
$87. O Cenário do Rio no Começo do Século xx 301 Srr7. A Nova Ortografia 404
ç8s. S. J. Alves e Cruz Coutinho 303 Srr8. A Reforma Capanema 408
$89. As Livrarias Quaresma, São José, Castilho e Outras 305 Srro. A Editora do Brasil e a Brasiliense 409
$go. À Personalidade de Francisco Alves 308 $120. O Desenvolvimento no Pós-guerra 412
Sor. O Começo da Vida de Francisco Alves 312 Srzr. Livros de Nível Universitário 414
Sgz. Francisco Alves e os Livros Didáticos 373 $r22. A Brasiliana 420
$93. Francisco Alves e as Edições Literárias 319 $123. À Nacional é Estatizada 424
$94. As Ligações Portuguesas e os Esquemas de Impressão 322
$9s. O Legado 326
$96. Paulo de Azevedo & Cia.,e a Sequência 328 I$. BERTASO E VERÍSSIMO

$r24. A Atividade Editorial no Rio Grande do Sul 431


I2. O CRESCIMENTO DA ATIVIDADE EDITORIAL EM $r2s. Os Primórdios da Livraria Globo 433
SÃO PAULO $126. O Instituto Nacional do Livro 435
$r127. Uma Editora de Âmbito Nacional 439
So7. A Cidade e Sua Faculdade de Direito 333 $128. As Traduções da Globo 444
$98. A Casa Garraux 337 $r29. Livros Didáticos e Dicionários 447
S9g. A Expansão de São Paulo a partir de r890 342 $130. Literatura Brasileira 450

I3. MONTEIRO LOBATO 16. JOSÉ OLYMPIO

$roo. A “Velha Praga” 347 $r31. O Panorama Editorial do Rio na Década de 1920 459
Sror. Urupês 351 $132. A Revolução de 1930 462
Sroz. A Revista do Brasil 356 $133. Livraria Schmidt Editora 466
$134. Editora Ariel 473 $r67. Ênio Silveira e a Civilização Brasileira 587
$135. José Olympio: O Começo da Vida 475 $r68. Editoras Progressistas na República Populista s92
$136. Livros Raros e a Independência 478 $r69. O Desligamento da Companhia Editora Nacional sos
$137. Humberto de Campos 481 Srgo. Os Últimos Anos do Populismo 599
$138. José Lins do Rego 483 SIgI. A História Nova 603
$139. O Paulistano se Fez Carioca 487 S172. A Atividade Editorial sob os Primeiros Presidentes
$140. Outros Sucessos Literários da Década de 1930, Militares 607
e uma Falha 489 $173. Subsídios e Livros Didáticos 611
Srg1. “Documentos Brasileiros” e Poesia 493 $174. A Ática e Outras Novas Editoras Didáticas 616
Sr42. Amizades e Política 495 $175. Coedições, Traduções e o Preço do Livro 619
$r43. Getulista? 499 S176. A Civilização Brasileira e o Novo Regime 629
$144. A Censura no Período Vargas soz $177. Ênio Silveira e a Frente Ampla 638
$r45. Traduções 506 $178. O Ato Institucional n. s e Suas Sequelas 642
$146. Projeto Gráfico para Livros srr $179. Da Crise do Petróleo à Abertura 650
$147. Coleções no Pós-guerra s14 $r8o. Livros pelo Correio 657
$r48. Amizades e Política na Década de 1960 518 Sr8r. Surgem a Difelea Bertrand 659
$149. Expansão e Diversificação no Começo da Década
der97o s21
$rso. Declínio da Ficção na Metade do Século s23 19. A ATIVIDADE EDITORIAL NOS ESTADOS NO SÉCULO XX
Srgi. A Sabiá 526
Srs2. O Fim da Independência 528 Sr82. O Eixo Rio-São Paulo 669
$r83. O Interior de São Paulo 675
$184. O Extremo Sul 677
I7. JOSÉ DE BARROÓS MARTINS $r8s. Os Estados do Sudeste 682
$186. Minas Gerais 686
$153. A Segunda Guerra Mundial s39 $r87. O Distrito Federal e as Publicações Oficiais 687
$154. Livraria Agir e Edições “O Cruzeiro” 544 $r88. Outras Cidades do Centro-oeste 691
$155- Os Clubes de Livro s48 $r89. As Cidades do Norte e do Nordeste 691
Sr56. Livros Técnicos 549 $rgo. As Editoras Universitárias 698
$157. Livraria Martins Editora ss1 Srgr. Os Folhetos Populares 702
Srs8. Relações com o Estado Novo 555 Srgz. O Conteúdo do Cordel 711
$159. Jorge Amado são $r93. O Futuro do Cordel 715
$r6o. Outras Publicações s63 $r194. Ilustradores de Folhetos 720
Sr61. A Estética do Trabalho Gráfico s64 $r95. E o Cordel Entra no Mercado de Massa 722
Sró2. À Liquidação 565

20. NA ÉPOCA DA “ABERTURA”


I8. ÊNIO SILVEIRA
$r96. A Atividade Editorial no Setor não Didático 727
$r63. A Década de r9so 569 $197. Livros de Bolso 738
$r64. Vendas em Prestações 579 Srg8. A Editora Abril 746
Sr6s. Burla aos Direitos do Autor s82 $199. Outros Métodos Novos de Distribuição 750
$166. Juscelino Kubitschek de Oliveira 584 $200. O Círculo do Livro 753
$z0r. As Multinacionais 754
$202. O Mercado de Livros Didáticos na Época da “Abertura” 76
$203. Livros para Crianças 768
$204. Livros de Arte 774
$z05.
$206.
Outros Mercados de Livros Especializados 780 PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO (2012)
Os Livros Importados 783
$207. A Alfabetização e o Gosto de Ler 28 5
$208. A Edição de Literatura 795 Escrito originalmente como tese de doutorado em 1970-1975,
$209. A Poesia no Brasil de Hoje 798 este livro foi revisado e editado em inglês em 1982, ano do
centenário do nascimento de Monteiro Lobato; a sua atuali-
zação corrigida apareceu em português em 1985. Vinte anos
21. NA NOVA REPÚBLICA
depois, em 2005, sai a nova edição: a segunda em português,
mas, para o autor, a quarta versão. Esta terceira edição re-
$210. A Crise Latino-americana da Dívida Externa 803 produz o texto integral da segunda, com algumas correções
$211. O Plano Cruzado e Suas Consequências 8ro e atualizações, mas sem as ilustrações, para proporcionar
$212. Nos Tempos de Collor 8r3 uma versão com preço reduzido que atenda às necessidades
$213. Livros para Crianças e de Autoajuda 820 de um leque de leitores mais abrangente.
$214. Itamar Franco e o Plano Real 823 Segundo o historiador Tácito, em seu relato da conquista
$215. Sebose Feiras 826 da Bretanha, quinze anos constituem muito tempo, bastan-
$2176. O Livro para Cegos 827 do para as crianças tornarem-se homens, os homens jovens
$217. As Perspectivas para o Terceiro Milênio 830 fazerem-se maduros, os maduros envelhecerem e os velhos
morrerem. Aos oitenta e três anos, estou acreditando! São
suficientes também para muito acontecer na vida de uma na-
Apêndice 1: Tabelas 833 ção e da sua indústria editorial. Quanto mais numa etapa de
Apêndice 11: Moeda e Taxas de Câmbio 937 vinte e sete anos! Se o Brasil já ganhou sua liberdade políti-
Bibliografia 943 ca, está apenas agora começando a se recuperar dos severos
Índice 955 golpes econômicos dos anos perdidos do decênio de 1980
e da alta da inflação dos princípios dos anos de 1990. Na
indústria e no comércio do livro, as multinacionais fugiram
quase todas e, livres do seu medo da hiperestagflação, agora
estão voltando. O público, que perdeu tanto de seu poder
aquisitivo, já começou também a se restabelecer, mas, nestes
dias, encontra, para bem ou para mal, tantas alternativas
eletrônicas e outras para o produto “livro”! Enfim, este é um
tempo de desafios e realizações para todos nós, neste mundo
novo do neoliberalismo global (sejamos a favor ou não).
Os meus agradecimentos incluem as fontes que utilizei nes-
ta nova revisão e atualização. Para mim, foi uma tarefa demo-
rada, mas bem recompensada (espiritualmente, pelo menos!).
Eis o resultado. Espero que lhes seja de utilidade.
APRESENTAÇÃO

O desenvolvimento da indústria editorial brasileira é hoje


em dia um fato indiscutível, seja no aspecto qualitativo ou
quantitativo. As edições impressas no Brasil são somente
comparáveis aos países com boa tradição editorial e, apesar
do problema linguístico, as exportações do livro brasileiro
aumentam sensivelmente a cada ano.
O livro no Brasil é um tema cada vez mais discutido em
conclaves nacionais e internacionais, e algumas experiências
brasileiras no campo editorial, como o sistema de coedição
e a substituição do papel tradicional pelo papel de imprensa
no livro didático, já são hoje implantados em alguns paí-
ses da América Latina e do Caribe. Na própria bibliografia
brasileira, constam publicações de especialistas na área, tais
como Edson Nery da Fonseca, Herberto Sales, Olímpio de
Souza Andrade, Rubens Borba de Moraes etc.
No entanto, a presente obra do inglês Laurence Hallewell
vem cobrir uma grande lacuna, pois ele desde cedo se inte-
ressou pela bibliografia latino-americana e em especial pela
bibliografia brasileira, da qual é, sem nenhum favor, um dos
grandes pesquisadores.
Assim sendo, Laurence Hallewell, que defendeu sua tese
de doutorado na Universidade de Essex, na Inglaterra, com
base neste estudo, veio ao Brasil por diversas vezes com a
preocupação de pesquisar a história da indústria editorial
brasileira. Manteve contatos com os principais editores, bi-
bliotecários, historiadores, intelectuais, e dedicou parte de
sua pesquisa à coleta de subsídios bibliográficos em diversas
instituições culturais.
Com base nessas informações, foi escrita a mais comple-
ta história das editoras comerciais no Brasil. A obra retrata
com precisão, clareza e com uma riqueza sem precedentes de
dados estatísticos, todo o desenvolvimento das editoras bra-
sileiras e os problemas econômicos, sociais e políticos que
elas enfrentaram para sobreviver.
O livro oferece-nos um relato minucioso das obras e dos
autores publicados pelas editoras comerciais e oficiais, não
zo Apresentação

somente no eixo Rio-São Paulo, como também nos demais


estados brasileiros, além de apresentar tabelas, cronogramas
e dados comparativos detalhados sobre população, impor-
tação, tarifas, preços, salários, exportação, estatísticas, pro-
dução de papel, distribuição, traduções, publicações edu- AGRADECIMENTOS
cativas, livros infantis e comércio livreiro. Enfim, todas as
pessoas ligadas de uma ou de outra forma ao livro brasileiro
acham-se presentes nestas páginas, são suas personagens e A ordem é cronológica. Fontes citadas na Bibliografia são omi-
suas testemunhas. tidas aqui. Pela sua importante ajuda, durante o ginásio, no
Podemos dizer, com toda convicção, que uma boa parte desenvolvimento do meu entendimento da história mundial
da história da cultura brasileira está nesta obra pioneira e de moderna, ao meu professor de tantos anos atrás, Albert J.
extraordinário valor de Laurence Hallewell. Forward. Por seu ensino da história do livro e da bibliografia
histórica, Roy Stokes (da University of British Columbia, mas
EMIR SUAIDEN então do Loughborough College Library School), e por seu en-
sino dos fatos básicos da indústria editorial, Ronald Char-
les Benge (então da Northwestern Polytechnic, Londres). Pela
aprovação do meu projeto original de tese: profa. Jean Franco
(então da University of Essex, agora professora emérita da
Columbia University). Pelo auxílio na obtenção da subven-
ção: prof. Robin Humphreys (University College, Londres),
Antônio Olinto e prof. Albert Sloman (então vice-chancellor
da University of Essex). Pela concessão dessa subvenção: o
Itamarati, o British Council e o Fundo de Dotações para Pes-
quisa da University of Essex. Por sua hospitalidade no Rio du-
rante minha pesquisa: Cláudio Murillo Leal e família. Por sua
contribuição direta na pesquisa: Patricia Noble (biblioteca da
University of London), Cavan McCarthy (então da Universi-
dade Federal da Paraíba) e Robin Price (Wellcome Institute).
Pela oportunidade tão valiosa de bate-papos sobre a indústria
editorial e por tantos bons conselhos durante meus primeiros
meses no Brasil: um grande número de pessoas, sendo impos-
sível listar tanta gente amável no ramo editorial e livreiro, mas
devo mencionar sobretudo Carlos Ribeiro (Livraria São José),
Fernando Sabino (então da Editora Sabiá), Vera Pacheco Jor-
dão e Luís Jardim (José Olympio), além de Rubens Borba de
Moraes e Tarcísio Pereira (Livro Sete, do Recife). Pelo acesso
aos serviços de bibliotecas: University of Essex, Biblioteca Na-
cional (Rio de Janeiro), Gabinete Português de Leitura (Rio),
Livraria José Olympio Editora, Fundação Getúlio Vargas,
IBBD (depois IBICT), MEC, St. Bride Institute (Londres), Em-
baixada Brasileira em Londres, Institute of Latin American
Studies of the University of London, British Library, Wellcome
Institute (Londres), New York Public Library, Princeton Uni-
22 Agradecimentos Agradecimentos 23

versity, e, através do serviço de empréstimos entre bibliote- primeira edição que tiveram a gentileza de comunicar-me so-
cas, University of California (Berkeley), e Library of Congress. bre os erros e omissões que cometi, entre os quais o sr. Manoel
Por uma assistência bibliotecária particularmente prestativa, Portinari Leão, o prof. Hitoshi Nomura, o editor Jaime Pinsky
O. v. Vesentini (Embaixada do Brasil, Londres), Eve Johanssen e o prof. Luis Guilherme Pontes Tavares.
(British Library), Alan Biggins (1LAS, Londres), Mary Auck- Eu eoT.A. Queiroz trabalhávamos juntos sobre a segun-
land (Lse, Londres), e Peter de la Garza e colegas da Divisão da edição até o inesperado e súbito falecimento do editor
Hispânica da Library of Congress. Pelo acesso a arquivos: em janeiro de 2004. À edição de 2005 saiu graças ao grande
IHGB, Livraria José Olympio Editora, Biblioteca Nacional interesse da Editora da Universidade de São Paulo (coedi-
do Rio e Wellcome Institute Historical Medical Library. Por tora da primeira edição), especialmente da assessora, Carla
suas críticas e encorajamento: prof. J. Gordon Brotherston Fernanda Fontana.
(meu orientador de tese na University of Essex), dr. Michael J.
Sommerland (University of Essex), Peter T. Johnson (Prince- L.H.
ton University), prof. William V. Jackson (University of Texas,
Austin), Gwen L. Nagel (G. K. Hall « Co.), Emir J. Suaiden
(Instituto Nacional do Livro), Thomas Maugham (British
Council). Pela leitura da versão original das partes relativas
a eles ou a suas empresas: Cláudio Bertaso (Editora Globo),
Caio Graco Prado (Brasiliense), José de Barros Martins, Ênio
Silveira (Civilização Brasileira), Jorge Amado, Antônio Ola-
vo Pereira (Livraria José Olympio Editora) e Herberto Sales
(sobre Edições O Cruzeiro). Por permitir que eu usasse maté-
ria protegida por direitos autorais, Rubens Borba de Moraes,
Nelson Palma Travassos, Caio Graco Prado, Wilson Martins,
Ênio Silveira, Nelson Werneck Sodré e Biblioteca Nacional
(Rio de Janeiro). Por fornecer ilustrações: Livraria Francisco
Alves, Editora Globo, Livraria Martins, Brasiliense, Bibliote-
ca Nacional, Jorge Amado, Ênio Silveira, University of Essex,
King's College (Londres), e Thomaz de Aquino de Queiroz,
meu primeiro editor no Brasil, a quem devo também ajuda,
informações, bons conselhos e amizade tão cordial.
Pela preciosa concessão de tempo para que eu trabalhasse
no livro: os chefes do meu departamento, Philip Long, em
Essex, e profa. Jeruza Lyra Lucena, na Universidade Federal
da Paraíba. Pela tarefa fundamental de encontrar uma edito-
ra, Wilson Hargreaves, da Casa do Livro, Brasília, e por sua
ajuda em possibilitar a edição, sr. José Mindlin. Na revisão
final da tradução para o português (além dos meus dois tra-
dutores), o texto beneficiou-se muito da crítica e das corre-
ções sugeridas pelo meu bom amigo, prof. Antônio Agenor
Briquet de Lemos.
A atualização do texto deve muito aos clippings e outras
informações fornecidas por Fernando Goldgaber, do Rio de
Janeiro, e Sonia Silva, de Campinas, e a todos os leitores da
NOTA PRÉVIA

Durante séculos, a Inglaterra possuiu apenas duas universi-


dades (Oxford e Cambridge), sendo que no curso do século
xIx, em número bem limitado, foram acrescentadas as cha-
madas “universidades cívicas”. No início da década de ses-
senta, ocorreu uma súbita “explosão universitária”, quando,
em menos de cinco anos, surgiram seis novas (além de outras
mais na Escócia e na Irlanda).
Às novas instituições procuraram adotar novas filoso-
fias de ensino e novos assuntos passaram a ser explorados.
Entre elas, a Universidade de Essex, que decidiu preocupar-
-se com os estudos latino-americanos, abrindo suas portas
no ano de 1964.
Recentemente formado em línguas ibéricas, aceitei a ta-
refa de desenvolver na biblioteca uma coleção sobre a Amé-
rica Latina. Este foi o meu primeiro contato com os livros
brasileiros. Impressionaram-me muito a boa qualidade de
seu planejamento gráfico e de sua apresentação física, o que
me sensibilizou a descobrir mais sobre eles.
Em 1970, uma bolsa de estudos do Itamarati propiciou-
-me a oportunidade de visitar o Brasil para executar pes-
quisas, das quais resultou minha tese de doutorado, intitu-
lada Uma História da Indústria Editorial Brasileira, com
Referência Particular à Publicação de Obras Literárias. Era
objetivo básico desse trabalho demonstrar como o desen-
volvimento da literatura brasileira foi determinado pelas
circunstâncias econômicas, práticas comerciais e condições
técnicas da indústria editorial.
Na elaboração da minha tese (defendida na Universidade
de Essex, em março de 1975), dirigia-me, como era natural,
a outros estrangeiros interessados no Brasil. Posteriormente,
ao aceitar convite do meu editor norte-americano no senti-
do de revisá-la para sua publicação como livro, ainda tinha
em mente o leitor do exterior. Nessa época, aceitara o cargo
de professor de biblioteconomia na Universidade Federal
da Paraíba, quando tive oportunidade de conhecer melhor
o país. Ao mesmo tempo, minha experiência docente com
26 Nota Prévia

alunos brasileiros na disciplina Seleção de Livros e Forma-


ção do Acervo Bibliográfico convenceu-me de que um livro
tratando do desenvolvimento e funcionamento atual da in-
dústria editorial nacional podia ter um papel útil também na
bibliografia brasileira. NOTA SOBRE AS ESTATÍSTICAS
Estrangeiros como Émile Legouis, Tocqueville, Gibbon,
Armitage produziram obras básicas sobre culturas alheias.
Mesmo consciente da impossibilidade de competir com estes There are three kinds of lies:
grandes homens, pelo menos deixei-me persuadir por ami- lies, damned lies, and statistics.
gos brasileiros do valor prático de uma versão em português
da minha tese. BENJAMIN DISRAELI, conde de Beaconsfield

Quando do início de minhas pesquisas no Rio, em 1970,


em contato com a então diretora do Instituto Nacional do
Livro, sra. Maria Alice Barroso, em busca das possíveis fon-
tes estatísticas relevantes, esta me afirmou: “O Brasil não é
um país de estatística!”, querendo dizer, evidentemente, que,
apesar da sua quantidade, poucas mereciam confiança. Mas,
neste sentido, qual o país cujas estatísticas a merecem?
Como bibliotecário, sempre me surpreendeu a avidez
com que os usuários se apegam a dados estatísticos, sobre-
tudo a estatísticas oficiais, como se representassem a própria
verdade. Naturalmente, qualquer pesquisador sério deseja
quantificar sua informação, mas, na maioria das vezes, as
estatísticas são atoleiros ou areias movediças, incapazes de
suportar o peso dos edifícios que pretendemos erigir sobre
elas. Muitas vezes, há variação temporal na sua base, como
no caso das estatísticas de importação de livros, demonstra-
da na tabela 15. Há também problemas de conceituação: o
que é, de fato, uma livraria? (por-exemplo, veja-se o $r80).
Frequentemente os dados são incompletos, situação a que
me refiro sobre a produção de livros nos $133 e $176.
A fiscalização das importações difere daquela das ex-
portações, o que é comprovado pelo confronto entre os
dados do país de origem e os do país de destino: em 1938,
a França exportou 73,3 toneladas de livros para o Brasil,
que recebeu apenas 51 toneladas! À tabela 9 apresenta ou-
tras discrepâncias semelhantes do comércio livreiro entre
o Brasil e Portugal.
Também uma impressão equivocada pode resultar da nos-
sa maneira de apresentá-las. Seria fácil falar do analfabetismo
no Brasil em termos de porcentagem global: segundo o censo
28 Nota sobre as Estatísticas

de 1980, uns 42%. Mas isso esconderia a alta proporção pré-


-escolar da população, 18,5 milhões. À taxa de alfabetização
entre a população de quatro anos ou mais era de 68,7%, e en-
tre os brasileiros de mais de catorze anos era de 73,9%. Mes-
mo estas estatísticas podem enganar, por encobrirem o fato de PREFÁCIO DA EDIÇÃO AMERICANA (1982)
ser o analfabetismo, sobretudo, um problema da zona rural.
As zonas urbanas já haviam alcançado 70% vinte anos antes;
no censo de 1980, alcançaram 83%. Ao combinar três fatores Há apenas uma coisa a ser lembrada no
extremos (sexo, residência e idade), achamos que a alfabetiza- tocante a edições: nunca se vendem livros
ção das mulheres vai de 93%, na faixa etária de 15-19 anos sobre a América Latina e sempre se vendem
nas cidades, a 12,5 % entre as camponesas de 70 anos ou mais. livros sobre Nelson.
Finalmente, devo confessar que somente por ocasião da
revisão das provas da primeira edição brasileira descobri que JONATHAN CAPE, editor londrino”
“livro” tem sentidos diferentes nas estatísticas do Serviço de
Estatística de Educação e Cultura (Seec) e nas do Sindicato
Nacional dos Editores de Livros (Snel). Para o Seec, deve POR QUE O BRASIL?
ter 48 páginas, do contrário é folheto. Para o Snel, “livro”
é qualquer publicação não periódica sem fins publicitários. Isto é singular no caso de Nelson. A América Latina foi seu
Assim, muitos livrinhos para crianças são folhetos para o maior feito. Com o tratado de Roma tendo, virtualmente,
Seec, mas livros para o Snel. reinstalado o Sistema Continental de Napoleão, poderíamos
dizer que a América Latina foi a única façanha duradoura de
sua carreira. É certo que a América espanhola jamais teria
logrado êxito em sua revolta se ele não tivesse imobilizado
as armadas francesa e espanhola em Trafalgar. E, sem uma
armada vitoriosa para escoltá-los, os Braganças dificilmente
teriam pensado em partir para o Brasil, transformando, com
isso, a colônia em metrópole e dando-lhe tanto a verdadeira
independência como a unidade política (o que, quer a Amé-
rica de língua espanhola, quer a de língua inglesa, ainda não
conseguiram alcançar).
“Deus é brasileiro”, dizem eles, para explicar tanto o tipo
como a forma pela qual a Divina Providência vela pelo país.
O Brasil não é exatamente o maior país do mundo. Mas
seus 8511965 quilômetros quadrados, sem áreas geladas
ou áridas, e sem encostas íngremes davam ao país, mesmo
em 1808, a maior extensão de território habitável sob uma
única soberania. O curioso desejo da Inglaterra de aplacar a
França, após Waterloo, fez com que o Brasil perdesse o que
é hoje a Guiana Francesa; a vontade mais compreensível dos
ingleses de ter, na embocadura do rio da Prata, um Estado-
-tampão fraco (que ficasse situado entre o Brasil e a Argen-

1. Anthony Blond, The Publishing Game, Londres, Cape, 1971, p. II.


30 Prefácio da Edição Americana (1982) Prefácio da Edição Americana (1982) 31

tina) fez com que o Brasil perdesse o que é hoje o Uruguai. alimentá-las. A legislação relativa ao bem-estar social data
Mas, sob outros aspectos, esse imenso país tem revelado de cinquenta anos, mas a mortalidade infantil das crianças
uma surpreendente coesão. Cinco países (China, Índia, URss, negras em Recife é pior que a de Jo'berg*. Em tamanho, po-
Estados Unidos e Indonésia) possuem populações maiores, pulação, renda média e Produto Interno Bruto (PIB) O Estado

Dt
mas todos apresentam, em diversos graus, heterogeneida- de São Paulo supera a Espanha, enquanto o Piauí está mais

Po
de étnica e linguística. No Brasil, a discriminação (embora perto de Bangladesh. Salvador, com as glórias barrocas de
ilegal) é muito difundida, mas a linha divisória da cor é tão

A
sua arquitetura (e alguns dos piores cortiços do mundo), é
impalpável quanto a linha do horizonte em uma nublada quase a mais antiga cidade da América; Brasília, de concreto
manhã de novembro nos pântanos de Essex; em nenhum thÍ
E
e vidro laminado, começou há pouco mais de vinte anos com
outro lugar das colônias americanas, a raça é menos impor- paraquedistas que foram lançados para construir uma pista
tante como fator político. O português é frequentemente de pouso no meio de uma vastidão inculta, é, em qualquer
depreciado mais ou menos da mesma maneira que os in- sentido, a mais nova.
donésios lamentam que seus senhores de outrora falassem Em suma, este é o país do carro de boi ou do Concorde:
holandês. Na verdade, o português é uma língua ideal. Inter- excitante, desafiador, algumas vezes assustador, e é inteira-
nacional (embora em pequena escala, mas num sentido em mente fascinante.
que o holandês jamais o foi), beneficiada por uma tradição
milenar que a equiparou, enquanto veículo para a expressão )
humana, a qualquer uma das línguas europeias, ela é — diver- r
POR QUE LIVROS?
samente do mandarim, do híndi ou do russo — universal em
todo o território nacional (com exceção de alguns milhares Procurar conhecer uma nação por meio de sua produção
de aborígines da Amazônia). Além disso, diversamente das editorial é, mais ou menos, o mesmo que julgar uma pessoa
línguas nacionais da América espanhola, dos alemães, do por sua caligrafia. Ambas constituem partes muito peque-
mundo de língua inglesa, ou até mesmo da França, sua uti- nas da atividade total de um.país.qu de uma pessoa, mas as
lidade como fator de unidade nacional não é comprometida duas podem ser muit o(réveladoras pois nós somos como .
por ser usada oficialmente em um país fronteiriço. nos expressamos. Naa Demora, verdade;-é-difícil imaginar uma ativi-,
mas
DE mo
E, é claro, o Brasil é o “país do futuro”. Mas agora, fi- dade que envolya tantos n aspectos.da vis nacional. quanto a.
nalmente, esse futuro já não é algo que pertença à dádiva — pubh s. O livro existe para dar expressão lite-.
da Rainha Branca de Alice. O Brasil está se transformando rária aos valores cul arais e ideológicos. Seu aspecto gráfico k
tão rapidamente e tão radicalmente quanto a Inglaterra dos é o encontro da pi: disponível. Sua |
tempos de Nelson. As consequentes disparidades — entre o produção requer a disponibilidade de certos produtos indus-.
Sul e o Norte, a cidade eo campo, os ricos e os pobres, os triais (que podem ser importados, feitos com matéria-prima”
progressistas e os conservadores — são enormes, tal como importada ou fabr icados inteiramente no país). Sua venda |
eram na Inglaterra daqueles sombrios, satânicos, mas mui- constitui um firocesso comercial condicionado por 2.fatores
to revolucionários, moinhos. Mais da metade dos lares do —.
geográficos, econô
vo . . . .
- educacionais, sociais e políticos. E
país possui televisão; apenas metade da população é funcio- o todo proporciona uma excelente medida do grau de de- .
nalmente alfabetizada. O Brasil possui o maior complexo pendência ou independência do país, tanto do ponto de vista .
industrial do hemisfério sul e agricultores do interior que espiritual como do material.
ainda não descobriram o arado. Conseguiu uma balança
comercial superavitária no ano de 1981, que foi de depres-
são mundial, e atingiu um nível de inflação superior ao de
2. Escrito em 1982. Entre 1974 € 1992, a taxa da mortalidade infantil
Israel. Exporta aviões projetados e fabricados no país, mas no Nordeste do Brasil caiu globalmente de 142/1000 para 74/1000,
tem como um de seus maiores problemas um grande núme- embora tais estatísticas oficiais omitam muitas crianças sepultadas
ro de crianças abandonadas por pais pobres demais para clandestinamente nas zonas rurais.
Prefácio da Edição Americana (1982)

O Brasil apresenta no campo editorial, como em tudo


o mais, uma ampla gama de superlativos extremos. Poucos
países levaram tanto tempo para desenvolver uma indústria
editorial nacional. Mas poucos a desenvolveram tanto nos
últimos anos. E nenhum país do Terceiro Mundo possui hoje PRÓLOGO:
uma indústria editorial, em uma única língua, tão grande.À A NOVA ARTE, O NOVO MUNDO
amplitude da produção editorial brasileira é, também, enor-
me: desde o autor de poesia popular que imprime, apregoa e
vende seus próprios folhetos, até uma editora de livros didá- [...J o livro, facilmente e abundantemente
ticos para o ensino fundamental do tamanho da Ática, por reproduzido significava a possibilidade, desde
exemplo, com seu cadastro computadorizado no qual estão então irrefreável e infinita, do livre exame,
arrolados meio milhão de professores. do espírito científico e objetivo, da discussão
E tudo começou dois anos e meio após Trafalgar, quando inesgotável de todos os problemas, da vida
navios da armada de Nelson escoltaram a primeira tipogra- individual então possível para cada um.
fia oficial do Brasil pelo Atlântico até o Rio de Janeiro. O mundo moderno começava.

WILSON MARTINS, À Palavra Escrita

Fernando Pessoa, em seu poema “O Mar Salgado”, atribui


a salsugem do mar às lágrimas das mulheres e crianças por-
tuguesas que o oceano tornou viúvas e órfãs. O poeta che-
ga a justificar o sofrimento dessas criaturas: “Quem quer
passar além do Bojador/ tem que passar além da dor”. O
Bojador é uma ponta de terra, um cabo, ao sul de Marrocos,
no paralelo 26, um pouco abaixo das ilhas Canárias. Para o
navegador europeu da Idade Média, era a extremidade me-
ridional do mundo, o ponto além do qual ninguém ousava
aventurar-se. Tanto assim que, quando Gil Eanes (um dos
mais valentes capitães do príncipe Henrique, o Navegador)
teve a ousadia de rodeá-lo em 1434 e não caiu no abismo do
fim do mundo (como os menos entendidos temiam), nem foi
queimado vivo pelo calor do Equador (o risco colocado pela
teoria da Terra esférica), o navegador quebrou um verda-
deiro encantamento e deu início à Era dos Descobrimentos.
A exploração continuou lentamente a princípio, já que, ini-
cialmente, foi um esforço puramente científico, patrocinado
pelo Estado; no entanto, em 1444, 0 primeiro carregamento
de escravos negros provou que ela podia transformar-se num
comércio autossustentado. Passaram-se mais nove anos e a
queda de Constantinopla diante dos infiéis apressou a pro-
cura de uma nova rota para as Índias. E, quando essa busca
se consumou com a chegada de Vasco da Gama a Calecute,
34 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 35

em 17 de abril de 1498, uma nova porção de “Índias” fora parafuso de madeira por um de ferro. Setenta anos depois, o
revelada no Ocidente pelo desembarque de Cristóvão Co- holandês Willem Blaew substituiu a madeira por ferro em ou-
lombo na ilha Watling (ou seja lá onde tenha sido), em 12 de tros lugares mais suscetíveis de desgaste, criando o chamado
outubro de 1492, e havia iniciado a Era Moderna. “prelo holandês”. E, por volta de 1780, o impressor francês
Os anos finais do século xv constituem a transição do François Ambroise Didot mudou o projeto da alavanca, para
medieval para o moderno também em outras esferas. Na que se pudesse erguê-la e baixá-la com um único movimento,
política, o conceito medievo de monarquia ungida por Deus dobrando, desse modo, seu potencial de produção.
atingiu seu ponto final em 1477 com a fatal derrota, às por- A qualidade do papel melhorou com o aumento da de-
tas de Nancy, do duque Carlos, o Temerário — os ingleses o manda, substituindo cada vez mais o tradicional pergami-
chamam discretamente de “Charles the Bold”, mas realmen- nho; essa mudança, porém, foi o resultado do desenvolvi-
te o temperamento dele era mais de uma louca imprudência mento comercial à medida que a indústria se expandiu para
que de audácia. Dois anos após a derrota da flor da cavalaria o mercado dos menos abastados. De outro modo, a única
borgonhesa por um magote de camponeses suíços, Aragão área em que a impressão do século xv era tecnicamente in-
e Castela uniram-se sob a égide de dois personagens muito ferior à dos séculos que se seguiram foi no tipo de metal. Na
mais modernos e menos românticos: o frio e calculista rei era dos incunábulos, o tipo era uma liga simples de chumbo
Fernando e a comprometida ideologicamente rainha Isabel. e ferro. O chumbo é barato e funde facilmente, mas usado
Foi esse o primeiro Estado-nação moderno, logo completa- sozinho não tem força e, por contrair-se no momento da so-
do com a primeira burocracia estatal moderna, a primeira lidificação, não molda com perfeição: daí o emprego do fer-
força de polícia nacional moderna (a Santa Hermandad) e o ro. O século xvr acrescentou-lhe um pouco de antimônio. O
primeiro movimento moderno rumo à unidade ideológica, século xvrII preferiu o estanho ao ferro e, no meio do século,
linguística e racial nacional. acrescentou-lhe um pouco de cobre e também uma pequena
No entanto, assim como esse meio século de transição do quantidade de zinco. Num aspecto, o da tinta de impres-
medievo para os tempos modernos suscitou o descobrimen- são, houve até uma deterioração. A prática de Gutenberg
to, a conquista das Américas e o estabelecimento do Estado de acrescentar cobre e chumbo à mistura usual de azeite e
que patrocinou e explorou essa descoberta, foi exatamente negro-de-fumo foi abandonada, para poupar um pouco de
nessa época que surgiu a nova indústria europeia da impres- dinheiro nas despesas.
são a partir de tipos móveis, pronta a acompanhar essa con- A razão para essa quase perfeição da impressão no co-
quista, capaz de atuar tanto como instrumento essencial da meço não se precisa buscar muito longe. O propósito dos
europeização como de fonte de entretenimento e informa- primeiros impressores era imitar, poderíamos quase dizer
ção para os colonizadores. falsificar, os manuscritos. Não podiam colocar no mercado
Digo “indústria” (em vez de “invenção”) de propósito, suas primeiras tentativas imperfeitas, assim como um falsá-
pois o que surgiu foi a organização comercial da impressão, rio das notas de dólar do Federal Reserve não pode correr
e não a tecnologia. Do ponto de vista técnico, a metáfora im- o risco de testar suas primeiras contrafações imperfeitas. À
plícita na palavra com que se designavam os impressos nesse tipografia só poderia ganhar aceitação se e quando pudes-
período, incunabula, “roupas de nenê”, é bastante inadequa- se fornecer um produto indistinguível de um manuscrito
da. A nova arte, longe de surgir como um bebê indefeso em de boa qualidade. Daí, os longos anos de experimentação
seus cueiros, emergiu à luz do dia mais como Minerva, nasci- do pobre Gutenberg que, no final, o levaram à falência. Ele
da, totalmente vestida e armada, da cabeça de Júpiter. Entre simplesmente não ousou colocar sua ideia em prática antes
a década de 1450 e o início da Era Industrial, nos anos de de estar plenamente madura. O real estágio cueiro da im-
1790, foram introduzidos no prelo apenas três melhoramen- pressão decorreu na segurança e obscuridade de sua oficina.
tos pouco importantes. Por volta de 1550, um impressor de Se é que era realmente sua. A brasileira Ursula Katzenstein,
Nuremberg, Leonard Denner, acrescentou a frasqueta para em sua Origem do Livro (1986), propôs que o aristocrata
proteger o papel, no prelo, da tinta desgarrada e substituiu o Johannes Gensfleisch zum Gutenberg foi apenas o primeiro
36 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 37

capitalista da indústria, e o verdadeiro inventor teria sido nos descobrimentos feitos e cartografados nas três grandes
um hábil artesão judeu, Mair Jaffe, escondido do público, viagens chinesas de exploração de 1421-1423'.)
e da posteridade, por causa de sua religião. De fato, muitas Realmente, é bastante preciso o conceito que todos têm
mudanças ocorreram entre a Bíblia de 42 linhas e o final do de um incunábulo, a chamada Bíblia de 42 linhas de Guten-
século, mas todas foram feitas no âmbito da moda — estilos berg (ou Mazzarino), de cerca de 1455. O livro impresso
de tipo, disposição da página, design do livro — ou da comer- arquetípico do século xv é exatamente o fólio litúrgico em
cialização, e não da tecnologia em si. latim, grande, elaborado, bonito e caro, produzido clara-
De qualquer modo, os primeiros cinquenta anos da im- mente ad majorem Dei gloriam, ou, pelo menos, para venda
pressão na Europa ajustam-se claramente à ideia de um “in- às instituições eclesiásticas bem-dotadas ou a indivíduos ex-
terregno” entre a Idade Média e a Era Moderna, pois cons- tremamente ricos do clero. O Todo-poderoso não foi talvez
tituem uma época de transição em que a antiga tradição dos glorificado tão imediatamente pelas numerosas edições do
manuscritos cede claramente lugar a uma nova técnica que De Octo Partibus Orationis, de Elio Donato, que saiu em
possibilita atingir os mesmos objetivos com mais rapidez e a tão grande quantidade dos primeiros prelos e, muito menos,
custo mais baixo — que chegaria a criar a revolução nas co- aos olhos dos protestantes atuais, pela produção de formas
municações intelectuais tão bem descrita na obra de Elizabeth poupadoras de mão de obra para a burocracia da Igreja:
Eisenstein, Printing Revolution in Early Modern Europe -, a indulgência de Mogúncia de 1454 é a peça mais antiga
mas em que benefícios além desses ainda estavam por vir, que perdurou da imprensa europeia a trazer uma data de
A maioria das tecnologias novas passa por essa fase. Con- impressão. Mesmo as formas e as indulgências, porém, eram
siderem os primeiros vinte e cinco anos do automóvel, quan- dirigidas para o mesmo mercado: as formas obviamente, e
do ele pouco mais fez que substituir a carruagem do rico por os Donatos porque foram o livro elementar no qual todo
algo um pouco mais veloz. Somente com a chegada do Ford pretenso clérigo foi buscar os rudimentos essenciais de gra-
Modelo T é que a nova invenção começou realmente a reali- mática latina. Dado que Donato escreveu seu livrinho no
zar uma revolução social, ao fornecer à massa de americanos século 111, talvez devesse entrar no Guinness Book como o
um novo conceito de transporte pessoal e lhes dar uma nova livro escolar que mais perdurou em todos os tempos.
mobilidade — ou as décadas iniciais do poderoso computa- As necessidades da Santa Igreja, seja de bíblias, de livros
dor eletrônico antes da enorme expansão de seu impacto e de gramática, seja de impressos de indulgências, consti-
utilidade como máquina pessoal. Nos meados do século xv, tuíram na verdade um mercado em desenvolvimento, fato
o mercado do manuscrito tradicional achava-se em evidente confirmado pelo grande aumento da atividade dos scripto-
expansão, ou não teria havido incentivo para que um nobre ria contemporâneos, que na época desfrutavam, como diz
abastado como Gutenberg fizesse o enorme investimento de Eisenstein, sua última idade de ouro.
tempo e dinheiro necessários para colocara nova ideia em No entanto, com a possibilidade da tipografia de atender
fruição prática. Nem mesmo temos certeza de que fosse real- a esse mercado eclesiástico com sua produção em massa, este
mente nova essa ideia. Considerando o grande número de ia saturar-se dentro de curto período: mais ou menos desse
invenções importantes, desde o chucrute e o macarrão até o meio século até 1 500. Muitos dos impressores dessa primeira
papel e a pólvora, o guarda-chuva e o compasso magnético, data, por hábeis artesãos que fossem, não eram bons homens
que chegaram à Europa pela Rota da Seda a partir da China,
presume-se claramente que não se trata de uma invenção
1. Cf. Gavin Menzies, 1421: The Year China Discovered the World, Lon-
europeia totalmente independente. Seja como for, a impres-
dres, Bantam Press, 2002 (editado em 2008, em tradução portuguesa,
são em madeira já havia chegado ao Egito, vindo da China, pela Bertrand Brasil). Ao regressar à China após exitosa viagem na qual
no século x, durante a dinastia dos Fatímidas e é bem pos- explorou quase todo o mundo, desde a Groenlândia até Nova Zelân-
sível que os cruzados a tenham conhecido. (Quanto a isso, dia, a grande frota foi desmontada, seus arquivos queimaram-se e o Im-
temos agora grandes razões para acreditar que a expansão pério do Meio fechou-se totalmente ao resto do planeta, deixando-o
marítima da cristandade, nos séculos xv e xvr, baseou-se assim ser conquistado pelas nações bárbaras do Ocidente.
38 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo
|| Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 39

de negócio, com poucas ideias dessa essencial limitação de Em 1501, os únicos países da fé romana (ou, em termos de
seus esforços. Quando Mogúncia foi saqueada e queima- impressão, de alfabeto latino) que continuavam sem prelo
da em 1462, Conrad Sweynheim e seu sócio tcheco Arnold eram os reinos distantes e pobres do extremo norte, como
Pannartz fugiram para os Estados Papais, onde trabalharam a Escócia (um Estado pouco importante, cliente da Fran-
com dedicação verdadeiramente teutônica por seis anos, an- ça, que enviou para lá seu primeiro impressor em 1506),
tes de descobrirem a naiveté de sua presunção de que Roma a Irlanda (uma colônia conflituosa da Inglaterra, que lhe
tinha uma capacidade infinita de absorver sua produção, e forneceu seu primeiro impressor, junto com sua primeira
foram à falência com um estoque encalhado de não menos universidade, em 15571),a Noruega (um posto avançado do
que 12 475 volumes. domínio dinamarquês que ainda se recuperava da perda de
Muitos impressores tentaram evitar esse destino mu- população pela peste negra, e permaneceu sem a arte negra
dando-se, em intervalos frequentes, para novos centros. As até 1644), a Islândia e a Finlândia.
primeiras mudanças de impressores para a península Ibé- A rapidez da disseminação da impressão em todo canto
rica aconteceram em 1472. Pararam não só em importan- da Europa ocidental, antes do final do século xv, é indicati-
tes capitais de província, como Segóvia, Valência, Zarago- va também do entusiasmo inicial com que as autoridades,
ça, Barcelona, Salamanca, Tarragona e Guadalajara, como espirituais e temporais, receberam a nova invenção. Carlos
também em cidades pequenas como Hijar, Coria, Huete, vi da França chegou a enviar a Mogúncia, em 1470, seu
Montalbán e Sant Cugat. É digno de nota que muitos dos mestre gravador, Nicolas Jensen, com a missão específica
primeiros impressores da Espanha, e quase todos aqueles de aprender a nova arte. Os prelos e seus produtos foram
de Portugal, eram judeus e imprimiam livros religiosos para agraciados com privilégios alfandegários e isenções fiscais:
o consumo da sua própria comunidade. Para tanto, preci- uma lei napolitana de 1491 concedeu isenções até mesmo a
savam de equipamento para imprimir em hebraico, impli- obras em hebraico. Os praticantes da nova arte receberam
cando uma especialização quase total. Pode-se pensar numa pessoalmente licenças para atravessar livremente as frontei-
possível conexão com a teoria que aponta Mair Jaffe como ras políticas com os produtos de seu comércio. E somente em
o inventor do prelo. alguns locais houve tentativas esporádicas de limitar-lhes a
Muitos impressores chegaram a esses lugares estranhos liberdade no que diz respeito às obras que podiam imprimir.
(e a alguns não tão estranhos) porque receberam convites es- No entanto, a migração não foi uma solução duradoura
peciais do prelado, ou abade, ou príncipe, ou mesmo livreiro para o problema de saturação do mercado. A língua lati-
local, que, na maioria das vezes, conforme se provou, esta- na era a mesma em todo lugar, e a proporção entre o valor
vam interessados em imprimir um título favorito particular. dos livros e seu volume era bastante alta para absorver até
Assim, a impressão em português, feita em Lisboa, começou mesmo os custos de transporte do século xv. Valia mais a
quando a rainha Leonor pediu a seu primo, o sacro impe- pena ficar estabelecido num, centro comercial importante,
rador romano Maximiliano, que lhe mandasse seus dois como Nuremberg, Antuérpia, Lyon ou, sobretudo, Veneza,
impressores (Valentim da Morávia e Nicolau da Saxônia) e estabelecer um sistema de exportação, baixando os custos
para produzir a tradução de Bernardo de Alcobaça da Vita com grandes tiragens. Só podemos admirar a engenhosidade
Christi, de Ludolfo, o Saxão, obra do século x111. Ela queria desses impressores que, em vez disso, preferiram migrar para
um exemplar para presentear o marido, dom João 11, em seu os lugares mais obscuros, na esperança de subsistirem diante
leito de morte. Depois disso, o princípio familiar da imita- das necessidades de um mercado local diminuto já bastante
“o

ção, para não perder categoria, impeliu Fernando e Isabel suprido pelos impressores do exterior. John Lettou — presu-
a convocarem Estanislau, o Polonês, a mudar-se de Sevilha mivelmente, da Lituânia — que se instalou em Londres, em
para Alcalá de Henares (perto de Madri), a fim de imprimir 1480, com uma casa de impressão em latim, é um exemplo
para eles uma versão espanhola dessa mesma vida de Cristo. extremo desse otimismo deslocado.
Esses fatos ajudam a explicar a surpreendente rapidez No começo, Veneza tomou a dianteira, graças não só a seu
com que a impressão se disseminou na Europa Ocidental. domínio do comércio internacional, mas também porque era
40 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 41

a Itália o centro cultural e intelectual da civilização ociden- no alemão Thron e Thur e Thal com seu h inútil, no espa-
tal - assim como a França o seria no século xvrr, a Inglater- nhol obscuro com b e septiembre com p, no francês sçavoir,
ra no começo do x1x, a Alemanha nos anos imediatamente doigt e poids com seus €, g e d, no inglês s em island, b em
anteriores à Primeira Guerra Mundial e os Estados Unidos debt e g em night, cough, plough e laugh, ou em português
a partir de então. A arte moderna do momento, da pintura h em homem e sabir e c em tecto... Em todo caso, o estilo
e arquitetura à alta cozinha, era quase totalmente italiana. À bâátard mais cursivo, preferido para a escrita menos formal
literatura europeia era fortemente influenciada pelos italia- (e imitado no tipo construído para livros apropriados, como
nos, de Petrarca a Ariosto. As maneiras, a moda, a política, a maioria dos de William Caxton), mostrou uma clara pre-
os métodos de comércio, as ciências, a indústria, tudo obe- ferência à velocidade na escrita sobre a economia de espaço.
decia à liderança da Itália. Até mesmo William Shakespeare, Já no início do século xrv, a Itália começara a rejeitar os
da Inglaterra, criou cenários italianos para a metade de suas estilos estéticos, seja de arquitetura seja de escrita à mão, as-
peças, e a França e a Espanha digladiaram-se por dois séculos, sociados com o desprezado, temido e odiado Norte. Os his-
principalmente para decidir quem controlaria a riqueza e a toriadores costumam dizer que isso é um aspecto do renas-
indústria da Itália. E é ao talento italiano para o desenho que cimento de um amor pela Antiguidade clássica, mas eu me
devemos o desenvolvimento mais evidente no livro impresso pergunto se a motivação final não pode ter sido mais política
do período: a mudança na forma das próprias letras. e chauvinista do que intelectual e cultural: um despertar da
Gutenberg (ou Jaffe!), naturalmente, copiou o manus- consciência nacional italiana, que se fixava na Roma pagã
crito apropriado para os livros litúrgicos em que se espe- como o período de ascendência política italiana, no rancor
cializou. Na Europa setentrional, a letra era pesada, estreita diante da pretensão sexcentenária dos reis da Alemanha de
e caracteristicamente cheia de pontas, chamada de gótica, intervir na Itália como herdeiros santificados dos Césares.
isto é, bárbara, pelos humanistas italianos, juntamente com Na caligrafia, a resposta foi o retorno à norma estabelecida
a arquitetura que veio com ela. O modo de ser de uma época por Carlos Magno, na crença anacrônica de que a minúscula
manifesta-se em muitos aspectos da vida, e isso talvez nunca carolíngia era na verdade o estilo dos antigos romanos.
tenha sido tão evidente quanto na Eyropa do norte, no final À partir da década de 1460, na Itália, os estilos de tipo
do século xv. Os edifícios, os penteados femininos, as túnicas evoluíram aos poucos até alcançarem um perfeito “romano”
e sapatos masculinos, a caligrafia... tudo mostra o mesmo (nome pelo qual o estilo carolíngio tornou-se conhecido fora
apego à angularidade pontuda. Para cada caso podem-se da Alemanha) no tipo magnífico de Francesco Griffo para
encontrar explicações separadas. O arco gótico pontudo ti- a obra de Francesco Colonna, Hypnerotomachia Poliphili,
nha vantagens estruturais definidas. O toucado feminino em que Tebaldo Manuzio de Veneza publicou em 1499, sob o
forma de torre acentuava a testa, que se tornava artificial- seu nome comercial latinizado de Aldus Manutius.
mente alta se se raspasse o contorno da sobrancelha numa O gótico, ou black letter (letra preta) no dizer dos ingle-
época em que a exibição pública do próprio cabelo conti- ses, continuou a ser a fonte normal na Europa do norte e
nuava sob proibição paulina por ser demasiado provocativa na Ibéria durante o restante da era dos incunábulos. A ex-
sexualmente. As letras góticas adquiriram sua forma carac- pansão posterior do romano costuma-se atribuir à sua ale-
terística pelo uso de penas largas e pelo alegado desejo de gada maior legibilidade. Naturalmente, é mais legível para
economizar o caro pergaminho com a máxima compressão nós de hoje que passamos a vida inteira a ler poucas obras
horizontal. Todavia, parece mais satisfatório acreditar que que não são escritas com tais letras. Sem dúvida, porém, o
havia, na própria Weltanschauung da época, algum impul- fator decisivo foi a dominação cultural italiana na Europa
so psicológico peculiar a uma “pontiagudeza” invasiva. Seja e, sobretudo, a predominância italiana no comércio livreiro
como for, acredita-se falsamente na ideia de que as letras internacional no século xvI.
eram apertadas para economizar pergaminho devido à ten- Contudo, o gótico estava longe de ser um moribundo.
dência contemporânea de inserir letras supérfluas que surgiu Mesmo na Itália continuou por algum tempo a ser o prefe-
exatamente nessa época em tantas línguas ocidentais: como rido da lei e da Igreja, sempre os últimos refúgios dos hábitos
42 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 43

e atitudes passados. Na Inglaterra, perdurou no tipo mais po- orla do mundo civilizado (com uma economia dependente,
pular de impresso até o final do século xvrr (tanto mais pela que girava em torno de um único produto de exportação, a
dificuldade de ser lido!). E sobreviveu até os nossos dias nos lã), Caxton teve o senso comercial de avaliar que, embora
títulos de muitos jornais. À Espanha e a América espanhola nenhum impressor do país pudesse esperar competir com os
permaneceram fiéis ao gótico até perto do terceiro quartel do produtores continentais de livros eruditos em latim, o obs-
século xvt. A mudança para outros tipos ocorre no México curo vernáculo local do país (o inglês) oferecia uma singula-
em 1$54,em consequência da chegada de Antonio de Espino- ridade que se podia explorar para suprir um pequeno mer-
sa, um hábil gravador e fundidor de tipos, de mente moderna, cado local autossuficiente. O clero não precisava de livros
recrutado pelo impressor Juan Pablos (nascido na Itália). na língua do povo: o último dos Rezadores (Lollards*) tinha
Vez por outra, todos os impressores, mesmo aqueles que sido com certeza queimado na fogueira uma geração atrás.
trabalhavam na Europa central, tiveram de procurar novos Era preciso persuadir os leigos a começar a consumir livros.
mercados fora da Igreja, outros clientes além do clero, ou E podia-se muito bem pensar nisso graças a uma revo-
abandonar o negócio. Os advogados e os estudantes de di- lução contemporânea na disseminação da alfabetização dos
reito representaram sem dúvida nenhuma os novos clientes, leigos. Não está clara a razão desse acontecimento. À maioria
e logo começaram a ser atendidos. De fato, no começo do dos relatos sobre o fenômeno concentra-se na maneira como
século xvI, os livros jurídicos tinham-se transformado no a própria impressão serviu para acelerar uma tendência, e
virtual monopólio de empresas de Paris, Lyon, Pádua e (na- não no modo pelo qual essa tendência começou. Talvez isso
turalmente) Veneza, que imprimia para a Universidade de fosse apenas uma parte natural da lenta, mas constante eleva-
Salamanca, na Espanha. ção dos padrões da civilização ocidental, que vinha ocorren-
Tebaldo Manuzio, aliás, Aldus Manutius, como que cul- do mais ou menos desde as Cruzadas, quando a elite gover-
tivou o primeiro mercado de erudição leiga, transformando nante europeia tinha descoberto em seus adversários árabes
suas instalações naquilo que Martin Lowry (apud Eisenstein, uma aristocracia guerreira que não desdenhava as letras. Já
op. cit., p. 26) descreve como “uma mistura incrível de suweat em 1300, dizem que um desconhecimento total da leitura e
shop [= oficina de suor, com salários de fome], casa de hós- da escrita era uma exceção entre os nobres da Europa Oci-
pedes e instituto de pesquisa”. Aproveitou-se das necessida- dental. Pode ser, como comer com garfo e faca, que a moda
des de estudiosos de humanidades relativamente pobres (e tenha vindo de Bizâncio, tenha-se espalhado para o Ociden-
de seu crescente interesse pela Antiguidade greco-romana), te, talvez como tantas noções do que se tornou um cortesão
para imprimir sua série, especialmente compacta, dos Clás- ou cavalheiro, passando pela Itália da Renascença. Pode até
sicos Aldinos, para os quais Griffo, seu gravador de tipos, ter começado, não no topo da hierarquia social, mas no meio
desenhou, em 1 sor, o cursivo comprimido conhecido por da classe comerciante, que a adotou, junto com a contabili-
seu nome, e em alguns lugares chamado de “itálico”. dade em partidas dobradas, como parte de uma crescente so-
A salvação da nova indústria iria depender, porém, de en- fisticação dos métodos comerciais. À primeira coletânea ex-
contrar pessoas que não tivessem o hábito de comprar livros tensiva de correspondência privada em inglês, a dos Pastons
e persuadi-las a começar a fazê-lo, oferecendo-lhes um pro- de Norfolk, vem de uma família de classe média exatamente
duto totalmente diferente tanto em aparência como em con- dessa época. E foi um proeminente homem de negócios, o
teúdo. Henry Ford, como já dissemos, fez isso com relação ao lorde prefeito sir Richard Whitttington, que deu à cidade de
automóvel. Num contexto do mercado livreiro, Allen Lane Londres sua primeira biblioteca pública na década de 1440.
fez o mesmo, na década de 1930, para o mercado de livros É nessa época também que encontramos as primeiras
comuns, com suas brochuras originais Penguin, os livros de obras de escrita criativa de autores da classe dos cavaleiros,
bolso pioneiros.
Um dos primeiros a satisfazer essa necessidade, ou, me- 2. Um grupo de reformadores políticos e religiosos dos séculos xIV e
lhor, em suas palavras, oportunidade, foi um inglês, William xv na Inglaterra, seguidores de John Wycliffe, cujas doutrinas anteci-
Caxton. Originário de um pequeno país subdesenvolvido à param muitos pontos da posterior Reforma Protestante.
44 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 45

mesmo que as próprias obras se refiram, muitas vezes, ao centros dominarem o mercado. Na Inglaterra, não se fazia
desdém (fingido?) que essa classe continuava a sentir pelo impressão fora da área de Londres, com exceção dos prelos
conhecimento livresco: Tirant lo Blanc, de Joan Martorell, especiais das duas universidades do país, até que a unidade
Le Morte d'Arthur, de Mallory, e todos os outros romances nacional se esboroou em 1642 com a irrupção da Guerra
de cavalaria que tanto encantaram Cervantes e inspiraram Civil. Esse domínio, por sua vez, ajudou a disseminar a for-
Dom Quixote e todo o século xvr ibérico. ma de vernáculo adotada pelo centro. No Reino Unido, na
Caxton destaca-se no período dos incunábulos, porque, década de 1650, mesmo os prelos de Edimburgo, no norte
em vez de ser um impressor obrigado a procurar novos da fronteira escocesa, imprimiam na variedade de inglês dos
mercados apenas para sobreviver, era um astuto homem Home Counties (região de Londres). Na impressão alemã,
de negócios, que viu um possível nicho de mercado para a a preponderância das maiores cidades da Alemanha central
obra impressa e apressou-se a explorá-lo. Sua surpreendente (Nuremberg, Augsburgo, Leipzig) eliminou de fato, como
carreira no comércio de lã fora coroada por um alto pos- línguas literárias, tanto o baixo-alemão (platt Deutsch)
to diplomático junto à corte ducal borgonhesa de Bruges, como o alto (alemão suíço). Em Valência, a proporção de
onde passou a representar seus companheiros do comércio livros impressos em catalão caiu de 56% da produção total,
de lã, e que lhe abriu caminho para as mais altas camadas da na década de 1490, para 9% nos anos de Isso. É digno
sociedade laica, De fato, tornou-se secretário particular de de nota que, mesmo depois de ter perdido a independência
Margarida de York, viúva inglesa do duque Carlos, o Teme- nacional entre 1580 € 1640, o senso de identidade nacional
rário, e bisavó do imperador Carlos v. Ela encorajou o inte- de Portugal foi tão forte que impediu a predominância do
resse de Caxton pela tradução da literatura laica popular na castelhano sobre o português como língua de impressão (e,
época para o inglês, ajudando-o assim a perceber o quanto no final, do Estado e da cultura).
Isso interessava às pessoas de sua classe social, pessoas que, Na França, o primeiro centro importante do comércio
naturalmente, tinham boas condições de se tornarem os con- livreiro não foi Paris, apesar de sua clientela eclesiástica e
sumidores potenciais do produto livro. universitária, mas Lyon, com sua feira internacional e sua
Ao voltar de Colônia, onde fora aprender o novo negó- esplêndida localização comercial na confluência do Ródano
cio, Caxton abriu uma loja na Inglaterra, não entre seus co- e do Saône, no coração de todas as artérias comerciais do
legas comerciantes no centro comercial de Londres, mas em mundo francófono, entre o Mediterrâneo, a Íle-de-France,
Westminster, o subúrbio ocidental da moda, onde estavam a Borgonha e a Suíça ocidental. As possibilidades que isso
sendo instalados a corte, o governo e o Parlamento: a aristo- oferecia para a distribuição a um amplo mercado leigo ti-
cracia a quem pretendia fornecer seus produtos. No entan- nham atraído, no final do século xv, não menos de cento e
to, mesmo a demanda dessa gente não foi infinita e, depois cinquenta impressores, a maioria deles alemães. Sua prin-
que Caxton se aposentou, seu sucessor, Wynkyn de Worde, cipal produção era constituída de romances de cavalaria
precisou persuadir os menos afluentes a imitar as pessoas em francês (no bom francês de Paris!), frequentemente as
de classe. mesmas obras que Caxton estava imprimindo em inglês: Os
Imprimir livros para os leigos no vernáculo foi mais cedo Quatro Filhos de Aymon e A Canção de Rolando (do ciclo
ou mais tarde tentado em outros lugares, embora em ritmos carolíngio), a vida de Guilherme, o Conquistador, e do seu
diferentes. À Itália e a França logo seguiram a Inglaterra; a preguiçoso filho mais velho, Roberto do Diabo, e contos da
Espanha não ficou para trás. Ainda em 1680, porém, a Ale- antiga Grécia sobre o cerco de Troia ou da viagem de Jasão
manha continuava a publicar a metade de seus livros em la- e dos argonautas.
tim, e países como a Polônia e a Hungria mostraram-se mais Analogamente, a impressão em espanhol foi dominada
lentos em acompanhar a nova moda. À consequência natu- por Sevilha, na época, a maior cidade da península Ibérica
ral da publicação em vernáculo foi a criação de mercados e a entrada para as Índias. Em 1491, os reis católicos Fer-
nacionais distintos e das indústrias especializadas que isso nando e Isabel haviam convidado, a virem de Nápoles, um
implicava. Todavia, persistiu a mesma tendência de alguns certo Meinard Ungut e seu sócio polonês Stanislav. Quando
Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 47
Ungut morreu e Stanislav foi seduzido a partir para Alcalá rentes analfabetos. É difícil, porém, dizer com precisão quan-
de Henares, o negócio deles passou para as mãos de Jakob do essa mudança ocorreu. O formato de panfleto (cerca de
Cromberger, aparentemente um antigo operário que se casa- 15,25 X 11,5 Cm), que se tornou característico do “roman-
ra com a viúva do chefe. Entre r503 e 1526, quando Jakob ce” popular, foi usado na edição da versão alemã de r sos
entregou as coisas a seu filho Johann (ou Juan), ele chefiava do relato de Américo Vespúcio, a Lorenzo 11 Médici, de sua
o prelo mais ocupado da Espanha, produzindo cerca de um viagem de rsor ao Brasil. Isso não prova, porém, que fosse
livro por mês, ou um terço da produção total da Espanha distribuído como tal: a demanda de notícias tão excitantes
no período. Algumas dessas edições eram obras sérias: ele como essa numa era destituída de jornais deve ter sido enor-
obteve o monopólio de imprimir para a diocese local, publi- me entre os abastados para que algum impressor tenha sido
cou uma edição do Dicionário Latim-Espanhol de Nebrija, obrigado a deixar de imprimi-la para a distribuição barata
traduções de Erasmo e Marco Polo, reimpressões dos melho- pelos ambulantes rurais - um pouco mais do que as seme-
res autores literários da época (poetas como o Marquês de lhanças físicas entre o Wall Street Journal atual e o National
Santillana e Juan de Mena) e livros escolares. No entanto, o Enquirer pressupõem identidade de método de distribuição
esteio financeiro de seu negócio eram os romances de cavala- ou de público leitor. Infelizmente, parece que não dispomos
ria. O famoso Amadis de Gaula apareceu em Salamanca em de registros do que os ambulantes setecentistas realmente
1508, mas Cromberger publicou a continuação, Sergas de incluíam entre suas mercadorias. O folheto de feira, como o
Esplandián, em 1510 e, daí em diante, tornou-se o principal livro de bolso moderno, é mais um conceito de marketing do
editor do gênero. que uma forma física particular: o chapbooR inglês, o livre
Para atender a esse novo tipo de freguês leigo, foi preciso, de colportage francês, a literatura de cordel espanhola e o
falando em termos genéricos, produzir obras menores, me- livro do cego e o folheto de feira portugueses, todos esses ter-
nos elaboradas (novamente o evidente paralelo com Henry mos derivam dos métodos de distribuição. Todavia, por vol-
Ford), de modo que o período dos incunábulos é testemu- ta de T5s0, com as fulminações dos legisladores, ficou claro
nho da sucessiva introdução de formatos menores. O pri- que, nos meios de comunicação, tanto as notícias como o
meiro in-quarto impresso aconteceu em 1462, o primeiro entretenimento estavam começando a alcançar um público
in-oitavo, em 1470, O primeiro in-16, em 1474. Tanto na sua amplo. Muitos chapbooks de entretenimento eram versões
fidelidade ao gótico como também no formato, a Espanha para os pobres de contos criados originalmente para os no-
mostra seu conservadorismo. Manteve o in-quarto, e mesmo táveis. Da coletânea árabe Mil e Uma Noites vieram as histó-
o in-fólio, para seus romances de cavalaria durante a maior rias da princesa Magalona (publicada primeiro numa versão
parte do século xvr, muito tempo depois que a maioria dos para os ricos em Toledo, em 1498) e da donzela Teodora,
outros países tinha mudado para o in-oitavo para imprimir “tão astuta quanto era bela” (impressa primeiro em Sevilha
essas obras de entretenimento popular. em 1519). A História de Carlos Magno e dos Doze Pares de
Um outro mercado foi o de publicações panfletárias ba- França ofereceu outros favoritos perenes. Já em 1600, existem
ratas para as massas, sucedâneos em letra de imprensa dos provas de que a Magalona estava sendo exportada em quanti-
livros em tipos de madeira que lhes vinham sendo forneci- dade para as Índias espanholas, e foi um dos primeiros títulos
dos desde o início do século xv. As xilogravuras de santos a ser impressos no Rio de Janeiro, quando a prensa tipográfi-
haviam gerado os simples opúsculos de ilustrações com le- ca foi finalmente instalada nessa cidade, em caráter definitivo,
gendas mínimas, as chamadas biblia pauperum. O fato de em 1808. Na década de r9so, os velhos títulos tradicionais
seus sucessores em letra de imprensa serem quase tudo texto, continuavam a ser impressos em pequenos prelos escondidos
às vezes apenas com uma ilustração na capa, constitui um em bairros miseráveis, para venda nas feiras regionais das pe-
amplo testemunho de quanto, no século xvi, a alfabetização quenas cidades do Nordeste brasileiro.
básica se tinha estendido às camadas baixas da escala social, Nada talvez revele mais que a indústria tipográfica ti-
mesmo que essa literatura fosse destinada a ser lida em voz nha alcançado a idade adulta do que a introdução da cen-
alta pelo comprador para um grande círculo de amigos e pa- sura sistemática. Exatamente em IT sor, o primeiro ano do
48 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 49
novo século, as autoridades despertaram para o perigo desse as revolucionárias cortes luso-brasileiras de 1821 aboliram
novo meio mecânico de reprodução de textos, que estava os dois tipos de censura, houve muito mais vontade em eli-
deixando de restringir-se ao fornecimento inócuo de bíblias minar a censura política do que a religiosa, como narramos
e livros de gramática em latim. O papa Alexandre vi, da fa- no $18, capítulo 2.
mília Bórgia, recomendou a todos os príncipes cristãos que Era esse o comércio de livros na Europa quando Espanha
garantissem a ortodoxia religiosa de tudo que estava sen- e Portugal fizeram os primeiros contatos com a África sub-
do publicado em seus domínios. Castela obedeceu imedia- saariana, com a Ásia do sul e do leste e com as Américas. No
tamente. Outros governos mostraram um entusiasmo um começo, houve quase uma corrida para despachar livros e
pouco menor: Portugal foi um dos mais lentos de todos. À mesmo o próprio prelo. Enquanto isso, os espanhóis haviam
rápida difusão da heresia luterana e outras, porém, em gran- instalado prelos na Cidade do México na década de 1530,
de parte através do poder descoberto da muito bem chama- em Lima em 1583 e em Manila em 1593.
da Arte Negra, tinha realmente assustado todos os detento- Em todos esses casos, a iniciativa foi religiosa, e não
res de autoridade na década de 1540, fossem católicos ou comercial. Passariam longos anos antes que as populações
protestantes. Para aqueles principados da cristandade que europeias e europeizadas das novas colônias houvessem
permaneciam obedientes a Roma, logo o Vaticano ofereceu aumentado o suficiente para criar mercados urbanos que
o Index Librorum Prohibitorum oficial, para ajudá-los e pudessem sustentar a edição local como proposta de ne-
orientar seus esforços. No que diz respeito à Espanha e a seu gócio. Como afirmou o crítico marxista brasileiro, Nelson
império, existem dois pontos de vista com relação à censu- Werneck Sodré, a imprensa foi introduzida nas possessões
ra, dependentes da aceitação da “lenda negra” do malévolo ultramarinas da Europa somente onde havia uma cultura
desgoverno espanhol, ou de sua rejeição ou contestação. Ir- nativa desenvolvida que o poder colonial quisesse aculturar
ving Leonard insiste, em seus Books of the Brave (dos quais e suplantar. Isso exigiu um colégio para formar e doutrinar a
falaremos logo mais), que ele era relativamente benigno e, elite local ou seus filhos, e livros, tanto aqueles para ensinar
de qualquer modo, geralmente ineficiente. Há, por exem- aos prosélitos os costumes e línguas locais como aqueles nas
plo, a bastante citada proibição de meados do século xvI línguas locais que os alunos nativos pudessem usar nas esco-
de exportar para as Índias obras frívolas “como son las de las. Esses livros, em vez de serem encomendados na Europa
Amadis”. Leonard afirma que se tratava de uma preocupa- e embarcados, seriam produzidos com mais rapidez e con-
ção paternalista com o bem-estar dos índios, considerados veniência no local onde estava sendo ministrado o ensino e
inocentes demais para conseguirem distinguir entre a ficção eram faladas as novas línguas. Onde os povos indígenas não
e a realidade do relato; ele acredita que a proibição nun- desenvolveram um alto grau de civilização (como os índios
ca deveria ser aplicada à leitura do homem branco, e, seja da Idade da Pedra no Brasil), a aculturação não precisou de
como for, nunca foi posta em prática. Minha opinião é que, tanta sofisticação, e esperava-se que os missionários fizessem
no que se refere à matéria religiosa, os espanhóis eram tão melhor com os ensinamentos orais. Usavam a língua escrita
naturalmente conformistas que, pelo menos após o Concílio para si mesmos: a Doutrina Cristã na Lingoa Brasilica, um
de Trento, não tinham grande desejo de ler obras heréticas, e catecismo em tupi do século xvi1, foi o primeiro manuscri-
houve uma boa dose de censura automática, quase conscien- to latino-americano a ser exposto numa biblioteca inglesa
te, entre os escritores, do mesmo modo que a maioria dos (a Bibliotheca Bodleiana da Universidade de Oxford), em
primeiros romancistas vitorianos na Inglaterra exerceram 1610. Não havia, porém, necessidade de recursos para pro-
uma autocensura semelhante em matéria de sexo. Em apoio duzir esses escritos em centenas de cópias.
disso, podemos indicar que, às vésperas da independência Quando os espanhóis chegaram ao Novo Mundo, a ci-
da América espanhola, quando as liberais cortes de Cádiz vilização mais avançada que encontraram foi a dos astecas.
(que representavam tanto a pátria mãe como os colonos) Eram alfabetizados e tinham uma história e uma literatura
aboliram a censura política, mantiveram intacta a censura registradas em seus próprios códices nahuátl. Tenochtitlán
religiosa. E quando, às vésperas da Independência do Brasil, era uma gigantesca metrópole, cujo tamanho e arquitetura
so Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo $1

surpreenderam os conquistadores. Com 250 mil habitantes, melhor que o livro fosse composto e impresso no México,
era um pouco mais populosa do que a Paris da época. As onde se falava essa língua. Assim, conseguiu da coroa um
doenças europeias e a exploração espanhola dizimaram os monopólio para sua empresa e, então, enviou para lá um
indígenas, e hoje o local é ocupado por Cidade do Méxi- assistente, Giovanni Paolo de Brescia. Juan Pablos, como
co. Tenochtitlán começou a encolher de forma drástica. To- é conhecido em espanhol, imprimiu para os Crombergers
davia, mesmo em seu nadir, na década de 1750, um pouco de 1539 até 1547, quando se tornou seu próprio mestre.
antes de ter início a recuperação demográfica, continuava Sabe-se que Pablos imprimiu uns 37 títulos. Um pouco antes
abrigando perto de cem mil habitantes, numa época em que de falecer, em 1561, passou o negócio para seu cunhado, o
Lima contava cinquenta mil, Filadélfia dezoito mil e Nova francês Pierre Charte (hispanizado para Pedro Ocharte). A
York e Boston cerca de dezesseis mil cada uma. fundação da Universidade do México, em 1551, criou uma
Cortez tomou a cidade em 1521. Depois de apenas doze demanda de livros de texto de medicina e ciências, e, a partir
anos, vamos encontrar seu novo bispo, Juan de Zumárra- de 1559, a Cidade do México tinha dois prelos, quando o
ga, sugerindo ao imperador Carlos v que seria muito útil fundidor de tipos de Pablo, Antonio de Espinosa, recebeu
e conveniente para o México ter um prelo e uma fábrica permissão de imprimir por conta própria.
de papel e os trabalhadores necessários. Evidentemente, ele Por volta de 1569, um piemontês, Antonio Ricciardi (aliás
conseguiu seu impressor, mas não a fábrica, porque em maio Antonio Ricardo), chegou ao México para trabalhar com
de 1538 ele escrevia queixando-se de que “poco se adelanta Ocharte, mais ou menos na mesma época em que chegava
en lo de la imprenta por carestía de papel, que esto dificulta de Salamanca outro italiano, Pedro Balli, originariamente um
muchas obras que acá están aparejadas” (não adianta muito vendedor de livros. Quatro prelos e uma loja de livros mos-
que tenhamos a tipografia por causa do alto preço do papel, tram, em 1570, quanto a Cidade do México era incomum em
que está dificultando a impressão de muitas obras que já es- comparação com o restante das Américas. Em 1600, havia na
tão prontas para o prelo). José Toribio Medina, um chileno cidade oito casas de impressão, que produziram 204 títulos
do século x1x que continua sendo o maior dos bibliógrafos conhecidos. Até já dentro do século xvrlr, a maior parte do
hispano-americanos, estava convencido de que o impressor hemisfério não tinha desenvolvido um público laico leitor o
foi um tal de Estebán Marin, e que ele imprimiu a Escala Es- suficiente para manter uma loja de livros, e muito menos um
piritual de São João Clímaco, em 1533,e a Doctrina de Tu- negócio de impressão que não fosse o eclesiástico. O Rio de
ríbio de Motolina e o catecismo mexicano de Juan de Ribas, Janeiro só veio a ter sua segunda livraria em 1790.
ambos em 1537. A primeira loja de livros no Chile foi aberta em 1840, e
Essa opinião é contestada por falta de provas: nenhum na Costa Rica, por exemplo, até 1885 não havia uma úni-
desses livros sobreviveu, mas isso não é de surpreender. A ca livraria. No entanto, esse número de oficinas de impres-
maioria dos livros latino-americanos da época colonial fo- são provavelmente era excessivo para a Cidade do México,
ram impressos para uso, e não para a posteridade. De qual- especialmente quando uma ordem real do final do ano de
quer modo, porém, o bom bispo não ficou satisfeito, pois 1573 proibiu a impressão de breviários e livros de orações,
vamos encontrá-lo tentando junto a Juan Cromberger que o que passou a ser monopólio dos monges do Escorial. Por
imprimisse para ele em Sevilha um catecismo em nahuátl. causa disso, ou por convite de seu principal cliente, a Com-
Certamente, os Crombergers estavam interessados no Novo panhia de Jesus, Ricardo decidiu, em 1581, mudar-se mais
Mundo. Jakob, o pai, já havia começado a exportar para a para o sul, para Lima. Nessa cidade, ficava a segunda corte
região. Em 1512, missionários franciscanos lhe haviam feito vice-real, a partir da qual a Espanha administrava as terras
uma encomenda de duas mil “cartillas de ensefiar a leer”. de outra grande civilização do Novo Mundo, a dos incas.
Esteve envolvido em outros negócios, também, pois investiu O quíchua não era escrito, mas as mensagens necessárias
nas viagens de Sebastián Cabot e em plantações em Hispa- para governar o império dos incas, um território de três mil
niola e Yucatán, embora fosse um proprietário absenteísta. quilômetros, eram transmitidas por um elaborado sistema
Juan concordou em fazer a impressão, mas decidiu que seria de nós mnemônicos numa corda, os quipos, enquanto seu
52 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 53

minucioso registro histórico residia nas memórias dos bar- empregava pelo menos cinco ajudantes e havia importado
dos muito bem treinados e estimados. Em 1551, foi fundada um grande carregamento de tipos da Holanda, o primeiro
por decreto uma instituição destinada a aculturar os filhos país a fundir tipos no período.
da elite quíchua, a Universidad de San Marcos; no mesmo Em 1660, um novo bispo da Guatemala, muito ativo,
documento, foi instituída a Universidade do México. O Payo Enríquez de Rivera, que depois foi arcebispo do Mé-
primeiro livro impresso por Ricardo no Peru, a Doctrina xico, trouxe um impressor e um prelo da Cidade do Méxi-
Christiana y Catecismo para Instrucción de los Indios, veio co para sua sé de Antígua Guatemala (a velha Cidade de
à luz em 1584, após ter sido obrigado a interromper sua Guatemala, hoje conhecida por Antígua, que foi a capital da
impressão já no prelo, para editar às pressas o Pragmático América Central até o terremoto de 1773).
sobre los Diez Días del Afio, que devia informar ao público Mais um lugar obteve um prelo inspirado pelos eclesiás-
a mudança para o calendário gregoriano. Isso tinha sido de- ticos no finalzinho do século xvrr, em 1700, o último ano
cretado pela Audiência de Lima somente em 14 de julho de do século. Foi o caso singular do Paraguai, cujas reduções
1584, oito meses depois que a Igreja católica havia decidido dos jesuítas transformaram-no, para todos os efeitos práti-
adotar o novo calendário (em s de outubro de 1583, que cos, numa soberania teocrática separada, uma economia e
passou a ser, portanto, 15 de outubro). governo quase autossuficientes administrados diretamente
Lima era muito menor, menos importante e menos rica do pela Companhia de Jesus. Formada de trinta vilas indígenas
que a Cidade do México. No final do século xvr, tinha uma cuidadosamente planejadas, com escolas frequentadas por
população de apenas dez mil pessoas, e mesmo duzentos anos todas as crianças, o Paraguai não teve seu prelo antes porque
mais tarde, na época da Independência, não apresentava mais os padres, embora viessem procurando um impressor desde
de 64 mil habitantes, contra os r5o mil da Cidade do México. 1633 (cf. $5, capítulo 1), não conseguiram encontrar um
Em termos de impressão, toda a produção de Lima na época capaz que quisesse enterrar-se na selva, Onde o prelo foi ins-
colonial (como informa Medina) chegou a 3 948 títulos, con- talado assim que chegou não se sabe com precisão; é quase
tra Os 12412 que ele conseguiu atribuir à Cidade do México. certo que se mudou de uma missão jesuíta para outra. Todos
A parte meridional do Império Inca não falava o quí- esses locais, porém, ficavam provavelmente no território que
chua, e sim o aimará; e, em r6ro, os jesuítas instalaram um mais tarde foi incorporado à Argentina ou ao Brasil, um fato
prelo temporário em seu posto missionário de Juli, na mar- que deve mortificar qualquer bibliógrafo paraguaio patrio-
gem oriental do lago Titicaca. Funcionou por apenas dois ta, do mesmo modo que o local do prelo de Juli deve fazê-lo
anos, imprimindo livros em aimará, que foram usados na a um boliviano.
catequização dos indígenas. Juli estava localizada dentro da Os jesuítas também foram responsáveis pelos primeiros
arquidiocese de La Paz, e isso o teria transformado no pri- prelos instalados em Nova Granada (atual Colômbia) —- em
meiro prelo na região que veio a ser mais tarde a República Bogotá, em 1738 -, no Chile — em Santiago, em 1748- e no
da Bolívia, se a fronteira com o Peru tivesse sido traçada Río de la Plata (atual Argentina) - em Córdoba em 1758,
mais para o oeste, a apenas vinte quilômetros da região. embora o padre Paul Karrer, que iria operar o prelo de Cór-
A segunda cidade do México colonial, Puebla de los doba, não tenha chegado antes de 1764. Todas estas cidades
Ángeles, adquiriu um prelo um pouco antes da metade do tinham uma universidade, e o primeiro prelo de Cuba tam-
século xvrt. O primeiro impresso de Puebla de que temos co- bém esteve associado com a nova universidade fundada na
nhecimento preciso é um voto de boas-vindas ao vice-rei em região, mas, nesse caso, o primeiro impressor (cujo primeiro
sua visita à cidade em 1640: Arco Triunfal: Emblemas, Ge- impresso conhecido é de 1723) chegou, na verdade, antes da
roglificos y Poesías con que la Ciudad de la Puebla Recibió al universidade, que foi aberta em Havana em 1728,
Virrey... Não sabemos quem foi seu impressor, mas supomos No Império português, os jesuítas dominaram a educa-
que tenha vindo da. Cidade do México. Em 1690, porém, ção até mais do que fizeram nos domínios da Espanha. E a
um Diego Fernández de León (que tinha chegado a Puebla Companhia de Jesus controlou toda a impressão colonial.
em 1683) possuía uma oficina de impressão na cidade, que Por conseguinte, a impressão no ultramar tornou-se uma
s4 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 55

das primeiras vítimas da luta do Marquês de Pombal contra prelo permanente antes de 1808. Isso foi possível, até cer-
a Companhia, que era considerada o suporte mais podero- to ponto, porque o governo era tão elementar e o ritmo da
so e entrincheirado da velha ordem e, portanto, o principal administração tão lento que qualquer matéria podia ser en-
obstáculo às suas próprias políticas “ilustradas” e secula- viada à metrópole para ser impressa. Assim, em meados do
rizadoras de modernização. Em 1754, Pombal baniu toda século xviIr, a firma de Riesgo y Montero, de San Sebastián,
impressão colonial, mas, como o Brasil ainda não tinha pre- na costa biscainha espanhola, era o impressor oficial do go-
lo, essa proibição afetava diretamente apenas as possessões verno colonial da Venezuela, como podemos ver por uma
orientais de Portugal. Suas ideias foram difundidas entre os carta do governador em que expressa alívio pela chegada
pensadores progressistas: a Flauta Mágica, de Mozart, por de uma encomenda de novos formulários oficiais. Portugal
exemplo, é um ataque quase contemporâneo ao obscuran- mostrou muita paranoia com o risco de seus funcionários
tismo dos jesuítas. Assim, após ter expulsado a Companhia, locais adquirirem algum grau de independência, e, quando
em 1759, de todos os territórios portugueses, Pombal logrou o governador de Pernambuco, em 1703, e o governador do
convencer as outras potências católicas, e no fim o próprio Rio de Janeiro, em 1747, ousaram instalar um prelo, os dois
Vaticano, a fazer o mesmo. À cobiça gerada pela prosperida- receberam ordens de fechá-los assim que Lisboa tomou co-
de econômica do Paraguai jesuítico facilitou essa tarefa, e, nhecimento de sua existência (cf. $$8 e ro, capítulo 1).
em 1767, os jesuítas foram expulsos rapidamente de toda a No entanto, sobretudo nas colônias orientadas para a
América espanhola. plantation (grande fazenda escravista), eram muitas vezes os
Esse foi um duro golpe nas atitudes religiosas tradicio- próprios funcionários que viam a prensa tipográfica como
nais, especialmente porque aconteceu no momento exato uma ameaça. Sendo sociedades escravistas e, frequentemen-
em que a fé tradicional num todo-poderoso benevolente te, também colônias penais, a primeira preocupação sem-
continuava sofrendo com as consequências do terremoto de pre foi a segurança, Enquanto, na Nova Inglaterra, cheia de
Lisboa, em 1755 (atingiu grau 9,0 na escala Richter, o pior veleidades ideológicas, um prelo funcionava após dez anos
que jamais irrompeu numa cidade habitada), e data desse da chegada dos puritanos ingleses, é sempre citada a obser-
período o interesse dos criollos nas teorias políticas estran- vação de sir William Berkeley, governador da Virgínia (epí-
geiras que levaria no final à independência americana. Em grafe do capítulo 1), agradecendo a Deus a ausência na sua
seu impacto imediato, a expulsão dos jesuítas constituiu um colônia de escolas livres que promovessem o pensamento in-
golpe ainda mais duro na educação. A Universidad de San dependente, e a falta de impressão, que o difundisse. Pergun-
Felipe, no Chile, não era uma instituição jesuíta, e pôde dar tamo-nos se Sua Excelência não ecoava, conscientemente, O
seguimento às suas atividades, assumindo o prelo local da líder rebelde reacionário de Shakespeare, Jack Cade, em seu
Companhia para fazer suas próprias impressões. No Río de vitupério do infeliz Lorde Say:
la Plata, a Universidad de Córdoba foi cedida aos francisca-
nos, mas em Bogotá a Universidad Javeriana (assim chama- Tu, miserável, corrompeste da maneira mais traidora a juven-
da, naturalmente, em honra do grande apóstolo jesuíta, São tude do reino ao erigir uma escola de gramática: e, enquanto, antes,
Francisco Xavier) teve de fechar; o vice-rei quis assumi-la, nossos pais não tinham outros livros senão a partitura e o livro
mas não pôde conseguir os recursos para fazê-la funcionar. de contas, suscitaste o uso da impressão e, contrariando o rei, sua
No entanto, ele assumiu o prelo, e a prensa de Córdoba aca- coroa e dignidade, construíste uma fábrica de papel...
bou nas mãos do governo, em Buenos Aires. Essas duas ci-
dades haviam-se tornado, recentemente, capitais de novos Narramos no capítulo 1 como, doze anos depois da ora-
vice-reinos: Bogotá em 1739, Buenos Aires em 1776. Para ção de Berkeley, quando William Nuthead chegou à colô-
nós da atualidade, que dispomos de uma fotocopiadora em nia, tentando ser o seu primeiro impressor, as autoridades
todo escritório, é difícil imaginar como se podia governar tiveram de deportá-lo, e como, quarenta anos depois, em
sem qualquer meio de copiar um documento. No caso do 1723, O mesmo aconteceu com o primeiro impressor que
Brasil, mesmo a capital do vice-reino não contou com um chegou a Saint Domingue (atual Haiti), embora tivesse uma
56 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 57

licença do escritório colonial francês para exercer sua pro- Durante todo esse tempo, enquanto os prelos missioná-
fissão em qualquer lugar das Ilhas de Sotavento francesas. rios estavam produzindo grandes quantidades de catecismos
Pior ainda foi o caso de Barbados, onde, em 1826, a Comis- e guias nas línguas indígenas locais, e livros de texto para as
são Parlamentar Britânica da Administração de Justiça nas poucas universidades e colégios (administrados pela Igreja)
Índias Ocidentais achou que, embora houvesse um impres- e mesmo depois que o governo tinha começado a usar o pre-
sor comercial na ilha desde 1730, 0 governo não o utilizou, lo para suas próprias necessidades, o leitor leigo nas Amé-
recusando a imprimir até mesmo as Atas da Assembleia da ricas continuava quase totalmente dependente dos livros
colônia. É muito mais simples e mais fácil ministrar a lei se importados, e do mesmo modo o autor do Novo Mundo
apenas as autoridades souberem o que é! tinha de ser editado na Europa. Os motivos foram os mes-
Explica-se também no $6, capítulo 1, que o governo dos mos que mantiveram a economia em geral na dependência
holandeses no Brasil do século xvr1 foi o primeiro das Amé- das manufaturas europeias. Primeiro, os custos básicos eram
ricas a mostrar interesse em usar um prelo para auxiliar o mais baixos na Europa, porque seus prelos (e suas fontes de
processo administrativo. Talvez fossem apenas mais buro- outros bens) estavam mais bem equipados e eram supridos
cráticos! Em todos os acontecimentos, requisitaram um im- com mão de obra especializada e com matéria-prima me-
pressor “para evitar o trabalho de copiar tanta coisa”. No lhor. Segundo, as comunicações entre cada colônia e a Eu-
entanto, a Companhia Holandesa das Enidias Ocidentais teve ropa eram melhores do que entre as próprias colônias, de
dificuldade em encontrar um impressor que quisesse partir modo que, além da proximidade imediata de cada cidade,
para a distante colônia açucareira. E, quando conseguiram o custo do frete era menor para o produto importado, Isso
achar um, ele morreu na hora da chegada. Antes que pudes- não deve surpreender. O lorde-chefe da Justiça da Inglaterra
sem arranjar outro, os brasileiros retomaram Recife e expul- viu-se em palpos de aranha ao decidir o status legal da escra-
saram os holandeses do Brasil, e a questão acabou. vidão na Inglaterra, em 1772, exatamente porque um senhor
Somente às vésperas da Independência é que parece que de escravos que exportava peças da Virgínia para a Jamaica
todos aceitaram que um governo moderno precisa de um tinha achado mais barato embarcá-los via Londres. Mesmo
prelo. Algumas datas de amostra são: Quito, 1760 (tomado no final do século x1x, custava menos viajar de Lima para
do colégio dos jesuítas em Ambato, onde vinha funcionando Iquitós de navio via Liverpool do que por terra atravessando
desde 1754); Nova Orleans, 1769 (a capital de Louisiana, os Andes. Estou me lembrando até de um caso mais recente,
que a Espanha tinha adquirido da França recentemente); na década de 1980 (na época das viagens de avião de preço
Santo Domingo, 1782 (apesar de ter havido uma universi- reduzido da People Express), em que um dinamarquês que
dade local desde o início do século xv1). Depois acontece queria voar para Londres ida e volta descobriu que a rota
um afluxo de prelos: Saint Augustine (Trinidad de Barla- mais barata era de Copenhague a Gatwick (Londres), via
vento), 1786; Santiago de Cuba, 1791; Guadalajara, 1792; Newark, New Jersey.
Veracruz, 1794; Montevidéu, r807 (durante a ocupação Limitados assim a seus mercados locais circunscritos,
dos ingleses); Rio de Janeiro, 1808 (com a chegada da corte os prelos na América Latina só podiam pensar em tiragens
portuguesa e do governo em exílio, fugindo da invasão da diminutas, o que significava altos custos unitários. No co-
metrópole por Napoleão); Caracas, r8r0 (às vésperas da meço, isso queria dizer que, para que um prelo se tornasse
Independência); Salvador (Bahia), 1811; Recife, 1817 (du- economicamente viável, era essencial o subsídio da Igreja ou
rante a fracassada revolta contra o domínio português); San do governo. No final do século xvr, a população europeia
Antonio (Texas), 1817; São Luís do Maranhão e Belém do de todo o hemisfério era inferior a 180 mil — ou, melhor,
Pará, 1821 (às vésperas da Independência); e La Paz, no alto menor do que a população de Londres ou Paris na época. À
Peru, um pouco antes de a Bolívia tornar-se independente, parte correspondente à América espanhola era de cerca de
em 1823. Mesmo assim, Costa Rica não adquiriu um prelo 150 mil, um quarto dos quais viviam em haciendas rurais
antes de 1830, Honduras não antes de 1840, e Nicarágua isoladas, e a maior concentração urbana, Cidade do México,
apenas em 1880. contava, em 1576, apenas 9 495 brancos. O Brasil abrigava
ç8 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 59

cerca de trinta mil portugueses, dos quais uma proporção dos comerciais pouco estritos. O resultado, em vez disso, foi
bem maior estava dispersa em suas fazendas do interior. uma brecha para os Plantin de Antuérpia, nos Países Baixos
O estudo pioneiro de Irving Leonard sobre a leitura, no espanhóis. Christopher Plantin, que esteve no negócio de
século xv1, na América espanhola, foi publicado mais de ses- 1555 a 1589, conseguiu ser o maior impressor de seu tempo
senta anos atrás. Seu Books of the Brave conta-nos como em toda a Europa; suas publicações iam das edições de bolso
os conquistadores eram bem supridos com os produtos da à grande Bíblia poliglota, produzida para Filipe 11, em 1572.
nova indústria, visto que os livros mais recentes da Espanha Ele e seus sucessores inundaram a Espanha com os novos
eram despachados para as Índias imediatamente após sua livros de oração de tal modo que se acreditou, por muitos
publicação: os romances de cavalaria, os romances pastoris, anos, que sua firma gozava realmente de um monopólio le-
que vinham em seguida em termos de popularidade, Dom gal. O monopólio do Escorial foi limitado em 1764, mas só
Quixote, que ridicularizou todos eles, e as obras mais sérias. foi abolido realmente em 1834.
Aos poucos, porém, a própria Espanha passou a depender Foi também no final do século xvr que os impressores ati-
cada vez mais das importações. Leonard enfatiza os efeitos vos de Lyon começaram a explorar a enfraquecida posição
da adesão da Espanha ao livre comércio de livros. Em mo- de seus irmãos espanhóis e imprimiram em espanhol para o
mento algum, a Espanha ou as Índias cobraram mais do que mercado de língua espanhola. Teve início, assim, uma tra-
uma pequena porcentagem de imposto de importação, e en- dição de publicações francesas para a Espanha e a América
tre 1548€ 1720 não era cobrada taxa alguma. Outros países, espanhola que perdurou até a véspera da Primeira Guerra
ou suplantaram seus vizinhos com preços mais baixos o su- Mundial, Lyon foi também a principal fonte de importações
ficiente para sustentar um próspero comércio de exportação estrangeiras de livros para Portugal e vários impressores
de livros (o caso da Holanda), usaram restrições comerciais dessa região da França mudaram-se para Lisboa, durante
e a censura para impedir algumas importações de livro para o século xvrrI, para estabelecer aí seus próprios negócios de
suas colônias (Portugal), ou, como a Inglaterra e a França, edição e venda de livros (cf. $94, capítulo 11).
adotaram medidas para proteger sua indústria nacional das As observações de Leonard sobre a imediata popularidade
importações estrangeiras. Na desafortunada Espanha, não dos best-sellers na América espanhola contrastam fortemente
só seu comércio livreiro não gozava de proteção, como tam- com as conclusões do pesquisador brasileiro Jorge de Souza
bém a polícia do governo impedia seu desenvolvimento. Na Araújo, que encontrou uma defasagem de quase cem anos
verdade, a Espanha introduziu a fabricação de papel na Eu- entre o que foi publicado na Europa e o que estava sendo lido
ropa medieval, mas, no final do século xvi, o país dependia pelos brasileiros. Escritores dos séculos xvi e xvtr, como Sá de
fortemente da importação cara de papel de Gênova, levan- Miranda, Bernardim Ribeiro, o espanhol Lope de Vega e mes-
do os impressores espanhóis a trabalhar com desvantagem mo o próprio Camões, parecem ter gozado de bastante popu-
com matérias-primas caras. Houve também a oportunidade laridade no Brasil apenas no curso do século xvri1 e depois.
perdida do Nuevo Rezado. Quando o Concílio de Trento pa- Isso, sem dúvida, reflete em parte a diferença entre as
dronizou os livros de oração em toda a cristandade católica, colônias puramente comerciais que formavam a “Améri-
parecia que Roma usufruía de um monopólio extremamente ca das plantations” e o restante do hemisfério. Os espa-
lucrativo para seus próprios impressores. Contudo, os prín- nhóis e os puritanos ingleses que colonizaram a América
cipes católicos mais poderosos conseguiram uma isenção. do Norte tinham motivações ideológicas. Suas autoridades
No entanto, enquanto a França permitia que toda firma de coloniais tinham a preocupação ativa de converter os pa-
Paris devidamente licenciada participasse do butim, o piedo- gãos. Os imigrantes ou eram autoescolhidos, ou sofriam
so Filipe 11 (como dissemos) concedeu o monopólio na Es- uma triagem cuidadosa do governo. Incluíram, assim, uma
panha aos monges do Escorial. Mas os monges (para quem proporção relativamente alta de indivíduos educados, le-
a renda extra constituía uma ninharia em comparação com trados. Vieram como padres celibatários ou como unidades
suas fontes de riqueza na agricultura e em outros meios) ti- familiares: a coroa espanhola adotou medidas para evitar
raram pouca vantagem desse privilégio, graças a seus méto- a imigração de maridos errantes sozinhos, que deixavam
60 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 61

abandonados esposas e filhos na Espanha. A América das cito, dezoito professores ou estudantes universitários, onze
plantations, ao contrário, tinha uma necessidade insaciável clérigos e nove homens de negócio.
de mão de obra e encorajava seu uso para colônias penais — É claro que, com números tão baixos como esse, não
o Brasil colonial foi povoado, em grande parte, nos pri- havia leitores suficientes para sustentar algum programa
meiros dias, com criminosos degredados — enquanto suas regular de edição de livros. No caso da Venezuela, temos
perspectivas econômicas transformaram-no num ímã para a palavra de Alexander von Humboldt: “le nombre des
homens solteiros interesseiros: a região ocupada hoje pe- personnes qui connaissent le besoin de lire n'est pas três
los estados do sul dos Estados Unidos atraiu notoriamente grand, même dans celles des colonies espagnolles que sont
aqueles da “franja céltica” da Grã-Bretanha (galeses, es- les plus avancées dans la civilisation”. No início do século
coceses e irlandeses) com pouca perspectiva de progresso x1x, quando ele visitou as Américas, o total de latino-ame-
político e social na velha pátria. Não só era grande o anal- ricanos descendentes de europeus era constituído por 3,25
fabetismo, como também, no Brasil dos séculos XVI € XVII, milhões de falantes do espanhol e um milhão de lusófonos,
o povo comum, cuja maioria, graças à falta de mulheres espalhados por oitenta graus de latitude. Comparem isso
brancas, se tornara mestiça na segunda geração, nem mes- com os quatro milhões de brancos nos Estados Unidos, ain-
mo continuou a falar o português. Em vez disso, um verná- da confinados a um estreito corredor ao longo do litoral
culo de contato baseado no tupi, a primeira língua indíge- oriental, ou aos dezesseis milhões de habitantes das Ilhas
na que os colonizadores conheceram, foi difundido pelos Britânicas, um milhão dos quais viviam amontoados na
colonos e pelos missionários por toda a imensa colônia, Grande Londres. E a França, a nação mais populosa da Eu-
do mesmo modo que os mercadores árabes disseminaram ropa, contava vinte e sete milhões, meio milhão dos quais
o suahili por toda a África oriental, ou como, na Gália do concentrados em Paris.
século vI, Os invasores francos adotaram o latim bastardo Há, não obstante, uma grande mudança, no final do sé-
das cidades semirromanizadas e impuseram-no como sua culo xvrrr, do que estava sendo lido pelos intelectuais latino-
lingua franca a uma região que falava o celta. O português “americanos, brasileiros e hispânicos, ou seja, as obras politi-
só começou a substituir essa língua geral do Brasil com a camente explosivas dos philosophes franceses que lançavam
grande onda de imigração portuguesa provocada pela cor- as bases da Revolução de 1789-1794 em seu próprio país. As
rida do ouro no início do século xvi11. Mesmo os livros de autoridades logo tentaram impedir essa contaminação, mas
ambulantes, que (como vimos) estavam chegando à Améri- a rigidez e eficiência de suas medidas variou com o tempo e
ca espanhola em quantidade no final do século xv1, somen- de um lugar para outro, e mesmo de um oficial da alfândega
te começaram a circular pelo Brasil em pequeno número, para outro. (No que diz respeito à situação no Brasil, cf. $r5,
seguindo a adoção final do português. capítulo 2.) Muitas obras chegaram ilegalmente, seja na ten-
Nessa época, a população da América espanhola e, em tativa direta de evitar o controle, seja simplesmente porque
particular, a população de suas cidades maiores tinha cres- figuravam entre os muitos itens oferecidos pelos barcos es-
cido o suficiente para viabilizar a publicação de jornais, em- trangeiros envolvidos no lucrativo comércio ilegal com os
bora, em contraste com a situação na britânica América do colonos. Viajantes de retorno à pátria, como os estudantes
Norte, estes eram, em sua maioria, patrocinados pelo go- mandados para fazer curso superior na Europa, traziam in-
verno. À Gazeta de México começou a circular em 1722, dubitavelmente muitos desses itens em sua bagagem pessoal.
a Gazeta de Lima, em 1744, a Gazeta de la Habana, em E, quando a demanda local ficou excepcionalmente forte,
1782, a Gazeta de Santa Fe de Bogotá, em 1785 e a Gaze- um corajoso (ou oportunista) impressor local poderia aven-
ta de Caracas, em 1808. Sua tiragem, porém, era diminuta. turar-se em editar ele mesmo um livro. Em 1793, Antonio
O Papel Periódico, de Bogotá, circulou de 1791 a 1799 em Narihio, de Bogotá, produziu uma tradução de Os Direitos
Nova Granada, Venezuela e Panamá, mas tinha apenas rso do Homem, de Thomas Payne, e vendeu-a tão depressa que
assinantes regulares. De 103 desses, conheciam-se as ocupa- sua subsequente perseguição por sedição fracassou quando
ções: 42 eram servidores públicos, 23 eram oficiais do exér- as autoridades não conseguiram encontrar em seu poder
62 Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo Prólogo: A Nova Arte, o Novo Mundo 63

uma única cópia para apresentar como prova no tribunal. América Latina
Os compradores dessas obras nem sempre eram tão felizes e, FERNÁNDEZ DEL CASTILLO, Francisco. Libros y Libreros en el Siglo
na verdade, é pelos registros judiciais dos conteúdos de suas xvi. Cidade do México, Tip. Guerrero Hnos., 1914.
bibliotecas confiscadas que sabemos o que os latino-ameri- FURLONG CARDIFF, Guillermo. Los Jesuitas y la Imprenta en América La-
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México
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e
[...] dou graças a Deus por não termos
nem escolas livres nem imprensa, e espero
que não as tenhamos por trezentos anos

ci
ainda. Porque aprender trouxe ao mundo
a desobediência e a heresia e seitas e a
imprensa as divulgou, bem como calúnias
contra o Governo,

—,
Sir WILLIAM BERKELEY,
governador de Virgínia, em 1671'

a
A INTRODUÇÃO DA CENSURA Si

oi
No final da Idade Média, as cidades da cristandade ainda
eram pouco mais que refúgios isolados de indústria casei-
ra num deserto rural de autossuficiência feudal, separadas
a o
umas das outras por uma multiplicidade de insignificantes
reinos permanentemente em guerra. Viajar entre elas, por
terra, mesmo em tempo de paz, significava um arrastado e
deselegante passo de uma besta de carga ao longo de cami-
nhos infestados de ladrões e apenas transitáveis durante seis,
ou talvez nove meses do ano, representando tanto esforço
que, em inglês, a palavra travail (“trabalho penoso”) acabou
por determinar a formação de travel (“viagem”). Em tais
circunstâncias, a rapidez com que se adotou e expandiu a
impressão a partir de tipos móveis constitui um notável tri-
buto à importância da nova invenção.
O testemunho datado mais remoto da impressão tipo-
gráfica na Europa é uma indulgência de Mogúncia (atual
* “

r. Citado por Warren Chappel, A Short History of the Printed Word,


Nova York, New York Times, 1971, e por John Trebel, A History of
Book Publishing in the United States, Nova York, Bowker, vol. 1, 1972.
68 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca

Mainz) de 1454. Na década seguinte, essa arte viajou Reno os portugueses assumiram a obrigação de expulsá-los, por
abaixo até Colônia e acima até Estrasburgo, e chegou a cru- ocasião das negociações com Castela, de novembro de 1496,
zar os Alpes e os Apeninos até Subiaco, nos arredores de relativas ao casamento do rei dom Manuel 11 com a infanta
Roma. Passados cinco anos, ela já se havia implantado na Isabel. Relutando em perder tão grande número de seus mais
própria Roma e em Basileia, Pilsen, Augsburgo e Veneza. valiosos súditos, o rei decidiu promover à força, na Semana
Daí em diante, a marcha se acelerou: em 1474, havia pre- Santa de 1497, um batismo em massa. Em seguida, temendo
los em Utrecht, Bruges, Aalst (perto de Bruxelas), Louvain, o criptojudaísmo que daí poderia resultar, rapidamente pros-
Paris, Lyon, Zaragoça, Valência, Bolonha, Florença, Milão, creveu a posse de todos os livros hebraicos, com exceção da-
Nápoles, Buda (a Budapeste atual) e até mesmo em Cracó- queles sobre medicina e cirurgia. As tipografias judaicas dei-
via. Cinco anos mais tarde, apenas os pontos mais longin- xaram de trabalhar e seus proprietários fugiram. Os Porteira
quos da porção principal da Europa — Dinamarca, Suécia, seguiram para Pesaro, na Itália, onde continuaram a impri-
Turquia, Montenegro e Portugal — ainda não tinham sido mir; Eliezer transferiu seu prelo para Fez, na África do norte.
alcançados, mas no final do século mesmo estes países já Os rumores sobre a existência, já em 1465, de obras im-
estariam imprimindo livros. pressas em Leiria podem ser, seguramente, descartados, uma
O caso de Portugal é pouco comum, na medida em que vez que quase certamente essas impressões eram feitas com a
os seus primeiros tipógrafos eram, em sua maioria, judeus” e técnica primitiva da xilografia. Contudo, existe uma tradição
produziam obras para o mercado hebraico em Portugal e no segundo a qual a coroa, nesse mesmo ano de 1465, recrutou
exterior. O seu ofício foi exercido primeiramente em Faro, Emanuel Simon, de Nuremberg, e Christophe Soll, da cidade
no Algarve, onde, em 30 de junho de 1487, foi publicado um vizinha de Altdorf, para introduzir a “arte negra” na Univer-
Pentateuco hebraico por Samuel Porteira e seu filho Davi. sidade de Coimbra. Dizem também que, em 1473, em Leiria,
Dois anos depois, em 16 de julho de 1489, Eliezer ben Jacob alguém imprimiu uma tradução da Imitatio Christi, de Tomás
de Toledo levou o invento a Lisboa: ele e seus artesãos José de Kempis, e que, em 1481, em algum lugar de Portugal, im-
Chalfon e Judah Leon Gedaliah produziram uma edição do primiu-se uma versão das coplas do condestável dom Pedro,
Hidduschei ha-Torah, de Moses ben Nahman - um comen- perdida no terremoto de Lisboa de 1755. Afora estas obras,
tário do Pentateuco. Até que, em 1492, surgiu O primeiro o livro cristão em tipografia mais antigo em Portugal foi uma
livro feito na oficina de Samuel D'Ortas e seus três filhos, tradução (do castelhano) do Sacramental, de Clemente Sán-
em Leiria, 120 quilômetros a noroeste de Lisboa; em 1496, chez Verceal, impresso em Chaves, em 1481, por Gonzalo Ro-
imprimiriam as versões latina e espanhola, de autoria de dríguez de la Pasera. Temos conhecimento igualmente de um
José Vecinho, da obra que tornou possíveis as explorações Tratado de Confissim, publicado por um impressor errante
de Vasco da Gama, Colombo, Cabral e outros descobrido- em Chaves, em 8 de agosto de 1489, e destinado à venda aos
res, o Ha-Hibbur ha Godol (em latim, o Almanach Perpe- peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela.
tuum Coelestium Motuum), do astrônomo real Abraão ben No entanto, somente quando o restante da Europa soube
Samuel Zacuto. das novas riquezas que Portugal estava extraindo dos seus
Embora estivessem bem conscientes da grande contri- recentes descobrimentos no além-mar é que a impressão em
buição dos judeus para a prosperidade e os feitos nacionais, letras latinas chegou definitivamente ao país. Foi então que
a Liga Suábia mudou a sua matriz comercial de Veneza para
Lisboa, e os tipógrafos juntaram-se aos muitos outros atraí-
2. À pesquisadora brasileira Úrsula Ephraim Katzenstein, no seu A
dos pela nova prosperidade portuguesa, procedentes da Es-
Origem do Livro: Da Idade da Pedra ao Advento da Impressão Ti-
pográfica no Ocidente (São Paulo, Hucitec, 1986), atribui a mesma
panha, da França e da Europa central. João Gherlinc, um
invenção da arte a um encadernador judeu, Mair Jaffe, financiado alemão da família do impressor Ulrich Gherling, que tra-
por Gutenberg e Fust, mas que tivera de permanecer no anonimato balhou em Paris em 1470, imprimiu, em Braga, em 1494,
devido à sua religião. Se ela river razão, não nos deve surpreender tal um Breviarum Bracrense. À primeira tipografia profissional
participação judia nos primórdios da exploração do invento. a produzir sistematicamente obras em vernáculo foi a dos
70 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 21

sócios Valentim Fernandes, um tcheco da Morávia, e Nico- e Castela, vizinha de Portugal, em obediência à exigência pa-
lau, um alemão da Saxônia. Acredita-se que tenham impres- pal, baixou prontamente (em julho de 1502) uma Real Prag-
so, em 1495, um Regimento Proveitoso Contra a Peste, mas mática. À importância da tipografia na propagação da here-
sua obra mais antiga que se conservou é o Livro da Vida de sia luterana viria mostrar, em breve, o quanto esses temores
Cristo em Linguagem Portuguesa, por Mandado do IHlus- se justificavam, de modo que, em meados do século xvi1, es-
trissimo Senhor El-rei Dom Joam o Segundo e da Mui Escla- tava em vigor em quase todos os reinos cristãos algum tipo
recida Rainha Dona Lianor, sua Molher. É uma versão, de de controle das publicações.
Bernardo de Alcobaça e Nicolau Vieira, em quatro magnífi- Na verdade, os portugueses foram dos mais lentos a
cos volumes, da obra Vita Christi, compilada por Ludolfo, o agir. Em 1508, os impressores foram solicitados a subme-
$axão, um monge cartuxo do século xrrr. Para uso do rei mo- ter à aprovação real os manuscritos de todas as obras que
ribundo, o último volume, que contém a “Paixão de Nosso “tratassem de matéria relativa à nossa Santa Fé”, mas os
Senhor”, foi impresso antes, em 14 de maio de 1495; a obra livros em geral não eram submetidos a censura prévia. To-
completa foi concluída em 20 de novembro. (Uma reimpres- davia, depois do Concílio de Latrão, em 1512, que refor-
são, com o fac-símile completo do texto de 1495, foi publi- çou o apelo do papa no sentido da adoção da prática da
cada, em 1945, no Rio de Janeiro, pela Casa de Rui Barbo- autorização, difundiu-se o costume, entre os impressores, de
sa.) Nesse mesmo ano de 1495, Rodrigo Álvares, depois de submeter à aprovação do bispo local qualquer obra nova,
aprender a nova arte na cidade universitária espanhola de mais como um meio de autoproteger-se. À legislação sobre-
Salamanca, tornou-se o primeiro tipógrafo do Porto. veio apenas em 22 de fevereiro de 1537, alguns meses após
Diz uma lenda que Valentim e Nicolau foram enviados o restabelecimento, no reino, da Santa Inquisição. À partir
a Portugal, a pedido da rainha, por seu primo, o imperador de 1539, O inquisidor-chefe era o próprio irmão do rei, o
Maximiliano. Está fora de dúvida que os portugueses aprecia- cardeal infante dom Henrique, mais tarde príncipe regente
vam a nova arte. Na verdade, tanto a apreciaram que, por um durante a minoridade de seu sobrinho-neto dom Sebastião
decreto de 1508, seus praticantes (desde que não estivessem (1562-1568) e finalmente rei nos últimos dezessete meses
contaminados pelo sangue mouro ou judeu) foram agracia- de independência de Portugal (1578-1580). Dom Henrique
dos com o status e os privilégios de cavaleiros da casa real. logo revelou sua preocupação com a impressão, divulgando
Tal entusiasmo foi partilhado igualmente por muitos ou várias listas de obras proibidas, inclusive a Bíblia em verná-
tros governantes da Europa. Vários deles, entre os quais o culo, em 1551. Foi provavelmente por sua influência que se
de Castela, isentaram os livros dos impostos de importação. decretou, em 4 de dezembro de 1$76,a proibição completa
Todavia, esse zelo inicial logo começaria a declinar quando de obras impressas não licenciadas. Daí em diante, toda pu-
os governos se deram conta do perigoso papel que a im- blicação portuguesa, para correr, necessitaria de uma trípli-
prensa poderia desempenhar na difusão, entre seus súditos, ce licença: do bispo local, do Santo Ofício e do Desembargo
de ideias odiosas. Foi a Igreja a primeira a dar o alarme: a do Paço, que representava a coroa. Nos anos setenta do
heresia constituía um perigo muito mais evidente do que século xvt, quando os bispos eram também os inquisidores
a sedição, ainda mais se se levar em conta que a principal ta- e a Inquisição era dirigida por um clérigo real, este incômo-
refa da tipografia era produzir livros sobre tópicos religiosos do arranjo era praticável. Em princípios do século xvrII, a
para leitores, em sua maioria, clérigos. Já em 1501,0 papa Igreja e o Estado não mais viviam em harmonia; a coroa
Alexandre vt recomendava que os príncipes cristãos insti- se dispunha a proibir até mesmo um livro aprovado pelos
tuíssem um sistema de autorização para obras tipográficas, outros censores (como aconteceu com Cultura e Opulência
do Brasil, de Antonil, em 1711), uma tática para assegu-
3. Na verdade, a própria criação do mercado de livros para os leigos rar os direitos do regalismo*. Mais tarde, em 5 de abril de
foi obra dos tipógrafos da época, ansiosos por aumentar a demanda
para o produto da nova indústria ao se darem conta das limitações de 4. Ademais, havia boas razões para que o governo não quisesse reve-
um consumo exclusivamente clerical. lar aos estrangeiros a riqueza da sua colônia.
tim
72 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 73

1768, o zelo reformista do Marquês de Pombal conseguiu Assim, os habitantes da Nova Inglaterra imprimiam em Cam-
estabelecer uma Real Mesa Censória unificada e sob o firme bridge, Massachusetts, já em 1638, apenas dezoito anos
controle do rei. Embora, ainda em setembro de 1770, as após a chegada do Mayflower. No entanto, a autoridade
autoridades pudessem tornar público um edital “condenan- local podia impedir a impressão mesmo que o governo cen-
do à pena de fogo mais de 120 livros [...] geralmente em tral se dispusesse a permiti-la, como se pode ver pelo caso
língua francesa, mas também em inglês e latim, entre eles de Joseph Payne, que chegou a Santo Domingo, em 1725,
obras do Marquês d'Argens, de Bayle, Blount, Cherbury, trazendo de Paris um brevet d'imprimir, válido para todas
Chubb, Hobbes, Rousseau, Spinoza, Voltaire” etc., a cen- as Ilhas de Sotavento francesas, porém, o impressor foi pron-
sura adquiriu um caráter muito mais político e moderno, tamente encarcerado pelo governador da colônia. Nos ca-
a ponto de começar a permitir livros incluídos no Index sos em que a administração estava centralizada na capital
Librorum Prohibitorum da Igreja, como os de John Locke. metropolitana, havia óbvia vantagem em proibir qualquer
Este modo secular de tratar o assunto não foi do agrado da impressão local; foi por isso, provavelmente, que ninguém
boa rainha dona Maria 1, que, em 1787, editou uma carta imprimiu em Quebec nem em Nova Orleans até 1764, ano
de lei especialmente para endossar o Index; e alguns anos em que cessou o domínio francês.
mais tarde, em 17 de dezembro de 1793, a antiga autori- É claro que fatores econômicos e culturais tiveram sua
dade dividida foi restaurada, subsistindo até a abolição da influência. À natureza ideológica das colônias dos puritanos
censura, que se seguiu à Revolução do Porto de 1820. ingleses tornava a tipografia essencial. Por outro lado, no
século xviI, as colônias inglesas mais ao sul eram empreen-
dimentos puramente comerciais, e sua sociedade estruturada
A IMPRESSÃO NO ALÉM-MAR viu na impressão apenas uma ameaça desnecessária à sua
estabilidade. E, no caso de Virgínia e Barbados, o fato de
O conflito entre as autoridades na apreciação da impressão e serem colônias penais dava às autoridades locais um motivo
o medo que tinham de seus possíveis abusos ajudam a expli- a mais para se acautelarem contra qualquer coisa capaz de
car o modo desigual e inconsistente com que se difundiu nos veicular ideias sediciosas.
territórios que os países da Europa ocidental estavam come-
çando a conquistar no além-mar, quase ao mesmo tempo em
que se inventava a prensa tipográfica. O BRASIL DOS AVIS E DOS HABSBURGOS $3
A introdução da impressão na Cidade do México e em
Lima ocorreu poucos anos após a conquista espanhola, mas, Os novos territórios portugueses apresentaram, durante
por muito tempo, essa arte foi negada a todas as demais pos- seus dois primeiros séculos, um contraste semelhante ao en-
sessões espanholas. Os colonos ingleses da Nova Inglaterra contrado nas possessões inglesas. As cidades do leste, que
conseguiram seu próprio prelo logo após sua chegada ao concentravam as trocas comerciais, possuíam um grau apre-
Novo Mundo, mas durante muitos anos essa autorização ciável de autonomia e eram centros urbanos de intensa obra
foi negada às demais colônias inglesas. A França permitiu o missionária, imprimiam ativamente desde o século xvi. O
funcionamento de uma tipografia local em Santo Domingo Brasil, no princípio meramente uma escala na carreira das
(atual Haiti), mas jamais o fez com relação ao Canadá. Cedo Índias, não tinha necessidade da impressão de livros mais
os portugueses estabeleceram a impressão em suas posses- do que, por exemplo, Madeira, onde não houve tipografia
sões asiáticas e africanas, mas impediram sua implantação até 1821, quando os rebeldes constitucionais trouxeram um
no Brasil colonial. prelo para Funchal. O Brasil possuía grandes quantidades
Essas diferenças foram determinadas, em parte, pelas ne- de madeira preciosa, em especial o pau-brasil, madeira que
cessidades de controle político. Nos lugares onde gozavam deu nome aos colonos, os brasileiros, isto é, os comerciantes
de um grau considerável de autonomia, os governos eram en- de pau-brasil. Um arraial de corte de madeira tem ainda me-
carregados de regulamentar o trabalho das tipografias locais. nos necessidade de livros do que uma escala de viagens de
74 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 75

veleiros, como é o caso de Honduras Britânica (atual Belize), livros! Que as brasileiras aceitassem essa pobreza monóto-
que não teve um prelo antes de 1825. Na verdade, os brasi- na e incômoda só se pode explicar pela condição humilde
leiros quase não precisavam saltar em terra: qualquer caci- e impotente da mulher na sociedade portuguesa da época,
que, devidamente subornado, conseguiria que o seu povo fi- um fato tão acentuado que mesmo os espanhóis da épo-
zesse tudo, desde a derrubada até o transporte e o embarque ca ridicularizavam-no. No Brasil, a própria escassez de
da madeira. Quando os franceses, em nada constrangidos mulheres brancas fez crescer o desejo dos homens de man-
pelo Tratado de Tordesilhas, ameaçaram romper esse mo- tê-las impotentes e confinadas em casa. Um elemento essen-
nopólio tão lucrativo, Portugal precisou impor sua presença cial dessa servidão feminina era o analfabetismo forçado, o
permanente por todo o imenso litoral de sua colônia. Para que só começaria a mudar no Brasil independente (cf. $41).
estimular a rápida colonização, desenvolveu-se uma econo- No Brasil colonial, as mulheres das classes superiores só
mia agrícola, primeiramente do açúcar, artigo de luxo, trazi- aprendiam a ler quando se tornavam freiras. E, é claro, as
do dos Açores, e depois do tabaco e do algodão. índias, as pretas e as mulatas que compensaram a crônica
Nesse primeiro século e meio de colônia, a administração falta das mulheres brancas recebiam muito menor conside-
do Brasil era tão rudimentar e a população tão pequena e es- ração ou educação. Além disso, o fato de a grande maioria
palhada por uma área tão vasta que a indústria da impressão dos colonos portugueses (do mesmo modo que os conquis-
não era administrativamente necessária nem economicamen- tadores espanhóis no Paraguai e os invasores franceses na
te possível. É provável que, até a invasão do Nordeste pelos Inglaterra do século xt) terem vindo para o Brasil sem as
holandeses, que transformaram Recife em sua capital, não suas mulheres e terem se casado com as nativas acarretou
houvesse uma única cidade com mais de mil habitantes. Em a adoção de muitos costumes indígenas, entre eles o uso
meados do século xvi, Salvador contava talvez mil habitantes; do guarani como “língua geral do Brasil”s. Compreende-se
em 1648, São Luís do Maranhão tinha exatamente 480 al- que essa circunstância pouco ajudou o consumo de livros
mas (cf. tabela 1). E estes pequenos centros permaneciam iso- em português ou latim. Por conseguinte, mesmo a importa-
lados entre si. Os mesmos fatores, isto é, os ventos e correntes ção de obras vãs, “como son de Amadiís”*, que já em 1531
oceânicas, que facilitavam as comunicações com a Europa, a tanto perturbava o Conselho das Índias de Castela, não
África e a Ásia constituíam sérios obstáculos às viagens ao afetou o Brasil.
longo da costa. Contam-se casos de pessoas que desistiram
de viajar do Rio de Janeiro para a Bahia após três tentativas
infrutíferas de ultrapassar o Cabo Frio. Em 1661, Antônio
Vieira queixava-se de que, dos últimos oito veleiros que ten-
taram a viagem de São Luís ao Recife, apenas um conseguira 5. No Paraguai, o mesmo guarani sobrevive até nossos dias como
língua falada em casa. Na Inglaterra, o inglês nativo, apesar de ter
chegar ao destino; os outros sete foram forçados a retornar
sido substituído durante séculos pelo francês como língua oficial, so-
ao ponto de partida depois de meses de viagem, e um deles breviveu, em forma mais ou menos corrompida por esse francês do
foi de tal modo empurrado para sotavento que fora dar no governo, como idioma do lar e do campo, para renascer na corte
mar do Caribe. como símbolo de nacionalismo na época da Guerra dos Cem Anos
Ainda em 1700, o total da população brasileira não ul- contra o rei francês.
trapassava os trezentos mil colonos e escravos, espalhados 6. Cf. Inés Dólz Blackburn, “La Poesía Tradicional en Hispanoamé-
ao longo de cerca de seis mil quilômetros de costa. Nem rica y las Listas de Envios de Libros Coloniales Depositados en el
estes poucos habitantes demonstraram algum interesse na Archivo General de Indias en Sevilla”, Folklore Americano, n. 37-38,
pp. 109-115 (“1984”, i.e., 1985) e também Laurence Hallewell x
leitura. Quando saquearam a capital, Salvador, em 1624,
Cavan McCarthy, “Brazilian Chapbook Literature”, em Latin Amer-
os holandeses ficaram surpresos (e muito decepcionados) ican Masses and Minorities: Their Images and Realities, Papers of
diante da espartana simplicidade dos lares brasileiros. Os the xxx” annual meeting of the seminar on the acquisition of Latin
colonos investiam seus capitais em escravos e nas aven- American Library Materials, Madison (Wi), Salalm Secretariat, 1987,
turas do comércio, e não em móveis, em pinturas ou em vol. 1, pp. 361-379; vol. 2, pp. 683-707.
76 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 77

$4 OS JESUÍTAS NO ORIENTE PORTUGUÊS taladas nos colégios jesuítas de Salvador do Congo e de São
Pedro de Luanda.
Nelson Werneck Sodré e outros autores sugerem que a im- Uma segunda tentativa de estabelecer a arte da tipografia
pressão foi introduzida nas colônias de além-mar apenas na Etiópia foi frustrada quando o navio que transportava o
onde havia uma cultura autóctone altamente desenvolvida prelo aportou, inadvertidamente, em Goa, na Índia portu-
que o poder colonial queria suplantar. Isso exigia a criação de guesa. Assim, foi na cidade de Goa, e não na Etiópia, que a
uma escola proselitista, e a impressão era necessária para for- impressão foi introduzida, em 6 de setembro de 1556, por
necer a seu corpo de professores manuais informativos sobre João d'Eden e João Quinquério. Na verdade, imprimiram
as línguas, as crenças e os costumes locais, e aos alunos nati- algumas obras em amárico para a Etiópia, mas sua maior
vos livros escolares adequados. Assim, na Cidade do México parte foi impressa em português e nas línguas nacionais da
e em Lima, centros das civilizações asteca e inca, a impressão Índia. Entre as primeiras obras figuram a Doutrina Chris-
foi um auxiliar essencial das universidades coloniais. tiana (1557), de São Francisco Xavier, o Tratado [...] contra
A expansão ibérica no ultramar foi, num sentido mui- os Erros Cismáticos dos Abexins (1561), de Gonçalo Ro-
to real, uma continuação da Reconquista e sua extensão ao drigues, o Compendio Espiritual da Vida Cristã (1561), de
além-mar, sendo uma de suas motivações básicas o desejo Gaspar de Leão, e os Coloquios dos Simples, e Drogas e
de difundir o cristianismo. No Japão, quando os xoguns Cousas Medicinaes da India (1563), de Garcia d'Orta. Em
não mais consentiram que os portugueses propagassem a pouco tempo havia em Goa três oficinas de impressão, que
fé, estes, em vez de abdicarem de seus mais altos propósitos, prosperaram na publicação nas línguas locais. Há menção
preferiram abandonar, em favor dos holandeses, o lucrativo a um prelo ainda mais antigo, mais ao norte, em Salsette,
comércio que tinham estabelecido no país. instalado em 1542. Posteriormente, os portugueses instala-
Pelo menos nos dois primeiros séculos da colonização ram prelos em cinco outras localidades da Índia: Rachol,
portuguesa e espanhola, a impressão foi, em toda a parte, a Cochim, Vaipicota, Punicale e Amabalcate.
auxiliar da Igreja evangelizadora, implantada em quase to- Na China, os jesuítas portugueses começaram a imprimir
dos os casos por iniciativa dos clérigos, de modo que a maior em Macau em 1588 e estenderam depois suas atividades a
parte de sua produção destinava-se a suprir as necessidades Cantão e a Hong Kong. No entanto, tendo em vista a nature-
do clero e das missões. za da escrita chinesa, acabaram por abandonar a tipografia e
Já em março de 1491, livros impressos chegavam a Ma- dar preferência à xilografia.
nicongo, na África ocidental, para auxiliar a obra missio- No Japão, entre 1590 e 1614, data do banimento do cris-
nária dos portugueses. Três anos mais tarde, em 1494 — isto tianismo, os jesuítas produziram mais de cem obras. Primei-
é, um ano antes do início, em Portugal, da impressão re- ro em Kazusa, com o padre Alexandre Valignano, depois, a
gular de livros em vernáculo — dois tipógrafos nascidos na partir de r591,em Anakura, e, após 1599, na fortaleza cristã
Alemanha embarcaram para a Missão, mas, infelizmente, de Nagasaki”, seus prelos produziram catecismos, literatura
perderam-se no mar. O mesmo ocorreu com 2495 livros e e obras devotas, tanto em português como em japonês, co-
um prelo, enviados em 1513 para a Etiópia, império cristão nhecidas pelo nome de Kirishitan-ban. Seus estudos linguís-
do místico Preste João”. Finalmente, ao término do século ticos constituem a fonte principal do nosso conhecimento
xvi, chegaram à África prensas de impressão, que foram ins- do primitivo japonês moderno. Pelo menos dois dos tipógra-
fos foram japoneses convertidos, enviados a Coimbra para
aprender o ofício.
7. Lendário padre e rei cristão da Idade Média, a quem se atribuiu
o domínio de um Estado cristão encravado no mundo muçulmano.
Foi confundido com o chefe nestoriano de uma povoação turca na 8. Foi uma lamentável ironia da história a escolha pelos norte-ame-
Mongólia, depois com o cã dos mongóis, Hulagu, e por último com o ricanos deste antigo centro do cristianismo para alvo de sua segunda
imperador cóptico da Abissínia (hoje Etiópia). bomba atômica, em agosto de 1945.
Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 79

$5 OS JESUÍTAS NO BRASIL sobre as propriedades confiscadas em 1759, quando os jesuí-


tas foram expulsos e o colégio, fechado”. Talvez tenha havido
Os aborígines brasileiros, que ainda viviam na Idade da Pe- confusão com os dois livros impressos em 1722 € 1724 pe-
dra, não possuíam uma civilização comparável que fosse dig- los missionários jesuítas em Pueblo de Santa Maria la Mayor,
na de estudo e que os catequizadores precisassem suplantar. um lugar hoje situado em território brasileiro mas, na época,
Isso não impediu as especulações de que os primeiros jesuítas pertencente ao Paraguai. Esses livros eram: Vocabulario de la
teriam trazido consigo uma prensa tipográfica. Essa crença Lengua Guarany (1722), de Antonio Luiz Restrepo, e a gramá-
surgiu, aparentemente, com a publicação da obra de Faul- tica que o acompanhava, Arte de la Lengua Guarany (1724).
mann, Illustrierte Geschichte der Buchdruckerkunst, e parece Assim, esses dois primeiros livros não só foram impressos
estribar-se apenas na suposição de que aquilo que os padres numa região que somente agora faz parte do Brasil, como
fizeram na Asia e na África poderiam também ter feito na também foram produzidos por uma tipografia missionária
América. Jamais se encontrou uma referência contemporâ- espanhola. Na verdade, o primeiro livro impresso na América
nea que corroborasse tal crença, como também não se des- em língua portuguesa, de que temos prova definitiva, foi es-
cobriu qualquer material impresso que se pudesse atribuir a crito por um padre no México espanhol e aí publicado doze
tal origem. Às missões jesuítas espanholas, entre índios tão anos antes, em 1710. Nessa época, o México mantinha um
primitivos quanto os do Brasil, existiram muito antes de te- comércio considerável pelo Pacífico e, como seu título indica
rem adquirido um prelo, ao passo que, na América do Norte, claramente, o livro destinava-se aos falantes de língua portu-
os jesuítas franceses jamais chegaram a possuir um. guesa na Ásia, e não no Brasil: D.O.M. Luzeiro Evangelico,
O Paraguai foi virtualmente um Estado jesuíta, mas não que mostra à todos os Christãos das Indias orientais o ca-
teve nenhuma prensa de impressão antes de 1700, e tampouco minho unico seguro & certo da recta Fé, para chegarem ao
depois de 1727. Isso não ocorreu por motivos políticos, mas porto da salvação eterna; ou Instrucção dos principaes artigos
em virtude da dificuldade de convencer um mestre impressor da Religião [...] Obra de muita utilidade para os Ministros &
a submeter-se às agruras da vida naquela remota região. Há Christãos todos Catholicos & Protestantes, doutos & indou-
registro, porém, de que, desde 1633, os padres queriam seu tos, pelo R. P. Fr. João Bauptista Morelli de Castelnovo.
próprio prelo. Thompson, em sua obra Printing in Colonial Quando comparamos as atividades dos missionários no
Spanish America, sugere que, por não terem conseguido re- Brasil com as de seus colegas no Paraguai e em outras par-
crutar um impressor, os padres ensinaram seus índios a fazer tes da América espanhola, devemos lembrar que, no século
livros por xilografia, método muito comum na metade do sé- XVIII, nas possessões portuguesas, a Igreja há muito havia
culo xv na Europa e empregado para textos populares simples deixado de ser “a íntima coadjuvante de um poder imperial
(e, como vimos, utilizado pelos jesuítas na China, em virtude dogmático”"º, coisa que ainda ocorria no Império espanhol.
da natureza da língua). Imaginamos que os padres brasileiros Particularmente os jesuítas,em virtude de sua oposição à es-
tenham feito o mesmo: a tradição das ilustrações em xilogra- cravização dos indígenas, tinham conquistado a implacável
fa na chamada “literatura de cordel”, no Nordeste brasileiro, hostilidade da maioria dos leigos no Brasil. O prestígio que
poderia, assim, ser um herança da habilidade ensinada aos haviam conquistado com suas obras missionárias no Impé-
índios locais pelos missionários da Companhia. rio português do Oriente havia-se evaporado juntamente
Os colégios dos jesuítas no Brasil foram renomados por com esse império, no começo do século xvr1. Além disso,
suas excelentes bibliotecas, e, segundo a História da Compa- apesar do papel da Companhia de Jesus na libertação do
nhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite, a biblioteca do Co- jugo espanhol em 1640, o empobrecido Portugal indepen-
légio de Santo Inácio, no Morro do Castelo, Rio de Janeiro,
possuía “alguns trabalhos impressos na própria casa por volta 9. José Vieira Fazenda, “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”,
de 1724”. Se o colégio possuía seu próprio prelo, parece estra- Revista do IHGB, tomo 88, vol. 142, Pp. 113-116, 1920,
nho que Agostinho Santos Félix Capelo não tenha menciona- 10. William P. Glade, The Latin American Economies, Nova York,
do o fato em seu relatório ao governador, conde de Bobadela, American Book, 1969, p. 158.
8o Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 81

dente que emergira da luta havia perdido seu antigo zelo OS HOLANDESES NO BRASIL Só
evangelizador, e seus governantes estavam cada vez mais sus-
picazes com respeito a essa poderosa ordem e, ainda mais, de À primeira tentativa de introduzir a impressão no Brasil,
origem espanhola. Essa suspeita cresceu até transformar-se de que possuímos provas documentadas, foi feita não pelos
numa hostilidade que, na administração de Pombal, acabou portugueses, mas pelos holandeses, no período de 1630 a
por engendrar um movimento de destruição da Companhia 1655, quando ocuparam o Nordeste brasileiro. Uma carta
de Jesus em todo o mundo católico romano. do Supremo Conselho (holandês) do Brasil, de 28 de feve-
Sebastião José de Carvalho e Melo, agraciado, em 1769, reiro de 1642 e dirigida aos responsáveis pela Companhia
com o título de marquês de Pombal, dirigiu os negócios de Holandesa das Índias Ocidentais, solicitava o envio de um
Estado em Portugal de 1750 até 1777. Para ele, a impressão prelo para que as ordens oficiais recebessem “maior consi-
nas colônias era, primordialmente, uma fonte do poder e da deração” e o Conselho fosse poupado do estafante trabalho
influência dos jesuítas. Por isso, suprimiu a indústria tipo- de copiar.
gráfica até mesmo na Índia portuguesa, onde já perdurava Temos aqui, em poucas palavras, a razão primordial pela
há dois séculos. Uma instrução datada de zo de março de qual cada colônia acabou recebendo sua própria prensa ti-
1754 e enviada ao vice-rei pelo secretário colonial Diogo de pográfica: as exigências administrativas. Depois da evange-
Mendonça Corte Real solicitava que fosse negada licença a lização, a burocratização! Por volta de 1640, os holandeses
ualquer pedido no sentido de restabelecer a impressão na possuíam um sistema administrativo suficientemente sofisti-
Índia. “independentemente da parte de quem emanasse”. Os cado para sentirem essa necessidade. Aquelas colônias ingle-
goenses teriam de esperar até 1821 para que pudessem ter sas que haviam rejeitado a tipografia no século xvir desco-
novamente seus prelos. bririam, no começo do século seguinte, que as necessidades
À grande perda que o Brasil sofreu com a dissolução da do governo tornavam imperativa sua adoção: em 1718, a
Companhia pode ser sentida na destruição das suas biblio- Jamaica; em 1730, Barbados"; em 1736, Virgínia (que, em
tecas: quinze mil volumes se perderam no Colégio em Sal- 1683, expulsara seu primeiro tipógrafo, William Nuthead).
vador, outros cinco mil no do Rio de Janeiro, além de mais Por motivos semelhantes, esse século testemunhou a expan-
doze mil apenas nos colégios do Maranhão e do Pará. Vol- são da impressão pelos demais centros administrativos da
taremos a falar do impacto da expulsão dos jesuítas sobre a América espanhola: em 1707, Havana; em 1739, Bogotá
educação na colônia ($r 1). (que, em 1717,se tornara capital de um novo vice-reino); em
O objetivo último da política colonial de Pombal tem sido 1748, Santiago do Chile; em 1760, Quito; em 1764, Nova
interpretado de formas muito diversas. O ponto de vista an- Orleans (que voltara ao domínio espanhol); em 1780, Bue-
ticlerical, que o vê como o grande reformador modernizante nos Aires (capital do novo vice-reino do Prata desde 1776);
da Ilustração, interpretaria essa hostilidade aos jesuítas ape- em 1783, Santo Agostinho, na Flórida. Somente na América
nas como a determinação de um progressista a destruir as portuguesa a administração continuou tão elementar que se
forças do obscurantismo medieval. Outros consideram-no o pôde dispensar a impressão, até que o impacto das guerras
instrumento das companhias comerciais monopolizadoras, napoleônicas mudou o governo da colônia.
que procuravam eliminar das colônias qualquer oportunida- Após diversas negociações entre Pernambuco e a Holanda,
de de pensamento, ação ou meios de subsistência indepen- foi escolhido um tipógrafo, Pieter Janszoon, para encarregar-se
dentes da mãe-pátria. É provável que as duas interpretações da impressão no Recife. No entanto, teve a infelicidade de fa-
sejam igualmente válidas. Para um estadista do século xviI,
ainda que ilustrado, as colônias não tinham qualquer rai-
son d'être a não ser a de suprir as necessidades materiais rr. Não obstante, o comitê do Parlamento britânico que investigou,
em 1828, a administração da justiça nas Antilhas Britânicas desco-
da Europa. Mesmo em 1820, os reformadores liberais em
briu que os fazendeiros que constituíram o governo colonial de Bar-
Portugal ainda eram totalmente incapazes de pensar o Brasil bados ainda se negligenciavam de imprimir as suas leis, preferindo
de forma diferente desse entendimento tradicional. guardá-las em forma manuscrita, fora do conhecimento do povo.
82 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca

lecer antes de iniciar seu trabalho, em 3 de agosto de 1643. Baixos, resultou na perda de quase todo o magnífico império
Segundo Afonso d"Escragnolle Taunay'*, de fato ele aportou português no Oriente. O Portugal dos Avis havia liderado os
na colônia, mas morreu logo em seguida (talvez de alguma descobrimentos e a expansão na Europa. Sob os Habsburgos,
doença tropical?). Se foi este o caso, resta a pergunta: o que fora partícipe do maior império colonial do mundo. No en-
aconteceu com seu prelo? Ninguém teria tratado de fazê-lo tanto, o pequeno país empobrecido que emergiu de seu cati-
funcionar? Dois anos mais tarde, a Companhia das Índias in- veiro “babilônico” de sessenta anos e da luta de dezoito anos
formou que ainda estava à procura de novo impressor, mas em prol da independência (1640-1668) foi a mais fraca, a
que, até aquela data, não havia encontrado quem se dispusesse mais pobre e a mais atrasada de todas as potências marítimas
a empreender a aventura. Seria (imagina-se) por causa do cli- da Europa ocidental. Foi também o país mais dominado pelo
ma, da precariedade da posição holandesa no Brasil, ou sim- clero: mesmo o triunfo dos restauradores se deveu (como já
plesmente da falta de efetivo interesse comercial? Nessa altura, dissemos), em grande medida, à iniciativa dos padres (e es-
a pessoa que, segundo parece, mais se empenhou em instalar pecialmente dos jesuítas) no fomento do apoio popular na
um prelo na colônia, o governador Maurício de Nassau, havia luta contra o domínio espanhol. Os autos de fé continuariam
partido (maio de 1643) e os holandeses estavam sofrendo tão por mais um século. À censura tríplice sufocou qualquer ex-
severas pressões militares que não tinham tempo para se preo- pressão de pensamento independente, até realizações inova-
cupar com tais problemas. doras no tocante ao estilo ou à tradição literária. Quase a
Apenas para confundir a questão, um panfleto de vinte única obra contemporânea de algum mérito literário foram
páginas, datado de 1647, traz a indicação “gedruckt in Bra- os Sermões, de Antônio Vieira (que foi mais brasileiro do que
silien op't Reciffin de Bree-Bijl” (“impresso no Brasil, no português). Em termos políticos, o novo Estado estava tão
Recife”). Trata-se do folheto Brasilsche Gelt-Sack, waer in isolado que os Braganças, precisando desesperadamente de
dat klaerlijck erloout wort, waer dat de Participanten van reconhecimento internacional e de apoio militar e material
de West-Indische Compagnie haer Geldt ghebleven is", um de fora, venceram os seus escrúpulos religiosos e procuraram
grosseiro ataque à integridade de certos diretores da Com- restaurar a antiga aliança com a Inglaterra. E por isso paga-
panhia; acredita-se atualmente que esse colofão é falso, feito ram um preço altíssimo. À começar pela cessão de Tânger e
para proteger o impressor. Bombaim como dote do casamento da infanta Catarina com
o rei britânico Carlos 11, os Braganças acabaram por aceitar
o Tratado de Methuen de 1703, que tornou Portugal o pri-
$7 A RESTAURAÇÃO PORTUGUESA meiro país do mundo moderno a sofrer dependência econô-
mica de uma grande potência industrial. O império oriental
O estado de privação, tanto cultural como material, de que ficou reduzido a Goa, Macau e Timor, e o Brasil (junto com o
sofreu o Brasil durante os ciclos da madeira e do açúcar re- seu apêndice angolano) tornou-se a única fonte significativa
fletiu sua pequena importância para a pátria-mãe. Se para os de riqueza que restou à metrópole, fato reconhecido pelo rei
Avis a América portuguesa não passou de uma fonte de água dom João vi, quando designou seu possível herdeiro com o
fresca na carreira das Índias, para os Habsburgos foi apenas título de príncipe do Brasil.
um baluarte exterior na defesa das suas minas de prata nos Logo a colônia readquiriu seu valor em termos absolutos
Andes. Mas a desditosa união das coroas, e a consequente quando se descobriu ouro em Minas Gerais na década de
participação nas longas guerras da Espanha com os Países 1690. Em pouco tempo, era tão grande a contribuição do
quinto para o erário real que o rei chamava o Brasil sua
“vaca de leite”. Passados trinta anos, descobriram-se tam-
12, Cf. Afonso d'Escragnolle Taunay, “De Brasilia Rebus Pluribus: O
bém diamantes na mesma capitania. À imigração maciça daí
Primeiro Livro Impresso no Brasil”, Anais do Museu Paulista, vol. 7,
resultante multiplicou a população por dez vezes no curso
PP. 421-474, 1936.
13. A Bolsa Brasileira. Mostrando Claramente como os Acionistas da do século xvrm1, chegando aos três milhões de pessoas, afo-
Companhia das Índias Ocidentais Foram Lesados. gando o guarani num dilúvio de portugueses monoglotas.
Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca
84

As necessidades imediatas dos mineiros estimularam a pro- enviada a outro governador de Pernambuco, posterior a
dução de alimentos, sobretudo o desenvolvimento da pecuá- Castro Moraes, ordem que se referia às atividades tipográfi-
ria no sertão. As minas € o gado, juntos, foram colonizando cas de Isidoro da Fonseca, no Rio de Janeiro ($9). Todavia,
o interior, melhorando as comunicações para o interior do Serafim Leite afirma ter visto alguns trabalhos desse prelo
país, principalmente ao longo do rio São Francisco, arté- recifense e, inclusive, ter possuído alguns deles. Leite, que
ria principal entre o Nordeste e as minas. Cresceu tanto sua identifica o tipógrafo com um jesuíta de nome Antônio da
riqueza que o governo se dispôs a enfrentar uma onerosa Costa, diz, em seu Artes e Oficinas dos Jesuítas no Brasil,
guerra com a Espanha nas colônias, que acabou por esten- que o prelo funcionou de 1703 a 1706, imprimindo “letras
der o Brasil até o Prata e abriu caminho para o povoamento de câmbio, orações e estampas religiosas”. O mínimo que
de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. O aumento da se pode dizer é que, se de fato houve alguma prensa de im-
população estimulou o crescimento das cidades e deu início, pressão no Brasil nessa época, então a cidade do Recife pa-
embora lentamente, à criação de um estilo de vida verdadei- rece ter sido o local mais provável. Embora ainda pequeno
ramente urbano, pelo menos nos centros maiores. (cf. tabela 1, p. 833), 0 Recife era a única verdadeira cidade
além da capital, Salvador, e nesse período era mais próspero
e revelava maior independência de espírito em relação às
8 A IMPRESSÃO NO RECIFE NO GOVERNO DE FRANCISCO DE autoridades de Lisboa.
CASTRO MORAES

Afirmam os historiadores locais, Ferreira de Carvalho'* e A CHEGADA DE ISIDORO DA FONSECA S9


Pereira da Costa's, que foi, de fato, no Recife que se instalou
o primeiro prelo do Brasil, cerca de sessenta anos mais tarde, Da existência de uma prensa de impressão no Rio de
muito depois da expulsão dos holandeses. Supõe-se que o Janeiro, em 1747, possuímos a prova definitiva tanto na
desconhecido impressor encarregado era apadrinhado pelo bibliografia contemporânea como em alguns dos próprios
governador, Francisco de Castro Moraes. No entanto, foi livros impressos, ou melhor, folhetos. O responsável pelo
obrigado a interromper suas atividades tão logo o governo prelo era Antônio Isidoro da Fonseca, um dos principais ti-
de Lisboa tomou conhecimento da existência do prelo. Diz pógrafos de Lisboa, entre cujos trabalhos realizados na ca-
Pereira da Costa que encontrou, nos arquivos do estado de pital portuguesa, entre 1735 e 1745, incluem-se as Obras do
Pernambuco, uma carta régia, de 8 de julho de 1706, na qual diplomata do século xvir Duarte Ribeiro de Macedo, a se-
Castro recebia ordens de “sequestrar as letras impressas e gunda edição, por José Barbosa, de Notícias de Portugal, do
notificar os donos dellas e os officiaes de uma typographia antiquário Manuel Severim de Faria, e, em 1741, O primei-
estabelecida na povoação do Recife que não imprimissem, ro volume da monumental Biblioteca Lusitana, de Barbosa
e nem consentissem que se imprimissem livros nem papéis Machado, que marca o início da bibliografia portuguesa, e
alguns avulsos na mesma typographia”, constitui uma das mais importantes publicações lusas desse
Wilson Martins, em A Palavra Escrita'*, põe em dúvida século. Isidoro também imprimiu três obras de Antônio José
toda essa história e sugere que, por uma falha na transcri- da Silva, o popular dramaturgo, conhecido na história literá-
ção de datas, Costa baseou seu relato numa ordem de 1747, ria simplesmente como “O Judeu”. Nascido no Rio de Janei-
ro, em 1705, numa família de judeus convertidos do Recife
holandês que havia preferido permanecer na terra após a
14. Alfredo Ferreira de Carvalho, Annaes da Imprensa Periodica Per- reconquista, fora para Lisboa em 1713, acompanhando a
nambucana de 1821-1908, Recife, Jornal do Recife, 1908. mãe e vários parentes que para lá foram levados a fim de
1$. Francisco Augusto Pereira da Costa, Anais Pernambucanos,
1493-1850, Recife, Arquivo Público Estadual, vol. 1, p. 443, 1951.
responderem a acusações de apostasia. Ele próprio acabou
16. Wilson Martins, A Palavra Escrita, 2. ed., São Paulo, Ática, 1996, sendo acusado do mesmo pecado, em agosto de 1726, mas
PP. 302-303.
foi libertado após dois meses de tortura. Infelizmente, em
86 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca

outubro de 1737, voltou a ser denunciado e, após prolon- generosa) e supondo que Isidoro tivesse acesso a todo o mer-
gada investigação, foi garroteado e seu corpo queimado em cado nacional (o que, considerando a extensão do país e o
praça pública num dos últimos autos de fé, em 19 de outu- isolamento mútuo das capitanias, beira o ridículo), podemos
bro de 1739. admitir que, nesta fase, ele pudesse contar com no máximo
Houve quem dissesse que Isidoro teve problemas com a 1250 fregueses em potencial. Ássim, mesmo que o equilí-
Inquisição por haver sido o editor do Judeu. Capistrano de brio entre o investimento e a receita fosse a venda de apenas
Abreu e Félix Pacheco'”” chegaram a afirmar que sobre ele 250 exemplares por edição, ele, para apenas continuar no
pesava a suspeita de ser um judeu encoberto. Segundo seu negócio, precisaria ter vendido de cada título publicado um
testemunho pessoal, foi obrigado a vender seu negócio em exemplar a um de cada cinco leitores de todo o país.
Lisboa para saldar dívidas: uma provável consequência de Em todos os lugares do Novo Mundo, durante o século
seu envolvimento na publicação de uma obra de referência XVIII, à maior porção da receita dos impressores provinha
tão extensa como a Biblioteca Lusitana. Em seguida, emi- da produção de jornais (a alternativa de produzir impressos
grou para o Brasil, esperando melhor sorte. Se foi este o caso comerciais, jobbing printing, só se tornaria viável depois de
realmente, não podemos deixar de estranhar seu otimismo — 1830). À Gazeta do México começou a circular em 1722,a
ou sua ignorância. Em seu Latin America and British Trade, Gazeta de Lima em 1744, € os jornais das colônias inglesas
Platt, descrevendo as condições do começo do século x1x muito antes: em 1741, a cidade de Boston sozinha contava
(isto é, quase duas gerações depois), diz que nada menos de cinco jornais concorrentes. Portugal não cor-
ria esses riscos. Se a imprensa jornalística da metrópole esta-
fora das cidades principais e dos portos marítimos, a população era va limitada à Gazeta de Lisboa, controlada pelo governo (e,
dispersa, as condições de transporte eram horríveis e a comerciali- mesmo assim, sujeita a suspensões intermitentes), era pouco
zação dos artigos importados, custosa e pouco compensadora. Os provável que fosse aprovada qualquer atividade jornalística
produtos manufaturados de qualquer tipo [...] estavam muito acima nas colônias.
dos recursos financeiros das pessoas, com exceção de uma poucas... É difícil compreender por que um impressor tão impor-
tante e capaz como Isidoro tivesse desejos de fixar-se numa
A escassez de trabalhadores qualificados — particular- colônia com perspectivas tão reduzidas para o seu comércio;
mente a ausência quase total do trabalhador alfabetizado — mais difícil ainda é atinar com a razão pela qual se dispunha
e o alto custo do equipamento e suprimentos importados, a enterrar-se num lugar que, até pouco tempo antes, não
somados aos fatores anteriores, significavam que o material passava de um pequeno posto de defesa, de pouca importân-
impresso no local jamais poderia competir em preço com o cia econômica e ainda menor significado cultural. É verdade
trazido da Europa. O papel teria sido um problema à parte. que o desenvolvimento da mineração começava a modificar
Na América espanhola, sua escassez e, portanto, seu custo esse panorama, embora à custa de uma séria inflação local;
elevado resultaram no fechamento de várias oficinas tipo- o Rio de Janeiro tornara-se o principal porto de exportação
gráficas coloniais. de minerais e local de comercialização do crescente volume
Não havia, certamente, qualquer possibilidade de que de importações que eram absorvidas em troca. À crescente
Isidoro pudesse viver da impressão de livros. Platt, falando importância da cidade acabaria por convertê-la, em 1763,
do México do final do século x1x, estimou que, numa popu- na capital administrativa de todo o Estado do Brasil, mas
lação de 10,5 milhões de pessoas, seis mil famílias perten- em 1740 ainda era inferior, em tamanho, a Salvador e ao
ciam à classe alta (isto é, em nosso contexto, eram potenciais próprio Recife. Mesmo sessenta anos mais tarde, o comércio
compradores de livros). Calculando a população brasileira do Rio era muito menor do que o de Salvador.
de 1747 em 2,5 milhões de pessoas (uma estimativa bastante Não que qualquer dessas cidades costeiras pudesse ser
particularmente atraente para um tipógrafo. Nelson Wer-
17. Apud Rubens Borba Alves de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 2. neck Sodré as comparou às cidades europeias da Idade
ed., São Paulo, Nacional, 1975, pp. 135-146. Média, não apenas por suas edificações insignificantes e
ss
88 Antônio Isidoro da Fonseca
Antônio Isidoro da Fonseca

o
amontoadas e suas ruas estreitas, mas também, sobretudo, governador do Rio (e de Minas), Gomes Freire de Andrade,

a
porque eram destituídas de qualquer forma efetiva de vida e um convite direto para instalar-se no Rio de Janeiro. Isso lhe
de significação social e intelectual em virtude da irresistível teria dado pelo menos uma razoável expectativa de receber
concentração de população, produção, riqueza e poder em encomendas regulares de impressos oficiais.
torno das grandes propriedades rurais. Freire de Andrade mostrava-se realmente interessado em

a
Na metade do século, o único centro verdadeiro de cultu- estimular a vida intelectual da cidade. Apesar da perturba-

at
ra urbana no Brasil ainda era Vila Rica, a atual Ouro Preto. ção provocada por uma guerra na fronteira meridional da
Esta “pequena Weimar” (como a chamou Sílvio Romero'*) colônia, por cujo êxito foi agraciado, em 1758, com o título
deixou sua arquitetura, sua escultura, as partituras de suas de conde de Bobadela, ele incentivou as artes, criando a Aca-
músicas e os escritos de seus poetas (Gonzaga, Cláudio Ma- demia dos Felizes (fundada em 1736), origem mais tarde da

mem
nuel da Costa e Silva Alvarenga) como testemunhos de suas

—e—
Academia dos Seletos, instalada em 30 de janeiro de 1752,
realizações artísticas. Os registros de seu teatro são testemu- no próprio palácio do governo. Ão que parece, também aju-
nhas da força de seus contatos culturais com a Europa. Mais dou na educação do jovem José Basílio da Gama, um mi-

vei
tarde, sua liderança no movimento de libertação, a Inconfi- neiro que fora para o Rio estudar no Colégio dos Jesuítas.

Da
dência Mineira, revelaria seu grau de maturidade intelectual Na clausura obrigatória do colégio ($5), teve o auxílio de
e política. Sobre o tamanho de sua população, só podemos Bobadela para viajar para Lisboa, onde, finalmente, pôde
fazer suposições. Já foram feitas estimativas de até cem mil publicar seu poema épico O Uraguay, que narra a repressão
habitantes, mas, embora fosse certamente a maior cidade bra- pelo governo da rebelião indígena, instigada pelos jesuítas,
sileira (cf. tabela 1, p. 833), parece improvável qualquer cál- na Colônia do Sacramento.
culo acima de cinquenta mil: em 1742, período de sua maior
prosperidade, a população escrava de toda a comarca não
passava de 21 746 indivíduos. Conhece-se até mesmo o nome A OBRA DE ISIDORO NO RIO DE JANEIRO Sro
de um livreiro: Manuel Ribeiro dos Santos, que importava
livros juntamente com “roupas, chapéus, botas, cobertores, Diz Alexandre Passos que o governador não apenas con-
cera, velas...” '*. Mas a cidade não possuía uma prensa de im- vidou Isidoro a vir para o Brasil como o fez “com plena cons-
pressão, a menos que se dê fé à Fascinante História do Livro, ciência de que as autoridades de Lisboa não aprovariam is-
de Waldvogel, que, depois de fazer menção a uma (suposta) so!” Passos diz ainda que o impressor produziu dois livros
tentativa de impressão no Recife, em 1706 ($8), afirma que com colofões falsos por instrução expressa do governador:º.
aE

tal tentativa foi “seguida de outras em Minas Gerais”. Às obras em questão eram dois volumes sobre artilharia, de
Em 1747, já havia começado a longa e lenta decadência autoria do engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim,
de Vila Rica devido ao paulatino esgotamento das minas de nascido no Brasil, instrutor oficial do exército na fortifica-
ouro, mas dificilmente Isidoro da Fonseca se teria dado con- ção do Rio de Janeiro. A opinião geral parece inclinada a
ta disso. Talvez ele tenha sido dissuadido de instalar-se tão aceitar a autenticidade do colofão do Exame de Artilhei-
=

longe do litoral pelas dificuldades de transporte pelo interior ros: “Lisboa, José Antônio Plates, 1747”. Este livro, porém,
e, consequentemente, de preços mais altos: estes, mesmo cin- foi retirado de circulação, por ordem do censor, logo após
quenta anos mais tarde, continuavam so% superiores aos sua publicação: alegou-se que usara de modo incorreto al-
do Rio. É mais provável - e esta é, indiscutivelmente, a razão guns títulos de postos militares! O colofão da continuação,
ii

mais plausível de sua vinda ao Brasil - que tenha recebido do Exame de Bombeiros: “Madrid, Francisco Martínez Abad,
C

1748”, mostra claramente que se adotou um ardil para evi-


18. Apud Manuel Diegues Júnior, Regiões Culturais do Brasil, Rio de tar problemas ulteriores com a censura. Talvez tenha sido
Ce

Janeiro, Inep, 1960, p. 80.


19. Rubens Borba Alves de Moraes, Livros e Bibliotecas no Brasil 20. Alexandre Passos, A Imprensa no Período Colonial, Rio de Janei-
Colonial, Rio de Janeiro, LTC, 1979, p. 40. ro, MEC, 1952.

90 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 91

es
realmente impresso na Espanha, mas isso não explicaria sua diferentes, uma das quais, entre outras divergências, traz er-

it
grande semelhança tipográfica com o primeiro volume. É rada a data: MCCXLVII.
possível que Plates o imprimisse com um falso colofão, mas O único trabalho, além desse, que foi feito com certeza
por que assumiria tal risco? Alpoim era o braço direito de por Isidoro na oficina do Rio é um volume de grande for-

a,
Bobadela em muitos melhoramentos materiais que eram fei- mato, 80 x 70 cm, Hoc esta Conclusiones Metaphysicae de
tos na cidade, dos quais o mais notável foi a construção dos ente Reali, Praeside R. G. M. Francisco de Faria... Flumine
Arcos da Carioca (o aqueduto de Santa Teresa). Não estaria Januarii. Ex Secunda Typographia Antonii Isidori Da Fon-

e
por trás do suposto convite feito a Isidoro para que viesse ao seca Anno Domini mDCCxLVII. Cum Facultate Superiore.
Rio o desejo de Alpoim de ver seu livro publicado com segu- Trata-se do resumo de tese defendida no Colégio dos Jesuí-
tas, no Morro do Castelo, onde Faria, futuro membro da

A
rança? Tipograficamente, é muito semelhante ao trabalho de
Isidoro, além da curiosa circunstância de trazer uma ilustra- Academia dos Seletos, era professor de filosofia. Impresso

De
ção datada “Rio, 1749”. Taunay” aventou a hipótese de que em seda, o trabalho revela não apenas a habilidade do tipó-
Isidoro imprimiu os dois volumes, mas, obrigado a deixar o grafo em cuidar de uma intricada diagramação tipográfica,
Brasil antes de terminá-los, lançou-os em outro lugar com a como também a variedade de corpos e famílias de tipos que
substituição da página de rosto. trouxera de Lisboa.
Da oficina de Isidoro da Fonseca no Rio, de curta du- Duas outras obras dizem respeito ao bispo Malheiro.
ração, saíram ainda duas obras que não fizeram qualquer Uma, Em Applauso do Excellentissimo e Reverendissimo
tentativa de disfarçar a origem. Se for correta a nota manus- Senhor D. Frey Antonio de Desterro Malheyro, Dignissimo
crita do barão do Rio Branco num dos oito exemplares exis- Bispo desta Ciundade, Romance histórico, consiste de cinco
tentes, a primeira dessas obras é um folheto de 24 páginas folhas in-fólio não numeradas contendo versos em louvor
in quarto, publicado em 7 de fevereiro de 1747 e intitulado ao bispo, impressas apenas no anverso. Impressos de forma
Relação da Entrada que Fez o Excellentissimo e Reverendis- semelhante, em doze folhas in-fólio não numeradas, foram
simo Senhor D. F Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do editados alguns epigramas latinos e um soneto em portu-
Rio de Janeiro, em o Primeiro Dia Deste Presente Anno de guês, também em louvor ao bispo. Nenhum dos trabalhos
1747, Havendo Sido Seis Annos Bispo do Reyno de Angola, apresenta colofão, mas há razões de sobra para supor que
donde por Nomiação de Sua Magestade, e Bulla Pontifícia, foram obra de Isidoro da Fonseca durante sua estada no Rio.
Foy Promovido para esta Diocese. Sua autoria é atribuída Tão logo a notícia da oficina de impressão chegou a Lis-
a Luís Antônio Rosado da Cunha, juiz de fora, e no colo- boa, as autoridades ordenaram ao governador que a fechas-
fão lê-se “Rio de Janeiro. Na segunda Officina de Antônio se. Existe alguma discordância entre a data e a forma de seu
Isidoro da Fonseca. Anno de m.pcc.xLvrr”. Sua “primeira fechamento. Os Ipanemas referem-se a uma ordem régia de
officina” foi provavelmente a casa que teve em Lisboa, mas 19 de maio de 1747, ordenando que tudo (os tipos, o prelo, o
Alexandre Passos interpreta esta indicação de “segunda papel, e o próprio Isidoro) fosse enviado de volta a Lisboa”.
Officina” como um indício de que ele estava recomeçando A história de Miranda, a Imprensa Nacional e o Die áltesten
depois que as autoridades apreenderam o primeiro lote de brasilischen Druck, de Clemens Brandenburger, dizem que
equipamentos que trouxera consigo. Para garantir-se con- a ordem era para queimar o prelo e derreter os tipos; estas
tra algum tipo de sanção oficial, Isidoro assegurou a permis- fontes acrescentam que Lisboa enviou uma nova ordem, em
são do próprio bispo, que a concedeu na suposição errônea 6 de julho, ao governador de Pernambuco, instando-o a im-
de que não era necessária uma sanção adicional no caso de pedir qualquer tentativa de impressão naquela parte da co-
um trabalho pouco substancial (“obra volante”). Apesar da lônia. Esta ordem, segundo Wilson Martins, foi a origem da
natureza efêmera do assunto, Isidoro fez duas impressões história das primeiras impressões no Recife. Por outro lado,

22. Marcello e Cybelle de Ipanema, História da Comunicação: Notas,


21. Taunay, op. cit. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1967.
a
92 Antônio Isidoro da Fonseca Antônio Isidoro da Fonseca 93

Rubens Borba de Moraes transcreve, em seu O Bibliófilo única função das colônias era fornecer matérias-primas (e
Aprendiz, o texto integral de uma ordem de 6 de julho diri- consumir, em troca, uma quantidade mínima de manufaturas
gida ao Rio, e não ao Recife, que determina um tratamento europeias). Dentro desse contexto, a proibição de impressão
mais brando para o infeliz tipógrafo. Admitindo que uma surge apenas como mais uma restrição à iniciativa econômi-
“quantidade de prensas” havia ido de Portugal para o Brasil, ca da colônia. Luiz Edmundo, em Olhando para Trás, arrola
a ordem declara que não era conveniente, no momento, a as medidas tomadas com essa finalidade ao longo de noventa
impressão na colônia. Uma vez que todas as licenças neces- anos, a partir de 1695. Começam pelo banimento das ativi-
sárias, da Inquisição e do Conselho Ultramarino (a adminis- dades particulares nas capitanias, como, por exemplo, a proi-
tração colonial), tinham que ser obtidas em Portugal, todos bição da instalação de usinas de açúcar em Minas Gerais. A
os livros e papéis poderiam muito bem ser impressos nesse partir de 1727, aparecem restrições à construção de estradas
local. De qualquer maneira, isso constituía uma vantagem e até mesmo à navegação pelos rios — provavelmente para
para os impressores, visto que, no Brasil, suas despesas eram impedir o desenvolvimento de qualquer comércio interno no
muito maiores. O governador deveria apreender qualquer Brasil. Finalmente, em janeiro de 1785, foram proibidas to-
prelo existente em sua jurisdição e devolvê-lo, às expensas das as manufaturas no Brasil e foi negado aos brasileiros até
dos proprietários, a alguma pessoa que eles indicassem em mesmo o direito de possuírem seus próprios navios. Um al-
Portugal. Esses proprietários, bem como seus operários, de- vará de 20 de março de 1720 é particularmente interessante:
veriam ser prevenidos de que, se voltassem a imprimir qual- proíbe as “letras impressas” em todo o Brasil, o que implica
quer coisa, mesmo que tivessem licença para isso, seriam que devia haver alguém, em algum lugar, que precisava ser
enviados de volta a Portugal a fim de serem julgados. impedido de imprimir na colônia, naquela época.
Assim, Isidoro retornou a Portugal. Após três anos, po- Ao estudar a atitude dos portugueses em relação à im-
rém, solicitava permissão real para voltar a instalar sua ofi- pressão na colônia, devemos ter em mente a importância que
cina tipográfica no Rio ou em Salvador, prometendo jamais atribuíam a seu isolamento de todas as influências externas,
imprimir sem as devidas licenças civil e eclesiástica. Sua uma obsessão que parece ter-se agravado à medida que avan-
expulsão do Brasil acarretara-lhe a perda de muito dinhei- çava o século xvill (e o poder econômico do Brasil aumen-
ro; além disso, estava encontrando grande dificuldade para tava). Num sentido material, isto significava não apenas a
estabelecer-se novamente em Lisboa. Por outro lado, suas proibição de visitantes estrangeiros (expulsos do Rio já em
atividades na colônia não tinham infringido nenhuma lei, 1707) mas também a restrição ao acesso de navios de outras
nem causado inconvenientes a terceiros, e eram de grande bandeiras por questões de segurança marítima. Até mesmo
utilidade pública “por não haver naquelas partes outra pren- isso foi negado aos colonos rebeldes ingleses: uma ordem ré-
sa”. Sua petição foi “indeferida” e esta, infelizmente, é a úl- gia de s de julho de 1776 proibiu qualquer contato com na-
tima notícia que temos dele. vios norte-americanos, mesmo que fosse para salvar a vida de
náufragos. Segundo parece, Pombal era o único estadista de
país católico que já compreendia a ameaça que a revolução
RESTRIÇÕES COLONIAIS americana criara para toda potência imperialista europeia.
No dizer dos missionários metodistas americanos Kidder
A ordem real de 6 de julho de 1747 tinha razão ao reconhecer e Fletcher”,
que não tinha sentido, do ponto de vista econômico, tentar
produzir artigos manufaturados, como livros, por exemplo, navios de nações aliadas da mãe-pátria eram autorizados, ocasio-
nas condições de alto custo vigentes nas colônias. Era com- nalmente, a ancorar nos portos da imensa colônia, mas nem os
preensível, portanto, que, por conveniência da administração
para fins de censura, toda a produção de livros e impressos 23. Daniel Parish Kidder e James Cooley Fletcher, Brazil and the Bra-
ficasse restrita a Portugal. Mas não se faz menção alguma à zilians Portrayed in Historical and Descriptive Sketches, Filadélfia,
verdadeira razão: a suposição mercantilista básica de que a Childs and Petersen, 1857, p. 65.
94 Antônio Isidoro da Ponseca
Antônio Isidoro da Fonseca 95

passageiros nem a tripulação podiam desembarcar a não ser sob a ou permanecer na forma de manuscrito. O senhor de en-
vigilância de soldados. [...] Para impedir qualquer possibilidade de genho de açúcar Gabriel Soares de Sousa escreveu um Tra-
comércio, os navios estrangeiros, quer precisassem de reparos, quer tado Descriptivo do Brasil, que só conseguiu publicar, em
estivessem à procura de água ou de provisões, imediatamente após 1547, quando voltou para Lisboa; a Arte de Grammatica
sua chegada eram postos sob vigilância alfandegária e o tempo de da Lingoa mais Usada na Costa do Brasil, do jesuíta José de
sua permanência era fixado pela autoridades. [...] Em consequência Anchieta, foi editada em Coimbra em 1595. Além destes, a
desses opressivos regulamentos, um povo rico em ouro e diamantes produção literária do Brasil antes da Restauração consistiu
não tinha condições de obter os implementos essenciais à agricul-
apenas de autos — peças de teatro compostas pelos missio-
tura ou ao conforto doméstico. Um rico fazendeiro [...] podia não
nários para auxiliar na conversão dos indígenas, dos quais
ter como oferecer a cada um de seus hóspedes uma faca à mesa. Às se imprimiram somente alguns poucos, que despertaram os
vezes, era necessário que um único copo [...] circulasse entre todos
interesses dos antiquários do século xix— e da História do
Os comensais.
Brasil, de frei Vicente do Salvador (de 1627); todas elas fo-
ram impressas apenas em 1889. Da quantidade muito maior
De um regime que se preocupava tão pouco com suprir as de literatura brasileira produzida após a Restauração, as
necessidades da vida cotidiana dos colonos, não se poderia es- Cartas Chilenas (comumente atribuídas a Gonzaga), escritas
perar qualquer preocupação com suas necessidades literárias:

ru
em 1788 ou 1789, não foram impressas senão em 1845; a
em tais circunstâncias, dificilmente se poderia pensar que hou- poesia de Gregório de Matos, composta entre T660 e 1692,
vesse suprimento maior de livros do que de facas ou copos.

Ta
teve de esperar até 1904 para ser dada à luz. Mesmo algo de
Mas talvez a própria ideia de copos e facas individuais — uma interesse tão local quanto uma carta pastoral de um bispo,

e,
inovação que surgiu na Europa em fins do século xvi — tives- se tivesse que merecer a honra de publicação, teria de ser

a
se levado mais dois séculos para chegar ao Brasil rural e a enviada a Portugal: uma demora de quatro ou cinco meses
falta de tais artigos se devesse mais ao desconhecimento das para a viagem de ida e volta, além do tempo necessário ao

e
boas maneiras do que à inexistência de um comércio! Seja

E
trabalho gráfico. Uma dessas cartas, impressa em 1790 por
como for, podemos encarar com certa razão a proibição de Antônio Alvarez Ribeiro, do Porto, para Caetano Brandão,

«e a
prelos apenas como um aspecto da privação geral no Brasil, bispo do Grão-Pará, informa que foi “dada nesta cidade de
no plano material, social e intelectual. Em questões espiri- Pará aos [espaço em branco] de 1783”.
tuais, a colônia portuguesa na América apresentava um triste E as publicações em Portugal foram impedidas por uma
contraste com suas vizinhas espanholas. Após a expulsão dos censura que se tornou ainda mais obtusamente restritiva
jesuítas, por exemplo, não havia educação superior no Brasil, após a queda do Marquês de Pombal em 1777, censura
e enquanto Coimbra, a única universidade em todo o império que (como já disse) podia proibir um livro tanto por não se
português, formou apenas 720 brasileiros entre 1775 e a In- adaptar aos cânones aceitos do gosto literário como por seu
dependência, somente a Universidade do México, exatamente conteúdo de ideias.
no mesmo período, formou 7 850 bacharéis e 473 doutores. Até mesmo encontrar um impressor podia não ser fácil.
À falta de educação superior na colônia obrigou os fazendei- Na época de sua maior prosperidade, pouco antes do terre-
ros a mandar seus filhos para formar-se na Europa, de onde moto do Dia de Todos os Santos de 1755, Lisboa contava
trariam novas ideias, fatais para a sobrevivência do mesmo apenas dez tipografias (Londres, na mesma época, tinha 128:
domínio colonial português. treze vezes mais, para uma população somente quatro vezes
maior). E a catástrofe que destruiu Lisboa destruiu também
tão grande número dessas tipografias que Pombal, em 1768,
Srz A PUBLICAÇÃO EM PORTUGAL
decidiu criar uma oficina tipográfica do governo, a Impressão
Régia, confiscando a de Manuel Menescal da Costa, impres-
Qualquer pequeno escrito original que surgisse no Brasil co-
sor do Santo Ofício, e instalou também uma fundição de tipos
lonial deveria, forçosamente, ou ser publicado na Europa e, em 1769, uma escola de gravação de estampas e gravuras.
96 Antônio Isidoro da Fonseca

Entre as obras escritas por brasileiros e impressas em


Portugal no período colonial (em sua Biblioteca Lusitana,
de 1735-1745, Barbosa Machado apresenta uma lista de
91 autores), podemos citar diversos livros de medicina tro-
pical, tais como o Tratado Único das Bexigas e Sarampo,
de Simão Pinheiro Morão, publicado em Lisboa em 1683,
sob o pseudônimo de Romão Mosia Reinhipo, e o Tratado
Único da Constituição Pestilencial de Pernambuco (Lis-
boa, 1694), de João Ferreira da Rosa, que descreve a pri-
meira epidemia de febre amarela na América do Sul, em
novembro-dezembro de 1685; a História da América Por-
tuguesa, de Sebastião da Rocha Pita, publicada em Lisboa,
em 1730; e as obras do poeta mineiro Cláudio Manuel da
Costa, impressas em Coimbra, em 1768. Outros brasileiros
que conseguiram publicação nessa época foram Gaspar da
Madre de Deus, José de Santa Rita Durão, Domingos Cal-
das Barbosa, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, e dois já
mencionados: Antônio José da Silva e José Basílio da Gama
(seu O Uraguay, de 1769, foi uma das primeiras obras da Conceição Veloso
Impressão Régia). Bem incomum é o caso de Tomás Antô-
nio Gonzaga: nascido em Portugal, sua coleção de poemas e Paulo Martin
dedicados à sua trágica amada, Marilia de Dirceo, teve qua-
tro edições em Lisboa, entre 1792 e 1800, uma das quais
vendeu dois mil exemplares em apenas seis meses. Na ver-
dade, podemos dizer que Marilia, de Gonzaga, com suas 34
edições, em Portugal e no Brasil, até os meados do século
XIX, foi o primeiro best-seller brasileiro. 2
ias
Tendo-me constado que os prelos que se achão nesta
Capital, erão os destinados para a Secretaria de Estado
dos Negocios Estrangeiros e da Guerra; e attendendo à
necessidade que ha da Officina de Impressão nestes meus
Estados; sou servido, que a casa onde eles se estabelecerão,
sirva interinamente de Impressão Régia, onde se imprimão
exclusivamente toda a legislação e papeis diplomaticos, que
emanarem de qualquer repartição de Meu Real Serviço; e se
possão imprimir todas, e quaesquer outras Obras; ficando
interinamente pertencendo o seu governo e administração
á mesma Secretaria. Dom Rodrigo de Souza Coutinho, do
meu Conselho de Estado, Ministro e Secretario de Estado
dos Negocios Estrangeiros e da Guerra, o tenha assim
entendido, e procurará dar ao emprego da Officina a maior
extensão, e lhe dará todas as instrucções e ordens necessa-
rias e participará a este respeito a todas as estaçoens o que
mais convier ao Meu Real Serviço.
Palacio do Rio de Janeiro em treize de Maio
de mile oitocentos e oito. Com a rubrica do

ig
Principe Regente Nosso Senhor.

Carta Régia de 1808 autorizando a impressão no Brasil

O PRIMITIVO COMÉRCIO DE LIVROS NO RIO DE JANEIRO $13

José Timóteo da Silva Bastos, em A História da Censura In-


telectual em Portugal, menciona um requerimento feito por
Antônio Máximo de Brito, em 1775, no qual o requerente
pede permissão para levar consigo, para o Rio de Janeiro,
cerca de uma vintena de livros. Não fica claro, porém, se tais
livros eram para seu próprio uso ou para revenda. À parte
este pequeno mistério, nosso conhecimento mais antigo so-
bre o comércio de livros no Rio de Janeiro nos é dado por
roo Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin IoI

George, conde Macartney, que, em 1792, passou duas sema- da Sociedade Bíblica de Londres, é que os brasileiros tiveram
nas no Rio, a caminho da China, onde iria chefiar a primeira acesso às Escrituras em sua própria língua — embora, mesmo
missão diplomática da Grã-Bretanha junto ao Império do então, alguns bispos tenham deblaterado contra essa leitura.
Meio. Segundo sua observação, havia apenas duas livra- O testamento do cirurgião militar Antônio José Vieira de
rias na capital brasileira — e isto em um momento em que o Carvalho!, um mineiro falecido em 1818, nos dá uma ideia
Almanaque da cidade desse ano registrava dezessete casas do tipo de livro disponível. Carvalho deixou em legado 69
de pasto, dezoito tabacarias, 32 cabeleireiros e 216 tabernas. livros, cujos títulos lamentavelmente foram mal transcritos
Uma das duas era, possivelmente, a de Paul Martin, o no testamento: o item “Fissot, obras”, por exemplo, refere-se
primeiro livreiro carioca, depois do incerto Brito, cujo nome evidentemente a Noél Laurent Pissot, que não era autor, mas
chegou até nós: apareceu no almanaque da cidade de 1799. editor. Desses 69 livros, 28 relacionam-se com a profissão
Parece que se aposentou ou morreu em r810, mas Paulo de Carvalho. As obras de Fabien Violet, sieur de Coqueray
Martin Filho manteve a empresa em funcionamento até (que teve projeção por volta de 1635), 0 English Hippocra-
1823, mais ou menos. tes, de Thomas Sydenham (1624-1689), e a obra um pou-
Fernando Guedes, em O Livro e a Leitura em Portugal (Lis- co mais recente do professor de Edimburgo Francis Home
boa, Editorial Verbo, 1987), nos informa que o livreiro fran- (1719-1813) são textos de medicina básica. À cirurgia está
cês Paul Martin, residente em Lisboa desde 1778, mandou representada pela Memória da Academia Real de Cirurgia
seu filho de mesmo nome, mas nascido em Portugal, para e pelas obras do português Feliciano de Almeida, cirurgião
estabelecer uma casa de comércio de livros na capital brasi- da Real Câmara (falecido em 1726) e dos franceses Geor-
leira, precisamente em 1799, embora tenha dito à Junta de ge de La Faye (1699-1781) e Antoine Petit de Maurienne
Comércio de Lisboa que ia para o Brasil a fim de trabalhar (1722-1794). Os livros de anatomia eram os do dinamar-

equi
como caixeiro de uma casa de negócio. Francisco Rolland, quês Jacob Benignus Winslow (1699-1790) e dos franceses

o
E
parceiro de Martin pai, também mandou o filho. Terá sido

=
César Verdier (1685-1759) e Raphael Bienvenue Sabatier
este o dono da outra livraria? À livraria de Martin não deve (1732-1811). Sobre matéria médica, possuía um tratado
ter sido, no início, um estabelecimento comercial muito do grande clínico e químico holandês Hermanus Boerhaa-
próspero. O comerciante inglês John Luccock, que esteve no ve (1685-1738) e as farmacopeias de Londres e Edimburgo.
Rio em 1808, nos diz que a importação de livros ultrapassa- Sobre obstetrícia, possuía livros de André Leuret (1703-
va em tão alto grau a pequena procura que, frequentemente, 1780), parteiro da mãe do rei Luís xvI e inventor do fórceps
teriam de ser vendidos em leilão público. curvo, e de Jean Bernard Jacobs (falecido em 17971), além
Mesmo em 1820, o visitante escocês Alexander Caldcleugh de Observaçoens sobre os Partos, de autor anônimo, todos
considerou pobre o comércio livreiro no Rio, onde os livros “traduzidos do inglez”. Entre os livros mais especializados
ficavam nas prateleiras por muito tempo. havia um Compêndio de Ouvido, uma obra sobre inflama-
Macartney encontrou gravuras inglesas em razoável quan- ções de Feliciano de Almeida, uma sobre febres de Antoine
tidade, tanto sérias como cômicas, mas diz que os livros à Fizes (1690-1765), professor em Montpellier, o livro so-
venda se limitavam a obras sobre medicina e religião, o que bre edemas do professor de Edimburgo Alexander Monro
está bem de acordo com o que sabemos das edições portu- (1697-1767) e o Traité des maladies vénériennes (1775), da
guesas do século xvrirr. Entre as religiosas, porém, não estava autoria de Jean Baptiste Pressavin. O escocês sir John Pringle
incluída a Bíblia em vernáculo. Já não se aplicava em Portugal (1707-1782), reformador das condições sanitárias do exér-
a proibição do rei Henrique ($1), e o primeiro Novo Testa-
mento em português, em tradução do padre Antônio Pereira
1. João Dornas Filho, “O que Lia um Letrado de 1818 em Minas Ge-
de Figueiredo, apareceu em 1778, seguido, alguns anos mais rais”, Anuário Brasileiro de Literatura, n. 4, p. 393, 1939. Agradeço
tarde, pelo Velho Testamento, do mesmo tradutor. Todavia, à equipe de Wellcome Historical Medical Library de Londres pela
sua exportação para o Brasil era proibida. Somente na dé- sugestão de interpretações das lamentáveis transcrições deste testa-
cada de 1850, quando Fletcher importou a versão de 1821 mento (por exemplo, “Vinson” por Winslow e “Jacques” por Jacobs).
102 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 103

cito britânico, contribuiu com uma obra sobre as moléstias O CONTRABANDO $r4
dos soldados, e do francês Jean Barthélemy Dazille (1732-
1812), especialista em medicina tropical, ele tinha a obra Lorde Macartney rejubilou-se: com uma escolha tão limita-
Observations sur les maladies des negres (1785). da nas livrarias, não havia possibilidade de que até mesmo
Sere dos livros de Antônio José Vieira de Carvalho trata- os cidadãos mais educados fossem “corrompidos pelos es-
vam de ciências: manuais de química, de autoria de Antoine critos dos livre-pensadores”, Opinião estranha, pois ele mes-
Baumé (1728-1804) — um dos principais colaboradores da mo observou, em outro lugar, que todos aqueles com quem
famosa Enciclopédia de Diderot: — e de Jean Antoine Clau- mantivera contato se mostravam muito curiosos “acerca da
de, conde de Chaptal de Chanteloup (1756-1832), o ener- última subversão na França”. Certamente sabia do elevado
gético reformador do comércio e da indústria ao tempo de contrabando, uma vez que, em suas palavras, “as grandes
Napoleão; as obras de botânica e história natural de Félix somas [...] adquiridas pela conivência com o contrabando”
de Avellar Brotero (1744-1828), professor de botânica em constituíam parte importante da venda do vice-rei:.
Coimbra, de Lauri, de Lineu (duas obras) e de Vigier. Onze Talvez Macartney apenas não se tenha dado conta de que
livros eram dicionários: dois franceses, um português em um dos itens importados regularmente dessa forma era repre-
dois volumes, um inglês-português, um dicionário médico sentado por livros. Ele claramente desconhecia o quanto era sig-
francês e latino, um dicionário geográfico italiano, um di- nificativa a proporção do mercado suprida clandestinamente.
cionário espanhol-italiano, um Dicionário Histórico da Me- Louis François Tollenare, um francês que visitou o Recife
dicina, um Mestre Francês, um Dicionário de Vandeli (isto mais ou menos vinte e cinco anos mais tarde, foi mais per-
é, Domenico Vanelli, 1730-1816), e uma gramática inglesa ceptivo. Os livros franceses eram os mais procurados, parti-
“no idioma mi.mo”. cularmente as obras dos filósofos da Ilustração, “bíblia po-
De obras não científicas havia 23: Orlando Furioso, de lírica da América do Sul”+4, e era facilmente escamoteada a
Ariosto, uma Arte de Porsolania, as Aventuras do Barão Miin- obrigatoriedade de submeter os livros importados ao censor.
chhausen, as Aventures de Télémaque, a História Universal, Uma informação subsidiária interessante sobre a extensão da

mm
de Jacques Benigne Bossuer, bispo de Meaux (1627-1701), procura desse material na América espanhola da época nos
as obras de Camões, o Theatro, de Corneille, as obras do é dada pelo processo contra o impressor de Bogotá, Antonio
autor trágico Prosper Jolyot de Crébillon (1674-1762), a Nariho, em 1793, por ter produzido uma versão espanhola
do Droits de "homme, de Thomas Payne, apenas quatro anos
e
História Romana, do historiador inglês Laurence Echard
(1671-1730), uma Économie générale,as cartas de Giovanni após a edição original de Paris. O réu foi absolvido por falta
Ganganelli (papa Clemente x1v, 1705-1774), Idílios e Mor- de provas: sua edição esgotara-se tão rapidamente que as au-
toridades não conseguiram apreender um único exemplars.
co cita

te de Abel, de Salomon Gessner (1730-1788), uma História


dos Descobrimentos e Conquistas, Malaça Conquistada, Se o inventário da biblioteca de Antônio Vieira de Car-
as obras de Racine, os Ensaios Moraes, de Alexander Pope valho não contém tais livros, isto se deve provavelmente
(talvez a edição do Rio de Janeiro de 18112), uma Polfti- ao fato de terem sido excluídos de um documento legal os
ca Moral e Civil, e três livros que não consegui identificar: bens que a lei não admitia. Quando o conteúdo de bibliote-
as versões francesa e portuguesa (ou espanhola?) das obras
de Burant (quiçá o poeta francês do século xv1 Gilles Du-
3. George Macartney, primeiro conde Macarmey, Journal of a Vo-
rant), as obras do Marquês de Carisiol eo Gemidos de May yage from London to Cochin-China, 117" July 1792-158!" June 1793,
de Deos. Ms3352, Wellcome Historical Medical Library.
4. Louis François de Tollenare, Notes dominicales prises pendant un
voyage en Portugal et au Brésil em 1816, 1817 et 1818, Paris, Presses
2. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonnée des sciences, des arts et Universiraires de France, 1973.
des métiers, dirigida por Denis Diderot et al. (Paris, 1751-1755), que $. José Torre Revello, El Libro, la Imprenta y el Periodismo en Amé-
chamaremos doravante de Dictionnaire des métiers et des arts. rica durante la Dominación Espariola, Buenos Aires, Penser, r940.
to4 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin ros

cas é mencionado por visitantes estrangeiros, ou citado em tor se queixa do contrabando de livros proibidos feito pelos
processos criminais, o quadro que se delineia é muito dife- holandeses e pelos ingleses; e Torre Revello* diz que esse co-
rente. Parece que os líderes da revolta de 1789, em Vila Rica, mércio ilícito de livros ocorria desde o século xvi.
a Inconfidência Mineira, estiveram totalmente expostos a Já falamos das minuciosas precauções tomadas pelos por-
ideias perigosas, como as de Voltaire, Rousseau, do abade tugueses, antes de 1808, para proteger sua colônia de tal con-
Raynal, Descartes, Condillac, Diderot, d' Alembert, Mably e taminação ($r1). Henry Koster, que visitou o Brasil alguns
Adam Smith. Em 1803, Thomas Lindley conheceu um padre anos mais tarde, quando os maiores portos foram finalmente
de Salvador, Agostinho Gomes, cuja biblioteca era “muito abertos aos navios estrangeiros ($15), mostra o quanto era
completa” em obras inglesas e francesas, entre elas as de rigoroso o controle mantido mesmo então”. Sua bagagem foi
Button, Lavoisier, d'Alembert, o Dictionnaire des métiers examinada na alfândega, e seus livros, embora fossem exclu-
et des arts*, a History of America, de William Robertson, sivamente de uso pessoal, foram todos confiscados. Depois de
e o livro de Thomas Payne. Um inventário, feito cinco anos muito esforço— no final teve de formalizar uma petição ao go-
antes na mesma cidade, dos bens pertencentes aos líderes vernador da capitania e fornecer-lhe uma lista com a tradução
da Inconfidência Baiana, incluía as CEuvres, de Condillac, o de todos os títulos =, foi-lhe permitido, por cortesia, receber os
Traité élémentaire de chimie, de Lavoisier, a História das Re- livros de volta, mas no navio: autorizá-lo a introduzi-los no
voluções Acontecidas no Governo da República Romana, de país era algo totalmente inadmissível. Sua conclusão pessoal
Aubert de Vertot, o Dictionnaire philosophique, de Voltaire, foi que as restrições do governo tornavam o contrabando o
e muitas obras de Antonio Genovesi. Outro baiano, o mé- único meio pelo qual se podia conseguir a entrada de livros no
dico e estadista José Lino Coutinho, possuía livros de Jean país. Na verdade, a vigilância, a competência, a honestidade
Duplan, Johann Spurzheim, Henry Thornton, Condorcet, e o grau de liberalidade empregados no funcionamento da
d'Alembert, Montesquieu, Mirabeau, Holbach, Pradt, Raci- censura dos livros importados variavam consideravelmente
ne, Jeremy Bentham, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson. conforme o lugar e a época, como deixa claro Rubens Borba
Pode ser que Coutinho tenha obtido seus livros, ou pelo de Moraes, em Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial"º,
menos alguns deles, durante os últimos quinze anos de sua Visto que as autoridades dificilmente poderiam pretender
vida, quando sua circulação já não era ilegal. Nos outros ca- acabar totalmente com o contrabando ao longo do enorme
sos, é claro que os livros entraram no país como contraban- litoral do Brasil, era obviamente mais fácil a fiscalização junto
do. Alguns podem ter vindo na bagagem de viajantes, talvez aos livreiros. Em 30 de maio de 1809,0 chefe da polícia do Rio
quando seus donos retornavam de seus estudos na Europa, de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, proibiu expressamente os
mas é difícil admitir que Cláudio Manuel da Costa, um líder donos de livraria de publicar quaisquer listas de suas mercado-
da Inconfidência Mineira, possa ter formado desse modo sua rias até que fossem escoimadas do material contrabandeado.
biblioteca de 383 volumes, e menos ainda poderia tê-lo feito A exclusão do comércio legítimo de tantos livros que as
Luís Vieira da Silva com seus 800 volumes. De fato, os livros pessoas, manifestamente, desejavam ler explica por que o
eram apenas mais um item do considerável comércio ilegal Rio de Janeiro pôde manter-se com apenas duas livrarias
mantido com a América do Sul pelos ingleses, franceses e durante todo o período vice-real, e mesmo depois que a vida
holandeses durante quase todo o período colonial. Há regis- econômica e cultural da cidade foi transformada, em muitos
tro de que, já em 1740, foi apreendido um navio inglês que
tentava contrabandear livros para Buenos Aires. Liebman”?
cita, em Os Judeus no Novo Mundo, uma carta escrita em 8. Torre Revello, op. cit.
9. Henry Koster, Travels in Brazil, Londres, Longman, 1816, reim-
1622 e dirigida à Santa Inquisição, em Lima, na qual o au-
pressão: Carbondale (Il1.), 1966. Traduzido por Luís da Câmara
Cascudo com o título de Viagens ao Nordeste do Brasil, São Paulo,
6. Cf. nota 2 deste capítulo. Nacional, 1942.
7. Seymour B. Licbman, New World Jewry, 1493-1825: Requiem for ro. Rubens Borba Alves de Moraes, Livros e Bibliotecas no Brasil
the Forgotten, Nova York, Ktav, 1982, p. 196. Colonial, Rio de Janeiro, LTC, 1979, pp. 57-60.
106 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 107

outros aspectos, pela chegada do governo português no exi- mente recolhidas às sete horas da manhã de 29 de novem-
lio, no início de 1808. Este acontecimento teve tamanho al- bro, domingo. Nessa altura, as tropas do marechal Junot
cance (e foi, também, tão bizarro em certos aspectos) que estavam tão próximas que a última fragata a sair do porto
merece um relato detalhado. enfrentou o fogo da artilharia francesa.
O capitão Francisco Maximiliano de Souza, em seu bri-
gue chamado apropriadamente Voador, foi mandado à fren-
$rs A CHEGADA DO PRÍNCIPE REGENTE
te para antecipar aos cariocas a notícia de seu novo destino
de cidadãos da sede do governo imperial. O brigue aportou
Ao longo de 1807, a política francesa na península Ibérica na baía da Guanabara em 14 de janeiro de 1808, apenas
começou a forçar as autoridades portuguesas a uma escolha quarenta e seis dias depois de sua partida.
extremamente incômoda: ou colaborariam com Napoleão, Todos os demais participantes da armada fizeram uma
na esperança de manter sua posição em Portugal, mas en- travessia extremamente desagradável. Somente no Príncipe
frentando a certeza da perda de seu império colonial para a Real viajavam 412 passageiros, além da tripulação. Quase
Grã-Bretanha, ou apoiariam seu antigo aliado e correriam todos enjoaram e até as damas ficaram tão cheias de piolhos,
o risco de anexação do território metropolitano português por causa da superlotação do navio, que tiveram de raspar
por parte da França. O rei da Espanha, diante de idêntico as cabeças. Tão logo partiram, os navios foram espalhados
dilema, escolhera a colaboração, pois perderia o trono e o por uma tempestade e só voltaram a reunir-se com muito
império. Seu genro português tomou a decisão contrária e custo em $ de dezembro. Apenas três dias depois, outra tem-
aceitou a oferta britânica de escoltar toda a corte e o gover- pestade os atingiu, espalhando-os novamente. Os três pri-
no em sua viagem pelo Atlântico, rumo ao Brasil. meiros vasos de guerra e três fragatas, com suas escoltas,
Desde a última semana de agosto, estava sendo consi- os H. M.S. London, Marlborough e Monarch, foram de tal
derada a possibilidade de tal mudança, mas o príncipe re- modo empurrados pela segunda tempestade que chegaram
gente manteve as negociações, pelo máximo tempo possível, ao Rio apenas quatro dias depois da chegada do Voador,
com os dois lados, merecendo por isso a honra de ter sido sem qualquer notícia do destino dos outros navios da frota,
considerado por Napoleão o único homem que conseguira entre eles o Príncipe Real, onde viajava o príncipe regente, e
enganá-lo. À decisão final de partir só foi tomada na noite o Afonso de Albuquerque, que transportava sua esposa, que,
de 24 de novembro. Entre este momento e a noite de 27, cen- caracteristicamente, preferira viajar em separado.
tenas de funcionários e suas famílias foram embarcados — Na verdade, alguns dias depois, em 22 de janeiro, a fami-
sob uma chuva torrencial - em apenas seis pequenos navios lia real fora forçada a aportar em Salvador, onde, por uma
de linha (Príncipe do Brasil, Rainha de Portugal, Infante D. questão de cortesia para com seus habitantes e pelo desejo
Henrique, Príncipe Real, Afonso de Albuquerque e Medusa) de repousar e reconquistar sua dignidade (e seus cabelos),
e quatro fragatas (Golfinho, Martim de Freitas, Minerva e vira-se obrigada a uma estada bastante prolongada. Assim,
Urânia). Seguiram com eles não apenas grande parte de seus o príncipe regente e sua entourage desembarcaram no Rio
pertences pessoais, como também os arquivos dos vários de- somente em 7 de março de 1808.
partamentos e tudo o que era necessário para a transferência O impacto da súbita chegada de toda a corte e do gover-
do aparato do governo imperial para o Novo Mundo; foram no metropolitano, com a burocracia que o acompanhava,
embarcados inclusive os sessenta mil volumes da Biblioteca foi revolucionário. Estima-se comumente o número total de
Real. Persuadir a rainha louca, dona Maria 1, a embarcar foi émigrés em dez a quinze mil pessoas. Se aceitarmos a estima-
uma dificuldade, mas mesmo isso foi finalmente conseguido. tiva de Luccock"!, segundo a qual o Rio, após a chegada da
Depois que toda a carga, material e humana, foi empur-
rada para bordo, abarrotando os navios, o governo ainda
11. John Luccock, Notes on Rio de Janeiro and the Southern Parts of
hesitava em concretizar a importante decisão. Um temporal Brazil..., Londres, Leigh, 1823. Tradução brasileira: Notas sobre o
adiou um pouco mais a partida, mas as âncoras foram final- Rio de Janeiro, 1802-1822, São Paulo, Martins, 1942.
ro8 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 109

corte, tinha uma população de sessenta mil habitantes (um sua nova pátria dos grilhões do mercantilismo. Doravante,
cálculo, sem dúvida, generoso, pois o censo de 1821 infor- o Brasil poderia implantar as indústrias que lhe aprouves-
ma apenas 79231 habitantes), isso significaria que a corte sem, e seus cinco maiores portos (Belém, São Luís, Recife,
aumentara a população total em vinte ou trinta por cento: Salvador e Rio de Janeiro) foram abertos ao comércio e aos
a classe alta deve ter no mínimo dobrado. Esses números, navios do mundo inteiro.
porém, importariam numa média de duas mil pessoas por Uma vez instalados na nova capital, dom João e seus mi-
navio, ao passo que, como vimos, o maior dos navios de nistros deram início, com entusiasmo, a múltiplos empreen-
guerra levava apenas 412 passageiros. dimentos, desde a expulsão dos franceses da Guiana até a
Mesmo que aceitemos o total de dois mil exilados como criação de um jardim botânico. O Rio de Janeiro beneficiou-
uma estimativa mais realista, ainda assim este número seria -se dessa atividade, ganhando (além do Jardim Botânico)
suficiente para provocar enorme impacto numa cidade que uma escola de medicina, um laboratório de química, uma
ainda era um atrasado lugarejo colonial. Na verdade, a vida Academia de Belas-Artes, um Museu Nacional, o primeiro
cultural do Rio foi transformada por essa grande afluência de Banco do Brasil e a Biblioteca Real (hoje Nacional) que o
servidores civis bem pagos e com os gostos refinados de um governo trouxera de Lisboa. Os habitantes também foram
grande centro europeu. Por mais importante que tenha sido estimulados pelo exemplo real, bem como pela crescente im-
o aumento das exigências de consumo, os efeitos da mudan- portância e prosperidade da cidade: para exemplificar, Luc-
ça foram, do ponto de vista econômico, muito mais amplos. cock cita o fato de os comerciantes locais coletarem fundos
Doravante, todos os impostos e outras riquezas destinadas ao para assegurar o futuro da educação pública.
governo, que, antes, eram enviados a Lisboa, permaneceriam Aumentou também de forma lenta, mas constante, O
no Rio de Janeiro e iriam beneficiar a cidade. Os resultados número de livrarias, que passaram de duas em 1808 para
econômicos brutos são revelados pelo aumento da oferta mo- cinco em 1809, sete em 1812 e doze em 1816. Muitas de-
netária: em r8ro, a Casa da Moeda cunhava 1 278:842$000 las, evidentemente, eram estabelecimentos paupérrimos.
de ouro" por ano, cifra quintuplicada ao longo da década Visitantes que estiveram no Rio entre 1817 e 1820 afirma-
seguinte. Podemos avaliar as condições anteriores pela expe- ram que havia apenas quatro livrarias na cidade. Seja como
riência de Luccock no Rio Grande do Sul, aonde chegou em for, os Ipanemas'* registraram-nas como segue: 1808, Pau-
princípios de 1809, com uma carga de mercadorias variadas, lo Martin e Manuel Jorge da Silva; 1809, Francisco Luís
e descobriu ser impossível vendê-las: a região mal tinha im- Saturnino da Veiga, Manuel Mandillo (que, após 1814, se
plantado uma economia monetária, as moedas eram escassas, associou a José Borges de Pinho) e João Roberto Bourgeois;
as letras de câmbio desconhecidas, e o comércio, mesmo a 1812, Manuel Joaquim da Silva Porto (associou-se, depois
varejo, ainda era, em larga escala, feito na base da troca. de 1815,a Pedro Antônio de Campos Bellos), e José Antônio
A mudança marítima operou milagres no próprio prín- da Silva; 1815, Carlos Durand; 1816, Fernando José Pinhei-
cipe regente: este homenzinho gordo, indolente, marido do- ro, Jerônimo Gonçalves Guimarães, Francisco José Nicolau
minado pela esposa, conhecido por seus súditos como “João Mandillo e João Batista dos Santos; 1818, Antônio Joaquim
Burro”, que presidia o regime mais letargicamente conserva- da Silva Garcez, João Lopes de Oliveira Guimarães e Ma-
dor da Europa, chegou ao Novo Mundo “despido de tudo, nuel Monteiro Trindade Coelho.
exceto sua honra” “ — e logo se tornou uma dinâmica força O espantoso é que tão extensas mudanças, quer na vida
progressista. Em 20 de janeiro de 1808, logo na primeira intelectual quer na material da cidade, não tenham estimula-
semana após a chegada à Bahia, teve a coragem de libertar do uma expansão maior das livrarias, mas é que o braço da
censura ainda se fazia sentir pesadamente sobre o comércio
legítimo. De acordo com Luccock, o príncipe (após 1815,0
12. Eduardo Tourinho, Revelação do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1964. Os valores monetários brasileiros estão
indicados no apêndice (p. 753). 14. Marcello e Cybelle de Ipanema, “Subsídios para a História das
13. Rubens Borba de Moraes, Livros e Bibliotecas..., op. cit. Livrarias”, Revista do Livro, vol. To, n. 32, pp. 22-32, 1967.

ro Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin

rei) dom João era, pessoalmente, favorável a uma imprensa CONCEIÇÃO VELOSO Sr6
livre, mas não ousava agir nesse sentido, em virtude da posi-
ção totalmente reacionária da maioria de seus funcionários. A presença francesa em Portugal fez com que as velhas res-
Uma das consequências dessa ambiguidade foi o cresci- trições coloniais à impressão deixassem de ser exequíveis.
mento, em Londres, de uma considerável indústria editorial Além disso, o governo precisava de um prelo no Brasil para
em língua portuguesa e, após 1814, de outra ainda maior em seus próprios propósitos. Pereira da Silva, em História da
Paris, que trabalhavam para suprir um comércio ilegal gran- Fundação do Império Brasileiro, sugere a existência de um
demente estimulado pela abertura dos portos. Eram produ- prelo medíocre no Rio por ocasião da chegada da corte. E
zidos tanto livros como periódicos, dos quais o mais impor- acrescenta que era usado pelo vice-rei para impressos ofi-
tante foi o jornal mensal Correio Braziliense, de Hipólito ciais, mas já estava tão velho e gasto que o novo governador
José da Costa, natural do Brasil. Esse periódico clamava pela imediatamente mandou vir um outro da Inglaterra.
independência do Brasil e, com sua proclamação em 1822, Contudo, a história aceita de modo geral é um tanto di-
Hipólito suspendeu a publicação. Entrementes, revelou-se ferente'”, Acredita-se que não houve prelo no Rio de Janeiro
tão incômodo ao governo que este tentou, sucessivamente, após a expulsão de Isidoro da Fonseca, em 1747 (S10). To-
impetrar uma ação judicial na Inglaterra, pressionar o go- davia, o Ministério das Relações Exteriores de Portugal ti-
verno britânico, subornar e até mesmo publicar um jornal nha encomendado na Inglaterra, um pouco antes do ataque
rival, O Investigador Portuguez na Inglaterra (1811-1879). de Napoleão, alguns equipamentos no valor de cem libras.
No entanto, Koster pôde encontrar servidores civis, oficiais A encomenda consistia em dois prelos (Miranda fala de ape-
do exército e membros do clero a lerem, abertamente, o Cor- nas um, tendo sido o outro fabricado no Rio de Janeiro, em
reio, pois, apesar de todos os esforços do governo, o jornal 1809) e vinte e oito fontes de tipos, que ainda permaneciam
era livremente contrabandeado para o Brasil's. “Livremen- no cais de Lisboa, encaixotados, por ocasião dos preparati-
te? talvez seja exagero: é inevitável que as mercadorias con- vos para a partida da corte para o Brasil. Antônio de Araújo
trabandeadas sejam caras; ainda que se possa driblar, em Azevedo (então ministro do Exterior) deu ordens para que
larga escala, as restrições oficiais, a própria existência de tais o equipamento fosse embarcado no navio Medusa, de 74
restrições significava que a circulação desses itens proibidos canhões, em que ele próprio viajaria.
seria limitada, pelo preço, às pessoas abastadas. Assim, a arte de imprimir com tipos móveis, que os go-
Uma vez criado, o comércio editorial de livros de Paris vernantes portugueses, como parte de sua política geral de
em língua portuguesa iria percorrer uma longa história e, manter a colônia técnica e intelectualmente dependente, se
quando deixou de ser importante como atividade editorial empenharam por tanto tempo para não deixar chegar ao
propriamente dita, continuou a sê-lo como atividade gráfica Brasil, por uma dessas pequenas ironias da história, acabou
até 1930. Durante a primeira metade do século x1x, era co- sendo trazida para o país pelo próprio governo.
mum o aparecimento de edições sucessivas da mesma obra Quando Antônio de Araújo Azevedo, que mais tarde se tor-
no Brasil, em Portugal e na França: o Plutarco Brazileiro, de nou conde da Barca, chegou ao Rio, mandou instalar o prelo
João Manuel Pereira da Silva, teve publicada uma primeira no andar térreo de sua própria residência, na rua do Passeio,
edição no Rio, em 1847, a segunda em Paris, em 1858,e a nº 44. Diz-se que confiou o trabalho de impressão a alguns
terceira (1868) foi publicada no Rio, mas impressa em Paris. fuzileiros do Príncipe Real e marinheiros do Medusa, que já
Essa indústria editorial de Paris, até 1850, foi estudada deta- tinham tido alguma experiência como tipógrafos em Lisboa.
lhadamente pelo perito português Vítor Ramos'*. Entre eles, devia haver pelo menos um mestre no ofício, pois
os trabalhos produzidos, apesar dos limitados recursos dis-

15. Henry Koster, op. cit. 17. José Veríssimo de Mattos, “A Imprensa”, em Associação do Quar-
16. Vitor Ramos, A Edição de Língua Portuguesa em França, 1800-18ç0..., to Centenário do Descobrimento do Brasil, Livro do Centenário, Rio
Paris, Fundação Calouste Gulberkian, 1972. de Janeiro, Imprensa Nacional, 1900, vol. 4, p. 32.
112 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 113

poníveis, atingiram um padrão técnico e artístico equivalente pachos publicados na corte pelo expediente da Secretaria de
ao dos melhores trabalhos que então se faziam em Londres e Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no faustíssi-
em Paris. Na opinião de Rubens Borba de Moraes, bibliófilo mo dia dos annos de S.A. R.o príncipe regente N.S. E. de to-
e bibliotecário paulistano, “alguns dos trabalhos produzidos dos mais, que se tem expedido pela mesma Secretaria desde
nesse período são obras-primas de tipografia: nada de compa- a feliz chegada de S. A. R. aos Estados do Brasil até o dito dia.
rável jamais foi produzido no Brasil desde então”*. A Carta Régia que o acompanhava, com a qual abrimos
É de supor que tudo isso se deva ao irmão José Mariano este capítulo, transmite a impressão de que o ministro do Ex-
da Conceição Veloso, um religioso mineiro que o historiador terior, que havia tido a previdência de trazer um prelo para
Charles Ralph Boxer comparou ao bibliógrafo chileno José uso do seu próprio ministério, viu seu imprevidente soberano
Toribio Medina, na incrível capacidade de trabalho. Veloso apropriar-se do equipamento. Alexandre Passos julga, ao con-
fora para Lisboa em 1790 e lá associou-se a outros brasilei- trário, que a proclamação foi ideia de Araújo Azevedo, o que
ros num projeto de publicação de obras de agricultura tro- pode explicar o fato de o “governo e administração” da oficina
pical e outros trabalhos científicos que pudessem auxiliar o terem continuado sob a competência exclusiva deste ministro.
desenvolvimento da colônia. Isso levou o grupo a instalar, Mas a gerência técnica e prática cabia, sem dúvida, ao irmão
em 1800, um prelo e uma fundição de tipos, a Typographia Conceição Veloso. Foi ele também quem tomou providências
Chalcographica, Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego, para assegurar-lhe uma fonte local de papel na Baixada Flumi-
nome derivado do endereço junto àquele arco lisboeta. A nense (cf. $58). Em pouco tempo (em 1810), uma fundição de
oficina produziu cerca de setenta títulos, excepcionalmente tipos seria acrescentada às instalações da Impressão.
bem impressos, até 7 de dezembro de 1801, quando foi in- Dois meses depois, em 26 de julho de 1808, o decreto
corporada ao departamento de imprensa do governo por- foi emendado por uma declaração de que uma das princi-
tuguês, conhecido depois como Impressão Régia, de cuja pais razões para a criação da Impressão Régia tinha sido
Junta Econômica e Administrativa Veloso foi indicado um auxiliar a expansão da educação pública. Três proeminentes
dos diretores literários, ao lado de Hipólito José da Costa e cidadãos foram, então, nomeados seus diretores: o desem-
dos professores reais Custódio José de Oliveira e Joaquim bargador José Bernardes de Castro, Mariano José Pereira da
José da Costa e Sá. Seis anos mais tarde, Veloso retornou ao Fonseca (futuro marquês de Maricá) e José da Silva Lisboa
Brasil com a família real para trabalhar com o prelo do Rio (mais tarde visconde de Cairu). Permaneceram nos cargos
(também chamado Impressão Régia), trazendo consigo dois até 1830, mesmo com a criação, em 1815, de outras qua-
dos gravadores que trabalhavam com ele em Lisboa: Romão tro diretorias. De 1830 a 1834, a Impressão esteve a cargo
Elói de Almeida Casado e Paulo dos Santos Ferreira Souto. de um único diretor, o cônego Januário da Cunha Barbosa
Mais tarde, juntaram-se a estes João José de Souza, Antônio (1780-1846), “ardente defensor das ideias democráticas”"?,
do Carmo Pinto de Figueiredo Mendes Antas e outros, dos Até 1822, a Impressão Régia deteve o monopólio da
quais o mais importante foi o gravador João Caetano Rivara. impressão no Rio de Janeiro. O objetivo dessa medida foi,
principalmente, ajudar suas finanças: os primeiros anos do
século já haviam testemunhado privilégios análogos, porém
A IMPRESSÃO RÉGIA menos abrangentes, outorgados à Impressão do governo em
Lisboa, que recebeu, a partir de 19 de abril de 1803,0 mono-
A inauguração oficial do novo prelo aconteceu em 13 de pólio da impressão dos “papéis volantes do tráfego econô-
maio de 1808, dia do aniversário do príncipe regente, com mico, civil e mercante de uso diário”, ao qual foi acrescenta-
a publicação de um folheto de 27 páginas, com 295 mm de do, em 1º de janeiro de 1808, o direito exclusivo de imprimir
altura, em tipos equivalentes a 14 pontos: Relação dos des- qualquer tipo de lei ou instrumento legal.

18. Rubens Borba Alves de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, São Paulo, 19. Cláudia Marino Semeraro e Christiane Ayrosa, História da Tipo-
Nacional, 1965, p. 191. grafia no Brasil, São Paulo, Museu de Arte, 1979.
114 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin LIS

Durante o período de catorze anos de monopólio das im- declinação do sol, de latitudes e de longitudes; uma ou duas obras
pressões no Rio, foram produzidos muito mais de mil itens. de geografia é um Tratado das Doenças dos Negros”.
Diz Rubens Borba de Moraes*º que foram mais de 1250,
mas conseguimos descobrir apenas 1192, assim distribuí- Estas observações são um pouco injustas, pois entre a pro-
dos: trinta e oito em 1808, sessenta e dois em 1809, noventa dução dos dez primeiros anos da imprensa figuram:
e nove em 1810, setenta e um em 1817, sessenta € dois em
1812, trinta em 1813, vinte e quatro em 1814, quarenta € 1808: Relação dos Despachos; Observações sobre o Comércio
quatro em 1815, quarenta e nove em 18716, quarenta e seis Franco do Brasil, pelo ministro responsável pela nova polí-
em 1878, quarenta e quatro em tica, José da Silva Lisboa; e Memória Histórica da Invasão
em 1817, quarenta e um
1819, quarenta e dois em 1820, duzentos e quarenta e três dos Franceses em Portugal em 1807.
em 1821, duzentos e noventa e seis em 1822 e mais um de 1809: Elementos de Álgebra, de Euler, e Elementos de Geometria,
data desconhecida. Os números referentes aos dois últimos de A.M. Le Gendre, ambos traduzidos por Manuel Ferreira
anos testemunham o súbito aumento das publicações no de Araújo Guimarães, o segundo com treze belas gravuras
Brasil que se seguiu ao fim da censura. No entanto, mesmo por Romão Elói.
sem esse auxílio final, a produção total pode ser comparada 1810: Observações sobre a Prosperidade do Estado pelos Libe-
favoravelmente com a da Impressão Régia em Portugal, que rais Princípios da Nova Legislação do Brasil (in-oitavo,
levou trinta e dois anos — de sua criação, em 24 de dezembro 95 páginas); Observações sobre a Fraqueza da Indústria
de 1768, até o final do século — para produzir seus primeiros e Estabelecimento de Fábricas no Brasil (in-oitavo, 313
1230 itens. páginas); Refutações das Reclamações contra o Comércio
parte desses 1192 (ou mais de 1250) itens da Inglês, todos de autoria de José da Silva Lisboa; Roteiro
Grande
Impressão Régia brasileira era constituída de documentos e Mapa da Viagem de S, Luiz do Maranhão até a Corte,
do governo, cartazes, volantes, sermões, panfletos e outras de Sebastião Gomes da Silva Berford, com mapa gravado
publicações secundárias. John Luccock rejeita o resto de sua por Ferreira Souto; Preâmbulo, ou Ensaio Filosófico e Polí-
produção de forma um tanto rude: tico sobre a Capitania do Ceará para Servir à sua História
Geral, de João da Silva Feijó; Tratado de Aritmética por
A Imprensa Régia produziu mais algumas obras úteis além das que Lacroix, traduzido por Silva Torres; Tratado Elementar de
se referem a questões militares. Entre elas, estimamos como a de Física, de Hay (2 volumes ilustrados, com 400 páginas
maior valia o Thesouro dos Meninos, que trata de “moral, virtude cada um); Ensaio sobre a Crítica, de Alexander Pope, tra-
e boas maneiras”. Com muita propriedade, foi dedicado a D. Mi- duzido e anotado pelo conde de Aguiar, com um retrato
guel, segundo filho do Rei, pois não há menino que tanto necessite do autor no frontispício gravado por Elói (200 páginas in-
dos seus ensinamentos como esse; sua educação foi mui limitada e -quarto), e o poema Marília de Dirceu, partes 1-3, em três
infeliz. Um livro intitulado Lições de Filosofia contém por demais volumes in-oitavo (336 páginas ao todo), a primeira obra
dogmas de Aristóteles e dos tempos sombrios para que demonstre de literatura brasileira publicada no Brasil, e muito bem
que seu Autor não é nem instruído nem judicioso. Temos também feira, com uma esplêndida folha de rosto ($12).
1811: Ensaios Moraes, de Pope, pelo mesmo tradutor, e com um
a História de Ilusões Extravagantes e Influência Sobrenatural; as
Leis Comerciais do Brasil, várias obras úteis sobre comércio e na- frontispício feito pelo mesmo gravador (Rubens Borba
vegação, muito especialmente um almanaque náutico calculado de Moraes se extasiou com estas duas traduções de Pope,
para o meridiano do Rio, obra mal feita, mas seguida de tábuas de considerando-as obras-primas de sobriedade e harmonia
clássica, dignas de um Didot, maravilhosamente impres-
sas em papel forte e muito bom; ele ficou particularmente
impressionado com a maneira feliz pela qual os tipógrafos
20. Ana Maria de Camargo e Rubens Borba de Moraes, Bibliografia
da Impressão Régia, São Paulo/Rio de Janeiro, Edusp/Kosmos, 1993,
2 vols. 21. John Luccock, op. cit.
116 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 117

resolveram o plano dos Ensaios Moraes, com suas compli- Portugal como no Brasil, até o final do século); Elementos de
cadas notas); O Uraguay, de Basílio da Gama ($9); um Ro- Geodesia, compilado por Araújo Guimarães; e a História da
teiro da Cidade de Santa Maria de Belém do G. Pará pelo Donzela Teodora, traduzido do espanhol por Carlos Ferreira
Rio Tocantins, de Oliveira Bastos; as Obras Completas, Lisbonense e que se tornaria um dos contos mais difundidos
de Manuel Barbosa du Bocage, o mais importante poeta nos folhetos de poesia popular brasileira.
português de fins do século xvim (especialmente popular 1816: Filosofia Quimica, de A. E Fourcoy, traduzido por Henri-
no Brasil em virtude de ter permanecido no Rio de 1786 a ques de Paiva; e uma Coleção de Retratos de Todos os Ho-
1787) eseu O Consórcio das Flores, traduzido de Lacroix; mens que Adquiriram Nome pelo Génio, Talento, Virtudes
Compêndio por Bento da Silva Lisboa da Riqueza das Na- [...] desde o Princípio do Mundo, os retratos de autoria de
ções de Adam Smith (3 volumes, 1811-1812); e Paul e Vir- Antônio de Carmo, gravados por João José de Souza.
gínia, de Saint-Pierre. 1817: Corografia Brasileira, ou Relação Historico-geográfica do
1812: Elementos de Álgebra, de Lacroix, traduzido por Francisco Reino do Brasil, de Manuel Aires de Cabral.
Correia da Silva Torres; Elementos de Geometria Descriti- 1818: Obras, de Virgílio, traduzidas em versos portugueses por
va Extraídos da Obra de Monge, de José Vitorino dos San- Antônio José de Lima Leitão (3 volumes, 1878-1819).
tos e Souza; Tratado Elementar de Mecânica, de Francceur,
traduzido por José Saturnino da Costa Pereira; Ensaio so- Muitos dos “trabalhos úteis” a que se refere Luccock
bre os Perigos das Sepulturas dentro das Cidades e nos seus estavam direta ou indiretamente relacionados com proble-
Contornos (tema muito discutido naquela época), de José mas de interesse do governo: economia política, geografia,
Correia Picanço; e as Obras Poéticas, do poeta de meados agrimensura, medicina, saúde pública, até desenho e astro-
do século xvitt, Correia Garção. nomia, pois eram matérias do currículo da Academia Mili-
1813: Tratado de Óptica, de La Calille, traduzido por André Pin- tar. Havia também um número considerável de trabalhos de
to; Prelecções Philosophicas sobre a Theoria do Discurso propaganda relativa às guerras napoleônicas, os quais foram
e da Linguagem, a Esthetica, a Diceósyna e Cosmologia, excluídos de nossa seleção por serem, na sua maioria, pan-
de Silvestre Pinheiro Ferreira; a tradução de Costa Barreto fletos efêmeros.
dos Aforismos sobre as Hemorragias Uterinas e Convul- O mais importante no desenvolvimento das publicações
sões Puerperais, de Thomas Denman, reimpressa por or- brasileiras foi o fato de a Impressão também ter executado
dem do príncipe regente para a nova escola de medicina; e uma quantidade apreciável de trabalhos para a livraria de
um Tratado Elementar de Arte Militar, de Gay de Vernon, Paulo Martin e outros livreiros do Rio, bem como direta-
traduzido por João de Souza Pacheco Leitão. mente por encomenda dos autores: podemos distinguir as
1814: Elementos de Astronomia, compilados por Araújo Guima- publicações oficiais (“por ordem de S. A. R”) das outras que
rães para a Real Academia Militar; Compêndio de Matéria trazem apenas a declaração “com licença de S. A. R:”. O prin-
Médica, por José Maria Bomtempo; e Discurso Fundamen- cipal objetivo deste serviço para particulares era aumentar a
tal sobre a População, de Herrenschwand, traduzido por renda do prelo: o precedente fora aberto pela imprensa ofi-
Luís Prates de Almeida Albuquerque. cial de Lisboa, porquanto 77,4% dos títulos que publicou no
1815: Memórias da Vida Pública..., do duque de Wellington, tra- século xvrI foram encomendados por pessoas e entidades de
duzido por José da Silva Lisboa, em dois volumes (outro fora do governo. Mas os preços da Impressão Régia do Rio
trabalho que impressionou muito Rubens Borba de Moraes, eram altos e sua capacidade, limitada, tanto por razões físicas
especialmente a forma magistral, o equilíbrio, a harmonia e como em virtude de crônicas dificuldades econômicas. Portu-
a ênfase adequada pela qual as palavras-chave foram exe- gal tinha a dupla vantagem de oferecer preços de impressão
cutadas na folha de rosto com seu longo e prolixo título); mais baixos e um mercado mais amplo. Assim, tão logo o
Primeira Linha sobre o Processo Orphanologico, de José país se viu livre da ocupação francesa, muitos autores reto-
Pereira de Carvalho (um livro didático de leis que se tornou maram o velho hábito de publicar suas obras na metrópole.
um trabalho-modelo, constantemente reimpresso tanto em São alguns exemplos, extraídos da História da Inteligência
118 Conceição Veloso e Paulo Martin
Conceição Veloso e Paulo Martin TI9
Brasileira, de Wilson Martins: a primeira edição do Dicciona-
lição da censura. Uma delas incluía mais de noventa títulos,
rio da Lingua Portuguesa (1813), de Antônio Moraes e Silva;
entre os quais:
os Sonetos sobre Diversos Assuntos (Lisboa, Officina régia,
1815), de Antônio Joaquim de Abreu; uma reedição do poe-
Acontecimentos no Pará acerca da Constituição, 16280;
ma As Artes (1821), de Manuel Inácio da Silva Alvarenga; as
O Amante da Humanidade, ou Meios de Extinguir a Mendicidade
Memórias para Servir à Historia do Reino do Brasil (Lisboa,
em Portugal, 8640;
Impressão Régia, 1825), do padre Luís Gonçalves dos Santos;
Apontamentos sobre os Antigos Abuzos do Antigo Governo de
Ensaio sobre as Febres (1829), de Francisco de Melo Franco,
Portugal;
e mesmo as duas primeiras obras do futuro Patriarca da In-
De Theodoro ]. Biancardi: Cartas Americanas, 18600;
dependência, José Bonifácio, que foram publicadas por sua
De Manuel Borges Carneiro: Collecção de Oito Parábolas, 48960;
própria conta, em Lisboa, em 1815 eem 1816.
Elogio, 8480; A Magia e mais Superstições Desmascaradas, $960;
Portugal Regenerado, 3. ed., 18280;
Catecismo da Constituição Hespanhola, 1$280;
418 A LIVRARIA PAULO MARTIN
De José Daniel: O Balão, $960; Conversações das Senhoras antes
do Chá, $640; Portugal Convalecido, $160; Portugal Enfermo
Pelo que se lê em anúncio de r808, a obra Relação dos Des-
por Vícios e Abusos de Ambos os Sexos, 18920; Prazer do Lu-
pachos estava à venda na livraria de Manuel Jorge da Silva,
zitano, $320; Tizoura de Critica, $640; A Verdade Exposta a
na rua do Rosário, porém, a maioria dos livros que a Impres-
sua Magestade, $240;
são Régia produziu para um livreiro traz o nome de Martin.
Direitos do Povo Portuguez, 18920;
Particularmente, o primeiro jornal do Rio, a Gazeta do Rio
De Gomes Freire: Allegação de Facto e Direito sobre o Processo de
de Janeiro, cujo número de lançamento apareceu em 10 de
G. E, 13920; Analyse da Sentença de G. E, 18960;
setembro de 1808, deveria ser adquirido “em casa de Paulo
Meios de se Pagar a Divida Publica, $960;
Martin Filho, mercador de livros no fim da rua da Quitan-
Memoria sobre as Minas Consideradas como Fontes de Riqueza
da”. O Almanaque da cidade para o ano de 1811, em sua
Nacional, 18600;
lista de administradores e empregados da Impressão, confe-
Reflexões Philosophicas sobre a Liberdade e a Igualdade, $160;
re a esse livreiro o status de distribuidor oficial da Gazeta.
Reflexões sobre o Pacto Social e sobre a Constituição de Portugal, 8960;
Infelizmente, raras vezes temos meios de saber se partiu
De Francisco de S. Luiz: Synonimo da Lingua Portuguesa, 38200;
do livreiro ou do autor a iniciativa de imprimir uma publi-
De Soares Franco: Ensaio sobre o Melhoramento de Portugal e do
cação que não era “por ordem de Sua Alteza Real”, embora
Brazil, 28400;
alguns casos possam ser muito bem identificados. Rubens
De United States of America: Constituição dos FEUU, $640.
Borba de Moraes está pronto a afirmar dogmaticamente:
“muitos romances impressos na Imprensa Régia foram
A mesma propaganda também oferecia jornais de Salva-
publicados por Paulo Martin [...). Ele mandava imprimir
dor e de Lisboa e atas do parlamento português. As notícias
romances, contos, folhetos políticos, poemas e orações fú-
nebres que vendia em sua loja, na rua da Quitanda nº 34.
da capital portuguesa eram de interesse imediato dos brasi-
leiros. Em 24 de agosto de 1820, os liberais portugueses, sob
Ele era um homem empreendedor que fazia publicidade de
seus produtos”**, o comando de Manuel Fernandes Tomás, apoderaram-se do
Porto e, em 5 de outubro, estavam em Lisboa. Sua Junta
As propagandas mais interessantes de Martin são aque-
Provisória convocou as cortes, para as quais o Brasil foi con-
las que apareceram após 28 de agosto de 1821, data da abo-
vidado a enviar representantes, com o objetivo de elaborar
uma constituição.
Estes acontecimentos despertaram, naturalmente, enor-

23, Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 2. ed., São Pau-


me interesse por constituições, formas de governo e política
.—

lo, Nacional, 1975, p. 173.


em geral, mas por algum tempo a censura impôs um limite
tZ2o Conceição Veloso e Paulo Martin
Conceição Veloso e Paulo Martin 121

ao material disponível. A nova constituição portug


uesa, ins- foi um problema nas províncias; cf., por exemplo, $$44-48),
pirada na carta espanhola promulgada pelas cortes
de Cádis surgiu uma avalanche de publicações sobre política. Outra
em 1812 e agora recém-restaurada, aboliu a censur
a prévia propaganda de Paulo Martin Filho é bastante explícita:
em seu artigo virr. Esta constituição foi adotada
na noite
de 15 para 16 de fevereiro de 1821, porém, não
entrou em Direito das Gentes e do Foro, ou Princípios da Lei Natural, de Vatel,
vigor antes de 12 de julho. É interessante notar que,
no caso por 6$400; Contrato Social, de Rousseau, por 48000. Estas obras
da abolição da censura política, setenta deputados
votaram que outrora foram proibidas presentemente se tornam inteiramente
a favor e oito contra, ao passo que, com relação à censur
a clássicas e necessárias a toda classe de pessoas, pois estão sendo cita-
religiosa, a vitória se deu pela estreita margem de
46 a 32. das em todos os escritos verdadeiramente constitucionais”.
(Na Espanha, os liberais constituintes de 18
12 não ousaram
abolir de modo nenhum a censura religiosa.)
Os objetivos dos portugueses tornaram-se fundamen-
Nesse ínterim, em 21 de fevereiro daquele ano,
a Junta talmente opostos aos dos brasileiros, apesar do interesse
Provisória do governo na Bahia havia abolido a
censura lo- comum de ambos em pôr fim ao absolutismo do governo.
cal por sua própria iniciativa. No entanto, conti
nuou a to- O principal interesse dos leitores brasileiros mudou: da
mar medidas arbitrárias contra qualquer publicação
que, a teoria constitucional passou para os problemas políticos
seu juízo, abusasse da nova liberdade.
atuais, e especialmente para o das relações entre a Euro-
No Rio de Janeiro, um decreto de 2 de março libero
u a pa ea América. Encontramos, então, publicidade de livros
impressão de qualquer manuscrito, mas instituiu à
vigilância como os seguintes:
no estágio das provas em granel! Assim, o censor teve a
con-
veniência de uma cópia impressa, enquanto o impres
sor ficou A Europa e a América, 2 volumes, 9$600;
obrigado a correr o risco dos custos da composição
antes de A Revolução Atual na Espanha e suas Consequencias, 48000; .
saber se um trabalho poderia ser legalmente public
ado. Essa As obras de Deprat, em francês: Sobre as Colonias e a Revolução
medida foi revogada em 28 de agosto, mas o governo brasile
i- ora Ocorrendo na América, 2 volumes: encadernado 12$000,
ro continuou, de tempos em tempos, a interferir ilegal
mente brochura, ro$000;
na impressão até janeiro do ano seguinte (1822), quand
o José Tres Ultimos Meses da America, 48000;
Bonifácio, o Patriarca, foi nomeado ministro-chefe. “a ce
Carta ao Deputado em Cortes Luis Nicolau Fagundes Varela, escri-
É claro que subsistiu a possibilidade de um proces
so, ta por um liberal desta Corte, $120; =
após a publicação, por crimes claramente definidos,
como Dissertação, em que se Mostra, por um Eleitor de Paróquia, a Ne-
quase sempre acontecia em qualquer parte do
mundo. Na
DA

cessidade da Existência de sua Alteza Real no Brasil, para se


época, os principais crimes do tipo eram blasfêmia,
ataques Constituir não só a Desejada União com Portugal, mas a de
à religião católica, violação da moral cristã, difam
ação do Reciprocos e Iguais Interesses, $160;
ministro-chefe e incitamento à rebelião. Note-se
a ordem Incontestaveis Reflexões que um Português Europeu Oferece aos
de prioridade! Cipriano Barata, jornalista da oposi
ção e, a Sentimentais Brasileiros sobre os seus Futuros de Portugal, $o60;
partir de abril de 1821, editor do Sentinela da Liberdade
Aforismos Domesticos para Legitimos Constitucionais, ou Cien-
na Guarita de Pernambuco, foi preso por força
dessa lei e cia do Bom Homem Ricardo, uma obra escrita em linguagem
condenado à prisão perpétua (mas libertado após
cumprir accessível a qualquer leitor, pelo grande imortal americano B.
Dm

sete anos da pena). No entanto, mesmo tais sançõe


s perde- Franklin, que roubou o raio de Júpiter e o cetro da Tirania, $200.
ram muito de sua eficácia depois de junho de 1822, quand
o
outro jornalista da oposição, João Soares Lisboa, do Correi
o Como escreveu John Charles Charteris, na Luso-Brazilian
do Rio de Janeiro, foi julgado por sedição e absolvido
peran- Review (vol. 37,n. 2, p. 2): “O despertar dos espíritos inquie-
te um júri escolhido a dedo.
Uma vez sepultada em definitivo a censura (salvo
a do 23. Apud Raimundo Magalhães Júnior, “Brasil 1822”, Manchete, n.
teatro), pelo menos na capital (o controle arbitrário sempr
e TOSo, p. 60, 3 jul. 1972.
122 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 123

tos pelos movimentos de independência resultou numa ver- nal atrairia muitas encomendas externas se não estivesse com
dadeira explosão de publicações na América Latina. Pode ter seus tipos e prelos ocupados com o trabalho oficial. Nessa
havido poucos casos mais interessantes do que o Brasil...”*. época, dispunha de nove prelos de ferro (seis franceses e três
ingleses) — equivalentes em produção a quase trinta das pren-
sas originais de madeira — e mais um prelo mecânico usado
$rg O FIM DO MONOPÓLIO DO GOVERNO NA IMPRESSÃO apenas para imprimir a Gazeta do governo.
É possível que esse aumento dos impressos oficiais assim
No mesmo ano em que foi abolida a censura, foi também como a política de liberalização tenham provocado a aboli-
extinto o monopólio da impressão na capital, que a Imprensa ção do monopólio que a Typographia Nacional detinha so-
do governo detinha até então. Até agora vimo-nos referindo à bre as impressões feitas no Rio de Janeiro. De qualquer ma-
oficina de impressão com o nome de “Impressão Régia”. No neira, foi permitida, em 1821,a instalação da Nova Officina
entanto, ela teve esse nome, na verdade, até fevereiro de 1817; Typographica, de propriedade privada, seguida logo depois
a partir daí, passou a chamar-se Real Officina Typographi-


pela Typographia de Moreira e Garcez. Diz Luccock que
ca, título simplificado, no início do ano de 1821, para Régia “uma tipografia particular foi fundada no fim de 1816”,
Typographia. Nesse mesmo ano, um pouco mais tarde, os li- mas ninguém corrobora essa afirmação: supomos que o au-
berais, que há pouco tinham chegado recentemente ao poder, tor tenha sido induzido a erro pela presença de Silva Serva
em Portugal, decretaram uma substituição geral de “real” por ($25) na cidade, à procura de encomendas para sua tipogra-
“nacional”; assim, tornou-se Typographia Nacional, fia estabelecida na Bahia,
Nessa época, a oficina havia crescido e, apesar dos sete
prelos de que dispunha, estava à espera da chegada de mais
três encomendados na Europa e mais um que estava sendo N. L. VIANNA E OUTROS NOMES NOVOS
construído na cidade, “para testar se a indústria brasileira po-
deria dispensar a importação do seu equipamento”*s, Como O ano de 1821 também marcou o início da publicação de
esta expansão parece ter antecedido (embora de pouco) a um jornal concorrente da Gazeta. Fundado por Zeferino Vi-
supressão da censura, cabe presumir que o crescente volume tor de Meireles, que fora vice-administrador da Impressão
de trabalho foi uma consequência tanto do aumento dos im- Régia, esse jornal foi impresso, durante alguns meses, na ti-
pressos oficiais como da entrada de encomendas particulares pografia do governo, até que seu proprietário adquiriu sua
e comerciais. Inúmeras razões levam-nos a acreditar que a própria oficina, Typographia do “Diário”. O jornal caracte-
atividade do governo crescia à medida que se acelerava o de- rizava-se por pequenos anúncios, o que no final revelou-se
senvolvimento do país, especialmente à medida que se avizi- um desastre. Alguém fez publicar um desses anúncios em
nhava a independência, embora não tenhamos provas diretas que denunciava um vizinho por manter a filha adulta en-
dessa convergência de fatos. Os registros da Impressão que carcerada em casa. O pai, indignado com a indesejada pu-
sobreviveram ao incêndio de 1911 relacionam apenas livros blicidade, acabou atirando em Meireles, que morreu pouco
e folhetos e deixam de indicar outros trabalhos (formulários depois, para tornar-se o primeiro mártir da liberdade de im-
oficiais, por exemplo). Todavia, uma declaração rememora prensa no Brasil. A empresa foi adquirida por Lionídio Feliz
as condições vigentes mais ou menos vinte anos depois: se- da Silva que, por volta de 1830, repassou-a a Nicolau Lobo
gundo ela, a qualidade do trabalho da Typographia Nacio- Vianna, em cujas mãos tornou-se importante tipografia im-
pressora de livros da cidade. No começo da década de 1850,
24. Cf. também Lúcia Maria Bastos P. Neves, “Leitura e Leitores no
Nicolau foi substituído, na direção da oficina, por sua viúva,
Brasil, 1820-1822: O Esboço Frustrado de uma Esfera Pública do que vendeu o jornal (este durou até 1878), mas conservou
Poder”, Acervo, vol. 8,n. 1-2, pp. 123-138, dez. 1995. a tipografia sob seu próprio nome. Por volta de 1855, seus
25. Francisco Gonçalves Miranda, Memória Histórica da Imprensa
Nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1922. 26. John Luccock, op. cit.
124 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 125

filhos herdaram a tipografia, que no final da década de 1860 que a phase de ardente polemica em que se inflamou o pensamento
continuava muito bem. nacional, cuja vocação histórica foi a de construir a regimen cons-
Na sequência da Revolução de 1820 e por pressão das titucional liberal no Brasil independente, não lhe consentiu lazeres
cortes de Lisboa, dom João vi, em 1827, viu-se obrigado, folgados para espairecer pelas artes graphicas, com que enfeitasse
embora contra a vontade, a voltar para Portugal, deixando trabalhos de mais folego litterario”*.
o filho mais velho, dom Pedro, como seu representante na
parte transatlântica do então Reino Unido de Portugal, Bra-
sil e Algarve. Entretanto, a intransigência dos liberais por- O COMÉRCIO DE LIVROS NO RIO DE JANEIRO
tugueses tornou esse plano inexequível e, na primavera de DO PRIMEIRO REINADO $21
1822, dom Pedro foi forçado a romper com a pátria-mãe””.
Às vésperas da independência já existiam, no Rio de Janei- Em consequência desse processo, houve igualmente um au-
ro, cerca de sete estabelecimentos tipográficos. Manuel Joa- mento do número de livrarias, embora os dois ramos do co-
quim da Silva Porto, livreiro, poeta e tradutor da Phêdre, mércio de livros se tenham estabilizado no final da década
de Racine, e antigo tipógrafo da Impressão Régia, instalara de 1820, para voltar a expandir-se somente quando a nação
sua tipografia, com o nome de Officina de Silva Porto & começou a acalmar-se no reinado de dom Pedro tt. Com o
Cia., tornando-se assim o primeiro livreiro da cidade com reinício da expansão, ocorreram novos avanços técnicos,
tipografia própria. À “companhia” era Felizardo Joaquim dos quais, porém, a Typographia Nacional quase não par-
da Silva Moraes. Vitoriano José dos Santos e Silva, escritor, ticipou. Rubens Borba de Moraes pinta um quadro muito
major do Batalhão dos Engenheiros, bacharel em matemá- melancólico quando diz que,
ticas e lente de Academia Militar, montou a Officina dos
Annaes Fluminenses, do nome do periódico para cuja im- enquanto os impressores franceses [especialmente Villeneuve,
pressão a oficina foi fundada, mas o jornal não foi além do Guefhier e Ogier] renovaram a arte [tipográfica], adaptavam-na ao
primeiro número. Outra oficina era a modesta Typographia gosto do dia, modernizavam-na, faziam-na progredir, a Imprensa
Astréia, que imprimia o jornal de mesmo nome. A sétima ti- Nacional |...] entrava em plena decadência. Salvo uma ou outra
pografia era a empresa Torres e Costa, de Innocencio Fran- produção tolerável, quase tudo que produziu é da maior banalida-
cisco Torres e Vicente Justiniano da Costa, uma sociedade de e às vezes do pior gosto. Somente a partir de 1840 mais ou me-
que logo se expandiu (ou se dissolveu), pois no ano seguinte nos é que passou a produzir, de vez em quando, uma obra decente.
vamos encontrar uma Typographia de Innocencio Francis-
co Torres e Companhia. Esta oficina destacou-se, em 1827- Na tabela 3, os dados de 1801 e de 1830 em diante foram
1828, pela publicação dos panfletos do padre Luis Gonçal- tirados de almanaques contemporâneos, e os relativos ao
ves dos Santos, nos quais o autor atacava O futuro regente período 1808-1829 resultam de pesquisas feitas pelos Ipa-
do Império, padre Diogo Antônio Feijó, por ousar defender nema:. Como estes dois pesquisadores descobriram muitas
o casamento dos padres. firmas que não constavam dos almanaques desse período (e
Toda esta crescente atividade é testemunho do súbito au- foram ignoradas pelos visitantes, cf. $15), podemos presu-
mento da leitura provocado pelo furioso interesse por polí-
tica que acompanhou as lutas pela independência do Brasil.
Infelizmente, o efeito desse processo sobre a qualidade dos 28. Luis Alves Leite de Oliveira Belo (1850-1914), apud Miranda, op. cit.
trabalhos tipográficos, mesmo os da Imprensa do governo, 29. À nossa opinião acerca dessa mudança na qualidade gráfica das
foi lamentável. Oliveira Belo, comparando-os com a quase publicações da Imprensa Nacional a partir dos anos de 1840 é menos
severa. Cf. o $1746, em que se faz referência à esplêndida renovação
perfeição obtida anteriormente, explica
das publicações do Governo Federal feita por Tomás Santa Rosa e
José Simões Leal.
30. Marcelo e Cybelle de Ipanema, “Subsídios para a História das
27. Cf. Raimundo Magalhães Júnior, op. cit. Livrarias”, op. cit.
126 Conceição Veloso e Paulo Martin Conceição Veloso e Paulo Martin 127

mir que os almanaques posteriores também são deficientes, cava os filhos com severidade |...) mas sempre no empenho
isto é, que nossos dados sobre livrarias posteriores a 1829 do culto zeloso de dever”':, Em dezembro de 1823, dese-
apresentam um resultado subestimado”. jando casar-se novamente, doou o dote de sua falecida es-
Para fins comparativos, observe-se que Buenos Aires ti- posa aos dois filhos mais velhos, João Pedro Ferreira da Vei-
nha, em 1826, cinco livrarias e quatro tipografias, enquanto ga e Evaristo da Veiga, que usaram o dinheiro para ingressar
o Chile não possuiu uma única livraria antes de 1840: Os por conta própria no comércio de livros, comprando o es-
poucos livros disponíveis eram vendidos em lojas de ferra- tabelecimento de Silva Porto. Uma de suas primeiras propa-
gens ou apregoados de porta em porta por mascates. Por gandas foi um convite para subscrições de uma tradução,
outro lado, Paris possuía, na metade da década de 1820, 480 por Joaquim Cardoso Leão, de L'histoire du juré, de Aignon
livrarias e 850 tipografias. (Diário Fluminense, 27 de outubro de 1824).
Em 1823, Paulo Martin Filho, que acabara de mudar-se Pedro permaneceu na rua da Quitanda, nº 114, até 0 co-
para a rua dos Pescadores, nº 14, continuava sendo o livreiro meço da década de 1860, mas Evaristo separou-se do irmão
mais conhecido do Rio. Silva Porto - mencionado atrás — em 1827, quando comprou a livraria de Jean Baptiste Bom-
estabelecido na esquina da rua da Quitanda com a rua São pard, na rua dos Pescadores, nº 49. Bompard havia chegado
Pedro, parece ter sido o segundo em importância. Ao todo, ao Brasil pouco tempo atrás, mas tornara-se rapidamente
havia mais onze. Um especialista em livros religiosos estava o principal livreiro da corte. Evaristo, com apenas vinte e
instalado, convenientemente, em frente ao convento da rua oito anos de idade na época, deve ter tido muito sucesso nos
da Ajuda, nº 102. Na rua dos Latoeiros, nº 12, uma loja ven- negócios para ter conseguido adquirir a loja de Bompard.
dia livros “de medicina, cirurgia, história, literatura, artes, De fato, há informações de que o jovem fizera “uma fortuna
ciência e jurisprudência”, e havia uma outra na rua Direita, considerável”», o que sugere a enorme expansão desse co-
nº 60; outras ainda eram Cipriano José de Carvalho, José An- mércio nos últimos anos.
tônio da Silva (na rua Direita, nº 112), Joaquim Antônio de O público leitor ainda estava preocupado com política,
Oliveira (na rua da Quitanda, nº 115) ea firma Moreira (na e a nova loja de Evaristo logo se tornou o “ponto de reu-
rua da Quitanda, nº 36). Estavam estabelecidos desde 1816 nião diária dos mais distintos chefes liberais”. As obras
João Batista dos Santos (na rua da Cadeia, nº 83), Francisco anunciadas por Evaristo, na época, eram principalmente de
Nicolau Mandillo (na rua da Quitanda, nº 216), Jerônimo economia (por exemplo, do economista inglês Ricardo), po-
Gonçalves Guimarães (na rua do Sabão, nº 357, firma que lítica e governo, e sobre as nações americanas, em especial os
sobreviveria até o século xx com o nome de Sellos e Couto — Estados Unidos e o México. É claro que ele tinha os recursos
ver $87) e Francisco Luís Saturnino da Veiga (no nº 359 da e O necessário interesse por política e literatura (escreveu
rua da Alfândega). uma quantidade apreciável de poesia) para fazer do seu ne-
gócio a mais importante livraria e editora da época. Não
obstante, voltou-se cada vez mais para o jornalismo e para
$z2 EVARISTO DA VEIGA a política prática, tornando-se uma espécie de Benjamin
Franklin brasileiro (uma frase de seu obituário no Correio
Francisco Luís Saturnino da Veiga, um antigo mestre-escola Official). O jornal que veiculava suas ideias, A Aurora Flu-
português, era, depois de Paulo Martin Filho, o mais antigo minense, de cuja fundação, em 1827, participou, foi o mais
livreiro da cidade. Joaquim Manuel de Macedo descreve-o
como “profundamente católico, de rígidos costumes” e “edu-
32. Joaquim Manoel de Macedo, Anno Bibliographico Brazileiro,
31. Segundo Marcello de Ipanema, no Atlas Cultural do Brasil, diri- Rio de Janeiro, Imperial Instituto Artístico, 1876-1880.
gido por Arthur Cezar Ferreira Reis (Brasília, Fename, 1972), 0 Rio 33. Otávio Tarquínio de Sousa, Evaristo da Veiga, São Paulo, Nacio-
tinha,em 1850, 15 livrarias; em 1875, 23 (oito das quais eram sebos); nal, 1939, p. 59.
em 1900, 47 (inclusive cinco sebos). 34. Joaquim Manoel de Macedo, op. cit.
Conceição Veloso e Paulo Martin

influente e o mais bem escrito dos jornais da oposição no


turbulento período que levou à abdicação de dom Pedro 1.
O que ilustra bem o desinteresse de Evaristo pela edição
de livros foi o fato de que, em 1836,a History of Brazil from
the Period of the Arrival of the Braganza Family in 1808 to
the Abdication of Dom Pedro the First in 1831, escrita por
seu amigo íntimo John Armitage, teve sua tradução para o
português publicada por uma casa concorrente, a Typogra-
phia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Cia. ($34).
Infelizmente, a carreira política de Evaristo lhe trouxe
amarga decepção — inclusive uma tentativa de homicídio em
novembro de 1831 — e contribuiu para sua morte prematura
aos trinta e oito anos, em 12 de março de 1837.

STA: TST aÃ
Algumas pequenas livrarias nas quais
debalde se procuram mesmo as próprias
produções da literatura brasileira.

Impressões de um visitante sobre o


comércio de livros na Bahia em 1820!

AS PROVÍNCIAS NO COMEÇO DO SÉCULO XIX $23

Numa consciente imitação de Bonaparte, dom Pedro 1 con-


feriu a dignidade de Império a seu reino há pouco tornado
independente. O título era adequado, porém mais no sen-
tido inglês do que no napoleônico. É que sua capital era a
metrópole não de uma extensão de território contíguo, mas
de uma fileira de colônias marítimas separadas e esparsas ao
longo de oito mil quilômetros de costa: seis mil e quinhentos
no Atlântico, e mil e quinhentos nas margens do Amazo-
nas. Às comunicações por terra dificilmente iam além das
duas acidentadas trilhas que subiam as escarpas da costa
para unir São Paulo e Ouro Preto a seus respectivos portos;
e estas eram utilizáveis apenas por cavaleiros e comboios
de mulas. Quando, anos depois (1908), o primeiro automó-
vel tentou descer a estrada colonial de São Paulo a Santos,
gastou vinte e quatro horas para percorrer 65 quilômetros,
e seus passageiros precisaram desobstruir parte da trilha a
dinamite. Até mesmo os pianos, segundo soubemos, só po-
diam chegar às cidades do interior no lombo de animais

t. Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich Philip von Martius, Reise
in Brasilien [...] in dem Jahren 1816 bis 1820, gemarcht, Munique, M.
Lindauer, 1823. Tradução brasileira de Lúcia Furquim Lahoeweyer,
com o título de Viagem pelo Brasil, 1817-1820, São Paulo, Melhora-
mentos, 1967.
132 Silva Serva Silva Serva 133

de carga. Os poucos rios navegáveis raramente corriam na de Janeiro, apesar dos custos mais elevados da mão de obra,
direção desejada e eram bloqueados por frequentes quedas deve ser atribuído a seu status de capital. Isso foi ainda mais
d'água e corredeiras. Em tais condições, o correio pelo in- significativo durante o Império, com sua corte e sua admi-
terior (quando havia) não cobria, em vinte e quatro horas, nistração relativamente centralizada, do que viria a ser sob a
mais do que uma média de trinta quilômetros. futura república federal. A corte (nome pelo qual o Rio im-
Por outro lado, o transporte de cabotagem sofreu contí- perial era conhecido de modo geral) atraía a nata do talento
nuas melhoras. Em 1827, teve início um serviço regular de literário e intelectual do país; os produtos de suas editoras
vapores entre o Rio de Janeiro e Santos. Em 1839, Brasil gozavam de um prestígio nacional que inexistia em quais-
tornou-se O primeiro, entre os países de tamanho equivalen- quer outros centros. Isso, aliado a uma população muito
te, a unir todas as suas províncias marítimas por navegação maior (o dobro da segunda cidade em tamanho, segundo o
a vapor. O tempo da viagem entre o Rio e a Bahia, que era censo de 1872, visto na tabela 5, p. 839) e a uma convenien-
de três semanas em navio a vela, reduziu-se a três dias é meio te posição geográfica, garantia-lhe um mercado muito mais
no barco a vapor que fazia, quinzenalmente, essa ligação. A amplo do que os de seus concorrentes, o que, por sua vez, lhe
ribeirinha Manaus ainda teria de esperar catorze anos, mas proporcionava ganhos de economia de escala. Em muitos
no final foi mais beneficiada do que as outras: a viagem rio casos, a demanda nas províncias era tão pequena que, antes
acima, a partir de Belém, que na estação das chuvas levava de tudo, tornava duvidosa a viabilidade de edições locais,
três meses em veleiro, caiu para apenas duas semanas. fato comprovado pela nossa citação na epígrafe deste capi-
Em setembro-outubro de 1845, foi realizada uma viagem tulo. É possível também que os franceses, que dominavam
experimental de travessia do Atlântico, partindo de Liver- o comércio de livros na capital imperial, tenham sido mais
pool, pelo navio Antelope, de seiscentas toneladas, a primeira empreendedores e bem-sucedidos do que os conservadores
embarcação movida a hélice já vista na baía da Guanabara. livreiros portugueses, que controlavam grande parte desse
No entanto, a primeira viagem regular aconteceu somente em comércio nas províncias.
1851 ($57), em navio da Royal Mail Steam Packet Co. O predomínio do Rio começou na década de 1840 e per-
Antes do advento desses vapores de ligação, porém, em maneceu praticamente incontestado a partir de 1880. No

A
razão do isolamento, as capitais provinciais brasileiras vi- entanto, registram-se alguns esforços em várias cidades pro-
viam suas vidas por sua própria conta: econômica, cultural e vinciais: mesmo em 1883 o catálogo da casa Garraux, livra-

o
mesmo politicamente. Entre o término das guerras napoleô- ria de São Paulo, apresentava quatrocentas obras impressas
nicas e o triunfo final da navegação a vapor, em meados do na província, ou mais ou menos 11% de todos os títulos
século x1x, o Brasil precisou enfrentar repetidos desafios ao então existentes no pais”. Cabe notar que a edição de livros
próprio conceito de unidade nacional, embora, ao final, ape- se desenvolveu de modo semelhante nos Estados Unidos: de
nas uma província (a Cisplatina, hoje a República Oriental forma bastante descentralizada até a melhoria das comuni-
do Uruguai) tenha se separado em definitivo. cações na década de 1820. Todavia, em 1840, apenas 8%
Nessa época de navios a vela, o comércio de livros era dos livros de ficção eram publicados por editoras de fora de
uma atividade autônoma em cada parte do Império. Cada Nova York, Boston e Filadélfia.
centro importante tinha seus próprios vínculos comerciais Devemos ter em mente que, uma vez que os autores edi-
diretos com a Europa, de onde provinha a maior parte de seu tavam suas próprias obras — fato frequente até pelo menos
material de leitura, e cada um deles esforçava-se para suprir 1930 —, muitos ficariam felizes em confiar o produto de seu
suas demais necessidades com seus próprios recursos. So- trabalho a qualquer editora acessível na região onde residis-
mente com o início de relações comerciais certas e fáceis com sem. Foi assim que a obra de Nísia Floresta (pseudônimo de
o Rio de Janeiro, proporcionadas pela navegação a vapor Dionísia Gonçalves Pinto), Direitos das Mulheres e Injustiça
(e, em grau muito menor, pelas ferrovias após 1852), é que
a produção local de livros começou a desaparecer em con- 2. Fischer, Fernandes e Cia., Catálogo da Livraria Acadêmica da Casa
sequência da competição da capital. O triunfo final do Rio Garraux, São Paulo, Garraux, [18832].
134 Silva Serva Silva Serva 135

dos Homens (apresentado como tradução de Vindication of uma rápida menção. Seu traço mais marcante era a pessoa
the Rights of Women, de Mary Wollstonecraft Godwin, mas de seu proprietário, Albin Jourdan (abrasileirado para Al-
com muita influência de outras feministas mais radicais), bino Jordão), que, mesmo depois de haver perdido a visão
foi impresso no Recife, em 1832, porque na ocasião a au- e quase toda a audição, permaneceu no negócio, auxiliado
tora morava nessa cidade (ver $51). No ano seguinte, após por “dois [...] rapazes de 14 a 17 anos, de instrução nula e
a morte do segundo marido, mudou-se para Porto Alegre, de pouco zelo”, sua corneta acústica, um agudo sentido do
levando consigo, segundo parece, o estoque remanescente tato e uma fantástica memória para a exata localização de
do livro, cuja venda confiou a um livreiro local. Contudo, o todo o seu estoque.
livro somente alcançou alguma fama quando a autora, pre-
mida por necessidades econômicas — tinha dois filhos e uma
mãe viúva idosa para sustentar —, em abril de 1839, passou a O INÍCIO DA IMPRESSÃO EM MINAS GERAIS $24
residir na corte, onde abriu uma escola, e entregou os exem-
plares ainda não vendidos à Casa do Livro Azul, estabeleci- Já fizemos menção à importância cultural de Vila Rica, hoje
da na rua do Ouvidor, nº 121. Finalmente, em 1858, Nísia conhecida como Ouro Preto ($9), e foi nessa cidade, de fato,
Floresta foi viver na Europa, num ambiente que lhe era mais que teve lugar a primeira impressão de um livro na provín-
agradável, onde continuou a escrever e publicar. cia: em 1807, antes mesmo do surgimento da Impressão Ré-
Mesmo no século xx, as primeiras edições de obras tão gia no Rio. O governador provincial Athayde de Mello, fu-
significativas como O Quinze, de Rachel de Queiroz (Forta- turo conde de Condeixa, ficou tão satisfeito com um poema
leza, Gráfica Urânia, 1930), e A Bagaceira, de José Américo escrito em sua honra por Diogo de Vasconcelos que expres-
de Almeida (Parahyba do Norte, Imprensa Official, 1928), sou o desejo de vê-lo impresso. Um padre nascido na cidade,
foram impressas por tipografias locais por conta dos auto- José Joaquim Viegas de Menezes, encarregou-se da tarefa:
res, embora José Américo ocupasse a posição especial de gravou o texto hológrafo em placas de metal e imprimiu-as
funcionário público e tivesse seu livro impresso pela gráfica numa pequena prensa projetada para fins domésticos. En-
do governo do Estado. A tradição era tão forte que, ain- quanto era estudante em Portugal, Menezes tornara-se ami-
da em 1958, por uma nova lei de direitos autorais então go de José Mariano da Conceição Veloso, então gerente da
proposta, o Instituto Nacional do Livro seria obrigado a Tipografia do Arco do Cego ($16), onde, parece, aprendeu a
despender 20% de seus recursos em obras publicadas pelos gravar. O resultado foi um folheto de nove páginas in-quar-
próprios autores. to, com retratos de corpo inteiro da família do governador
Essa Casa do Livro Azul funcionou, de 1828 a 1852, e outras decorações, um pouco à maneira das edições que o
como o sebo mais conhecido da rua do Ouvidor (a princípio inglês William Blake fez de sua poesia na mesma época.
nonº138edepoisnonº 157) edo Rio, onde “vende, compra, Treze anos mais tarde, Menezes associou-se a um sapa-
troca, aluga livros e recebe em comissão obras novas”+. Em teiro português de nome Manuel José Barbosa Pimenta e
seu livro Memórias da Rua do Ouvidor, Macedos dedica-lhe Sal, a quem ensinou a moldar e fundir tipos — traduzindo
cinco parágrafos, o que lhe confere direitos de pelo menos as partes relevantes do Dictionnaire des métiers et des arts*.
Juntos construíram uma completa oficina tipográfica com
equipamento fabricado em casa, façanha também realizada
3. Cf. meu artigo “Nísia Floresta Brasileira Augusta”, Salalm Netws-
letter, vol. 23, n. 6, pp. 134-135, jun. 1996; e o $41, “O Mercado por outros pioneiros, como João Francisco Madureira, em
Feminino”, no capítulo s. Belém. Em 1821, quando ficou pronta a Typographia Pa-
4. Pequeno Almanaque do Rio de Janeiro para 1843, Rio de Janeiro, triota de “Barbosa e Cia.”, o padre já se havia aposentado
Viúva Ogier, 1842. e o governo provincial tinha trazido um prelo próprio do
5. Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor, Rio Rio de Janeiro. Como nenhuma dessas prensas parece ter
de Janeiro, Perseverança, 1878. Citado a partir da reimpressão, Edi-
ções de Ouro, 1966,p. 252. 6. Cf. nota 2 do capítulo 2.
136 Silva Serva Silva Serva 137

produzido outra coisa além de jornais, não têm interesse continuaram a acompanhar de perto o desenrolar dos acon-
para a história do livro; de fato, alguns anos mais tarde, um tecimentos, procurando obter para sua cidade todo e qual-
viajante em visita a Ouro Preto registrou que havia na ci- quer benefício que o Rio pudesse obter em virtude do fato de
dade duas tipografias (que imprimiam quatro jornais), mas ser a residência da Família Real.
não havia uma única livraria. O esforço de Barbosa foi, no Um dos primeiros resultados da chegada da corte ao Rio
mínimo, notável como tour de force e sua técnica era tão foi, como vimos, a organização da Imprensa do Governo.
boa, aparentemente, que foi solicitado a melhorar as de- Ão que parece, quase imediatamente um livreiro de Salvador
ficiências da imprensa oficial por meio do empréstimo de tentou obter permissão para ir à Inglaterra e adquirir um
alguns de seus tipos de fabricação caseira. prelo para a Bahia. Chamava-se Manuel Antônio da Silva
O primeiro livro que sabemos ter sido impresso em Serva, natural de Vila Real de Trás-os-Montes e antigo co-
Ouro Preto, após 1807, foi uma coleção das Leis do Impe- merciante em Lisboa, que havia emigrado para Salvador por
rio do Brasil, publicada em 1833, por um impressor chama- volta de 1797, onde vendeu “móveis, cristais, lustres e mes-
do Silva. No entanto, o Atlas Cultural do Brasil cita a im- mo livros, que importava da Europa”,
pressão, em 1832, do Diccionario da Lingua Brasileira, por À permissão para a viagem foi concedida em 1809. Ser-
Luís Maria da Silva Pinto. Logo surgiram outras tipografias va voltou no final do ano seguinte, após uma parada em
em outras cidades mineiras, inclusive em São João del Rei Lisboa para contratar os artesãos necessários; e, em 18 de
(1827), Diamantina (1828) e Mariana (1830). Ainda que dezembro de 1810, apresentou ao governador, o conde dos
muitas dessas tipografias só se ocupassem da impressão de Arcos, um pedido formal de autorização para começar a
jornais, uma quantidade moderada de livros foi, sem qual- imprimir. Alfredo de Carvalho e outros atribuíram a inicia-
quer dúvida, publicada na província de Minas, então a mais tiva da instalação do primeiro prelo na Bahia ao próprio
populosa do Brasil. No catálogo da Garraux de 1883 ($98), Marcos Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos. Todavia,
havia, de fato, mais publicações de Minas Gerais do que de somente em 30 de outubro de 1810 é que este foi nomeado
qualquer outra província fora da corte, exceto Maranhão, governador-geral da Bahia, quando Serva já havia partido
Pernambuco e São Paulo. para a Inglaterra e, na verdade, já estava na viagem de re-
torno. Marcello e Cybelle de Ipanema” informam que um
certo Alexandre José Vieira de Lemos também importou
$25 SILVA SERVA E O INÍCIO DA IMPRESSÃO NA BAHIA um prelo de Londres para a Bahia e, em 4 de outubro de
1810, solicitou autorização para usá-lo na produção de in-
À primeira província a desenvolver sua própria atividade formes comerciais. Quatro meses depois, foi-lhe concedida
editorial foi a Bahia, cuja capital, Salvador, deixara de ser a a autorização, mas não há provas de que algum dia tenha
capital de todo o Brasil numa época ainda presente na me- impresso alguma coisa.
mória (isto é, em 1763) e continuaria sendo a segunda ci- Quase imediatamente após sua solicitação ao conde dos
dade do país até ser ultrapassada por São Paulo no final do Arcos, Serva partiu para o Rio, provavelmente por ter pensado
século. Era grande a rivalidade entre aquela antiga capital que lá poderia influir no resultado de seu requerimento. Se as-
e a cidade do Rio de Janeiro que lhe usurpara a dignidade.
Quando o príncipe regente, a caminho do Rio, em 1808, 8. Cláudia Marino Semeraro e Christiane Ayrosa, História da Tipo-
fez uma visita inesperada a Salvador, as forças dominantes grafia no Brasil, São Paulo, Museu de Arte, 1979, p. 11.
locais empenharam-se ao máximo para persuadi-lo a per- 9. Marcello e Cybelle de Ipanema, A Tipografia na Bahia: Documen-
tos sobre suas Origens..., Rio de Janeiro, Instituto de Comunicação
manecer na cidade, assegurando-lhe assim a restauração da
Ipanema, 1977; e Cybelle de Ipanema, “O Empresário Manuel Antô-
antiga dignidade. Mesmo não conseguindo o seu intento, nio da Silva Serva e a Implantação da Tipografia na Bahia”, em José
Marques de Melo et al., Rumo ao Bicentenário da Imprensa Brasilei-
7. Atlas Cultural do Brasil, dir. Arthur Cezar Ferreira Reis, Brasília, ra, Salvador, Núcleo de Estudos de História dos Impressos na Bahia
Fename, 1972. (NEHIB), 2002, Pp. 33-50.
138 Silva Serva Silva Serva 139

sim foi, estava certo: a Carta Régia que instruía o governador Compendio d'Agricultura. 4º, 5 volumes, 88000;
a aprovar sua petição foi publicada em 5 de fevereiro de 1811. Diccionario Italiano e Portuguez. fº. 2 volumes, 168000 [talvez o
Serva não perdeu a oportunidade de fazer alguns negócios livro mais caro da lista];
durante sua permanência no Rio, pois publicou uma Noticia Exame de Bombeiros. Com estampas. 4º, 1$600 [trabalho às vezes
do catalogo de livros que se achão á venda em Caza de Ma- atribuído ao tipógrafo Fonseca ($10)];
nuel Antonio de Silva Serva na Rua de 8. Pedro nº 17 0 qual Obras Poeticas de Antônio Joaquim de Carvalho. 8º. limp., $480 [curio-
o faz por hum commodo preço [...] attendendo a demorar-se so porque a edição de Lisboa (1806-1817) fora em dois volumes];
muito pouco tempo nesta Córte'º. Esta lista, que deve ser o Carta do Outro Mundo, escripta por [William] Pitt. 4º, limp., $080;
catálogo mais antigo de uma livraria brasileira, contém mais Constituição da Hespanha. 4º, limp., $o6o.
de setecentos itens, numa desordenada “ordem” por títulos. Historia do Roberto do Diabo. limp., So80 [um título ainda vendi-
O trecho seguinte, do fim da letra C, nos fornece uma imagem do hoje como folheto de feira ($1971)];
de seu conteúdo: Sonetos da Morte de Nelson, 8º, limp., $120.

Carlos Magno, 8º, $640; Voltando à Bahia, nos princípios de abril de 1811, Serva
Cathecismo de Montpellier o Resumo, 8º, $400 começou imediatamente a trabalhar, produzindo suas três
Cathecismo de S. Maló, 12º, $480; primeiras edições em 14 de maio: um prospecto de quatro
Cadernos de Santos Novos, 4º, 15280; páginas para um jornal, um Plano para o Estabelecimento
Cevalhos, que Contém Toda a Perfidia dos Francezes na Espanha, de huma Biblioteca Publica na Cidade de 8. Salvador (tam-
4º,$200; bém em quatro páginas) e um impresso em onze páginas,
Coró das Musas, 8º, 4 volumes, 2$400; a Oração Gratulatoria do Principe Regente, de Inácio José
Collecção Universal, 4º, 3 volumes, r$920; de Macedo. Os projetos de um jornal e de uma biblioteca
Collecção sobre os Trabalhos do Papa, $200; pública eram, ambos, claras tentativas de competir com o
Collecção de Cartas para Meninos, 8º, $o60; Rio de Janeiro, e os dois foram realizados pouco depois. A
Chronica de Clarimundo, 8º, 3 volumes, T$920; biblioteca pública da Bahia, inspirada pela inauguração da
Cadernos para Meninos de Somar, Diminuir e Multiplicar, Soso; Biblioteca Real Portuguesa, no Rio, em 27 de junho de 1810,
Cartas Apologeticas dos Purgentes, 8º, $240; deveu muito ao interesse do conde dos Arcos, que organi-
Cirurgia de Chopart, 8º, 3 volumes, 2$400; zou uma loteria oficial para levantar os fundos necessários.
Cirurgia de Leitão, 8º, 5 volumes, 48000; Spix e Martius" consideraram-na “uma valiosa coleção de
Curso de Matematica por Belidoso. Com estampas, 8º, 4 volumes, trabalhos novos sobre todos os assuntos [...] mais de 12000
68400. volumes, aberta [...] grande parte do dia, mas pouco usada”.
Foi destruída, em grande parte, um século depois, em 1912,
Os preços mais comuns são $480, $640 e $960 por no conflito civil que irrompeu na cidade.
volume (devido ao fato de as moedas da época serem múl- Para aprovar as publicações de Serva, o governo pro-
tiplos de quarenta réis). É difícil identificar os livros, uma vincial criou uma Comissão de Censura, formada por cinco
vez que os autores raramente são mencionados, mas as membros, dois dos quais deviam ser clérigos. Essa comis-
entradas seguintes de outras partes do catálogo podem ser são funcionou até 1821 (cf. $18). O número de empregados
de interesse: da oficina — o impressor-chefe Marcelino José, o revisor de
provas Bento José Gonçalves Serva, seis aprendizes de com-
posição (meninos entre 12 e 15 anos), quatro impressores e
10. O catálogo completo é reproduzido em Rubens Borba de Moraes,
um encadernador — indica que Serva tinha dois prelos. Sua
Livros de Biblioteca no Brasil Colonial, menos uma pequena parte da tipografia era maior do que um mercado de tamanho tão
primeira página, porque o exemplar foi mutilado depois que o vi na
Biblioteca Nacional em 1970. 11. Spix e Martius, op. cit.
140 Silva Serva Silva Serva 141

limitado poderia justificar: o catálogo que publicou em 1812 financiou as publicações de Serva, o que explicaria seu ine-
não exigiu uma tiragem superior a cem exemplares. Já em gável progresso financeiro apesar das dificuldades iniciais.
novembro do seu primeiro ano de atividade, o negócio es- Durante a quarta dessas viagens para o Rio, Serva mor-
tava reduzido a tal condição que solicitou um empréstimo reu, em 3 de agosto de 18719. Dois meses antes, tinha admiti-
ao governo. Serva também teve a ideia de fabricar prelos de do como sócio seu genro, José Teixeira e Carvalho, de modo
madeira e exportá-los para a Inglaterra, onde os trocaria que a firma continuou como Typographia da Viuva Serva, e
por suprimentos de papel e outros equipamentos. (O pre- Carvalho. Seu único filho (também Manuel) começou a tra-
lo de ferro fora introduzido por Charles Mahon, conde de balhar na firma mais tarde: em 1819, tinha apenas 14 anos.
Stanhope, em 1798, mas seu custo, cerca de 90 libras, e a Na época da morte do pai, a posição financeira da firma pa-
fragilidade de seu projeto ainda tornavam problemática sua rece que havia melhorado muito, pois uma tradução do Ata-
adoção generalizada.) A autorização lhe foi negada, com lá, de Chateaubriand, aprovada pela censura em 1817, veio
fundamento no fato de que a madeira que pretendia usar, o a público somente em 1819: uma indicação (presume-se) de
pau-brasil, era monopólio da coroa, mas o empréstimo (qua- que os dois prelos estavam tão sobrecarregados de trabalho
tro contos de réis, pagáveis em dez anos) foi finalmente con- que foram precisos dois anos para desobrigar-se das tare-
cedido em fevereiro de 1815. O governo também lhe pres- fas... Ou terá sido porque a situação estava tão ruim que
tou algum auxílio quando confiscou um prelo concorrente dois anos inteiros foram gastos na avaliação dos riscos de
que fora importado, em 1810, pela firma Barroso, Martins, sua impressão?
Dourado e Carvalho. O embaixador português em Londres À produção conhecida da editora de Silva Serva soma
havia relatado que esta aquisição fora uma iniciativa secreta aproximadamente 176 títulos publicados durante sua vida.
do próprio Hipólito da Costa ($15), mas é possível que este Como foram exaustivamente arrolados e anotados por Re-
tenha servido apenas de agente comercial. Serva certamente nato Herbert de Castro'* (nossa fonte principal para este
merecia a proteção oficial, pois no jornal que fundara, un- capítulo), limitar-nos-emos a algumas observações gerais.
tuosamente intitulado Gazeta da Bahia, Idade de Ouro, seus Os assuntos abordados pelas obras publicados por Serva
redatores, o português Diogo Soares da Silva de Bivar e o são semelhantes aos de outras editoras de língua portugue-
padre Inácio José de Miranda, assumiram perante as autori- sa da época: muita religião, uma boa quantidade de direito
dades uma lealdade quase servil'>. e medicina (a Bahia foi, no século xIx, a única província
Serva, descrito nessa época como um homem “alto, gor- brasileira a possuir uma escola de medicina), algo de his-
do, rosto redondo, trigueiro e bastante barba”'>, num esfor- tória, e um pouco de literatura, principalmente traduções.
ço para ampliar seu mercado, nomeou seu conterrâneo, o Muitos títulos eram uma repetição de obras já produzidas
livreiro Manuel Joaquim da Silva Porto'4, seu agente no Rio, pela Impressão Régia, comumente com um ano de intervalo:
para vender suas publicações. Além disso, fez várias viagens como exemplo temos as Observações sobre a Fraqueza da
à capital do Império para obter encomendas. Como os pre- Indústria e Estabelecimento de Fábricas no Brasil, de José
ços cobrados pela Impressão Régia eram escandalosamente da Silva Lisboa, e a tradução, feita por Bento da Silva Lis-
altos, tornava-se fácil conseguir tais encomendas. Assim, ele boa, do Wealth of Nations, de Adam Smith. É interessante
foi o primeiro concorrente da gráfica do governo, visto que, saber que a procura dessas obras no Nordeste era tão su-
antes de 1821, os concorrentes do Rio eram proibidos de perior ao que se podia conseguir no Rio que justifica a sua
trabalhar (cf. $19). Os Ipanema sugerem que Silva Porto reimpressão por Serva. Em alguns casos, porém, parece que
repetiu títulos impressos no Rio por desconhecer o fato: in-
dica, por exemplo, que a primeira parte de Marília de Dir-
12. Cf, Maria Beatriz Nizza da Silva, A Primeira Gazeta na Babia..., ceu, que publicou em 1812, era a “quarta edição”, quando,
São Paulo, Cultrix, 1978.
13. Marcello e Cybelle de Ipanema, op. cit. r$. Renato Herbert de Castro, A Primeira Imprensa da Babia e Suas
14. Idem, ibidem. Publicações, Salvador, SEC, T969.
I42 Silva Serva Silva Serva 143

na realidade, se tratava da sétima edição, sendo a quinta a editores, entre 1895 e 1910, do jurista Clovis Bevilácqua,
edição da Impressão Régia feita em 1810. esta revitalização foi obra quase que exclusivamente de uma
A editora de Silva Serva sobreviveu, com várias mudan- firma, a Livraria Catilina. Fundada por Carlos Pongetti, em
ças de nome, até 1846, mas perdeu sua posição de monopó- 2 de fevereiro de 1835, duraria até 1960, ocasião em que era
lio em 1823. Durante a luta pela independência, uma junta considerada a livraria mais antiga do Brasil. Em 1864, Serra
pró-Portugal passou a governar em Salvador e, em 21 de Teriga assumiu sua direção, passando-a, em 1877,a Xavier
agosto de 1822, suas tropas invadiram as instalações da Catilina, nome pelo qual é geralmente conhecida. Embora
Typographia da Viuva Serva para interromper a impressão tivesse publicado, em 1830, 0 Codigo Commercial do Impe-
do jornal nacionalista, o Constitucional. Seus editores fu- rio do Brasil, durante muito tempo a Catilina foi principal-
giram para Cachoeira, onde instalaram sua própria gráfica mente um casa varejista; seu principal período editorial foi
e imprimiram sua continuação, o semanário O Indepen- o da administração de Romualdo dos Santos, no começo do
dente Constitucional. Nesse ínterim, a tipografia de Serva século xx, quando editou várias obras literárias de grande
continuou produzindo a sua Gazeta da Bahia, pró-Portugal. importância, inclusive as Poesias até Agora não Reunidas
Quando a causa nacionalista triunfou, não apenas a Gazeta em Volume, de Castro Alves (1913); os Contos Escolhidos
da Bahia teve de interromper sua publicação (24 de junho de (r913, reeditados em 1974), Versas (1918) e Frutos do Tem-
1823) como também a nova Typographia Imperial e Cons- po (19719), de Coelho Neto; as Paginas Literarias (1918) e
titucional acompanhou as forças brasileiras vitoriosas de as Cartas Politicas e Literarias (1919), de Rui Barbosa; e a
volta à capital provincial, terceira edição de Praieiros (r910?), de Xavier Marques. À
firma publicou também as obras legais de Ernesto Carnei-
ro Ribeiro. Em quase todos os casos, a impressão era feita
$26 À LIVRARIA CATILINA em Portugal ou em outros países da Europa, procedimento
usual, nesse tempo, dos editores de livros em todo o Brasil.
Com a morte de Silva Serva, Salvador perdeu muito de seu As razões econômicas para essa prática, que serão discuti-
interesse como centro editorial: não apenas a Bahia foi eclip- das mais adiante ($$57, 94), eram então ainda mais fortes
sada pelo Maranhão, Pernambuco, São Paulo e Minas Ge- na Bahia do que no Sul. Por volta de 1915, os Estados do
rais, como também, segundo as indicações do catálogo da Nordeste haviam perdido totalmente a vantagem de preços
Garraux'* de 1883, até Belém do Pará produziu mais livros mais baixos do que os do Rio ($47). O nível de seus preços
que Salvador nos últimos anos do Império. O que se publi- era, em geral, cinco vezes mais alto do que o do Reino Unido,
cava então na cidade parece ter-se voltado, em sua maior enquanto os do Rio eram superiores apenas três vezes.
parte, para a religião e a filosofia. À partir de mais ou menos Apesar do baixo custo da mão de obra (até 1984 e depois
1837, houve um declínio geral do comércio em Salvador. de 2000 o salário mínimo: legal do Norte e Nordeste era
Kidder atribui tal fato aos perturbadores efeitos da Sabinada inferior ao do Sul), o Nordeste continua sendo uma região
(uma revolta malograda dos mestiços livres), ocorrida na- de preços altos. Em 1982, Recife foi considerado a cidade de
quele ano, e ao declínio do tráfico de escravos causado pela custo de vida mais alto do país.
crescente eficácia das medidas tomadas pelos ingleses para
suprimi-lo. Além disso, os anos de 1837-1845 constituíram
um período de depressão econômica geral em todo o Brasil.
Finalmente, no fim da década de 1890, teve lugar uma re-
vitalização da atividade editorial na Bahia. Salvador possuía
então dez livrarias, contra 47 no Rio. Embora devamos men-
cionar de passagem a livraria J. L. da Fonseca Magalhães,

r6. Cf. nota 2 deste capítulo.


Plancher
Um frances, pobre e obscuro emigrante
[...] sem educação litteraria, sem o fulgor
de intelligencia que muitas vezes suppre a
instrucção [...] estabeleceu-se sabe Deus
á custa de que sacrifícios e de quantos
embaraços vencidos, com uma pequena e
ruim typographia em modesta casa da rua
dos Ourives, e teve a abençoada fortuna
de ver sahida da sua acanhada officina [...]
a mais espalhada e numerosa edição da
constituição política do Imperio do Brazil...

Anno Bibliographico Brazileiro,


S.V. SEIGNOT-PLANCHER!

O INÍCIO EM PARIS $27


Raramente as revoluções resultam em benefício para os
editores: ao contrário, geram muita incerteza comercial e,
ao mesmo tempo, provocam uma superconcentração do
pensamento público nos temas políticos do momento, com
exclusão de interesses mais duradouros. A década de 1790
na França, assim como a de 1820 no Brasil, ou a de 1640
na Inglaterra, foi marcada por uma avalanche de panfletos
efêmeros, mas poucos livros dignos de nota foram publica-
dos. Na década seguinte, embora as condições políticas con-
tinuassem excessivamente incertas para que houvesse um
renascimento das boas edições, as perspectivas financeiras
para os editores franceses tornaram-se muito mais auspicio-
sas. Graças ao Sistema Continental de Napoleão, Bossange,

1. Joaquim Manuel de Macedo, Anno Bibliographico Brazileiro, Rio


de Janeiro, Imperial Instituto Artístico, 1876-1880.
148 Plancher Plancher 149

por exemplo, conseguiu desencalhar todo o estoque morto cher, sugere que Aristide Valcour, que morreu em 1815, te-
de seus depósitos ao obter uma licença para exportá-lo, en- nha feito seu herdeiro o jovem Plancher, o que certamente
quanto partia para a Inglaterra a fim de embarcar uma carga explicaria o fato de ter este conseguido sua independência
de produtos manufaturados que pôde revender com lucro financeira precisamente nesse ano. Sua produção demonstra
fabuloso — pagando-os com ouro emprestado, após atirar os que dispunha de recursos: num período de apenas dois anos,
livros sem valor no meio do Canal da Mancha. após haver iniciado seu próprio negócio, imprimiu as obras
Atividades como essa ajudaram a proporcionar capital completas de Voltaire, em 42 volumes, cuja coordenação
de giro para um grande ressurgimento editorial quando, com confiou a Regnault-Warin, que ainda preparou um volume
Luís xvrlI, a calma política voltou a reinar. Após um quarto biográfico do autor. Voltaire parece ter sido um autor quase
de século de transformações sociais, o público comprador obrigatório para os editores da Restauration: nada menos de
de livros passou a incluir uma vasta porção de nouveaux nove deles fizeram edições de suas ceuvres, desde a de Desoêr
riches. Um editor chamado Theodore Desoêr foi capaz de (1816), em 13 volumes in-oitavo, à de Dalibou (1824), um
avaliar esse fato e lançou no mercado obras completas de conjunto de 95 volumes, também in-oitavo.
autores de prestígio: uma inovação sob medida para o dese- Outras obras completas publicadas por Plancher foram
jo desse novo público de comprar a ostentação de bom gosto as de Dante, John Milton e Schelling. Parece ter sido tam-
e discernimento. Essas vistosas coleções de vários volumes bém o primeiro editor de sir Walter Scott em francês, já que
tornaram-se uma das principais características da Restau- publicou, em março de 1816, uma tradução de Guy Manne-
ration no comércio de livros, moda que continuou até por ring, feita por J. Martin. Seu principal interesse era a políti-
volta de 1827, quando o mercado ficou saturado. ca. De fato, frequentemente chamava sua casa de “librairie
Foi esse o cenário em que Pierre René François Plancher de politique” e chegou algumas vezes a proclamar-se “éditeur
la Noé começou sua carreira de editor, no nº 7 da rue Pompée. de la Chambre des députés”. Em 1818, publicou uma Col-
Seu pai, o aristocrata Pierre René Constant Plancher de la lection complete des ouvrages publiés sur le governement
Noé, avocat en parlement e procureur au siêge présidial du representatif et la constitution actuelle de la France, formant
Mans, havia falecido em 9 de junho de 1789, e a fortuna da une espêce de cours de politique constitutionelle, obra de
família provavelmente perdeu-se com a Revolução. De qual- Benjamin Constant. Suas edições compunham um amplo
quer maneira, o jovem Pierre partiu de Le Mans para Paris, espectro de opiniões, inclusive obras de Talleyrand, do du-
onde ingressou como aprendiz na fundição de tipos de J. C. que de Broglie, de Chateaubriand, de Carnot e de Casimir
Gillé, tornando-se um oficial compositor em 1798. Após che- Périer..., e não relutou em publicar a proclamação de Luís
gar ao cargo de gerente da tipografia, tornou-se representante xvIII ao reentrar em Paris, em julho de 1815, ou em atender
de livrarias, antes de montar seu próprio negócio, exatamente à demanda, criada pelos exércitos aliados de ocupação, de
no início do período dos Cem Dias de Napoleão. livros de expressões multilíngues.
Sua primeira edição registrada foi De Pempereur Napo- Entretanto, não havia dúvidas quanto às suas reais simpa-
léon et du Comte de Lille, uma réplica de Edme-Théodore tias e, logo após a volta do rei, foi preso por tentar distribuir
Borg (Saint-Edme) ao De Buonaparte et des Bourbons, de um panfleto sedicioso contra a família real, intitulado Cri du
Chateaubriand. Apesar de sua ascendência nobre, politica- peuple français. O novo regime processou-o pelo menos duas
mente Plancher era um bonapartista e, após a derrota final vezes depois disso, e adiou a outorga do seu diplôme de li-
de seu herói, suas convicções trouxeram-lhe contínuas difi- braire até junho de 1820. Sucessivos problemas com as auto-
culdades com as autoridades. ridades culminaram na suspensão, em 1822, da impressão de
Outro membro da família, Philippe Aristide Louis Pier- outra obra de Saint-Edme, Napoléon consideré comme géné-
re Plancher de Valcour, ator, escritor e proprietário de um ral, premier consul, empereur, prisioner à Sainte-Hélêne, após
teatro, fora um republicano radical que fizera fortuna com dois volumes (dos cinco planejados). Depois disso, deixou a
a produção de peças politicamente comprometidas durante França e, em princípios de 1824, vamos encontrá-lo no Brasil.
a Revolução. Félix Pacheco, biógrafo de Pierre François Plan-
150 Plancher Plancher 1$1

$28 NO EXÍLIO Esta “justiça” incluía uma isenção especial de impostos de im-
portação para todo o seu equipamento: ele trouxera tudo o
Apesar de tão distante, a escolha de seu novo lar não nos que era necessário para imprimir e fazer encadernações, tendo
deve surpreender. Os únicos regimes liberais então existentes mesmo trazido alguns de seus artesãos parisienses”.
e que ofereciam alguma perspectiva de estabilidade eram a Enquanto aguardava que a alfândega liberasse seu equi-
Suécia, os Estados Unidos e o Brasil. Os dois primeiros eram pamento (a isenção só foi concedida em 17 de maio), abriu
cultural e linguisticamente estranhos; a Suécia não apresen- uma loja provisória na rua dos Ourives, nº 60, em março de
tava oportunidades comerciais para um livreiro francês e 1824, anunciando que trouxera consigo um rico acervo de
os Estados Unidos deviam parecer repulsivamente republi- obras que proporcionaria aos brasileiros uma perfeita com-
canos e igualitários. O Brasil, destacadamente presente nas preensão do verdadeiro sistema de monarquia constitucional.
notícias em virtude de sua então recente declaração de in- Um anúncio posterior (de 1827) arrola os autores que trou-
dependência, já possuía fortes laços culturais com a França; xera, entre eles d'Alembert, Biot, Briant, Broussais, Carnet,
livros franceses já eram importados em volume razoável e Condillac, Constant, Diderot, Dumas, Dupuis, Miguet,
uma boa parte do comércio de livros existente estava nas Mirabeau, Montesquieu, Parisset e Poirer. Em outro local,
mãos de franceses. Economicamente, as perspectivas do acrescenta os nomes de Bignon, Blackstone, Casimir Périer,
país, em 1823, devem ter parecido ao menos tão brilhantes Fox, Foy, Guizot, Languinais, Pagês, Pitt, Say e (Adam) Smith.
quanto as dos Estados Unidos (ainda pré-industrializados).
Politicamente, a situação era tudo o que ele poderia desejar.
Desde Waterloo, o Brasil era sabidamente um refúgio para A LINHA EDITORIAL POLÍTICA DE PLANCHER $29
os bonapartistas. Dom João v1 chegara mesmo a indicar um
deles como responsável pela Biblioteca Nacional, de modo Em ro de junho de 1824, o livreiro mudou-se para insta-
que o príncipe de Metternich, o ministro austríaco das Rela- lações mais amplas na rua do Ouvidor (inicialmente no nº
ções Exteriores (Kanzler, após 1821), ficara tão preocupado 8o e depois nº 95) e logo começou a publicar em português.
com o fato a ponto de considerar que vigiá-los deveria ser o Grande parte de sua produção era política ou administrati-
primeiro dos deveres de Maler, seu chargé d'affaires no Rio. va: Parecer da Comissão de Fazenda (o orçamento brasilei-
O país era, então, uma monarquia liberal, chefiada por um ro), Colleção das Leis e Decretos do Império, A Inviolabili-
jovem tão imbuído das ideias napoleônicas quanto o pró- dade da Independência, a Gloria do Império do Brasil (por
prio Plancher. “um brasileiro”), Pauta d'Alfandega, Aumentada com huma
Regozijando-se com a liberdade e a tranquilidade de sua Taboa de Todos os Artigos nas Linguas Portuguesa, France-
nova pátria, Plancher expressou aos brasileiros “os since- sa e Inglesa, e a Constituição do Imperio do Brasil. A Cons-
ros votos d'hum vosso verdadeiro amigo, testemunha das tituição foi um êxito espetacular e lançou as bases de sua
grandes revoluções da Europa e instruido pela experiência prosperidade; obter a permissão para imprimi-la constituiu
de seus estragos e seus flagelos”. Esses sentimentos eram um feito notável, após uma longa luta com a Typographia
suficientemente fortes para superar algumas dificuldades
muito sérias que teve com a imigração, as quais só foram
resolvidas depois de um apelo direto a dom Pedro 1: 2. Félix Pacheco, Hum Francez Brasileiro, Pedro Plancher: Subsídios
para a Historia do “Jornal do Commercio”, Rio de Janeiro, Rodri-
gues, 1917, p. 3. Pacheco, que é nossa principal fonte para este capí-
A minha gratidão para os benefícios da Sua Majestade o Imperador
tulo, corrigiu e ampliou Hum Francez Brasileiro em artigo com que
e de muitos dos seus ministros não tem limites: victima de uma in- colaborou na Edição Comemorativa do Centenario do “Jornal do
triga, para que não tendo dado motivo algum, achei-me desterrado Commercio” (Rio de Janeiro, 1927), e em seu Pierre Plancher — nou-
do Brasil mesmo antes de minha chegada; porém Sua Majestade veaux renseignements sur le libraire-éditeur de Paris Pierre Plancher,
mandando informar o meu negocio, justiça me foi feita. fondateur du “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro (Paris, Pé-
done, 1930).
mes
[52 Plancher
Plancher 153
Nacional, vitória que se deveu tanto à qualidade de seu tra-
balho como à força de suas amizades em altos cargos. A parte mais lucrativa do negócio de Plancher foi, prova-
Sua editora contribuiu, do lado do governo, para o panfle- velmente, a publicação de periódicos, que começou, dezoito
tarismo político da época — como na discussão sobre a defesa dias depois de sua mudança para a rua do Ouvidor, com o
do casamento dos padres feita por Feijó (cf. $20). També Spectador Brasileiro, um jornal que durou até 23 de maio de
m 1827 e cujas moderadas opiniões pró-governo contrastavam
publicou o Império do Brasil, de M. V. Angliviel La Beaumel-
le, em tradução de Luiz Gonçalves dos Santos, apenas um ano com o Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, ferozmen-
após Bossange haver publicado o original francês (1823). O te antigovernamental. O editor deu início também à publi-
fato de ser um imigrante tornou-o consciente da necessidade cação da primeira Revista Brasileira “das sciencias, artes e
de livros que servissem de guias. Em novembro de 1824, edi- industrias”, e de uma revista de medicina, Propagador das
tou 0 Guia da Conversação Brasileira e Franceza, de G. Har- Sciencias Medicas.
moniêre, e em 1828 o Dicionario das Ruas do Rio de Janeiro, Logo após a interrupção do Spectador, Plancher adquiriu,
ou Guide de Pétranger dans cette capitale,em português, fran- de Francisco Manuel Ferreira & Cia., por um conto de réis,
cês e inglês, vendido por $400. Após lançar um Annuario His- outro jornal, o Diário Mercantil, fundado três anos antes.
torico Brasiliense em 1824, e começar, no ano seguinte, Em 1º de outubro de 1827, mudou o nome para Jornal do
um Commercio, que logo se tornou o periódico carioca mais im-
almanaque, Folhinhas de Algibeira e de Porta, empreendeu,
em 1827, um negócio mais amplo com o Almanack Plancher. portante, e sobrevive até hoje como o mais antigo da cidade.
Para dirigi-lo, Plancher fez uma sociedade com J. C. Raum e
Thomas B. Hunt, em nome do filho Émile Seignot-Plancher.
Isso levou alguns autores a confundirem o pai com o filho,

-
$30 FICÇÃO E PERIÓDICOS
principalmente porque Pierre usava às vezes o nome Seignot,
À Plancher cabe o crédito de haver publicado, em 1826, a sobrenome de sua amante Jeanne. Após um casamento ma-
primeira novela brasileira, Statira e Zoroastes, de Lucas José logrado com Marie Constant Gaudois em 1802, Plancher
de Alvarenga, um pequeno roman à clef de 58 páginas no iniciou, em 1806, uma ligação amorosa com Jeanne, relação
estilo francês contemporâneo da ficção didática, que buscava que se manteve e acabou por transformar-se em sociedade
divulgar as ideias sociais e políticas do liberalismo. Zoroates, comercial. Todavia, somente em 1827 Jeanne e seu filho vie-
príncipe do Tibete, concede a seu país os benefícios de uma = ram reunir-se ao editor, no Brasil; ao que parece, ela perma-
constituição, da liberdade de imprensa e assim por diante. neceu em Paris para cuidar dos negócios que possuíam na
A Impressão Régia imprimira um certo número de novelas cidade. Casaram-se em 1834, após a morte de Marie.
para a Paulo Martin e outros livreiros, mas todas eram meras
reimpressões de obras já editadas em Portugal, a maior parte
traduzida do francês; entre elas, títulos como O Diabo Coxo, O CARÁTER DE PLANCHER $31
O Amor Ofendido e Vingado, Triste Efeito de uma Infidelida-
de, As Duas Desafortunadas e até mesmo romances de capa Indubitavelmente, o sucesso de Plancher deveu-se, em parte,
e espada, como História Verdadeira da Princesa Magalona:. a suas boas relações com dom Pedro 1, que lhe concedeu o
Todavia, o mercado para as obras de ficção ainda era muito título de Impressor Imperial três meses após sua chegada ao
limitado no Brasil e, desde a queda de Napoleão, tinha sido Rio (daí ter usado o nome de Typographia Imperial e Cons-
amplamente abastecido por importações de Portugal e por titucional). Deveu-se ainda mais a seu tino para a publicida-
edições em língua portuguesa feitas em Paris (cf. $175). de. Um exemplo disso foi a introdução das “loterias”, então
muito populares no comércio de livros em Paris. Uma delas,
com um curioso destaque do “afortunado” treze, oferecia
3. Maria Beatriz Nizza da Silva, “Romances, Contos e Novelas”
tura e Sociedade no Rio de Janeiro, 1808-182 1, 2. ed.,
, Cul- duzentos bilhetes de treze números cada, a mil-réis por bi-
São Paulo, lhete, com o oferecimento de treze prêmios principais e treze
Nacional, 1978, pp. 197-227.
de consolação, que iam desde as obras completas de Busson,
154 Plancher Plancher

ilustradas, em 127 volumes, até um prêmio de apenas dois li- propos ás Senhoras Brasileiras huma loteria, que devia de render ao
vros. Plancher contava claramente com o princípio das rou- numero ganhado 12 contos de réis e a posse de sua pessoa, huma
pas novas do imperador para evitar perguntas embaraçosas Senhora [...] gozando d'huma boa fortuna e apenas tem de idade
acerca de seu primeiro prêmio. 23 anos, offerece os seus bens e seu coração ao bello estrangeiro
Outro feito publicitário, típico do editor, foi o falso que desde hum mez tem feito tanto estrepito no Brasil. Ambas as
anúncio que apareceu no número 4 do Spectador Brasileiro: partes bem depressa ficarão de accordo e tudo se passou para a sua
reciproca satisfação. Dezejamos que o Illustre publico torne huma
Hum mancebo de bom caracter, bonito garbo, tendo todas as per- parte bem sincera ao prazer que elles aprovão de serem postos em
feiçoens phisicas que podem agradar, que quer mas não pode pro- cazamento. As pessoas que já comprarão bilhetes podem-se apre-
curar huma mulher, sem ter adquirido huma fortuna, que o ponha sentar na nossa livraria que prontamente serão reembolsadas.
em estado de tratar sua consorte com todo o melindre de que as
Senhoras são merecedoras, propoem o meio seguinte para obter o É óbvio que Plancher tinha um delicioso senso de hu-
objeto de seus desejos. Elle offerece por dote o producto de huma mor — algumas de suas recomendações em seu Almanack,
loteria a todas as viuvas e donzellas que tenhão menos de 32 anos. para aqueles que pretendiam imigrar, nos fornecem outros
O preço de cada bilhete he de $020, sendo por todos 700000, a exemplos. Joaquim Manuel de Macedo (ele próprio um hu-
feliz proprietária do número terá direito a sua pessoa e aos 12 [o morista famoso) prestou tributo a este aspecto da persona-
que aconteceu aos outros dois?] contos de reis. Os bilhetes estão á lidade de Plancher em seu Anno Bibliographico Brazileiros,
venda na casa de Pedro Plancher, rua do Ouvidor, nº 80. uma coleção de 365 esboços biográficos organizados pelas
datas de nascimento ou por outro dia significativo na vida de
No número 6, ele prosseguiu informando que houvera cada uma das pessoas retratadas. O verbete sobre Plancher,
uma tal corrida de compradores que tivera de render-se à que reproduzimos na abertura deste capítulo, é uma brinca-
exigência do público e excluir as pessoas de cor (uma ótima deira quase completa. A frase que citamos é seguida de uma
alfinetada na relação entre dinheiro e preconceito). Como descrição de como o editor usou os lucros advindos de sua
muitas compradoras de bilhetes tinham pedido para ver a inesperada sorte para fundar o Jornal do Commercio, visando
mercadoria, encomendara um retrato, “para prevenir os ma- a satisfazer os desejos de “notícias sobre navegação, escravos
levolentes”, que estava sendo exibido no escritório de um fugidos e casas para alugar”. Vendeu-o após alguns anos e
notário público. Como Plancher provavelmente esperava, voltou para a França, “não possuindo nem a educação nem-a
seu concorrente, o Diário do Rio de Janeiro, não pôde deixar inteligência para tornar esse jornal algo digno de uma cidade
de fazer desagradáveis sugestões de gosto duvidoso sobre o civilizada”. O verbete de Macedo é erroneamente intitulado
negócio, tal como a da exibição do jovem na posição de um “Seignot-Plancher”, para preservar a confusão entre pai e fi-
K grego [por que grego?] na praça principal, ao alvorecer. lho que Plancher pai, amante de.travessuras, já havia criado.
Plancher respondeu, com fingida indignação, a “este relato Os escritores posteriores que aceitaram o relato de Ma-
quase indecente”, feito à custa de um pobre estrangeiro pou- cedo como verdadeiro não se deram conta de que o verbete
co familiarizado com os costumes brasileiros. No fim, a pro- aparece sob a data “1º de abril”. Na verdade, Plancher che-
cura foi tanta que o Diário teve de publicar um anúncio in- gou ao Brasil com recursos respeitáveis e com o mais mo-
formando que eles não estavam vendendo os tristes bilhetes derno equipamento francês para impressão, suficientemente
e que as pessoas deixassem de procurá-los em sua redação. bom para que obtivesse serviços que normalmente seriam
Quando a brincadeira já havia alcançado toda a publici- confiados à Typographia Nacional. Não era, certamente, um
dade que Plancher poderia desejar, a edição de 27 de junho bronco e sua educação está claramente refletida em seus es-
trouxe outro anúncio: critos: seu inglês, por exemplo, era excelente. Afinal, o título

Huma linda Senhora, nascida na Europa, gozando d”huma boa for-


tuna, tendo ouvido fallar vantajosamente do bello estrangeiro que 4. Joaquim Manuel de Macedo, op. cit.
156 Plancher Plancher 157

de Impressor Imperial sugere que era algo mais do que ape- sua chegada. Nas palavras de Luiz Santa Cruz, o projetista
nas um simplório alfabetizado. gráfico de livros do século xx:
O que é extraordinário no verbete do Anno Bibliographi-
co Brazileiro é que, trinta anos após sua partida, Plancher ain- O livro e o impresso brasileiro em geral, até mais da metade do
da era suficientemente lembrado para que Macedo contasse século xIx, viveram sob o signo de Plancher e do grafismo esté-
com a apreciação de seu chiste. Em Brás Cubas, de Machado tico da arte de impressão francesa. Outras tentativas, como as
de Assis (escrito mais ou menos na mesma época, por volta de de italianização e germanização, ocorridas, sobretudo, nas três
1880), há uma referência a respeito de alguém que “estava na últimas décadas do século passado, embora atingissem, de prefe-
rua do Ouvidor, à porta da tipografia de Plancher”, o que vem rência, a revista e o jornal, não conseguiram exilar de todo a in-
corroborar que o impressor ainda era lembrado. fluência francesa, se bem contribuíssem bastante para desfigurá-la
quase completamente.

$32 SUA INFLUÊNCIA SOBRE A IMPRESSÃO NO BRASIL Até que ponto essa tradição francesa foi uma influência
desejável no desenvolvimento das artes gráficas no Brasil
A impressão fora trazida para o Brasil apenas dezesseis anos depende, em última instância, do gosto de cada um. Pessoal-
antes da chegada de Plancher, por artesãos portugueses que mente, não sou muito entusiasta a seu respeito, principal-
usavam equipamento inglês, e a influência exercida por es- mente em suas manifestações mais góticas das décadas de
tes, naturalmente, determinou a prática daqueles primeiros 1840€e 1850, mas este é, sem dúvida, um preconceito natural
anos. Todavia, uma preferência por modelos franceses em inglês. Para Rubens Borba de Moraes, os livros brasileiros
todas as esferas da vida brasileira vinha crescendo constan- do período romântico estão entre os melhores produtos dos
temente desde fins do século xvrrr. A teoria e a prática polí- prelos nacionais*. Há pelo menos um destacado projetista
ticas eram dominadas por influências francesas: a arte esta- gráfico de livros brasileiros que parece partilhar do meu
va sendo confiada deliberadamente a professores franceses ponto de vista, pois Luís Jardim caracterizou a soma total
(especialmente aqueles ligados à missão artística de 1816); dessa influência francesa como “perniciosa”7. Não que isto
a literatura brasileira era quase inteiramente inspirada na envolva qualquer crítica ao próprio Plancher. Ao implantar
francesa; mesmo os costumes sociais extremamente conser- seu método nacional como padrão a ser seguido, dificilmen-
vadores do país estavam sendo lentamente transformados te poderia ser responsabilizado pelos rumos que este estilo
pela admissão generalizada de que a França era a única na- tomaria ao longo do restante do século.
ção civilizada no mundo ocidental.
Assim, bastaria apenas a chegada de um competente pro-
fissional francês das artes gráficas para que também estas A LITOGRAFIA $33
fossem remodeladas à la française. Mesmo que não houvesse
tal receptividade à influência francesa, o impacto da chegada Tecnicamente, podemos atribuir a Plancher o crédito de ha-
de Plancher sobre a vida cultural do Brasil recém-indepen- ver participado da introdução no Brasil do novo processo
dente seria considerável: um importante editor do centro de impressão planográfica conhecido como litografia. Inven-
livreiro da Europa, com suas (como dissemos) 480 livrarias tado por Alois Senefelder, em 1798, seu uso generalizou-se
e 850 oficinas tipográficas, subitamente se estabelece com somente depois de 1815, quando começou a substituir a
as mais recentes técnicas de impressão e os mais modernos
métodos comerciais no pequeno Rio com apenas uma dúzia
5. Luiz Santa Cruz, “Um Padrão de Cultura, o S. D. do M. E. C””,
de livrarias e meia dúzia de tipografias. Nessas condições,
Cadernos Brasileiros, vol. 4,n. 1, p. 20, 1962.
não poderia deixar de dominar o cenário editorial ou deixar 6. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, São Paulo, Na-
uma duradoura marca no livro brasileiro, mais ainda por- cional, 1965, p. 192.
que empregou aprendizes brasileiros praticamente desde a 7. Luís Jardim, durante conversa em outubro de 1970.
158 Plancher Plancher 159

gravação em chapas de metal como técnica preferida para O principal concorrente de Briggs era a Heaton & Rens-
a ilustração de livros e, de importância ainda maior, para a burg, uma sociedade, fundada em 1840, entre outro inglês,
impressão de música. Seu emprego atual para a impressão George Mathias Heaton, e um holandês, Eduard Rensburg.
do próprio texto era pouco conhecido antes do século xx e Esta firma, em 1845, gabava-se a um visitante americano de
não foi amplamente utilizado (no sistema chamado hoje de que, enquanto um mil-réis era um bom salário diário para um
offset) antes da década de 1960. litógrafo, eles conseguiram reduzir o custo da mão de obra
O litógrafo de Plancher era um bonapartista émigré, para um quarto deste valor, porque todos os seus artesãos
Hercule* Florence, que trabalhou para o impressor de maio qualificados eram escravos.
de 182.5 até setembro do mesmo ano, quando, apesar dos es- Embora a Heaton & Rensburg tenha ilustrado o Brésil Pit-
forços de Plancher para persuadi-lo a ficar, Hercule foi con- toresque, de Victor Frond ($69), sua principal característica
vidado pelo explorador e antropólogo barão de Langsdorff era a publicação de músicas, cuja impressão constituía outra
a acompanhá-lo em suas viagens pelo Brasil. (Anos mais tar- importante aplicação da litografia. Na verdade, o Brasil foi,
de, Florence seria um descobridor independente da fotogra- durante o século xIx, o país da América Latina onde mais
fia, e, em 1842, dirigiria a primeira tipografia do interior da se imprimiu música, e devemos fazer menção, ao menos de
província de São Paulo, em Sorocaba, como participante na passagem, a Pierre Laforge, na cidade desde 1814, que se esta-
rebelião liberal de maio-junho daquele ano.) beleceu em 1834 como pioneiro na venda e edição de música,
Todavia, a honra de ter sido o primeiro litógrafo do Bra- bem como ao mais importante editor de músicas local, Arthur
sil pertence a outro francês, Arnaud Marie Julien Paliêre, Napoleão, que mais tarde se associou a Narciso José Pinto
de Bordeaux, que, em 1819, trabalhou por pouco tempo Braga, fundando a firma Narciso, Arthur Napoleão e Cia.
para o Arquivo Militar. Após sua partida, o Arquivo encar-
regou o chargé d'affaires brasileiro na França de recrutar
um substituto. Assim, Johann Jacob Steinmann, da Basileia, VILLENEUVE $34
que aprendera seu ofício em Paris com o próprio Alois Se-
nefelder, chegou ao Rio em outubro de 1825. Steinmann fez O regime de que fugira Plancher foi derrubado pela revolução
alguns trabalhos, por encomenda, para Plancher, e quando de julho de 1830, mas as consequências econômicas imediatas
terminou seu contrato com o Arquivo, em 1830, abriu uma da revolta política foram (como costuma acontecer) muito
loja na rua do Ouvidor, nº 199. Três anos mais tarde, retor- ruins para o comércio francês de livros. Na verdade, foram
nou à Suíça, onde publicou sua coleção de vistas litografa- tão desastrosas que o novo governo francês tomou medidas
das, Souvenirs de Rio de Janeiro. especiais para garantir facilidades de crédito aos livreiros a
Graças, em parte, aos aprendizes brasileiros de Steinmann, fim de evitar uma onda de falências. Isto pode explicar por
havia no Rio, por volta de 1846, quatro tipografias que impri- que Plancher não retornou imediatamente. Todavia, após a
miam em litografia, umas treze em 1856 e dezesseis no final abdicação de dom Pedro 1, em abril do ano seguinte, foi a
do século. A mais antiga era a de Luiz Aleixo Boulanger, fun- vez do comércio brasileiro de livros sofrer os efeitos econô-
dada em 15 de agosto de 1829. A mais importante, na metade micos da incerteza política, e logo após, em 9 de junho de
do século, era a firma Ludwig e Briggs, que existiu de 1843 a 1832, Plancher, sem dúvida influenciado pela perda do seu
1877. Antes disso, o sócio principal, o inglês Frederick Wil- apoio imperial, vendeu sua firma para dois conterrâneos. Os
liam Briggs, manteve um negócio por conta própria durante compradores foram Jânio Constâncio de Villeneuve (contem-
seis anos e, antes ainda, de 1832 a 1836, foi sócio minoritário porâneo exato de Hercule Florence, pois nascera em 1804) e
na firma Riviêre e Briggs. Réol-Antoine Mougenot, dois cavalheiros que originalmente
tinham vindo juntos ao Brasil para servir, como oficiais, na
nova Armada Imperial. Ao deixarem a marinha, foram tra-
8. Seu nome de batismo aparece muitas vezes na forma abrasileirada balhar na firma de Plancher, onde, nos dois anos anteriores,
de “Hércules”. Villeneuve fora editor do Jornal do Commercio. Informa-nos
160 Plancher Plancher 161

Macedoº que pagaram 52:6648000 pelo negócio. Se esta ci- exemplares em 1827 para mais de quatro mil - ou 1300 mais
fra foi paga por cada um dos sócios, o total de 105 contos de do que seu mais próximo rival, o Correio Mercantil - em mea-
réis concordaria com o valor informado pela Encyclopedia e dos da década de 1840. Por volta de 1871,as vendas do Jornal
Diccionario Internacional da Jackson, e confirmaria mais ou do Commercio alcançavam quinze mil exemplares. À edição
menos a afirmação de Hercule Florence, citada por Pacheco", de livros tornou-se um segmento de menor importância no
de que Plancher teria ganho aproximadamente 300 mil fran- negócio, embora continuasse a representar uma contribuição
cos em seis anos. Parece mais provável, portanto, que a cifra menor nas edições brasileiras do século x1x, principalmente
indicada por Macedo corresponda ao preço pago pelos dois com traduções de Hugo, Sue e Dumas. Foram também pro-
sócios juntos, pois Mougenot vendeu sua parte a Villeneuve, duzidos dois dos mais antigos títulos registrados na biblio-
em 15 de julho de 1834, por 25:765$000. grafia do Boletim Bibliográfico Brasileiro dos primeiros ro-
Após a venda, Plancher ainda permaneceu por algum tem- mances brasileiros": de J. M. Pereira da Silva, O Aniversário
po na firma, a pedido dos compradores, para orientá-los no de D. Miguel em 1828 (1838), e de Justiniano José da Rocha,
negócio, de modo que só embarcou para Le Havre em 6 de Os Assassinos Misteriosos (1839). A grande maioria desses
fevereiro de 1834. nada que, durante esse período, a edi- livros (e muito provavelmente todos eles) era reimpressão de
tora de Plancher tenha produzido os sete volumes dos Anais material antes publicado como folhetim no jornal ($62).
do Rio de Janeiro, de Baltasar da Silva Lisboa, pois nem a
transferência da Plancher para os dois sócios, nem a da so-
ciedade para Villeneuve, como único proprietário, foram in- J. C. RODRIGUES $35
dicadas imediatamente no nome da firma: somente em 1º de
janeiro de 1836 é que aparece a segunda alteração no nome”. Júnio Villeneuve retornou à França, em 1844, para cuidar
O negócio continuou a florescer com Villeneuve e famí- da educação dos filhos e lá morreu, de um derrame cerebral,
lia: cabe a ele o mérito de ter possuído a primeira prensa me- aos 59 anos. Já havia perdido o filho mais velho na guerra
cânica do hemisfério sul e, mais tarde, a primeira rotativa e a da Crimeia, mas a firma continuou na família, sob a direção
primeira linotipo. Em 1848, quando sua firma contava três de um filho mais moço, até 15 de outubro de 1890, quando
prensas mecânicas, quatro manuais e oitenta empregados, passou para a propriedade de José Carlos Rodrigues, que
ele era, de longe, o maior impressor da cidade. Seus princi- havia regressado há pouco de Nova York, para onde tinha |
pais competidores eram a Typographia Nacional (com uma fugido, em 1867, a fim de escapar da justiça: o lapso de vinte
prensa mecânica, uma manual e 62 empregados), Paula Bri- anos dera-lhe imunidade, porquanto o processo prescreve-
to (uma prensa mecânica e seis manuais — $40), Laemmert ra. Sua experiência norte-americana ensinara-lhe inúmeros
(uma mecânica e seis manuais), a Typographia do “Diário” métodos editoriais modernos, que pôde introduzir no Brasil.
(uma mecânica e três manuais) e as oficinas do Correio Mer- Em Nova York, além de correspondente do Jornal, dirigira
cantil e do Correio da Tarde (cada qual com uma prensa um jornal brasileiro de sua propriedade, O Novo Mundo
mecânica e duas manuais). (1870-1879), e um periódico, a Revista Industrial.
Todo esse equipamento era utilizado principalmente A organização do Jornal do Commercio continuou a
para a publicação do jornal, cuja circulação crescera de 400 possuir o maior e mais moderno equipamento de impressão
do Brasil até uma época já avançada do século xx, quan-
do cedeu ao Jornal do Brasil sua posição de maior jornal
9. Anno Bibliographico Brazileiro, vol. 3, p. 545. carioca de prestígio. Em 1916, tinha doze linotipos e três
10. Félix Pacheco, Hum Francez Brasileiro, op. cit.
monotipos, empregados exclusivamente na produção do
11.M. de Ipanema, na seção sobre o comércio de livros do Atlas Cul-
tural do Brasil, data os Anais de 1824-1833. Ele também fornece a jornal. A marca Typographia do “Jornal do Commercio” de
cifra de 334 publicações como sendo o total da produção de Plancher Rodrigues e Cia. aparece com muita frequência, de 1890
no Brasil, incluindo todos os tipos de publicação: livros, folhetos,
jornais, periódicos, mapas etc. 12. Boletim Bibliográfico Brasileiro, vol. 6, n. 7, p. 374, ago. 1958.
162 Plancher

em diante, em inúmeros livros, mas estes eram impressos,


em sua maioria, por conta dos autores. Talvez a publicação
mais notável tenha sido a Biblioteca Brasiliense, Catalogo
Annotado dos Livros Sobre o Brasil [...] Pertencentes a J. C.
Rodrigues (1907), catálogo da biblioteca particular de Ro-
drigues (que hoje integra o acervo da Biblioteca Nacional),
considerada a maior coleção de brasiliana jamais possuída
por um particular.

Paula Brito
Paula Brito foi o primeiro editor digno
deste nome que houve entre nós.

MACHADO DE ASSIS”

LOUIS MONGIE $36

O Rio de Janeiro, nessa época, ainda era muito primitivo


em muitos aspectos. Antes de 1866, não havia uma rede de
esgotos adequada, a água ainda provinha do aqueduto de
Santa Teresa com seus mais de cem anos, suas ruas ainda
eram estreitas vielas não pavimentadas e mal iluminadas a
óleo de baleia. As construções eram, em sua maioria, de um
único pavimento; as lojas não tinham vitrines e quase sem-
pre possuíam apenas duas portas arqueadas na fachada para
dar entrada ao ar, à luz e aos fregueses.
O principal centro varejista do começo do século xIx
expandira-se ao longo da rua da Quitanda, desde a rua dos
Pescadores até a rua do Ouvidor. Nos primeiros anos do Im-
pério, aos poucos ele dobrou a esquina, de forma que, na
década de 1830, a principal rua de comércio era a própria
rua do Ouvidor. Até hoje, essa rua permanece como lembran-
ça de quanto eram estreitas as vias públicas do velho Rio,
e mesmo em 1895 Magalhães de Azeredo ainda se referia
à “nossa [...] mal calçada Rua do Ouvidor”*. No entanto,
em outros aspectos ela oferecia um contraste marcadamente
elegante quando comparada com suas vizinhas. Era mantida
limpa, o que não era comum; a maioria de suas construções
tinha dois andares, e algumas de suas lojas, já em 1822, apre-
sentavam fachadas de vidro. Em 1854, tornou-se a primeira

1. O Diário do Rio de Janeiro, 3 jan. 1865.


2. Carlos Magalhães de Azeredo, Correspondência de Machado de
Assis com..., Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969, p. 46.
166 Paula Brito Paula Brito

rua da cidade iluminada a gás, e seu tráfego havia crescido PAULA BRITO E A PETALÓGICA $37
tanto que foi preciso introduzir o sistema de mão única, que
deve ter sido um dos primeiros do mundo. Acima de tudo, Ao descrever a livraria de Mongie como “um ponto de encon-
as mercadorias e serviços que oferecia representavam todo o tro de escritores e intelectuais, que podiam contar com uma
luxo europeu (embora pelo dobro dos preços de Paris). Seus conversa animada, culta e interessante”, Macedo parece nos
costureiros, chapeleiros, cabeleireiros, alfaiates, joalheiros, estar oferecendo um dos primeiros exemplos da tendência
restaurantes e livrarias levaram um visitante inglês, em 1836, brasileira de converter uma livraria favorita em clube literário
a recordar-se da Regent Street de Londres; em 1880, outro informal, padrão seguido pelos habitués da casa de Hippolyte
comparou-a (talvez mais apropriadamente) a algo mais es- Garnier, de “O Livro” de Jacinto Silva, da José Olympio e tan-
treita Bond Street. Em 1844, um diplomata francês disse que, tas outras livrarias até nossos dias. Como ponto de encontro
além do Rio, São Petersburgo era o único lugar do mundo literário, todavia, Mongie foi totalmente eclipsado pela impor-
que, tão distante de Paris, oferecia uma exibição compará- tância da Sociedade Petalógica, na loja de Francisco de Paula
vel de mercadorias de seu país, e sem dúvida, as firmas de Brito, na praça da Constituição (hoje praça Tiradentes), nº 64.
propriedade de franceses dominavam a rua: em 1862, de um A Petalógica - o nome, imaginado por Brito, referia-se
total de 205 estabelecimentos, 93 pertenciam a franceses. à rédea solta que seus membros davam à imaginação (uma
A rua do Ouvidor era tão claramente o centro da vida ele- peta = uma mentira) — reunia todo o movimento romântico
gante da cidade que, em meados do século, Joaquim Manuel de 1840-1860: poetas, de Antônio Gonçalves Dias a Laurin-
de Macedo devotou todo um volume às suas Memórias da do Rabelo; romancistas como o próprio Joaquim Manuel
Rua do Ouvidor (1878). Entre as várias livrarias francesas de Macedo, Manuel Antônio de Almeida ou Teixeira e Sou-
(Villeneuve, no nº 65, Garnier no 69, Cremiêre no 104, Firmin sa; compositores como Francisco Manuel da Silva; artistas
Didot no 118...), Macedo destaca a de Louis Mongie, que como Manuel de Araújo Porto Alegre e atores como João
descreve como a principal livraria da rua do Ouvidor (e, por- Caetano dos Santos. Ali, compareciam também líderes da
tanto, do Rio). Mongie, que dirigiu uma filial da livraria pari- sociedade, como Antônio Peregrino Maciel Monteiro, mi-
siense de seu pai, E. Mongie, no número 91 (posteriormente nistros do governo — entre eles José Maria da Silva Paranhos
renumerado como 87), de 1832 até sua morte em 1853, (visconde do Rio Branco e pai do barão) e Eusébio de Quei-
roz (responsável pelo término do tráfico de escravos) — e se-
tinha instrução variada, trato ameno e era excelente orador. A sua nadores, como Francisco Otaviano de Almeida Rosa. Havia
livraria muito rica de boas obras vendidas a preço que não o preju- também jornalistas, como Joaquim de Saldanha Marinho e
dicava, mas não aturdia o comprador, foi preciosa fonte de civili- Firmino Rodrigues da Silva, e um número surpreendente-
zação e era frequentada pelos homens de letras e pelos cultivadores mente alto de médicos: Francisco de Menezes Dias da Cruz,
das ciências que achavam nela os melhores livros de publicação re- Henrique César Mussio, Rodrigues Martins...
cente e gozo da conversação ilustrada e espirituosa com o livreiro.

Após sua morte, a loja foi transferida para Pinto & Wal- A PERSONALIDADE DE PAULA BRITO $38
demar, uma firma que, em 1858, se tornou apenas E L. Pin-
to & Cia., já que Frederico Waldemar havia adquirido sua Deve ter contribuído consideravelmente para a popularidade
própria loja, e, em meados da década de 1870, J. Barboza & de sua loja a personalidade marcantemente amistosa e afável
Irmão, época em que seu endereço mudou novamente para de Brito, da qual quase todos os seus contemporâneos dão
o número 81. Tanto Pinto como Barboza utilizavam o nome testemunho. O que deve ter ajudado também foi uma decisão
de Livraria Imperial, “fornecedores de S. M. o Imperador”. consciente, tomada pelo editor por volta de 1840, de man-
ter a política afastada de seu negócio: não procurava nem
3. Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor, Rio de aceitava qualquer função ou favor políticos e esforçava-se
Janeiro, Perseverança, 1878; reedição: Edições Ouro, 1966, pp. 204-210. para tornar o número 64 um ponto de encontro neutro, onde
168 Paula Brito Paula Brito 169

“vencedores e vencidos [dos conflitos partidários do dia] da- a família mudou-se para Suruí quando ele tinha seis anos.
vam-se as mãos em favor das letras e das artes”+. Paula Brito jamais pôde frequentar a escola: aprendeu a ler
Mesmo assim, isso constitui uma façanha notável para e a escrever com a irmã, Ana Angelina das Chagas. Extensa
uma loja situada fora da área mais elegante e mais significa- leitura, contínuo esforço no sentido do autodesenvolvimento
tiva, ainda porque seu proprietário era um mestiço, autodi- ao longo de toda a sua vida e o contato social com amplo cír-
data, de origem muito humilde. Todos os livreiros e impres- culo de amigos inteligentes completariam sua educação e lhe
sores que mencionamos até aqui eram imigrantes ou filhos dariam suficiente domínio da língua portuguesa para se tor-
de imigrantes. Este fato reflete até que ponto os estrangeiros nar, por si só, um poeta menor, e da língua francesa para tra-
monopolizavam todos os aspectos do comércio da época. balhar como tradutor para Plancher no fim da adolescência.
Até 1863, menos de um quinto (1373 de um total de Entrementes, tendo ficado órfão de pai e mãe, tornou-se
7 224) das empresas comerciais do Rio de Janeiro perten- pupilo do avô materno, o sargento de milícias Martinho Fer-
cia a brasileiros. Os ingleses eram os banqueiros, os impor- reira de Brito, afamado como ourives talentoso. Em 1824,
tadores e os atacadistas do Brasil. O comércio de escravos o avô, com oitenta e quatro anos (viveu até os cem), levou
(enquanto durou) estava nas mãos dos portugueses, que Francisco, então com quinze anos, de volta ao Rio. Após
também controlavam grande parte do comércio varejista, curta permanência como ajudante na loja do farmacêuti-
com exceção do comércio dos artigos de luxo da capital, co Domingo Gonçalves Valle, o rapaz ingressou, naquele
que era dominado (como dito) pelos franceses. Os brasilei- mesmo ano, como aprendiz na Typographia Nacional. Seu
ros brancos aqui nascidos, com o antigo desdém aristocrata primeiro emprego, após terminar o aprendizado, foi com o
do Velho Mundo por qualquer tipo de comércio, limitavam livreiro e impressor René Ogier, na rua da Cadeira, nº 142,
seus interesses à agricultura e ao governo. O trabalho não que Rubens Borba de Moraes considera “talvez o melhor
qualificado era executado pelos escravos, e as “pessoas de tipógrafo que o Brasil teve”s. Em seguida, tornou-se compo-
cor livres” contentavam-se em formar a classe dos artesãos. sitor na equipe do Jornal do Commercio de Plancher. Apren-
O fato de Paula Brito ter-se tornado o livreiro preferido deu, assim, seu ofício nas três melhores tipografias da cida-
da elite intelectual do Rio de Janeiro, bem como o sucessor de. E, o que foi quase tão importante, seu desenvolvimento
de Plancher como principal editor da época, não obstante intelectual, da adolescência à idade adulta, ocorreu durante
seus antecedentes, diz bem da sua energia, determinação e os impetuosos anos que se seguiram à Independência; é a
habilidade. Isso ilustra igualmente o paradoxo de que ser este pano de fundo que José Veríssimo atribui seu leal, mas
negro (no sentido norte-americano corrente do termo) cons- tolerante nacionalismo, seu patriotismo “sem patriotadas”
tituía uma desvantagem muito menor sob um Império servil que o sustentou ao longo de uma vida dedicada a ajudar a
do que viria a ser numa República positivista “livre”. elevação dos padrões culturais de seu país. Sem dúvida, as
ideias liberais do próprio Plancher também exerceram con-
siderável influência sobre o desenvolvimento do jovem.
$39 O COMEÇO DA VIDA No Jornal, Paula Brito progrediu até tornar-se chefe do
departamento de impressão e, finalmente, diretor respon-
Os pais humildes de Paula Brito foram Jacinto Antunes sável. Segundo Moreira de Azevedo, sua promoção inicial
Duarte, um carpinteiro, e Maria Joaquim da Conceição Bri- deveu-se à coragem com que enfrentou uma multidão enfu-
to, sua mulher: a adoção do sobrenome materno era então recida que protestava contra uma notícia impressa no jornal,
hábito comum nas classes pobres. Embora Francisco tenha gritando insultos a Plancher e atirando-lhe exemplares da
nascido no Rio (no nº 148 da rua do Piolho, hoje da Carioca), edição ofensiva. Paula Brito interpôs-se entre a vítima e os

4. Francisco Agenor de Noronha, “O Rio de Janeiro em 1862 e as Pri- 5. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, São Paulo, Na-
meiras Produções Literárias de Machado de Assis”, Revista do Brasil, cional, 1965, p. 192.
3º série, vol. 1,n. 12, jul. 1939. 6. Apud Francisco Agenor de Noronha, op. cit.
170 Paula Brito Paula Brito I7I

agressores e dirigiu-se a eles com “tal calma e moderação”? aparecesse neles. Mais uma vez demonstrou sua coragem ao
que, envergonhados, retiraram-se pacificamente. enfrentar uma multidão furiosa e ameaçadora. Sua deter-
Dizem que, quando dom Pedro 1 abdicou, Evaristo da minação ao impedir que ela invadisse seu estabelecimento
Veiga “aproveitou-se do jovem tipógrafo e o fez improvisar foi suficiente para afastá-la e, assim, seu negócio foi salvo.
versos no campo de Sant" Ana, pregando a ordem e a união No dia seguinte, publicou um ataque às ações da turba e ao
da tropa e do povo”*. Brito, porém, aliou-se aos “exaltados” governo que fora conivente com ela.
(o partido que advogava a volta de dom Pedro) contra a Nesse ano de 1833, possuía duas firmas, em dois endereços:
Regência e rompeu com Evaristo: provavelmente aderiu à na praça da Constituição, nº 1, estava instalada a Typogra-
ideia de que um governo pessoal forte era uma salvaguarda phia Fluminense (nome que abandonou depois de três anos) e,
indispensável para a unidade ainda precária da nova nação. no nº 44, a Typographia Imparcial. Em 1837, mudou-se para
Foi nesse mesmo ano de 1831 que suas economias, amea- o nº 66 e, em 1839, expandiu as instalações para o número
lhadas arduamente, lhe permitiram comprar um pequeno es- adjacente, 64 (que se tornaria seu endereço mais conhecido).
tabelecimento de seu parente Silvino José de Almeida Brito. A julgar pela bibliografia de Eunice Ribeiro Gondim, em
A loja, na praça da Constituição, nº 1, era uma papelaria e Vida e Obra de Paula Brito (que pode não ser um registro com-
oficina de encadernação, onde também se vendia chá: daí a pleto), ele imprimiu apenas periódicos até 1835, ano em que
referência ao estabelecimento de Paula Brito como “a loja de produziu cinco livros. À produção permaneceu nesse nível até
chá, do melhor que há”. Ele instalou em sua loja um peque- 1842, quando nove edições foram impressas, subindo para ca-
no prelo adquirido de E. C. dos Santos. Dificilmente aquele torze no ano seguinte. À partir dessa data, e até 1857, nunca
seria o momento mais indicado para iniciar um novo negó- deixou de produzir menos que esse número, alcançando 19
cio. O ano de 1831 marcou a pior depressão comercial desse títulos em 1849,21 em 1851, 24 em 1853 e 20 em 1856.
século, e o transtorno político provocado pela abdicação foi Até mais ou menos 1820, os impressores, mesmo em
seguido de tantos tumultos, revoltas e outras desordens que Londres, podiam trabalhar com um equipamento pouco
se criou, em agosto, uma milícia cívica especial para ajudar maior do que o necessário ao tempo de Gutenberg; no en-
a preservar a ordem. tanto, na metade do século, havia crescido consideravelmen-
Todo o período da Regência foi, de fato, uma época tur- te o capital exigido para montar uma tipografia eficiente.
bulenta e difícil, particularmente para aqueles que se opu- Contribuíram para isso uma maquinaria aperfeiçoada — e
nham ao governo, como Paula Brito, mesmo quando expres- mais cara (quinhentas libras por um prelo movido a vapor,
savam suas opiniões com reserva e sempre recomendavam contra oitenta por um manual) — e a necessidade de uma
moderação. Em 2 de dezembro de 1833, muitos jornais da variedade muito mais ampla de tipos para satisfazer o gosto
oposição foram atacados pela multidão com a aprovação tá- do público, que se tornava cada vez mais exigente. O uso da
cita do governo. Paula Brito foi atacado especificamente, ao estereotipia diminuía. o custo do chumbo imobilizado em
que parece, por ter impresso um periódico político com o in- composições guardadas e reduzia consideravelmente os cus-
transigente título O Restaurador (do exilado dom Pedro 1). tos da reimpressão, mas podia aumentar até sete vezes os
As autoridades também desaprovavam sua insistência em custos gráficos iniciais. Apesar de tudo isso, o negócio de
preservar o anonimato dos colaboradores do periódico: ele Paula Brito prosperou. Em 1848, possuía, além de seis prelos
se declarava inteiramente responsável por tudo aquilo que manuais, um mecânico, descrito como “o maior do Brasil”, e
dezoito meses depois adquiriu mais prelos.
Houve outras expansões paralelas. Ampliou suas instala-
7. Eunice Ribeiro Gondim, Vida e Obra de Paula Brito, Rio de Janei-
ro, Brasiliana, 1965. ções nos fundos, para ter um endereço na rua da Lampadosa
8. Joaquim Manuel de Macedo, Anno Bibliographico Brazileiro, Rio (nº 35-37), e ao lado, com a aquisição, em 1850, do número
de Janeiro, 1876-1880, vol. 3, p. 545. À causa imediata da abdicação 68. Comprou também o número 78, sua “loja do canto” (por
foi a rejeição do imperador pela tropa, constituindo assim o evento a ficar na esquina da rua São Jorge, hoje Gonçalves Ledo), que
primeira mudança brasileira de governo por golpe militar. se tornou sua livraria e papelaria. Criou filiais em sociedade
172 Paula Brito Paula Brito 173

com Teixeira e Sousa na rua dos Ourives, nº 21,e com Cândi- ano e que, até então, vinha absorvendo a maior parte da pou-
do Lopes instalou a Tipografia e Loja de Lopes e Cia., no lar- pança nacional disponível.
go da Memória, em Niterói. (Um pouco mais tarde, em 1853, A própria ideia de fundar uma companhia por ações (por
esse Cândido Lopes tornou-se o primeiro impressor na nova mais desastroso que tenha sido o resultado) revela como
província do Paraná.) Para distribuir suas publicações, Paula Paula Brito era capaz de enxergar longe, pois tal iniciati-
Brito criou agências em todas as partes do Império. va só se tornara possível exatamente naquele ano, com a
promulgação do novo Código Comercial. Sebastião Ferreira
dos Santosº, ao analisar a crise de 1864, destaca o quanto
$40 A IMPERIAL TYPOGRAPHIA DOUS DE DEZEMBRO eram conservadores os homens de negócios do velho estilo —
principalmente os portugueses — sempre comerciando den-
Em 1851, Paula Brito ingressou no campo da litografia: uma tro dos limites, com extrema economia, e investindo todo e
de suas revistas, A Marmota na Corte, incluía regularmente qualquer lucro, com segurança, em imóveis.
o encarte de um figurino, que até então fora impresso em Pa- Parece que Paula Brito não sofreu qualquer desvantagem
ris. Dois anos mais tarde, trouxe de Paris um talentoso litó- por aceitar o patrocínio imperial, talvez por este lhe ter sido
grafo, Louis Therier, e adquiriu uma propriedade na rua dos concedido pelo imperador em caráter pessoal, nada tendo a
Cigarros, nº 28, onde instalou esse ramo de seus negócios. ver com política partidária. O editor conquistou, em Pedro n1,
Se, em 1839-1840, apoiou com toda a força o plano de um valioso patrocinador, mas preservou cuidadosamente sua
declarar a maioridade do jovem Imperador, então com apenas neutralidade, a ponto de não exercer o direito de ostentar a
catorze anos de idade, com vista a pôr fim à impopular Re- autorização imperial de “impressor da Imperial Casa”:º.
gência, esta foi sua última atitude política antes de decidir-se A perda de sua independência econômica foi muito mais
por uma deliberada neutralidade, que já mencionamos, de séria. A classe média brasileira sempre se mostrou relutante
modo que, em 1848, sua tipografia foi considerada a única da em aceitar os riscos inerentes à posse de ações, de modo que
cidade que jamais havia recebido qualquer auxílio ou favor Paula Brito somente conseguiu atrair investidores depois de
oficial. Dois anos depois, porém, a necessidade de mais capital garantir-lhes dividendos de 6% (mais um exemplar gratuito
para financiar a contínua expansão de seus negócios levou-o de tudo o que publicasse por cada cota de 4008000 e vários
a aceitar o patrocínio imperial para iniciar uma sociedade por outros incentivos). Com isso, sua condição real passou a ser
ações. Essa ajuda foi-lhe prontamente concedida com base a de simples gerente de seu negócio, com um compromisso fi-
numa amizade pessoal iniciada com seu apoio a Pedro 11 dez nanceiro que o poria em risco no momento em que algo pro-
anos antes e consolidada pela admiração do monarca por seu vocasse uma queda da margem de lucros. No final, “gastou
empenho em estimular os escritores brasileiros. anos, dedicação, incrível esforço, trabalho inexcedível e só
O nome da nova Imperial Typographia Dous de Dezem- ganhou desgostos e ruína”, como afirma Macedo". Todavia,
bro é testemunho da feliz coincidência de dom Pedro 11 e Pau- continuou por alguns anos a expandir a firma. Por exemplo,
la Brito aniversariarem no mesmo dia, data que marcava tam- em 1854, voltou a ampliar as instalações principais com a
bém o aniversário do dia, do ano de 1833, em que Paula Brito aquisição do prédio do nº 68. No ano seguinte, jactava-se
salvou seu estabelecimento da fúria da multidão. A nova com- de ter sessenta empregados: nove franceses, cinco portugue-
panhia foi, apropriadamente, inaugurada a 2 de dezembro de ses e quarenta e seis brasileiros, embora ele mesmo ainda se
1850, tendo Sua Majestade como importante acionista.
Além do patrocínio imperial, um outro fator ajuda a ex-
9. Sebastião Ferreira dos Santos, Esboço ou Primeiros Traços da Crise
plicar a habilidade de Paula Brito em atrair, exatamente nessa
Comercial da Cidade em 1864, Rio de Janeiro, Laemmert, 1864.
ocasião, financiamento externo. É 1850 o ano que assinala, ro. Esse costume de uma loja ou fábrica ostentar o royal warrant por
no Brasil, o começo do grande surto de desenvolvimento in- ter a família real entre os seus fregueses persiste na Grã-Bretanha atual,
terno nos meados do século. O que provocou o início desse onde mesmo a Ford Motor Company (entre muitos outros) o utiliza.
processo foi o fim do comércio de escravos, ocorrido naquele 11. Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor, op. cit.
174 Paula Brito Paula Brito 175

ocupasse pessoalmente de trabalhos de impressão, que se mente saíam de casa, a não ser para ir à missa, e tinham como
somavam à sua pesada carga de tarefas como gerente-geral únicas ocupações a confecção de renda, o preparo de doces e
do negócio e supervisor editorial (e frequentemente colabo- os mexericos com as escravas da casa. Apenas na década de
rador) das várias publicações periódicas. 1820 — e muito mais tarde nas províncias —, o analfabetismo
Ao contrário de Plancher, cujas publicações tinham se feminino deixou de ser encarado como um sinal de nobreza:
concentrado em administração, política e informações práti- esse traço era tido como uma contribuição essencial à mora-
cas para os homens de negócios, Paula Brito produzia muito lidade, pois evitava os amores secretos por correspondência!
mais para o “leitor comum”, e foi praticamente o primeiro Debret nos pintou, nos anos de 1820, Uma Senhora Brasileira
editor não especializado genuíno do país (daí a citação de em seu Lar, acompanhada de uma jovem filha a aprender as
Machado de Assis que encabeça este capítulo). Isso se deveu, letras, e a primeira escola para moças no Rio fora aberta já em
em grande parte, a mudanças no mercado: encontramos pro- 1816, mas somente em meados do século tornou-se normal
vas disso no livro A Edição de Língua Portuguesa em França, para as jovens brasileiras bem-nascidas, até os treze ou cator-
de Vitor Ramos'*, onde vemos que os títulos sobre política e ze anos, frequentarem, nas maiores cidades, uma escola ele-
economia caem de 37 (de um total de mais ou menos 103), gante (invariavelmente dirigida por uma estrangeira). Mesmo
durante a década de 1820, para apenas cinco (de 126 publica- então, como Elizabeth Cary Agassiz": nos revela claramente,
dos) durante a de 1840. O ardor político da década de 1820 e a escolha do material de leitura era estreitamente circunscrita.
os tumultos da década de 1830 cederam lugar à estabilidade O volume de publicações de Paula Brito dirigidas às mulhe-
do Segundo Reinado; os nobres improvisados que estavam à res, a começar pelo primeiro lançamento, em 1832, A Mulher
testa da sociedade, assumindo o tradicional desdém da aris- do Simplício, ou A Fluminense Exaltada, torna evidente que
tocracia pelo dinheiro, mas incapazes de colocar em seu lu- esse editor estava consciente da existência desse novo público
gar o orgulho pelo nascimento e pela linhagem (os títulos de leitor. A Mulher do Simplício foi a primeira revista feminina do
nobreza no Brasil imperial só eram concedidos ao portador país e foi impressa por seu velho amigo e mestre, Plancher. Sub-
enquanto ele vivesse), substituíram-no pela “cultura” como sistiu até 1846, mas sua sucessora, A Marmota, durou, com al-
a única prova aceitável de nobreza, e a classe média urbana gumas mudanças secundárias de título, de 1849 até 1864, três
seguiu-lhes o exemplo. Até onde isso influiu no comércio de anos após sua morte. Antonio Candido"* destaca, com razão,
livros seria demonstrado por seu rápido declínio quando a a importância destas e de outras revistas na ampliação do mer-
revolução de 1889 transformou o clima social ($79). cado, fazendo com que os autores se habituassem a escrever
para as mulheres ou para o público familiar.

$41 O MERCADO FEMININO


AS EDIÇÕES LITERÁRIAS DE PAULA BRITO $42
Muita coisa havia mudado no Brasil no intervalo entre a In-
dependência e a maioridade de dom Pedro 11. João Camilo Eunice Ribeiro Gondim's registra 372 publicações não pe-
de Oliveira Torres chegou a dizer que esse período testemu- riódicas de Paula Brito, 83 das quais na área da medicina.
nhou progressos sociais mais importantes do que qualquer A maioria dessas obras médicas era constituída, na verdade,
outra coisa ocorrida nos cem anos seguintes. O maior deles, por teses. Se as deduzirmos do total, junto com outros itens
no que diz respeito à publicação de livros, foi a valorização da
condição da mulher, criando um público leitor feminino sufi-
13. Louis e Elizabeth Cary Agassiz, A Journey in Brazil, Boston, Tick-
cientemente numeroso para alterar o equilíbrio do mercado. nor Fields, 1868, p. 679.
Até então, o Brasil tinha seguido os costumes impostos pelos 14. Antonio Candido, “O Escritor e o Público”, em A Literatura no
mouros a Portugal durante a Idade Média. As senhoras rara- Brasil, org. por Afrânio Coutinho, 2. ed., Rio de Janeiro, Sul-Ameri-
cana, 1968, vol. 1, pp. 98-109.
12. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972. 15. Eunice Ribeiro Gondim, op. cit.
176 Paula Brito Paula Brito 177

que podemos presumir terem sido impressos por encomenda receu-lhe sociedade no negócio. Sua obra O Filho do Pescador,
(discursos políticos, orações fúnebres, constituições de so- que Paula Brito publicou em 1843, talvez possa ser considera-
ciedade de benemerência, propaganda de teatros, relatórios da o primeiro romance brasileiro com algum valor literário.
de companhias e poemas ocasionais) e folhetos de menos Entre seus muitos protegidos estava Juvenal Galeno (acla-
de vinte páginas, sobram 214 edições, das quais uma gran- mado como o maior poeta popular do Brasil”), a quem en-
de parte (exatamente cem) consiste em dramas. Dois terços corajou a produzir seu primeiro livro de poemas líricos, Pre-
desses dramas eram libretos de ópera, um claro reflexo da lúdios, em 1856. Um outro foi o romancista Bruno Seabra.
paixão pelo teatro lírico no Brasil em meados do século x1x. Brito também deu emprego ao poeta Casimiro de Abreu e
Destes, treze eram edições de originais brasileiros, mas a ao jovem Machado de Assis, que começou como revisor de
maioria (47) era constituída, como se poderia esperar, de tra- provas e deu início à sua carreira literária como colaborador
duções do italiano, entre elas dez de Donizetti, oito de Verdi, de A Marmota Fluminense.
cinco de Puccini, três de Belini e três de Rossini. Entre as outras produções da editora de Paulo Brito po-
Outros autores estrangeiros que publicou, na maior par- demos incluir os Últimos Cantos de Gonçalves Dias, Dores
te em suas próprias traduções, foram Frédéric Soulié, Augus- e Flores de Augusto Emílio Zaluar, Hinos da Minha Alma de
tin Eugêne Scribe, Pitre Chevalier, Dumas pai, Jules David, Constantino José Gomes de Sousa (todos de 1851); Vocabu-
Crétineau Joly e Émile Souvestre, mas estes apareciam em lário Brasileiro para Servir de Complemento aos Dicioná-
geral mais em seus periódicos do que em livros avulsos. rios da Língua Portuguesa de Brás da Costa Rubim (1853),
A literatura brasileira praticamente ainda não existia. Bri- o poema épico de Domingos José Gonçalves de Magalhães
to foi, de fato, o primeiro editor a encorajá-la. Como escreveu sobre os índios brasileiros, a Confederação dos Tamoios
Thomas Ewbank, visitante americano, na metade da déca- (1857), e as comédias de Martins Pena.
da de 1840 no seu Life in Brazil (Nova York, Harper, 1856): Não se deve imaginar que aquilo que um escritor pro-
“Diz-se que é pequeno o interesse pela literatura nacional. vavelmente recebia de Paula Brito pela publicação de sua
Minerva Brasiliense, uma miscelânea muito interessante, de- obra fosse suficiente para lhe proporcionar uma vida me-
sapareceu depois de dois anos de existência”. Paula Brito não diana: o mercado ainda era muito limitado para tal. No en-
apenas editava; foi também o primeiro editor a assumir o ris- tanto, raramente isso era necessário, porque, uma vez tendo
co de publicar obras de literatos brasileiros contemporâneos conquistado uma certa fama, um escritor de talento tinha
por sua própria conta, em vez de fazê-lo por conta do autor, grandes possibilidades de obter uma sinecura do governo.
como uma estrita transação comercial. Pela primeira vez, um Era este o resultado frequente do interesse pessoal de dom
poeta ou um romancista nacional poderia almejar ser publi- Pedro 11 no estímulo à literatura nacional, mas o número
cado em livro e ser pago por isso. Na verdade, na disposição de autores que usufruíam de cargos públicos destinados a
de oferecer apoio financeiro direto a qualquer jovem escritor proporcionar-lhes amplo lazer para poderem dedicar-se
sem recursos, o interesse patriótico de Paula Brito pela cultu- a seus escritos foi considerável, pelo menos até o final da
ra brasileira somou-se à sua própria experiência de pobreza. República Velha (1930). Os cínicos, naturalmente, deram
“Qualquer artista, quer nacional, quer estrangeiro, que caía ênfase à eficácia de tal método no asfixiamento, na origem,
em miséria, O primeiro protetor que encontrava era Paula Bri- de muitas críticas políticas ou sociais em potencial.
to: a sua pessoa, a sua bolsa, o seu prelo, os seus periódicos,
tudo oferecia ao artista desgraçado” 'S.
O exemplo mais famoso desse comportamento foi o ro- A LIQUIDAÇÃO $43
mancista Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, a quem acolheu
em sua própria casa, empregou-o em sua loja e finalmente ofe- Nenhum ramo de comércio é mais sensível às condições eco-
nômicas gerais do que a edição e a venda de livros. Não deve-
16. Manuel Duarte Moreira de Azevedo, “Biographia”, em Poesia de
Francisco Paula Brito, Rio de Janeiro, Paula Brito, 1863. 17.“Juvenal Galleno”, Annuario Brasileiro de Literatura, vol. 2,p.60,1937.
178 Paula Brito

mos, pois, nos surpreender com o fato de que os dividendos


de 6% prometidos por Paula Brito a seus sócios tinham-
-se revelado, no final, uma obrigação impossível de cumprir
no momento de uma queda dos negócios. No começo de
1857, OS acionistas, insatisfeitos, conseguiram a liquidação
da Typographia Dous de Dezembro. A tendência é ver em
Paula Brito uma vítima da Grande Depressão daquele ano,
a primeira crise econômica de âmbito mundial. Para confir-
mar tal relação de causa e efeito seria necessário demonstrar
que o dinheiro tornou-se “escasso” mais ou menos dez meses
antes do crash real. Este é visto, tradicionalmente, como uma
consequência da falência da Ohio Life Insurance and Trust
Company, em 24 de agosto de 1857, enquanto Paula Brito,
já em 27 de outubro de 1856, fazia um desesperado apelo
a seus acionistas para aceitarem resultados a longo prazo:
“o vosso prejuízo será grande e inevitável, por isto que estes
estabelecimentos, em cuja criação e direção se consomem
numerosos capitais [...] fazem-se para produzir e não para
serem vendidos em hasta pública...” '*. José Maria
Paula Brito conseguiu sobreviver no mundo dos negó- Corrêa de
cios, embora em escala muito limitada: sua firma foi redu-
zida à Typographia de Paula Brito, e num único endereço, Do
praça da Constituição, nº 67. Foi em grande parte devido ao Belarmino
auxílio financeiro de dom Pedro II que o conseguiu, já que
sua principal publicação (A Marmota) recebia do imperador de Mattos
uma subvenção mensal de 200$000. Paula Brito continuou
a publicar livros, mas sua produção caiu para onze títulos
em 1857, doze em 1858 e dez em 1859, mesmo que tenha
voltado a crescer, aumentando para quinze em 1860 e o mes-
mo número em 1861, ano de sua morte.
É frequente, na história da impressão, a continuidade do
negócio pela viúva. Foram exemplos, no Brasil, a viúva Silva
Serva ($25), a viúva Vianna ($20) e, provavelmente a mais
bem-sucedida, a viúva Ogier, sucessora de René Ogier ($39).
Assim, a viúva de Brito continuou o negócio até 1867, em
sociedade com o genro, mas com uma produção editorial
menor: talvez meia dúzia de títulos por ano, número que a
partir daí só foi declinando. Em 1868, a senhora Rufina Ro-
drigues da Costa Brito parece ter ficado sozinha, e transferiu
o negócio para um endereço mais modesto, rua do Sacra-
mento, nº ro, onde subsistiu até 1875.

18. Eunice Ribeiro Gondim, op. cit.


É assim que se formou e sempre funciona a
economia brasileira: a repetição no tempo e no
espaço de pequenas e curtas empresas de maior
ou menor sucesso. Algumas foram fulgurantes,
mas pouco ou nada sobrou delas.

CAIO PRADO JÚNIOR,


Formação do Brasil Contemporâneo!

A SITUAÇÃO HISTÓRICA ESPECIAL DO MARANHÃO $44

A situação acima, descrita por Caio Prado Júnior em For-


mação do Brasil Contemporâneo — Colônia, é exemplificada
perfeitamente pelo crescimento e o declínio da atividade edi-
torial em São Luís do Maranhão. Atualmente, a cidade e o
estado são quase sinônimos de atraso e subdesenvolvimento.
Entre todos os estados brasileiros, somente o Piauí apresenta
padrões médios de vida tão incrivelmente baixos. Em 1960,
a Fundação Getúlio Vargas calculou a renda doméstica per
capita do Piauí em Cr$7 712 e a do Maranhão em Cr$9 zr0,
cifras que podemos comparar com a de Cr$12083 do Cea-
rá, o estado que tem o nível econômico mais baixo depois
dos dois citados, com Cr$26 790 do Brasil como um todo,
com Cr$47 603 do estado de São Paulo e com Cr$77 967 da
cidade do Rio de Janeiro (o então estado da Guanabara):.
Todavia, apenas um século antes, o Maranhão era uma das

1. Caio Prado Júnior, “Formação do Brasil Contemporâneo”, em His-


tória, São Paulo, Ática, 1982, vol. 2, p. IIO.
2. Apecão: A Economia Brasileira e Suas Perspectivas, 8A-10, 1969.
Claro que as condições em todo o Brasil melhoraram muito desde o
ano de 1960, mas as posições relativas dos diferentes estados perma-
necem sem grandes mudanças.
182 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 183

mais prósperas províncias do Império, com reputação mun- xvit havia em São Luís poetas, embora nenhum nome tenha
dial devido a seu algodão, produto que tivera pouco valor chegado até nós, mostra-o o fato da existência de devassas
comercial antes da invenção do tear de Cartwright em 1787, contra os homens versistas, autores de sátiras contra os go-
mas cuja importância cresceu rapidamente a partir daí. O vernantes. Bequimão, o cabeça dos motins de 1684, possuía
Maranhão desenvolveu-se com o comércio do algodão, do e lia livros de história de revoluções”>.
mesmo jeito que cada região brasileira dependente, tradicio- Veríssimo prossegue lembrando que a semelhança do
nalmente, das vicissitudes da colheita de um único produto. modo de falar no Maranhão com o português da metrópole
Em meados do século x1x, a produção de livros, como mani- encorajou o estudo da língua e o cultivo de um bom estilo,
festação incidental da prosperidade maranhense, alcançou um Poderíamos acrescentar que, no período que antecedeu a
alto padrão de excelência técnica e estética e volume suficiente Semana de Arte Moderna e do deliberado cultivo do brasi-
para novamente chamar a atenção para as edições provinciais. leirismo na linguagem, foi essa semelhança do maranhense
Por volta de 1810, São Luís estava exportando perto de com a norma portuguesa que tornou os escritores da região
quinhentas mil toneladas de algodão por ano, o que transfor- tão aceitos universalmente — até Graça Aranha e Coelho
mava a cidade no quarto porto do país (depois do Rio, Salva- Neto. (Hoje, a preferência passou para o polo oposto e é di-
dor e Recife). E, em 1826, as estatísticas financeiras indicam fícil que uma obra de ficção portuguesa moderna alcance um
que a província como um todo estava contribuindo com qua- amplo círculo de leitores no Brasil, exatamente porque, para
se 8% para o orçamento do Império: mais do que qualquer o leitor brasileiro de hoje, o português em que tais obras
outra província, com exceção do Rio de Janeiro, Bahia e Per- são escritas apresenta uma característica quase arcaica e, por
nambuco, embora a população maranhense fosse a sétima do isso, é pouco adequado para descrever a vida dos tempos
país, superada pelas populações das três províncias acima e atuais. Quase a única exceção em anos recentes seriam as
pelas de Minas, São Paulo e Ceará. Após algumas décadas de obras de José Saramago, sobretudo O Evangelho segundo
prosperidade, seu principal produto começou a entrar em co- Jesus Cristo, com 90 mil exemplares vendidos.)
lapso, vencido pela competição do algodão de melhor quali- O Maranhão continuou próximo de Portugal em outros
dade produzido no sul dos Estados Unidos; foi salvo, porém, aspectos além da língua. Mesmo suas realizações culturais
pela eclosão da Guerra Civil norte-americana. Todavia, no muito ficaram a dever ao seu isolamento do resto do país. À
começo da década de 1870, a recuperação da indústria dos separação geográfica (pelo menos três semanas do Rio, nos
estados sulinos dos EUA no pós-guerra mais uma vez afastou tempos do veleiro), que por si só bastaria para atenuar qual-
o produto maranhense dos mercados mundiais. A popula- quer influência das províncias do Sul, combinou-se com os
ção de São Luís, após ter aumentado de 12000, em 1810, laços históricos com a Europa para retardar a integração da
para 31604, no censo de 1872, teve seu crescimento quase província ao Brasil. Fundada pelos franceses (de cujo santo
interrompido pelo declínio econômico: em 1900, ainda era guerreiro a cidade tomou o nome), o povoado e território
de apenas 36798 pessoas. À abolição da escravatura foi o de São Luís tornou-se, logo no início do domínio português,
golpe final, tendo sido mais desastrosa para o algodão do o estado do Maranhão, uma possessão direta de Lisboa,
Maranhão do que para o açúcar da Bahia, e a região voltou sem qualquer conexão formal com o Estado do Brasil, que
a ser presa da estagnação e da pobreza. abrangia as demais colônias. Durante o resto de sua história
Aos curtos anos de desenvolvimento proporcionado pelo colonial, os laços culturais, comerciais e administrativos do
algodão corresponde, com um pequeno atraso, um período Maranhão com o outro lado do Atlântico permaneceram
áureo de atividade cultural e intelectual, simbolizado pela muito mais fortes do que aqueles que mantinha com o res-
reivindicação de São Luís de ser a Atenas brasileira. José Ve- to do Brasil. As viagens para a metrópole eram feitas com
ríssimo faz remontar as origens dessa cultura à influência menos dificuldade e praticamente não implicavam maior
dos jesuítas, que fizeram da cidade um dos seus maiores cen-
tros no Brasil, e registra que o padre Antônio Vieira passou 3. José Veríssimo de Mattos, História da Literatura Brasileira, s. ed.,
grande parte de sua vida em São Luís. “Que desde o século Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, pp. 170-171.
184 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 185

distância que a lenta viagem costeira até as capitanias do Sul minados pela mais despótica selvageria; o povo tinha medo
(ver a citação de Antônio Vieira no $3). À força desses laços de falar porque ninguém sabia quando poderia ser preso por
seria demonstrada, durante a luta do Brasil por sua indepen- causa de alguma declaração sem importância que deixasse
dência em 1822-1825, pela extensão do apoio dado pelos escapar”s, À independência não produziu mudanças imedia-
maranhenses à continuação do domínio português. tas e Joaquim Serra, na sua história do jornalismo maranhen-
Exatamente em virtude de tão estreitos laços com Portu- se, falando sobre o início da década de 1820, nos diz: “Nesse
gal, a região também tendia a atrair aquilo que se costuma período [...] pouco importante foi o papel da imprensa, devi-
denominar de “classe melhor” de colonos. Estes se revela- do à falta de segurança e de liberdade na província”*.
ram, de forma pouco característica, intolerantes para com a Uma administração mais tolerante teve início quando
miscigenação (veja-se a atitude implícita no romance regio- Cândido José de Araújo Viana foi nomeado presidente da
nal de Aluísio Azevedo, O Mulato), criando assim uma clas- província (14 de janeiro de 1829); ele concedeu mais liber-
se alta que era nitidamente mais europeia em seus pontos de dade, mas o resultado imediato foi um acúmulo de polêmi-
vista e em seus costumes do que os demais brasileiros — ape- cas políticas. Não houve edições ou produção literária de
sar (ou por causa disso?) de uma dependência econômica da interesse duradouro até que a declaração de maioridade de
escravidão negra não igualada em nenhuma outra região, dom Pedro 11 (em 1840) desse início a um período mais cal-
com exceção da Bahia. mo e mais produtivo da vida nacional.
Até o aspecto físico da cidade era mais português que bra- A idade áurea da literatura maranhense começa, talvez,
sileiro, com suas casas de três ou quatro pavimentos, de sóli- com o aparecimento dos primeiros poemas de Gonçalves Dias
da alvenaria e com aparência europeia; frequentemente, suas no Archivo Maranhense, em meados da década de 1840, e
paredes tinham um metro de espessura para isolar o interior dura até a partida de Aluísio Azevedo para o Rio, no começo
da casa do úmido calor equatorial. Muitas eram residências da década de 1880. Durante esses anos, São Luís foi não só o
dos fazendeiros de algodão, porque estes, em vez de viverem mais importante centro editorial das províncias, e o único de
no esplêndido isolamento de suas propriedades rurais, como importância nacional, como também o lugar em que a quali-
faziam os fazendeiros de qualquer outro lugar, preferiam mo- dade do trabalho dos melhores impressores ultrapassava toda
rar na própria São Luís. Como Kidder e Fletcher sugerem, e qualquer realização da corte nessa época. Dois nomes se
muitos podem ter malbaratado seus lucros “na abundância destacam: Belarmino de Mattos e José Maria Corrêa de Frias,
e, às vezes, dissipação da cidade”, constituindo “um reino so- rivais amistosos, cujos contínuos esforços para superar as rea-
cial no qual Sir Roger de Coverley poderia viver feliz”+. Ape- lizações um do outro foram a causa principal do desenvolvi-
sar de tudo, essa predominância de fazendeiros “urbanos” e mento técnico e estético da produção de livros no Maranhão.
a consequente concentração de toda aristocracia e riqueza
da província na capital desempenhou importante papel no
desenvolvimento social e intelectual da cidade. OS PRIMÓRDIOS DA IMPRESSÃO NO MARANHÃO S4s
Em contrapartida, a evolução política foi indubitavelmen-
te prejudicada pela maneira com que esta classe ultraconser- A impressão foi introduzida na província pelo presidente
vadora dominava a vida da cidade. Koster, que visitou São Bernardo da Silveira Pinto, em novembro de 1821, quando
Luís em 1810, nos diz que encontrou seus habitantes “do- instalou um prelo oficial para produzir o jornal do governo,

4. Daniel Parish Kidder e James Cooley Fletcher, Brazil and the Brazilians 5. Henry Koster, Travels in Brazil, Londres, Longman, 1816. Citado a
Portrayed in Historical and Descriptive Sketches, Filadélfia, Childs and partir da reimpressão: Carbondale (IIl.), Southern Illinois University
Petersen, 1857, p. 534. Sir Roger de Coverley, personagem criado por R. Press, 1966, p. 79.
Addison e A. Steele e popularizado na revista The Spectator, que ambos 6. Joaquim Maria Serra Sobrinho, Setenta Anos de Jornalismo: A Im-
editaram nos princípios do século xvrry, tipificou o fidalgo rural inglês prensa no Maranhão, 1820-1880 (por “Ignotus”), Rio de Janeiro,
de antiga linhagem e de opiniões e atitudes igualmente conservadoras. Faro & Lino, 1883.
186 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 187

o Conciliador do Maranhão. O prelo mais moderno da épo- Lisboa, que começou a funcionar em 1830, data que marca
ca era o Columbian, de ferro, inventado em 1813 por Geor- o crescimento do número de tipografias. Esse crescimento foi
ge E. Clymer, da Filadélfia, mas que só veio a ingressar no de tal ordem que, em dez anos, essa indústria expandiu-se em
mercado mundial em 1817, depois que seu inventor emigrou demasia e uma concorrência feroz acarretou um declínio dos
para a Inglaterra, onde o prelo obteve grande popularidade padrões artesanais.
(embora estivesse destinado a ser rapidamente superado pela Entre as firmas de destaque nesse período inicial figura a
introdução, em 1824, do Albion, de R. W. Cope, um prelo de Inácio José Ferreira, fundada originariamente, em 1835,
muito mais leve). Um desses Columbian foi trazido de Lis- por João Francisco Lisboa e Frederico Magno d' Abranches.
boa em 31 de outubro de 1821, não obstante não possuísse Outras foram a de J. G. de Magalhães e Manuel Pereira
os tipos próprios para a língua portuguesa (especialmente o Ramos, a Typographia Temperança, a de Francisco de Sa-
c com cedilha) e seu equipamento fosse tão limitado que as les Nunes Cascaes, e a Typographia Monarquica Constitu-
vinhetas decorativas, muito apreciadas pelos impressores da cional, que foi vendida, em 1848, a Fábio Alexandrino de
época, tivessem que ser montadas trabalhosamente com as Carvalho Reis, A. Teófilo de Carvalho Leal e A. Rego; estes
letras o e s. À junta de administração, presidida por Antô- sócios usaram-na para produzir O Progresso, o primeiro
nio da Costa Soares, indicou os primeiros artesãos (também jornal diário do Maranhão, cuja publicação se iniciou em
de Portugal) duas semanas depois. O impressor Francisco janeiro de 1847.
Antônio da Silva receberia 18600 por dia, o compositor
Francisco José Nunes Corte Real 1$200 e seus assistentes,
Antônio da Silva Neves e Antônio Pedro Nolasco, ganha- O PROGRESSO TÉCNICO $46
riam $600 e $200, respectivamente: bem acima, portanto,
dos salários vigentes quarenta anos mais tarde. Na década de 1840, os prelos Columbian já estavam supera-
Entre os opúsculos produzidos pela Typographia Nacio- dos (embora, nessa época, no Maranhão, alguns impressores
nal Maranhense em seu primeiro ano de atividade inclui-se persistissem em usar a tradicional “prensa de parafuso”, de
uma tradução resumida por Manuel Rodrigues de Oliveira madeira, cujo modelo pouco mudara desde o século xv). Es-
do De la philosophie de la nature, de Jean Baptiste Claude ses antigos prelos de ferro continuaram a ser fabricados até
Delisle de Sales (Amsterdam, 1770-1774), publicado com o as vésperas da Primeira Guerra Mundial, e até as vésperas do
título de Tratado de Moral para o Gênero Humano, Tirado da computador e do desktop publishing, nos anos 80 do século
Filosofia e Fundado sobre a Natureza. Foram publicados ain- xx, ainda eram encontrados ocasionalmente em tipografias
da Memórias sobre a Necessidade de Abertura do Furo, por da Inglaterra e da América do Norte. No entanto, em 1866,
M.R.C€.F,e Modo de Curar a Diarréia de Sangue, para Uso J.M.C. de Frias já se referia a eles como máquinas obsoletas
dos Lavradores e mais Pessoas que Vivem Longe da Cidade, usadas apenas nos sertões — e pela Typographia Nacional
tradução de uma obra de James Hall que não conseguimos na corte! Quando Cascaes começou em 1843, introduziu os
identificar. Livro mesmo, nenhum foi publicado antes da Des- prelos franceses, então mais recentes, os quais produziam
cripção das Festas Chamadas de Barracão, sobre a maneira excelentes impressos, mas acarretavam um trabalho muito
pela qual São Luís celebrou a nova Constituição Imperial, que árduo de seus operadores. Desapareceram de São Luís por
só saiu em 1826, época em que a oficina de impressão havia volta de 1866, embora seu emprego ainda fosse, nessa épo-
adotado o nome de Typographia Nacional Imperial. ca, quase universal no Rio de Janeiro.
As primeiras tipografias de propriedade privada foram De uso muito mais simples era o prelo Washington, paten-
a pertencente a Ricardo Antônio Rodrigues de Araújo, que teado por John S. Wells, de Hartford, Connecticut, em 1819,
operou desde 1822 até o começo da década de 1850, e a mas posto no mercado somente em 1827, pela firma R. Hoe
Typographia Melandiana, de Daniel G. de Mello, que produ- & Company, de Nova York. Assim como seu contemporâneo
ziu seu primeiro trabalho em janeiro de 1825. Mais impor- britânico, o Albion, ele possuía uma alavanca articulada, em
tante foi a Typographia Constitucional, de Clementino José lugar das complexas manivelas do Columbian, e tinha molas

ma ”
188 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 189

que suspendiam o prato da prensa quando a alavanca articu- Quando Pereira Ramos importou novo equipamento para
lada era liberada. No Brasil, os prelos Washington foram im- estabelecer-se por conta própria, veio junto um pequeno rolo
portados pela primeira vez por J. G. de Magalhães, em 1847. revestido de couro de camelo. Após discutir com os impres-
De fato, eram tão leves que, segundo declaração de Frias, o sores a serventia do rolo — se se destinava a alisar o papel ou
seu era operado por dois meninos, de ro e r2 anos: “o mais a tirar provas =, pô-lo de lado como inútil, e somente depois
jovem era o impressor, pois era o mais inteligente”7. Este era da chegada de um outro rolo com o novo prelo Washington
o modelo pequeno, que, segundo Frias, custava us$165, ou de O Progresso, alguns anos mais tarde (1848) — aproxima-
3308000, instalado, e imprimia cem folhas de 32 páginas por damente trinta e oito anos após sua invenção — é que alguém
hora. O exemplo de Magalhães foi logo seguido por Pereira descobriu que servia para o entintamento da forma. O servi-
Ramos e pela oficina de O Progresso. Por volta de r860, até ço já não exigia força física e gastava apenas metade da tinta
I J. Ferreira, aparentemente um protótipo do conservadoris- empregada com o uso das almofadas, mas a costura no couro
mo, desistira de seus “clássicos de pau”, e a cidade passou a ainda exigia grande habilidade para a obtenção de uma dis-
ter, então, um total de onze prelos Washington. tribuição uniforme da tinta. O proprietário duma tipografia
Um fator importante que inibia o progresso da produção chamada Estrella, inaugurada em 1852, descobriu entre seu
de livros, ou de qualquer outra indústria, no Brasil provin- novo equipamento alguns rolos de madeira cheios de sulcos
cial, era a dificuldade de obter informações sobre os pro- eum tubo de zinco com um líquido viscoso; mas, novamente,
gressos técnicos alcançados no mundo exterior. Quase tudo na ausência de quaisquer instruções, foram postos de lado
que os tipógrafos maranhenses conheciam de seus ofícios como inúteis.
provinha basicamente dos quatro artesãos portugueses re- Nessa ocasião, a firma de Magalhães, em virtude da
crutados, em 1821, pelo presidente Silveira Pinto, Era-lhes morte prematura de seu proprietário, fora comprada por
praticamente impossível, em termos de tempo e de dinheiro, Joaquim Correia Marques da Cunha Torres, que teve opor-
visitar até mesmo o Rio de Janeiro para ver como as coisas tunidade de visitar Lisboa em 1855, onde descobriu que o
eram feitas: viagens à Europa ou aos Estados Unidos eram entintamento era feito com rolos de madeira recobertos com
algo que sequer se cogitava. E mesmo quando tinham co- uma mistura endurecida de cola e melaço — os sulcos ajuda-
nhecimento de uma nova técnica, sua aplicação às condi- vam a cobertura a aderir -, invenção atribuída ora a Richard
ções locais estava longe de ser simples. Um exemplo típico Mackenzie Bacon e Bryan Donkin, em 1813 (quarenta e cin-
é o do entintamento. Pelo método tradicional, usava-se um co anos antes), ora a um francês chamado Gannal, em 1819
hemisfério almofadado de couro, cheio de areia, que, como (trinta e seis anos antes). Torres trouxe um desses rolos para
todas as práticas antigas, tinha seus admiradores: “quando São Luís, mas verificou-se que, em virtude do calor, seu re-
o impressor, orgulhosamente, batia no ar as duas almofadas vestimento havia perdido a forma. Somente por tentativa e
de tinta, grandes como a sua cabeça, como um músico com erro é que conseguiram descobrir uma variante apropriada
seus címbalos, no processo de distribuir uniformemente a para uso local. Frias insiste em dizer que foi o êxito final
tinta sobre as superfícies de couro, havia um cerimonial na relativo a esse detalhe aparentemente sem importância que
oficina tipográfica que hoje já não existe”*. Havia também possibilitou o alto padrão de qualidade alcançado pelos im-
uma distribuição desigual de tinta e muito esforço físico: “o pressores de São Luís de 1850 em diante. Destaca também,
serviço de um homem possante, que terminava muitas vezes e com muita razão, a importância da reforma da Imprensa
por morrer tísico”, diz Friasº. Nacional Portuguesa: a partir do momento em que suas no-
vas famílias de tipos se tornaram disponíveis, os impressores
7. José Maria Corrêa de Frias, Memória sobre a Tipografia Mara-
de todo o Brasil puderam adquirir boas fontes de sua grande
nhense, São Luís do Maranhão, Typ. do Frias, 1866. fundição, fontes competitivas no mercado mundial em preço
8. Hilary Douglas Pelper, The Hand Press: An Essay..., Ditchling (Sussex, e em qualidade e feitas para a língua portuguesa.
Inglaterra), St. Dominic Press, 1934; reimpresso em 1952.
9. José Maria Corrêa de Frias, op. cit.
190 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 191
$47 JOSÉ MARIA CORRÊA DE FRIAS in-oitavo. Uma edição ampliada, de 558 páginas in-quarto,
com o título mais simples de Dicionário Histórico-geográ-
Ainda que estivesse suficientemente interessado por essa fico da Província do Maranhão, foi impressa por Frias em
arte para ter reunido uma biblioteca de exemplos de bons 1870: a qualidade deste trabalho levou o governo do Espíri-
trabalhos gráficos, Cunha Torres não era um impressor ex- to Santo a contratar seu autor para preparar um dicionário
periente, e por isso imediatamente contratou Frias para ser semelhante para aquela província, publicado, em 1878, pela
seu gerente. À rivalidade entre Frias e Belarmino de Mattos Typographia Nacional.
começou logo depois e acentuou-se quando, com a morte de Frias também publicou, em 1867, 0 Catálogo da Bibliote-
Torres em 1857, Frias se tornou seu próprio patrão. ca do Gabinete Português de Leitura no Maranhão, uma das
Uma das primeiras realizações de Frias foi a primeira várias dessas bibliotecas instaladas por todo o Brasil, no sécu-
edição do Livro do Povo, de Antônio Marques Rodrigues, lo x1x, pela comunidade dos imigrantes portugueses (e muitas
em 1861, uma antologia de peças religiosas, moralizado- ainda funcionando proveitosamente até hoje). Embora ape-
ras ou de outro modo “edificantes”, típica dos meados do nas 97 dos 2 802 itens relacionados apresentassem colofão do
século x1x, com mais de duzentas páginas compactamente Maranhão, sua lista nos proporciona uma interessante visão
impressas, mas bem ilustradas. Foi lido por sucessivas gera- de conjunto da produção das casas maranhenses, mesmo que,
ções de crianças brasileiras, particularmente no Nordeste, infelizmente, não sejam fornecidos os nomes dos impressores
de tal modo que se tornou uma raridade bibliográfica apesar individuais. Editou igualmente uma dúzia de romances tradu-
do grande número de exemplares impressos. Até então, ne- zidos do francês, entre eles, cinco de Paul de Kock (Casa Bran-
nhum livro maranhense ultrapassara a tiragem de mil exem- ca, 1842; Coitadinho, 1842-1843; Meu Vizinho Raymundo,
plares, mas o autor do Livro do Povo era um filantropo e 1843; Mulher, Marido e Amante, 1844; e Um Gaucho, 1849)
procurou baixar os preços e estimular o hábito da leitura, e uma tradução de Mysterios de Paris, de Eugêne Sue, feita em
com a encomenda de grandes edições. A primeira edição, 1843, dois anos antes da edição do Rio de Janeiro (cf. 462).
de quatro mil exemplares, foi vendida ao preço de apenas Contam-se ainda duas gramáticas inglesas: Compilação de
$320.A quinta edição (1865) foi consideravelmente amplia- Extratos de Grammatica Ingleza, de Alfredo Bandeira Hall,
da com rro ilustrações, mas, graças a uma tiragem de dez e Resumo da Grammatica da Lingua Ingleza, de Pedro de
mil exemplares, ainda custou apenas $500. No total, parece Souza Guimarães, ambas de 1865, e uma versão da Histoire
que foram impressos trinta ou quarenta mil cópias, tendo o de Charles x11, de Voltaire.
autor doado mais de cinco mil a escolas. Uma imitação dessa Do nosso ponto de vista, o livro mais interessante de
obra, o Livro dos Meninos, Curso Elementar d'Instrução Frias foi Memória sobre a Tipografia Maranhense, que ele
Primaria, de Antônio Rego, alcançou, em 1864, a tiragem de mesmo escreveu para a Exposição Provincial do Maranhão
seis mil exemplares. de 1866, que nos proporciona uma visão única do equipa-
Entre outras produções de Frias, podemos citar as Tenta- mento, da técnica e das atitudes de um impressor brasileiro
tivas Poéticas, de Severiano Antônio de Azevedo, e, em 1879, de meados do século x1x. Diz ele que possuía quatro prelos:
a primeira edição do primeiro romance de Aluísio Azeve- um Washington grande, um Washington pequeno, uma ré-
do, Uma Lágrima de Mulher. A impressão de Frias, feita em plica em madeira de um Washington feita por seu predeces-
1866, da História de Gil Braz de Santilhana (576 páginas sor em 1853 e um prelo cilíndrico mecânico fabricado pela
in-quarto), obra de Lesage, parece ter sido a sexta edição em Alauzet, de Paris, ao custo de 3 500 francos. Talvez fosse
português; quatro edições anteriores foram feitas em Lis- mais adequado descrevê-lo como “automático”, pois a ener-
boa —a primeira em 1799 — e uma em Paris. gia motora ainda era o suor humano, mas imprimia mil fo-
Na opinião do próprio Frias, seu melhor trabalho foi o lhas por hora (ou dez vezes mais que o rendimento habitual)
livro Apontamentos para o Dicionário Histórico, Geográ- com apenas dois operadores: um escravo analfabeto para
fico, Topográfico e Estatístico da Província do Maranhão girar a manivela e um rapaz para inserir o papel. O entinta-
(1864), de Cezar Augusto Marques, obra em 400 páginas mento, por ser automático, era uniforme e constante.
192 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 193

A mão de obra era difícil de ser obtida, em razão, em salários dos impressores adultos, de 30 a so mil-réis por
grande parte (como admite Frias), dos baixíssimos salários. mês, variarem de um quarto à metade dos preços do Rio de
Além dele próprio e do escravo analfabeto, seus dois compo- Janeiro (cf., porém, $33); Frias afirmava que um livro de 160
sitores eram os únicos trabalhadores adultos em sua oficina. páginas numa edição de dois mil exemplares custava $345
Para colocar as folhas no prelo e dobrá-las após a impressão, cada exemplar, em comparação com $450 no Recife e $600
distribuir os tipos e até mesmo compor alguma coisa, conta- no Rio, mas, no seu entender, se o papel fosse fabricado no
va com quatro meninos, o menor deles com apenas seis anos local esse custo poderia reduzir-se para menos de $300.
de idade. Quando os contratou, eram analfabetos e tivera de Outra queixa dizia respeito ao protecionismo do governo
ensiná-los a ler, escrever e contar. “Se não tenho conseguido provincial. Até pouco tempo antes, todas as impressões ofi-
tirar delles oficiaes de merito, tenho porem a satisfação de ciais haviam sido confiadas a uma firma favorecida, 1. J. Fer-
que nenhum deixou de ser trabalhador e aplicado”:º - mes- reira. Ao tomar consciência de que outros estabelecimentos
mo com seis anos de idade! Um deles era seu próprio filho; podiam executar um trabalho muito melhor, o governo tinha
ele vira, com frequência, que outros mestres impressores começado a ampliar o leque de fornecedores, mas continua-
preferiam educar os filhos e, no fim, quando queriam apo- va a subsidiar os editores dos jornais que apoiavam o go-
sentar-se, não tinham um sequer que quisesse continuar o verno. Assim, um desses editores recebia 4:6008000 anuais,
negócio. Os meninos, com exceção do mais jovem, trabalha- enquanto a qualidade dos trabalhos a ele confiados piorava
vam doze horas por dia, do amanhecer ao anoitecer, embora, continuamente. Frias especula sobre o que ele e Mattos po-
como ele admite, a jornada normal de trabalho em São Luís deriam fazer se tivessem este tipo de faturamento e relaciona
fosse das 8 às 16 horas. Agora que a mecanização tornava o todos os melhoramentos técnicos que tinham desejo de in-
trabalho mais suave, pensava em solucionar o problema da troduzir: máquinas para composição e acabamento, “chuva
escassez da mão de obra com a contratação de mulheres, e artificial” (para umedecer o papel antes da impressão)...
planejava empregar sua filha como aprendiz tão logo tives-
se idade — seis anos, presume-se! O trabalho feminino na
indústria parece ter sido, na década de 1860, uma questão BELARMINO DE MATTOS $48
controvertida: os tipógrafos do Rio, nessa época, acusavam
a Imprensa do Governo de possuir uma sala secreta onde as É inevitável uma comparação entre o trabalho de Frias e o
tipógrafas eram mulheres! de Belarmino de Mattos. Embora nos tenha sido possível ver
Outra das dificuldades enfrentadas pelos impressores ma- apenas uma pequena amostra do trabalho de ambos, temos
ranhenses era a irregularidade no fornecimento de tinta e pa- uma forte preferência pessoal pelo de Frias. Particularmente
pel. Houve uma edição, de seis mil exemplares, que ficou mal sua Memória nos causa a impressão de ser uma das melhores
impressa a partir da folha 16, “porque não havia mais tinta obras do ponto de vista técnico e uma das mais agradáveis,
no mercado”. Outro trabalho permaneceu parado por dois esteticamente, da arte tipográfica brasileira do século xIx,
anos por falta de papel suficiente. Infelizmente, os editores dentre aquelas que chegaram ao nosso conhecimento. Parece
maranhenses não dispunham do capital necessário para esto- também que foi Frias quem, mais frequentemente, tomou a
car grandes quantidades de papel, problema agravado pelos iniciativa de introduzir aperfeiçoamentos técnicos: atribui-se
pesados impostos de importação ($58). Ele se pergunta por a ele, por exemplo, a introdução do sistema do ponto Didor
que o Maranhão não podia produzir papel com seu próprio para medidas tipográficas. Projetou também a caixa de ti-
algodão e exportá-lo para o resto da América do Sul. pos conhecida pelo nome de “caixa maranhense”, inovação
Os custos de produção, de $280 a $330 por mil qua- devida, pelo menos em parte, à necessidade de uma caixa de
dratins, eram muito baixos; independentemente do empre- menor tamanho, adequada às crianças compositoras!
go generoso do trabalho infantil, havia o fato de os outros Todavia, seus contemporâneos preferiam, sem qualquer
dúvida, Belarmino de Mattos. Antônio Lopes, por exemplo,
10. José Maria Corrêa de Frias, op. cit. incluiu este elogio em sua História da Imprensa no Maranhão:
194 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 195

Com Belarmino de Mattos, simples operário que se imortalizou o chefe da oficina, Antônio José da Cruz, com o compromis-
pelo amor ao trabalho, espírito progressista, gosto artístico e pro- so de que continuasse a imprimir o jornal que publicavam.
bidade, a arte tipográfica chegou no Maranhão a um grau de per- Segundo o biógrafo de Belarmino, Antônio Henriques Leal,
feição superior ao que havia alcançado então em outros pontos do nessa época Cruz era o melhor impressor da cidade. Entre
Brasil. Para a sua tipografia afluíam encomendas do Pará, Ceará, seus trabalhos estão o Almanach da Provincia (1848), de A.
Pernambuco e Bahia... Sem esse obreiro-editor não seria possível Rego, meia dúzia de romances e, em 1849, a segunda edição
o movimento intelectual que no século x1x granjeou para o Mara- da obra de Bernardo Pereira de Berredo, Annaes Histori-
nhão o título de Atenas brasileira". cos do Estado do Maranhão, com 655 páginas, in-oitavo:
trata-se de uma história da província até 1718, cuja primeira
José Veríssimo fala de “Belarmino de Mattos, talvez o me- edição fora impressa em Lisboa em 1749:
lhor impressor que já teve o Brasil”':, e Joaquim Serra consi- Parece que Cruz foi um patrão particularmente mes-
dera-o “o editor das mais notáveis obras que se publicaram quinho e os níveis de remuneração eram tão inferiores à
no Maranhão” e o mais destacado participante da Exposição alta do custo de vida que o jovem Belarmino, então com
de 1867: “a par da perfeição com que faziam-se as impres- 19 anos, viu-se obrigado a trabalhar regularmente três a
sões em suas officinas, era muito para admirar a satisfação e quatro horas extras diárias para garantir uma subsistência
entusiasmo que elle mostrava quando de seus prélos sahiam adequada. Antônio Leal diz que somente a força de suas
escriptos excellentes de seus comprovincianos illustres”'3. raízes maranhenses e sua amizade pessoal com os proprie-
Esse “Didot brasileiro” nasceu em 24 de maio de 1830, tários de O Progresso fizeram Belarmino rejeitar ofertas
na então vila de Axixá, cerca de cinquenta quilômetros de para trabalhar em outras oficinas. Estas ofertas, segundo
São Luís, às margens do rio Monim, rio acima, e foi levado Leal, vieram até do distante Rio de Janeiro. Por maior que
para São Luís pela mãe, mais ou menos seis anos depois, fosse a carência de artesãos habilitados e por maior que fosse
para proporcionar-lhe alguma educação. Ela também estava o seu talento, parece notável que a reputação de um jovem
ansiosa para fugir da Balaiada, um dos inúmeros distúrbios que mal havia terminado seu aprendizado pudesse ter che-
resultantes de protestos políticos, inquietação social e puro gado tão longe e tão depressa.
banditismo que perturbaram o Império durante a Regência. No começo de 1854, Cruz deixou de cumprir seu com-
Três anos mais tarde, ao ser aprovado no exame final da es- promisso de imprimir o jornal. O governo provincial seduzi-
cola primária, o jovem Belarmino ingressou como aprendiz ra-o com a oferta de uma sinecura e, como estava velho, can-
na Typographia da Temperança, de Manuel Pereira Ramos; sado, perdendo dinheiro, e seu compromisso não se baseava
em 1843, passou a trabalhar na pequena tipografia de Sátiro em acordo escrito, ele aceitou. Seus empregados ficaram tão
Antônio de Faria, o que lhe permitiu contribuir para o orça- revoltados que desertaram em massa e passaram para o lado
mento familiar com todo o seu salário de $200 por semana. de Carlos F. Ribeiro (que se tornara o editor de O Progres-
Quando Faria o despediu, por falta de trabalho, arrumou so), possibilitando a este montar sua própria tipografia. Be-
emprego com Francisco de Salles Nunes Cascaes, que, in- larmino (que ainda não tinha 24 anos) foi encarregado da
felizmente, passou a solucionar suas próprias dificuldades direção e, com a confiança que caracteriza os jovens, come-
financeiras com o pagamento dos salários com vales; Be- çou a encomendar os mais modernos equipamentos e prelos
larmino estava para deixá-lo quando a firma foi comprada belgas, franceses e americanos.
pelos editores de O Progresso (1848). Após mais ou menos Tendo, assim, falhado em sua tentativa de acabar com
um ano, os novos proprietários venderam a tipografia para o jornal da oposição, o governo garantiu a vitória nas elei-
ções gerais (em 1857) ao fazer com que a polícia impedisse
11. Antônio da Cunha Lopes, História da Imprensa no Maranhão, que os cidadãos de opiniões suspeitas se aproximassem dos
1821-1825, Rio de Janeiro, MEC, 1959, p. 17. postos de votação. Isso vem relatado no Conciliação, jornal
12. José Veríssimo de Mattos, op. cit. impresso por J. M. C. de Frias, e em ro de janeiro, quando
13. Joaquim Maria Serra Sobrinho, op. cit. seus empregados estavam a caminho de casa, a polícia os
196 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos I97

atacou. Com exceção de dois, todos os demais conseguiram De aplicação exemplar, Belarmino era um artista na con-
fugir e foram esconder-se na casa de Ribeiro; mais tarde, na cepção e revelava um excelente senso de equilíbrio tipográ-
calada da noite, saíram furtivamente é trouxeram de volta fico na diagramação, enquanto na execução se revelou um
equipamento suficiente para continuar imprimindo. As no- perfeccionista com incrível capacidade de detectar erros de
tícias desses desmandos acabaram chegando à corte, e dom impressão ou tipos gastos ou misturados; e de tal modo se
Pedro r1 prontamente afastou o presidente da província, An- orgulhava do seu trabalho que se recusava a cobrar pelas
tônio Cândido da Cruz Machado, que partiu de São Luís, modificações que os autores faziam nas provas. José Verís-
em 24 de fevereiro, sob as vaias de grande parte da popula- simo descreveu seu acabamento como de qualidade “então
ção concentrada no cais. Esta experiência levou Belarmino única e ainda hoje raramente excedida”'s.
a organizar um sindicato, e sua Associação Typographica Preferia claramente a reputação à fortuna. Na verdade,
Maranhense, inaugurada em 11 de maio de 1857, pode a importância de São Luís, no século x1x, como centro im-
reivindicar o privilégio de ter sido a primeira organização pressor que servia autores de todo o Nordeste deveu-se, sem
de trabalhadores fundada no Brasil, fora do Rio de Janeiro dúvida, tanto aos baixos preços quanto aos altos padrões
(onde fora precedida pela Imperial Associação Typographi- do serviço de seus dois melhores artesãos. Diz Antônio Leal
ca Fluminense, fundada no dia de Natal de 1853). que ele “satisfazia-se com modestos lucros e nem se queixa-
O Progresso tornou-se A Imprensa, mas quando, quatro va ou apoquentava os remissos e maus pagadores”. Estava
anos mais tarde, Ribeiro mudou de posição política e trans- sempre particularmente pronto e encorajar as edições locais,
formou o jornal num defensor dos conservadores, o partido “facilitando aos editores [de jornais e revistas?) e autores
então no poder, seu sócio — e biógrafo de Belarmino — A. todos os meios para darem à luz da publicidade suas obras:
H. Leal deixou-o (16 de março de 1861) para ressuscitar O quer aceitando longos prazos nos pagamentos quasi sempre
Progresso na tipografia de Frias. Como este era cidadão por- em pequenas e desiguaes parcellas, quer recebendo exem-
tuguês, a polícia ameaçou-o com a deportação caso não dei- plares por conta d'estes ou tomando a seu cargo a venda
xasse de imprimir o jornal, o que aconteceu em 177 de julho. da edição”'s. Não é de estranhar, portanto, que precisasse
Como Belarmino manifestasse interesse na continuação do trabalhar sete dias por semana para acertar suas contas!
jornal, Leal sugeriu que ele se estabelecesse por conta pró- Infelizmente, desentendeu-se com os liberais quando es-
pria, com créditos a serem concedidos pelo Banco Comercial tes chegaram ao poder na província. No começo de 1866,
com o aval de Leal. Embora fosse difícil persuadi-lo, acabou suspendeu a publicação do jornal liberal porque o partido
por concordar, e em dois anos seus negócios cresceram de tal deixara de sustentá-lo e o veículo estava perdendo dinhei-
forma que se mudou da rua Gonçalves Dias para instalações ro rapidamente. Mais ou menos na mesma ocasião, recebeu
mais amplas na rua da Paz. uma proposta para imprimir O Conservador. Tê-la-ia recu-
Belarmino deveu seu êxito exclusivamente ao trabalho, e sado, mas foi convencido por Leal a aceitá-la. Este parece ter
árduo. Leal refere-se a “esse mancebo cheio de corpo, de tez acreditado sinceramente na liberdade de imprensa e, embora
morena e rosto redondo, sem outra roupa sobre os ombros politicamente em oposição ao jornal, sentiu que Belarmino
mais do que uma camizola de malha de algodão, com as cal- de Mattos precisava de uma publicação lucrativa.
ças e mãos sujas de tinta, ajudado de lunetas por ter-se-lhe Aconteceu então que Belarmino, sendo indicado para ser
enfraquecido a vista com os contínuos serões trabalhando o testamenteiro de um padre de São Luís que não tinha fa-
sete dias a semana, desde as sete da manhã até às dez da mília, imprudentemente, antes da descoberta do testamento,
noite”:+, embora esta descrição talvez se refira a seus dias de efetuou alguns pagamentos com base em cartas deixadas
trabalho com Antônio Cruz. pelo falecido. Isso deu ao governo a desculpa necessária: em
ro de julho de 1866 (quase no fim do mandato do presidente
14. Antônio Henriques Leal, Pantheon Maranhense, Ensaios Biogra-
phicos dos Maranhenses já Fallecidos, Lisboa, Imprensa Nacional, 15. José Veríssimo de Mattos, op. cit.
1873-1875,t.2,p. 255. 16. Antônio Henriques Leal, op. cit.
r98 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos 199

provincial Lafayette Rodrigues Pereira), todo um esquadrão Sousa; as Comedias, de Luís Miguel Quadros (publicadas em
policial cercou repentinamente a casa do impressor e levou-o 1861 como parte da coleção “Theatro Brazileiro”); Impressões
preso. À fiança foi recusada e a acusação encaminhada, fi- e Gemidos, de José Coriolano de Souza e Lima, e Confidencias
nalmente, ao Tribunal Supremo, apesar de já esclarecida a (1868), do poeta Firmino Cândido de Figueiredo.
situação. Foi libertado somente em 7 de maio do ano seguin- Na opinião de Frias, o melhor trabalho de Belarmino de
te, quando já estava quase arruinado financeiramente pelos Mattos é o Parnaso Maranhense, obra de 1861, de 285 pá-
custos legais do processo e pela paralisação dos negócios. O ginas, in-oitavo, e a edição de 1864-1865, em quatro volu-
pior, porém, é que contraíra beribéri em consequência da ali- mes, in-oitavo, das Obras do grande historiador e jornalista
mentação inadequada na prisão, o que, somado à vergonha maranhense João Francisco Lisboa. Um exemplar desse tra-
que a cadeia lhe causou, transformou-o num homem alque- balho nos pareceu, a nossos olhos de leigo, ser impresso de
brado, acabado. Para uma mente e um corpo acostumados modo excessivamente fraco, o que é pelo menos um contras-
a trabalhar arduamente mais de cem horas por semana, a te com os trabalhos gráficos contemporâneos que se faziam
ociosidade forçada por tão longo período teria sido suficien- - no Rio de Janeiro — por exemplo, os de Paula Brito — nos
te. Fisicamente, passou a sofrer de “dormência e torpor nas quais a impressão era tão forte que produzia no verso da
pernas que se lhe dobravam ante qualquer irregularidade do folha saliências parecidas com as da escrita Braille. Talvez
terreno”* — resultado claro de uma nutrição deficiente pro- este seja um dos casos, mencionados por Frias, em que o im-
longada. Morreu antes de se completarem três anos de sua pressor era obrigado a trabalhar com insuficiência de tinta.
libertação, aos 39 anos de idade, em 27 de fevereiro de 1870. Belarmino também imprimiu uma coleção de Almanachs
Mesmo nesses últimos anos, continuou a produzir traba- Administrativos, Mercantis e Industriaes (de 1858 a 1870),
lhos de qualidade, do que temos testemunho num parágrafo pouco mais de dez romances traduzidos, a maioria em grande
de O Typographo'*, que, sendo a revista do sindicato dos in-oitavo francês ou em in-quarto português, entre eles Os
gráficos do Rio de Janeiro, pode ser considerado representa- Miseráveis e O Homem que Ri, de Victor Hugo. Imprimiu
tivo da opinião de seus colegas de profissão: Motins Politicos, ou Historia dos Principaes Acontecimen-
tos Politicos da Provincia do Pará desde o Anno de 1821 até
Semanario Maranhense: Fomos obsequiados com 16 numeros des- 1835... de Antônio Raiol, em quatro volumes, e Estatistica
te importante jornal. Alem de ser redigido por moços talentosos e da Provincia do Ceará, em dois volumes, com muitos mapas,
dedicados à literatura, nota-se bom trabalho artístico e nitida im- uma tradução de Eloá, de Alfred de Vigny, feita por Gentil Ho-
pressão. O nome de seu editor, Sr. B. de Mattos, já é assaz conhecido mem de Almeida Braga, e Memoria Historica de Magalhães.
nesta côrte pelas boas impressões que tem sahido de seus prelos. O mais importante escritor local da época, o poeta Gon-
çalves Dias, passou a maior parte de sua vida ativa como
Entre os trabalhos impressos por Belarmino de Mattos e escritor fora da província. Seus primeiros poemas reunidos
considerados dignos de menção por seus contemporâneos es- em volume, Primeiros Cantos, foram editados no Rio por
tão livros do poeta e humorista Joaquim Serra, entre os quais: Laemmert ($70-75), em 1847, e muitos de seus livros pos-
Versos e Um Coração de Mulher; Poesias, de A. Franco de teriores foram publicados ou por Laemmert ou em Leipzig,
Sá; livros escolares de Francisco Sotero dos Reis, tais como pela grande firma internacional Brockhaus. Todavia, Belar-
Postilhas Grammaticaes, Commentarios de Caio Julio Cesar mino de Mattos teve a honra de produzir em 1868-1869
(1863),a Grammatica e a obra, em quatro volumes, Curso de as Obras Póstumas, em seis volumes, organizadas por seu
Litteratura Portuguesa e Brasileira (1866-1868); a obra de Luís amigo e admirador, A. Henriques Leal.
Antônio Vieira da Silva, Historia da Independencia do Ma- Segundo Frias, na metade da década de 1860, ele e Be-
ranhão, 1822-1828 (1862); Comentarios da Constituição, de larmino tinham apenas dois outros concorrentes: Ramos de
Almeida, que era um encadernador de profissão e que, por
17. Antônio Henriques Leal, op. cit. isso, dependia de seus empregados no tocante à qualidade da
18.0 Typographo, vol. 1,n. 11,p.3, 12 jan. 1868. impressão, e um indivíduo chamado Serrão, cuja firma, em
200 José Maria Corrêa de Frias e Belarmino de Mattos

1866, tinha menos de um ano. Os três outros impressores


de São Luís, então ainda existentes, só imprimiam jornais,
embora um destes, a Typographia d'O Paiz (fundada em
1863), tenha publicado, alguns anos mais tarde, o segun-
do romance de Aluísio Azevedo — e seu último antes de sua
partida para o Rio de Janeiro =, O Mulato (junho de 1881).
Este trabalho, de 248 páginas in-oitavo, foi uma produção
medíocre em papel de imprensa. Embora de propriedade de
Antônio Joaquim de Barros Lima, O Paiz era dirigido nessa
época por Temístocles Graça Aranha, pai de outro grande
romancista do Maranhão, o autor de Canaã. O romance
seguinte de Azevedo, Casa de Pensão (1884), foi editado no
Rio por Faro e Lino, e todos os demais por Garnier.

$49 A SITUAÇÃO POSTERIOR

Já em O Mulato, Aluísio Azevedo satirizara as pretensões


culturais de São Luís, e quando o jovem Graça Aranha e seu Outros Editores
contemporâneo, Coelho Neto, estavam produzindo, os dias
da Atenas brasileira haviam passado há muito, tanto que das Províncias
seus trabalhos foram editados no Rio e na Europa. Toda-
via, mesmo em 1900, a cidade ainda possuía uma biblioteca
pública com 19 000 volumes, cinco livrarias e trinta e cin-
co prelos trabalhando em oito estabelecimentos diferentes,
sendo que um deles, o de Teixeira, estava equipado para fa-
zer autotipias (clichês de retícula). A São Luís de 1960, não
obstante ter uma população seis vezes maior (bem mais de
250000 habitantes), ainda possuía apenas cinco livrarias e
cinco firmas impressoras privadas (as quais ocasionalmente
produziam opúsculos ou livros esporádicos).
No entanto, pelo menos o mundo oficial continuava a
interessar-se pela indústria gráfica, pois um levantamento
das impressões e edições feitas em São Luís, realizado pelo
escritório regional do Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai), estendeu-se por 52 páginas, quando foi
publicado em 1974, sob o título Pesquisa sobre a Indústria
Editorial e Gráfica em São Luís, pelo Serviço de Pesquisa
e Avaliação (spa) do Departamento Regional do Senai no
Maranhão. Trata-se do único levantamento regional de que
temos notícia e teria sido muito interessante compará-lo
com a descrição feita por Frias 1o8 anos antes, mas jamais
pudemos examinar um exemplar.
Pernambuco não apresenta os lazeres
ociosos e os hábitos indolentes da Bahia.
O espírito é ativo, ousado, penetrante...

CHARLES DE RIBEYROLLES”*

PUBLICAÇÕES NO PERNAMBUCO REBELDE $5o

José Maria Corrêa de Frias nos mostra claramente” que, ex-


cetuando-se São Luís ($47-48), foi Recife o centro impressor
mais importante das províncias, em todo o Brasil, durante a
maior parte do século xIx. À economia nacional continua-
va dominada pela indústria açucareira do Nordeste, de que
Recife era a capital. No setor da tipografia, a cidade gozava
também das vantagens dos baixos custos de produção, que,
embora mais elevados do que os do Maranhão, eram bem
inferiores aos da corte ($47). O catálogo da Garraux, publi-
cado em 1883, coloca Recife em quarto lugar, depois de São
Paulo, mas é razoável admitir que este catálogo tenha supe-
restimado a produção inicial da sua própria cidade. Mais
interessante é o fato-de Pernambuco participar com apenas
2% de todos os sinetes tipográficos e editoriais brasileiros
registrados pela Garraux, um claro indício do quanto a ati-
vidade editorial nacional do final do Império era dominada

x. Do texto que escreveu para acompanhar o livro de Victor Frond,


Le Brésil pictoresque, Rio de Janeiro/Paris, Typographia Nacional/Le-
mercier, 1859-1861. Tradução brasileira: Brasil Pitoresco, trad. Gastão
Penalva, 2. ed., São Paulo, Martins, 1976, vol.2, p. 58. (Cf. $69.)
2. José Maria Corrêa de Frias, Memória sobre a Tipografia Mara-
nhense, São Luís do Maranhão, Typ. do Frias, 1866.
3. Fischer, Fernandes e Cia., Catálogo da Livraria Academica da Casa
Garraux, São Paulo, [18832].
204 Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 205

pelo Rio de Janeiro. Salvador era quase tão grande quanto nambuco, no começo do século x1x. Esses cavalheiros de-
Recife (cf. tabela 4, p. 838) e havia começado a imprimir ram à tipografia o nome de Oficina Tipográfica da República
antes, mas, depois da Sabinada, a cidade entrou em declínio, Restaurada de Pernambuco e continuaram a imprimir pro-
tanto comercialmente como em termos editoriais ($ 26). paganda rebelde até 18 de maio, quando os revolucionários
Até 1817, apenas livros importados eram encontrados deram a causa por perdida e fugiram da cidade; a autoridade
na cidade pernambucana, e em pequeno número. Observa real foi restabelecida no dia seguinte. Sem nenhuma surpre-
Henry Koster, que a visitou em 1810 (então com mais ou sa, ordens provenientes do Rio de Janeiro determinaram o
menos cinquenta mil habitantes): fechamento da tipografia e o envio de seus tipos para a capi-
tal, para serem usados pela Impressão Régia ($17), que fora
Parecerá surpreendente aos ingleses que numa cidade tão grande recentemente rebatizada de Real Officina Typographica. No
quanto Recife não haja nem tipografias nem livrarias. No convento entanto, o novo governador, Luís do Rego Barreto, parece
da Madre de Deus são vendidos almanaques, santinhos, histórias não ter tido pressa de cumprir as ordens, pois somente em
da Virgem e santos e outros produtos semelhantes, mas em quanti- 1819 é que o material foi embarcado.
dades muito limitadas, impressos em Lisboa. No ano seguinte (1820), eclodiu no Porto a Revolução
Liberal ($78), pondo em causa o absolutismo em todos os
Na verdade, a Congregação das Necessidades, órgão des- domínios portugueses. No Recife, o governador Rego Bar-
se convento, recebera a concessão do monopólio legal dessas reto decidiu que, para ajudá-lo a preservar sua autoridade,
publicações. O primeiro prelo fora importado da Inglaterra, precisava de uma oficina de impressão; ordenou então a
no fim de 1815, por Ricardo Fernando Castanho, mas so- construção de uma “prensa de parafuso”, de modelo tradi-
mente em maio do ano seguinte é que solicitou licença para cional, no arsenal local, ou no trem, e, por isso, a tipografia
operá-lo; esta licença, porém, permaneceu em suspenso até ficou conhecida como Officina do Trem de Pernambuco. Se
novembro, em virtude de exigências burocráticas. Mesmo esse é o prelo, como parece provável, que está hoje preserva-
então, não pôde operar o equipamento, porque não conse- do no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Per-
guiu encontrar impressores habilitados. nambuco, então era extremamente grosseiro e rudimentar.
As coisas mudaram com enorme rapidez quando eclodiu Não há provas de que os tipos também fossem feitos no lo-
a revolução separatista de 6 de março de 1817. Uma apo- cal; assim, parece razoável aceitar a suposição tradicional de
logia desse movimento, escrita por José Luís de Mendonça, que uma parte substancial dos tipos da oficina anterior foi
em 10 de março, foi posta no prelo no dia 28, com o pródi- conservada e utilizada pela nova tipografia. Um professor
go título de Preciso [relato] dos successos que tiveram lugar de desenho, o francês Jean-Paul Adour, foi encarregado da
em Pernambuco, desde a faustissima e gloriosissima revolu- direção da tipografia, que, logo no começo de 1821, iniciou
ção operada felizmente na praça do Recife, aos seis do cor- a produção de várias proclamações e panfletos favoráveis ao
rente mez de Março em que o generoso esforço dos nossos governo da capitania. Em 27 de março, estava sendo publi-
patriotas exterminou daquella parte do Brasil o monstro da cado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, genro do governa-
tyrannia real. dor, um jornal oficial, o Aurora Pernambucana.
À tipografia era dirigida por um impressor inglês, James Tudo em vão, porém: em outubro de 1821, os liberais,
Prinches, e, segundo dizem, operada por um marinheiro sob uma Junta Governativa presidida por Gervásio Peres
francês e dois frades brasileiros: o envolvimento do clero foi Ferreira, conquistaram o controle da capitania. Rego Bar-
um traço significativo das duas revoltas ocorridas em Per- reto foi destituído e voltou com o genro para Portugal. À ti-
pografia passou a chamar-se Officina do Trem Nacional. Em
4. Henry Koster, Travels in Brazil, Londres, Longman, 1876, reim- fevereiro do ano seguinte, adotou o mesmo nome que então
pressão: Carbondale (Ill.), Southern Illinois University Press, 1966. aparecia nos trabalhos executados pela oficina do governo
Traduzido por Luís da Câmara Cascudo com o título de Viagens ao no Rio: Typographia Nacional. As insuficiências do equi-
Nordeste do Brasil, São Paulo, Nacional, 1942. pamento provisório levaram-na a importar de Londres um
206 Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 207

novo prelo, ao custo de 3:185$705. Ao que parece, era um falta de pagamento das prestações por parte de Cavalcante e
Columbian ($45), o mais moderno de que dispunha o mer- renacionalizou seu estabelecimento.
cado. O equipamento que o acompanhava foi considerado Nesse meio tempo, em 1823, outro impressor havia co-
inadequado, de sorte que, quase imediatamente, foram en- meçado a trabalhar na cidade: Antônio José de Miranda Fal-
comendados tipos extras, no valor de 2:292$060. cão, ex-padre e antigo professor de português na escola do
Surgiu uma tipografia concorrente, quando Manuel Cle- Arsenal (onde parece ter aprendido, com Prinches, a arte da
mente do Rego Cavalcante se estabeleceu na rua Direita, tipografia). O principal cliente de Falcão era Cipriano José
nº 256, com um equipamento recém-trazido de Portugal, Barata de Almeida, deputado republicano pela Bahia junto
Logo depois, em abril de 1823, 0 novo governo liberal deci- às assembleias constituintes tanto de Lisboa (1821) como do
diu desfazer-se de suas próprias oficinas de impressão. Nessa Rio (1823), que, após a dissolução da Constituinte do Rio,
ocasião, Cavalcante tinha-se associado a Felipe Mena Cala- mudou-se para o Recife, a fim de publicar seu jornal Senti-
do da Fonseca e ao inglês Prinches. O fato de este estar livre nela. Com a suspensão do periódico, após a prisão de Barata
e negociando com o governo indica a generosidade com que ($18), Falcão aceitou prazerosamente o cargo de gerente da
foram tratados muitos dos rebeldes de 1817: na verdade, no nova Typographia Nacional pernambucana, com um salário
começo de 1821, muitos deles já haviam sido libertados, em mensal de 480 mil-réis. (Pode-se avaliar este salário pelo cus-
tempo para desempenhar seus papéis na agitação contra o to, na mesma época, da mão de obra por tarefa — $100 — para
governador Rego Barreto. Os sócios conseguiram autoriza- a composição de mil letras.) Foi esta a tipografia responsável
ção para adquirir todo o equipamento e os dois prelos pela pela publicação do Typhis Pernambucano, o jornal de Frei
pechincha de 4:000$000, com prazo de dois anos para pagar. Caneca, o principal veículo da Confederação do Equador.
Entre suas publicações podemos citar o almanaque do
Recife para 1824, tirando proveito do término do monopó-
lio da Congregação das Necessidades. Produziram também PERNAMBUCO DEPOIS DE 1824 $51
as primeiras monografias pernambucanas, todas na forma
de pequenos folhetos: uma Memoria Hydrographica sobre A Confederação do Equador, nome que a rebelião se atri-
a Repreza do Rio Beberibe, escrita pelo sargento-ajudan- buiu, chegou ao fim com a entrada dos imperialistas no Reci-
te de engenharia Conrado Jacob Niemeyer, ilustrada por fe, em 17 de setembro. Caneca foi alvejado e morto, Manuel
Jean-Paul Adour, e uma Dissertação sobre o que se Deve de Carvalho fugiu para os Estados Unidos, e Falcão foi preso.
Entender por Patria do Cidadão, de autoria de um padre en- Sua prisão durou, porém, apenas alguns meses, pois, um ano
volvido na política, que em breve se tornaria um dos chefes depois, vamos encontrá-lo negociando com o novo regime
da rebelião de 1824, frei Joaquim do Amor Divino Caneca. para comprar a Typographia Nacional, que permanecia ocio-
O pretexto desta segunda revolta pernambucana foi a ou- sa por falta de trabalho. Como seus empregados custavam ao
torga da constituição por dom Pedro 1 após desavir-se com a governo 7208000 por mês, não foi difícil chegar a um acordo
Assembleia Constituinte (que não aceitou o poder imperial rapidamente. Em 7 de novembro de 1825, Miranda Falcão
de veto). Como consequência, em Pernambuco foi substi- já estava estabelecido à rua Direita, nº 267 e produzia o pri-
tuído o governador Manoel de Carvalho Paes de Andrade, meiro número do jornal diário de mais longa existência no
n
muito estimado pelo povo. À província reagiu com a criação Brasil (e em toda a América do Sul), o Diário de Pernambuco.
de uma junta de governo chefiada pelo governador deposto. Dentro de alguns anos, Recife ganhou duas outras ofi-
Embora isso, formalmente, não tenha constituído, até 2 de cinas de impressão: a Typographia Fidedigna, de Manuel
julho de 1824, um rompimento com o Império, a medida Zeferino dos Santos, que subsistiu de 1827 a 1840,ea Typo-
significou uma independência pernambucana de facto, com graphia do Cruzeiro, fundada em maio de r829. Mais im-
a recusa de jurar obediência à nova Constituição no dia mar- portante do que estas foi a de Manuel Figueiroa de Faria,
cado, 25 de março. Manuel de Carvalho, sentindo a neces- um olindense, filho de portugueses, que abriu uma livraria
sidade de uma tipografia para os rebeldes, aproveitou-se da em sua cidade natal, em meados de 1831, com o nome de
208 Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 209

Pinheiro, Faria & Cia. A pequena e histórica cidade, situada posteriores, relacionando catorze firmas impressoras e qua-
a apenas sete quilômetros do Recife, continuava a capital tro estabelecimentos de litografia para a capital da província
da província e fora escolhida para sede de uma das duas por volta de 1875 (em comparação com apenas seis tipo-
novas faculdades de direito do Brasil independente, inau- grafias em 1849). Apenas uma oficina tipográfica do Reci-
gurada em 11 de agosto de 1827 (a outra foi instalada em fe é apontada como tendo com certeza produzido livros: a
São Paulo — $97). Em pouco tempo, Faria acrescentou à sua União, de Santos e Cia., fundada em 1836 pelo padre Inácio
loja uma tipografia (a primeira de Olinda), cujo trabalho, Francisco dos Santos e que perdurou por algumas décadas.
segundo Alfredo de Carvalho, se destacou por sua artística Carvalho faz referência às suas “primorosas e correctissimas
composição, boa impressão, cuidadosa revisão e primoroso edições dos classicos nacionaes e estrangeiros |...) hoje tão
acabamento. Entre suas publicações incluem-se os primeiros raras quão disputadas pelos bibliofilos”, e Rubens Borba de
livros de Pernambuco, dos quais Alfredo de Carvalho nos Moraes destaca como dignos de menção especial as edições
apresenta a seguinte listas: de Lourencinho, de Dumas, e de A Lyra Erotica, de Antônio
Ribeiro Saraiva (ambas de 1839)*.
1831: Ramón Salas, Lições de Direito Publico Constitucional, Wilson Martins, em sua minuciosa História da Inteligên-
traduzido por D.G.L. Andrade (in-oitavo, 152 páginas). cia Brasileira”, menciona inúmeras obras de literatura brasi-
1832: Stuart Mill, Elementos de Economia Política, tradução do leira de meados do século x1x publicadas no Recife, mas não
francês confrontada com o original inglez pelo Dr. Pedro aponta os editores ou impressores, provavelmente por julgar
Autran da Matta e Albuquerque; Erasmo, Elogio da Lou- esta informação desnecessária, uma vez que é quase certo
cura, também traduzido pelo professor de direito, Dr. Matta que todos esses livros devem ter sido produzidos por seus
e Albuquerque; Antônio Feliciano de Castilho, Cartas de autores às próprias custas. À maioria é constituída de livros
Echo a Narciso, in-doze, 168 páginas; Tactica das Assem- de poesia, além de uma ou duas peças de teatro e de pelo
bléas Legislativas, obra extrahida dos manuscritos de Mr. menos um romance, Taliorato (1850), da autoria de Antonio
Jeremy Bentham por Mr. Et. Doumont de Genebra (in-oi- Vitruvio Pinto Bandeira Acioli de Vasconcellos.
tavo, 247 páginas); Voltaire, Micromegas (tradução); Ann A mais interessante publicação do Recife desse período
Radcliffe, A Caverna da Morte (tradução da romancista foi talvez uma obra já mencionada ($23), o estudo de Nísia
inglesa muito em moda); Grammatica Portugueza: Com- Floresta sobre os direitos da mulher. A feminista pioneira
pendio; Nicolau Rodrigues dos Santos França Leite, Defesa havia-se mudado para o Recife, fugindo de um casamento
(num julgamento sobre a liberdade de imprensa). infeliz, contraído ainda jovem, no Rio Grande do Norte, sua
1833: Codigo do Processo Criminal. terra natal. Casada em segundas núpcias com um estudante
de direito do Recife, aqui escreveu seu livro.
No final de fevereiro deste ano de 1833, firma Pinheiro, A decadência do Recife como centro comercial já era evi-
Faria & Cia. mudou-se para o Recife, que se tornara então dente para um visitante inglês na década de 1870. Conforme
a capital da província, e para onde seria mudada a Facul- observação de William Hadfield:
dade de Direito, em novembro de 1854. Alfredo de Carvalho
não diz quais foram os livros publicados pela casa após a Na época em que o Brasil estava, de certo modo, em sua infância e
mudança, se é que os houve, mas, como os sócios logo ad- mal começava a sacudir os entraves do domínio colonial, Pernam-
quiriram de Falcão o Diario de Pernambuco (3 de fevereiro buco era visto como uma das províncias mais animadas e empreen-
de 1835),seus interesses acabaram por concentrar-se no jor- dedoras do Império. [...] Mas não foi capaz de manter a reputação
nal, Carvalho registra os nomes de muitas outras tipografias
6. Rubens Borba de Moraes, Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial,
5. Alfredo Ferreira de Carvalho, “A Imprensa em Olinda”, Revista Rio de Janeiro, LTC, 1979, pp. 165-167.
do Instituto Arqueologico, Historico e Geographico Pernambucano, 7. Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, 1550-1960, São
vol. 11,n. 63, p. 80, dez. 1903. Paulo, Cultrix, 1977-1978; reimpressão: São Paulo,T. A. Queiroz, 1996.
zIo Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 2II

de província empreendedora de que gozava anteriormente. [Seu] publicado, entre 1814 e 1821, em Londres - como o Correio
lento progresso [...] deve ser atribuído, em grande parte, ao fato de Braziliense ($15) — e proibido pelo governo português, não
algumas províncias do Norte, que anteriormente enviavam seus pro- por seu liberalismo, mas por seu extremo conservadorismo
dutos a Pernambuco e traziam suprimentos de produtos manufatu- e por seu estreito nacionalismo português. Martins apresen-
rados dessa cidade, fazerem agora seus negócios diretamente com a ta uma ordem real de 25 de junho de 1818, endereçada ao
Europa, havendo linhas de vapores indo e vindo de Liverpool". governador da Paraíba do Norte, que aparentemente se re-
fere ao jornal de Londres — pois proíbe sua “entrada” e sua
Está fora de dúvida que houve, ocasionalmente, impres- “circulação”. O historiador sugere que a confusão surgiu
são e publicação de livros em outras cidades de Pernambuco, porque, depois de importado, sua circulação era propiciada
além da capital, a maior parte constituída pela costumeira, ou por cópias feitas a mão ou por sua reimpressão “na Tip.
intermitente e vaidosa edição de versos ou recordações dos Munisipal” (sic). Vê-se, assim, que ele aceita a história do
dignitários locais feita, por empreitada, por pequenos im- prelo, mas contesta apenas a possibilidade de ter sido usado
pressores. Alfredo de Carvalho menciona o fato de o cônego para imprimir um jornal original. Na verdade, ao falar sobre
Marcolino Pacheco do Amaral ter chegado a instalar um a Typographia Nacional da Paraíba, que de fato imprimiu o
prelo em sua própria casa, em Olinda, apenas para publicar primeiro jornal da província, declara categoricamente que
seu Compendio de Theologia Moral, em três alentados volu- “ela foi a segunda a ser instalada na província”:º.
mes in-quarto, em 1888-1890; findo o trabalho, vendeu sua A decisão de instalar este segundo prelo foi tomada pelo
Imprensa Economica ao editor de uma revista local. Um es- governo da província em março de 1823. Um Columbian foi
critor mais importante fez praticamente o mesmo: o influen- importado da Inglaterra e sua operação, confiada ao inglês
te filósofo Tobias Barreto mudou-se, em 1874, para Escada, Walter H. Boardman. Entretanto, seu assistente, Francisco
pequena cidade no nordeste de Pernambuco, onde instalou João de Azevedo, foi mandado ao Recife para aprender o
a Typographia Constitucional para imprimir suas próprias ofício. É provavelmente por isso que a Gazeta do Governo
obras. Essa tipografia subsistiu até 1888. da Paraiba do Norte só começou a ser publicada em feverei-
ro de 1826. Um ano depois, com a mudança de governo, a
oficina foi fechada e, quando se voltou a sentir, mais tarde,
$52 A IMPRESSÃO NA PARAÍBA a necessidade de um jornal oficial, mandou-se imprimi-lo no
Recife. A inexistência de uma tipografia na província enco-
Segundo a lenda, a impressão chegou à Paraíba, vizinha de rajou um impressor do Recife, José Rodrigues da Costa, a
Pernambuco e sua aliada na revolta de 1817, apenas alguns mudar-se para a capital paraibana no final de 1834. Tendo
meses após a restauração da ordem. Supõe-se que um prelo recebido muitas encomendas do governo, inclusive a publi-
foi recuperado de um brigue inglês que naufragara nos ro- cação da gazeta oficial (sob vários títulos), seu negócio pros-
chedos do cabo Branco, o ponto mais oriental da América perou. Imprimiu também dois livros de interesse local, dos
do Sul, apenas seis quilômetros distante da atual localização quais o primeiro, publicado em 1849, foi Lições de Rhetori-
de João Pessoa (como se chamou a capital do estado após ca, Recompiladas das Originaes de ]. Ferroel Perrard e Emile
1930). Há relatos de que esse prelo foi usado para imprimir Pabelle, Preparadores dos Aspirantes ao Bacharelado em Le-
o jornal antisseparatista O Português. O historiador local tras, Vertidas do Francez... por Manoel Caetano Vellozo (156
Eduardo Martins” faz remontar a origem desse jornal a O páginas). Costa faleceu em 8 de novembro de 1866, ficando a
Português, ou Mercurio Politico, Commercial & Litterario, tipografia com herdeiros que, logo após a queda do Império,
mais precisamente em 31 de dezembro de 1892, venderam-na
aos proprietários de A União, órgão do Partido Republicano
8. William Hadfeld, Brazil and the River Plate, 1870-1876, Sutton
(Surrey), Church, 1878, p. 18.
da Paraíba. O novo regime republicano no estado criou sua
9. Eduardo Martins, A Tipografia do Beco da Misericórdia: Aponta-
mentos Históricos, João Pessoa, SEC, 1978. ro. Eduardo Martins, op. cit.
212 Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 213

própria imprensa oficial (novembro de 1894), que, em 13 de Principios Elementares de Musica, de Henrique Eulálio Gir-
fevereiro de 1973, uniu-se à tipografia de A União. A combi- jão; em r850, as Obras Literarias, de Bento de Figueiredo
nação das duas (em geral com o colofão “Imprensa Oficial”) Tenreiro Aranha (1769-1811); e, em 1852, um Compendio
foi responsável pela impressão de 354 folhetos e livros não de Filosofia Racional, de autoria de José Afonso de Morais
oficiais, inclusive a segunda edição dos poemas de Augusto Torres, bispo do Pará.
dos Anjos, Eu (1920), e muitas das primeiras obras de José Em meados do século, o Pará começou a tirar enorme
Américo de Almeida, entre as quais A Bagaceira (1928). Em proveito do rápido desenvolvimento da borracha. Bates (The
1973, a empresa foi reorganizada como companhia estatal, Naturalist on the River Amazons"), que visitou Belém em
com o nome de “A União” Cia. Editora. 1848 e retornou em 1854, sentiu que, nesse intervalo, a cida-
de se havia transformado devido aos lucros deste comércio.
Embora sua população ainda não passasse de vinte mil pes-
$s3 PUBLICAÇÕES NO PARÁ soas, ele teve, nesta segunda visita, a satisfação de ver muitas
livrarias novas. Uma delas, anos depois, foi propriedade do
A próxima província a instalar uma oficina tipográfica foi o historiador português Lúcio de Azevedo, que, após começar
Pará, onde (como já se disse no $24) João Francisco Madu- como auxiliar em 1873, casou-se com a filha do patrão e, em
reira fabricou seu próprio prelo e equipamento. Como care- 1900, retornou a Portugal com sólida fortuna. A importância
cia de capital para pôr a gráfica em funcionamento, solicitou relativa do comércio livreiro de Belém, na última parte do
auxílio ao governo que, infelizmente para ele, já havia envia- século x1x, pode ser avaliada pelo catálogo da Garraux"* de
do a Portugal uma missão, chefiada por Felipe Alberto Pa- 1883, onde os colofões de Belém, em quantidade, vinham
troni Martins Maciel, para adquirir um prelo. Patroni tam- logo após os do Rio de Janeiro, Maranhão ($44), São Paulo
bém recrutou um mestre impressor, Daniel Garção de Melo, ($97), Pernambuco e Minas Gerais ($24).
e o resultado da missão,a Imprensa Liberal, imprimiu, em 1º
de abril do ano seguinte (1822), 0 primeiro jornal da então
capitania, O Paraense, que foi o quinto jornal do país. A TIPOGRAFIA EM OUTRAS PROVÍNCIAS $54
Nos primeiros tempos do Império, o Pará, apesar de ter
a sétima população de pessoas livres (90901 em 1819) den- Nestor Ericksen" indica a seguinte ordem de chegada da
tre todas as províncias brasileiras e de ser quase um terço tipografia às demais províncias depois do Pará. O Ceará (o
maior que a do Maranhão (66 668), era uma província sem mais importante parceiro de Pernambuco na Confedera-
muita importância. À nomeação, em 1839, de Bernardo de ção do Equador) recebeu um prelo nos princípios de 1824,
Souza Franco para a presidência do Pará e as subsequentes quando Manoel de Carvalho Paes de Andrade o trouxe do
reformas da educação foram, na opinião de Wilson Mar- Recife. São Paulo começou a imprimir em fevereiro de 1827
tins, de capital importância para seu desenvolvimento cul- ($97), o Rio Grande do Sul em junho de 1827, Goiás em
tural. Naquele mesmo ano de 1839, foi realizada a primei- março de 1830, Santa Catarina em agosto de 1831. Também
ra publicação local importante, o Ensaio Corográfico sobre nesse mesmo mês e ano chegou à Vila das Alagoas um prelo
à Província do Pará, obra de Antônio Ladislau Monteiro procedente do Recife: Maceió, a atual capital de Alagoas,
Baena, impressa pela Typographia de Santos e Menor, de
propriedade de Honório José dos Santos. Essa firma mais
tarde mudou sua razão social para Santos e Filhos e, de- 11. Henry Walter Bates, The Naturalist on the River Amazons, Lon-
dres, Murray, 1863. Citado a partir da reimpressão de 1892, vol,2,
pois, para Santos e Irmão.
À esta publicação seguiu-se, em 1840, a impressão de um P. 394.
r2. Fischer, Fernandes e Cia., op. cit.
livro escolar de 75 páginas, a Cartilha Imperial, de Felipe 13. Nestor Ericksen, “A Origem da Imprensa no Rio Grande do Sul”,
Patroni, embora sua segunda edição tenha sido publicada Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul,n. 2,
em Lisboa, em 1851. Em 1842, apareceu o Compendio de PP. 15-16, 1941.
214 Outros Editores das Províncias Outros Editores das Províncias 215

não existiu antes de 1839. O Rio Grande do Norte recebeu ca da Lingua Nacional, de Antônio Álvares Pereira Coruja,
também um prelo do Recife em 1832, embora as publica- impresso em Porto Alegre em 1835. A cidade de Niterói, que
ções oficiais da província tenham continuado, até 1878, a teve seu primeiro prelo em 1829, antes de separar-se do mu-
ser impressas em Olinda. O início da impressão em Sergipe nicípio neutro (a cidade do Rio de Janeiro e, em 1960-1975,
data de 1832, mas a primeira gazeta oficial, o Correio Sergi- o estado da Guanabara), é um caso especial, porque sua pro-
pense, e o primeiro livro publicado na província, O Livro de ximidade da corte fez com que sua indústria tipográfica se
Lei Sergipano, são ambos de 1838. A impressão no Espírito tornasse quase uma parte do Rio de Janeiro: sua Tipografia
Santo começou em 1840, com a instalação em Vitória de uma Fluminense, por exemplo, publicou os primeiros trabalhos
oficina, chamada depois de A Capitanense. O Paraná só se de Joaquim Norberto de Sousa e Silva.
separou de São Paulo em 1854, mas já teve um prelo em 1853 Uma ideia das publicações locais no século x1x será dada
(em 1849, segundo Rizzini, em seu O Livro, o Jornal e a Ti- no capítulo 12, onde apresentamos um resumo da produ-
pografia no Brasil'4). O seminário O Dezenove de Dezembro ção das impressoras paulistanas. Todavia, estas são de certa
veio da Typographia Paranaense, de Cândido Martins Lopes, forma excepcionais, pois se beneficiaram não apenas das
de Niterói , e seu único ajudante, João Luiz Pereira. necessidades criadas pela Faculdade de Direito (do mesmo
No dizer de Ericksen, o primeiro prelo do Amazonas modo que nas edições do Recife) como também, na segunda
data de 1854, mas os autores da História da Tipografia no metade do século, da crescente riqueza da província propor-
Brasil's afirmam que Manoel da Silva Ramos, da tipografia cionada pelo rápido desenvolvimento da lavoura cafeeira.
de Honório José dos Santos, de Belém, instalou uma ofici-
na de impressão em Manaus em 1851. À esta lista Rizzini
acrescenta o Piauí, na então capital Oeiras, em 1832,e Mato
Grosso em 1840, embora a História da Tipografia no Brasil
apresente as datas de 1835 e 1839, respectivamente, para
essas duas províncias.
As datas de Ericksen referem-se, na realidade, à publica-
ção do primeiro jornal em cada província, e, em muitos casos,
essas tipografias produziram pouco mais do que isso, e este
pouco se constituía quase sempre de obras de interesse local,
escritas por autores locais. Assim, a Tipografia Capitanense
produziria os primeiros livros do Espírito Santo entre 1856 e
1862, mas a maioria dos autores capixabas publicaram seus
livros no Rio ou em Portugal. É provável que a mais impor-
tante contribuição das províncias nos primeiros anos tenha
sido a produção ocasional de livros escolares, para os quais
ainda não existia um mercado nacional ($64). Um exem-
plo particularmente precoce foi o Compendio de Gramati-

14. Carlos Rizzini, O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil, 1500-


1822, Rio de Janeiro, Kosmos, 1946, é O Jornalismo antes da Tipo-
grafia, São Paulo, Nacional, 1977.
15.C.M. Semeraro e C. Ayrosa, História da Tipografia no Brasil, São
Paulo, Masp/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado
de São Paulo, 1979. Entre 1848 e 1856, Manaus (antigamente Ma-
naos) chamava-se formalmente a “Cidade da Barra do Rio Negro”.
Baptiste Louis
Cidia:
Baptiste Louis Garnier livreiro editor requereu ha dous annos
uma condecoração: o requerimento acha se desde então no Gabinete
do Ministerio do Imperio. O peticionario está ha mais de vinte
annos, estabelecido na Capital do Imperio; tem sido Editor da maior
parte das obras scientificas, litterarias e elementares da instrucção
publica qluje existem no paiz. Grande é o numero de autores
nacionaes, cujas obras não teriam visto a luz a não ser com o
auxilio que o dicto Editor lhes tem prestado, comprando lhes as
edições e fornecendo lhes os capitaes para a respectiva impressão.
Alem de muitos auctores de diversas obras, e compendios para a
instrucção publica que tem encontrado no peticionario auxilio
efhicaz para a realização de suas publicações, figuram entre outros
altos funcionarios do Estado. Um serviço real prestou o peticionario
fazendo reimprimir os Classicos da lingua portuguesa algums dos
quais já eram rarissimos no mercado. A Historia da fundação do
Imperio brasileiro pelo Conselheiro João Manuel Pereira da Silva, as
obras do S$nr. Visconde do Uruguay, e muitissimas outras, que seria
longo citar, são editados pelo peticionario. Outros livreiros editores
tem já alcançado honra igual á que elle aspira; e por isso pede-se a S.
Exia. o Sfir Marquez d'Olinda se digne de attender á sua supplica.

Manuscrito sem data, Arquivo do Marquês de Olinda'

A EXPANSÃO ULTRAMARINA
DO COMÉRCIO LIVREIRO FRANCÊS $ss

Era assim que o mais importante editor brasileiro do século


XIX via a si mesmo. É evidente que o governo tinha também
a mesma opinião, pois logo em seguida, em 16 de março de

t. Arquivo Coleção Marquês de Olinda (r1HGB): lata 214, doc. 61. À


referência a “outros livreiros editores” diz respeito quase certamente
aos irmãos Laemmert.
220 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 221

1867, Garnier recebeu o título de oficial da Ordem Imperial O Brasil oferecia perspectivas particularmente atraentes.
da Rosa, e seu mais famoso autor, Machado de Assis, foi agra- Tendo conquistado as vantagens econômicas da Indepen-
ciado com o grau mais baixo de cavaleiro. (Vinte anos depois, dência sem prejuízo de sua continuidade política, o país ofe-
em 18 de abril de 1888, Machado tornar-se-ia também oficial.) recia os requisitos de estabilidade e prosperidade, somados a
Já mencionamos ($36) as várias livrarias e tipografias uma receptividade excepcional a todos os adornos da cultura
francesas que existiam no Rio de Janeiro em meados do sé- francesa. No fervor de seu nacionalismo recém-descoberto,
culo. Entre elas, algumas pertenciam a livreiros, como Plan- o Brasil passou a responsabilizar a herança portuguesa pelo
cher, Villeneuve, ou Pierre Laforge ($33) que emigraram e atraso nacional e (como havíamos sugerido antes, $32) a
se estabeleceram no país, porém muitas, como a de Mongie, identificar tudo o que era francês como moderno e progres-
não se estabeleceram como negócios independentes, mas sista. Kidder e Fletcher observam como eram abundantes
eram filiais de firmas de Paris. nas livrarias as obras francesas sobre “ciência, história e
Antes da Revolução de 1789, o comércio editorial fran- [...] filosofia ateia”; o gosto geral pela leitura limitava-se
cês contentara-se com os negócios que o procuravam em aos “jornais e traduções de romances franceses”: as senho-
Paris. Na verdade, as condições técnicas, econômicas e po- ras brasileiras liam “a maior parte das obras de [...] Balzac,
líticas limitavam sua capacidade produtiva à demanda des- Eugêne Sue, Dumas pêre e fils, George Sand...”*.
se único mercado. Logo no início do novo século, a maior
disponibilidade de capital, a introdução de uma série con-
tínua de melhoramentos técnicos (o prelo de ferro, o papel GARNIER FRÊRES $56
feito à máquina e a estereotipia, por exemplo) e, sobretudo,
o abrandamento dos rígidos controles oficiais do ancien ré- Outros livreiros franceses que abriram filiais no Rio, além de
gime provocaram um aumento da produção, o que forçou o Bossange, Aillaud e Mongie, foram os Irmãos Firmin Didot,
comércio a buscar novos mercados. que editaram o Voyage pittoresque et historique au Brésil
Começando com Lefevre, em 1813, as editoras francesas (3 volumes, 1834-1835), de Debret. Na década de 1840, ins-
passaram a enviar representantes comerciais às províncias talaram-se na rua da Quitanda, nº 97, e mudaram-se depois
em busca das encomendas dos livreiros da região. No en- para a rua do Ouvidor, nº ros. Em 1846, iniciaram a publi-
tanto, a lenta circulação desses agentes numa época anterior cação de um Annuario Politico, Historico e Estatístico do
ao desenvolvimento das ferrovias mostrou a pouca conve- Brazil, impresso no país. É estranho notar que a Hachette, a
niência dessa solução, tendo em vista a crescente pressão pioneira dessa expansão ultramarina, não teve uma filial no
exercida pelo setor para a distribuição de seus produtos: a Rio de Janeiro antes de 1953.
produção anual, independentemente do tamanho das edi- Pelo papel desempenhado no desenvolvimento da ativida-
ções, passou de 3 500 para 7 542 títulos nos dez anos que se de editorial no Brasil, a mais importante dessas firmas foi, in-
seguiram à batalha de Waterloo. O passo lógico seguinte foi questionavelmente, a Garnier Frêres, que funcionou no Brasil
a nomeação de agentes nos principais centros provinciais: de 1844a 1934. Os Garnier eram originários da península
Firmin Didot e Hachette foram os pioneiros nessa inovação. Cotentin, na Normandia. Jean-Baptiste, pai dos fundadores
As editoras não tinham qualquer incentivo para expandir
essa prática às colônias: o consumo de livros nas possessões 2. Daniel Parish Kidder e James Cooley Fletcher, Brazil and the Bra-
francesas ultramarinas era desprezível, mas o domínio cul- zilians Portrayed in Historical and Descriptive SRetches, Filadélfia,
tural exercido pela França no mundo contemporâneo pro- Childs and Petersen, 1857.
porcionou aos editores oportunidades comerciais em mui- 3. Durante o ano de 1993, houve uma discussão na imprensa sobre
a data da chegada da Garnier ao Brasil. Foi sugerido o ano de 1843
tos mercados estrangeiros. Martin Bossange, por exemplo, em vez de 1844, com base no próprio Almanaque Brasileiro Garnier.
abriu filiais em Quebec, Montréal, Nova York, Cidade do Julgo provável que tenha surgido essa data de 1843 porque, por oca-
México, Madri, Londres, Leipzig, Nápoles, Odessa e, junta- sião da morte de B. L. Garnier, em 1893, estimou-se sua permanência
mente com Aillaud, no Rio de Janeiro ($70). no Rio de Janeiro em “meio século”.
222 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 223

da firma, teve quatro filhos: Auguste, nascido em 1812; Irmãos” até 1852, quando parece ter conseguido sua indepen-
François-Hippolyte, nascido em 1816; Pierre (que parece não dência e fundou a firma “B. L. Garnier”. O rompimento final
ter ingressado no ramo livreiro); e Baptiste Louis, nascido em com os irmãos deve ter ocorrido em 1864 ou 1865: 0 primeiro
4 de março de 1823. Em 1828, os dois irmãos mais velhos co- volume da História da Fundação do Império Brasileiro (obra
meçaram a trabalhar em Paris, como balconistas de livraria. de que se orgulhava na petição ao ministro do Império), que
Cinco anos depois, com 21 e 17 anos de idade, respectiva- editou em 1864, traz a indicação “Rio de Janeiro, B. L. Gar-
mente, abriram seu próprio negócio como livreiros-editores nier; Pariz, Garnier Irmãos”, mas os volumes subsequentes in-
no Palais Royal! À princípio, especializaram-se em edições de dicam “Rio de Janeiro, B. L. Garnier; Pariz, Durand”.
literatura leve, reimpressões baratas e obras sobre a política
do momento, como La verité aux ouvriers, aux paysans et
aux soldats, publicado durante a Revolução de 1848 e do IMPRESSÕES EM PARIS $57
qual venderam o total de soo mil exemplares, cifra jamais
alcançada até então. Essa linha editorial tornou-se menos Como a maioria dos livreiros da época — tanto nas cidades
rendosa sob Luís Napoleão (o futuro Napoleão 111), cujo go- provinciais da Europa como no Brasil -, no início Garnier
verno encarcerou os dois irmãos por terem editado De la jus- não podia depender apenas da venda de livros. Negociava
tice dans la Révolution et dans |" Église, de Proudhon. Depois também com artigos de papelaria e com uma miscelânea de
disso, voltaram-se para os dicionários (campo no qual foram, artigos importados, de guarda-chuvas e bengalas a pílulas,
por muito tempo, os principais concorrentes da Larousse) e unguentos e charutos. Começou também a publicar livros,
para os clássicos da literatura francesa, que até hoje continua embora numa pequena escala até o final da década de 1860.
sendo o forte da firma. Assim, parece ter sido o primeiro editor brasileiro a encarar
Baptiste Louis, após ter frequentado a escola em Coutan- a impressão e a edição como atividades totalmente distintas.
ce (Normandia), trabalhou para os irmãos mais velhos até Enquanto Paulo Martin e outros foram obrigados a confiar
1844, quando “resolveu transferir-se para o Brasil, pensando seus trabalhos à Impressão Régia, durante o período de mo-
com razão que num país novo e cheio de ambição haveria nopólio dessa oficina, B. L. Garnier escolheu o caminho da
lugar propício para o desenvolvimento dessa especialidade terceirização por um princípio comercial já arraigado em
comercial”+, Chegou ao Rio de Janeiro em 24 de junho de Paris e em Londres. Assim, durante muitos anos, não fez
1844,a bordo do Stanislas, em companhia de Camille Cléau, qualquer tentativa de instalar sua própria gráfica.
filho bastardo do duque de Berry (segundo filho de Carlos x), Algumas de suas primeiras publicações foram feitas por
que iria dirigir a Biblioteca Nacional, como frei Camillo de outras firmas cariocas, entre elas a da viúva Paula Brito; em
Monserrate, até sua morte, dezessete anos depois. pouco tempo, porém, decidiu confiar a maioria delas a ti-
Após dois anos de acomodação temporária, indicada ora pografias de Paris, particularmente depois que a introdução
como “na rua da Quitanda”, ora como “na Ourives” ou ainda dos navios a vapor nas rotas do Atlântico Sul, em fevereiro
como “na rua do Ouvidor, nº 73b” (talvez tenha se mudado), B. de 1851, significou uma razoável margem de segurança no
L. Garnier teve seu primeiro endereço fixo na rua do Ouvidor, tocante aos prazos de entrega. Os primeiros vapores faziam
nº 69 (depois renumerado para 65). Nesse local, permaneceu em pouco menos de 29 dias a viagem entre a Europa e a
até 1878, quando se mudou para um pouco mais adiante na capital brasileira (tempo reduzido para 22 dias por volta da
rua, para o nº 71, em frente de seu principal concorrente, a Li- década de 1880), enquanto um veleiro podia levar de 20 a
vraria Universal, de E. « H. Laemmert, estabelecida no nº 68, 75 dias ou mais. Luccocks diz que era de 54 dias a duração
da qual falaremos no próximo capítulo. Batista Luís (como média das viagens de inverno (isto é, partindo da Europa no
se abrasileirou) comerciou sob a denominação de “Garnier
5. John Luccock, Notes on Rio de Janeiro and the Southern Parts of
4. Almanaque Brasileiro Garnier para 1914. Rio de Janeiro, Garnier, Brazil..., Londres, Leigh, 1823. Tradução brasileira: Notas sobre o
n. II, I9I3. Rio de Janeiro, 1802-1822, São Paulo, Martins, 1942.
224 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 225

inverno europeu e do Brasil no inverno brasileiro) e de 78 da machine à réaction de Marinoni, em Paris, em 1847. É
nas viagens de verão. pouco provável que os jornais brasileiros do Rio tenham
Em 1859,B.L. Garnier deu início a uma publicação quin- levado mais que uns poucos anos para importar uma dessas
zenal ilustrada, a Revista Popular, impressa por Pinheiro & máquinas. Depois desse divórcio, somente as oficinas tipo-
Cia. A partir de 1862, porém, a regularidade das viagens gráficas dos maiores centros do Hemisfério Norte podiam
de navio permitiu-lhe produzi-la em Paris com o nome mu- contar com um fluxo suficiente de trabalho de impressão de
dado para Jornal das Familias. Para isso, o editor manteve livros para garantir a utilização máxima de seu equipamento
permanentemente em Paris um leitor de provas em portu- e, consequentemente, economia operacional. Essa vantagem
guês. Durante algum tempo, essa função foi exercida pelo decorria da posse de máquinas mais modernas e de uma dis-
jornalista republicano José Lopes da Silva Trovão, que era ponibilidade maior de trabalhadores qualificados.
correspondente estrangeiro de O Globo na capital francesa Um fator de crescente importância para isso foi o alto custo
e de repente vira-se em dificuldades financeiras quando seu de vida no Rio — e, por conseguinte, a pouca competitividade
jornal interrompeu sua publicação. dos níveis de salário — devido à dependência de mercadorias
A preferência de Baptiste pela impressão em Paris devia-se, importadas, à inflação crônica, e, após 1844, às elevadas tari-
em parte, à origem da firma, mesmo que, a partir de 1864, fas protetoras. Isso elevou os custos industriais de tal maneira
tenha utilizado, frequentemente, tipografias não ligadas ao que, por volta de 1890, os trabalhos tipográficos no Rio tor-
estabelecimento dos irmãos. O apelo esnobe por tudo que era naram-se duas vezes mais caros do que os da Europa; os servi-
francês foi outro fator importante, especialmente no caso dos ços gráficos com ilustrações podiam custar três vezes mais. No
livros mais caros, aos quais se somava o atrativo adicional de período compreendido entre 1890 e r9To, a situação tornar-
uma encadernação francesa. Um exemplo é sua edição, em -se-ia ainda pior, graças à manipulação sistemática do valor do
1865, da tradução da Vulgata, por Antônio Pereira de Figuei- mil-réis para favorecer os interesses dos exportadores de café.
redo, ilustrada com trinta cópias de velhos mestres gravadas Além disso, a capacidade técnica das firmas impressoras brasi-
em aço e impressa em dois volumes. À expressão “nitidamen- leiras ainda existentes diminuiu de forma acentuada, sem falar
te impressa e suntuosamente encadernada em Pariz” aparecia da desastrosa decadência dos padrões estéticos que se seguiu à
constantemente nos anúncios publicitários da época. introdução indiscriminada, na virada do século, dos tipos art
No entanto, a razão fundamental da preferência pela nouveau importados da Alemanha e da Itália ($69).
impressão europeia era de natureza econômica. Mesmo pa- Naturalmente, as irrefutáveis razões comerciais de Gar-
gando o custo do frete transatlântico (a tarifa para livros, na nier para imprimir seus livros no exterior não foram aceitas
metade da década de 1840, na viagem Le Havre-Rio, era de pelos trabalhadores gráficos da cidade, como se pode ver pe-
50 francos por tonelada, mais 10% ad valorem), o produ- los acerbos ataques estampados pelo jornal de sua organiza-
to europeu era mais barato, além de sua melhor qualidade, ção, O Typographo:
tanto técnica como esteticamente, em relação ao feito no
Rio de Janeiro. Até então, a impressão de livros tinha sido A maior parte das obras de que se compõe a grande livraria do
um aproveitamento útil das horas ociosas das tipografias senhor Garnier [...] é fabricada na Europa; isto é cousa tão sabida,
dos jornais. No entanto, por volta da década de 1850, O que ninguém póde contestar, apezar de virem com designação de
desenvolvimento técnico suscitou uma clara separação en- sua manufactura no Rio de Janeiro [fica claro que, no entendimen-
tre os processos de impressão de jornais e aqueles usados to deles, o local da edição significava o local da impressão] e ter
para livros. Bellanger* afirma que essa distinção se iniciou esse senhor um revisor por conta própria em Pariz; quando os Se-
com a introdução das rotativas de Hoe, nos Estados Uni- nhores Laemmert e companhia, procedendo por maneira diversa,
dos, em 1845, das de Applegarth em Londres, em 1846, e possuem um magnifico estabelecimento typographico e officina de
encadernação a rua dos Invalidos, onde acolhem os artistas brasi-
6. Claude Bellanger et al. (org.), Histoire générale de la presse françai- leiros e dão-lhes a ganhar o seu dinheiro, que também é por elles
se: De 1815 a 1871, Paris, PUF, 1969, t. 2, pp. 20-22. ganho neste paiz [...], o senhor Garnier, porém, tendo o seu estabe-
226 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 227

lecimento typographico em Pariz, dizem que de sociedade com um Frias”, O impressor maranhense, discutindo as mesmas tarifas
seu irmão, alli manda manufacturar as obras de que é incumbido mencionadas por F. Conceição, diz que os direitos de importa-
pelos escriptores brasileiros e aufere disso espantoso lucro! ção de papel para livros eram de $020 por quilo, valor referen-
Ora, sabemos que ha no paiz muitos homens illustrados, que, te, na verdade, à taxa paga pelo papel para jornais.
dando-se ao trabalho de escrever, baldos dos meios pecuniarios para Frank Bennett'º cita o caso de uma firma inglesa prejudi-
as impressões de suas obras as levam a este ou aquele livreiro, e esse cada pela alfândega de Porto Alegre por taxar como papel
senhor, quando o escriptor procura q seu concurso a fim de fazer de encadernação o papel que a alfândega do Rio de Janeiro
sahir a luz da publicidade o fructo de seus estudos e de suas vigi- aceitava como “asserinado” (papel normal para impressão).
lias, não aceita a obra sem que seja por contrato, não sabemos se da Como isso ocorreu numa época (fevereiro de 1912) em que
propriedade perpetua da publicação ou se por cdições; são tratos a diferença de tarifas era considerável (cf. tabela 6), a firma
estes que se dão entre o escriptor c o fabricante [a ideia de um editor foi mal aconselhada a impetrar um recurso junto ao Mimisté-
distinta da de um impressor ainda era um conceito muito novo], rio da Fazenda. Este, porém, nada fez e, no fim do ano fiscal,
ficando, comtudo, este mais bem aquinhoado do que aquelle. o inspetor da alfândega gaúcha determinou que fosse leva-
Desta boa capital envia as obras ao seu grande Pariz; lá é ella do a leilão todo o carregamento, por se tratar de mercado-
composta, revista, encadernada etc. e volta ao Rio de Janeiro: aquí ria não reclamada. Para mostrar que tais dificuldades com
é vendida pelo preço que lhe convém dar a cada exemplar e dessa a alfândega não são histórias, cito uma notícia do Jornal do
fórma a mão de obra é sempre estranpeira au passo que as nos- Brasil de 5 de setembro de 1990 sobre a importação de 2ot de
sas officinas typographicas definham e os typographos brasileiros papel norte-americano pela Record, a us$r,ro o quilo, custo
veem-se a braços com todas as necessidades e muitos compositores 20% mais barato que o nacional. Quando o agente de Sérgio
por ahi andam sem achar trabalho”. Machado foi buscar o papel, precisou pagar um laboratório
especializado para fazer um exame para provar que era pa-
pel. O laudo do laboratório onerou a importação em mais de
$58 O PAPEL BRASILEIRO us$220, a metade da importância que esperara poupar!
Não fica claro por que não se usava papel de produção
Em artigo escrito em 1879, F Conceição afirma que os impres- nacional. Ao contrário da frequente alegação de que a fabri-
sores brasileiros sofriam de outras desvantagens, pois tinham cação de papel no Brasil teve início em São Paulo, na década
de pagar taxas mais elevadas pelo papel do que pelos livros de 1880, a primeira fábrica foi construída, na verdade, em
importados. O autor apresenta a cotação de $160 por quilo 1808, por estímulo de José Mariano da Conceição Veloso,
de papel contra $r100 por quilo de livros, À tabela 6 (p. 840) da Impressão Régia, em Andaraí Pequeno (hoje Zona Nor-
mostra, sem dúvida, que essa tarifa preferencial para os livros te do Rio de Janeiro), por dois portugueses, Henrique Nunes
foi aplicada em determinados períodos (1819-1836, 1844- Cardoso e Joaquim José da Silva. Entrou em produção no
T860, I912-1929 € I9$T-I1957), mas a situação em outras ano seguinte"", mas parece não ter durado muito. Em 1824,
épocas é obscurecida pelo excêntrico e caprichoso tratamento Pedro Plancher afirma ter utilizado papel produzido no país
que o papel para livros recebia nas alfândegas, submetido a quando os estoques do importado se esgotaram. Quase na
critérios pessoais dos funcionários. Algumas vezes, era tratado mesma época (18 de novembro de 1826), dom Pedro 1 escre-
como papel para jornal (sobre o qual incidia uma tarifa ex- via uma carta à sua amante, a Marquesa de Santos, na qual
tremamente baixa) e, outras vezes, como papel para escrever
(que sofria taxas mais altas do que o papel destinado a livros).
9. José Maria Corrêa de Frias, Memória sobre a Tipografia Mara-
nhense, São Luís do Maranhão, Typ. do Frias, 1866.
10. Frank Bennett, Forty Years in Brazil, Londres, Mills and Boon, 1914.
a

7- O Bypographo, vol. 1,n. 6, s dez. 1867. 11. Cláudia Marino Scmeraro e Christiane Ayrosa, História da Tt-
8. E Conceição, “Os Livros e a Tarefa da Alfândega”, Revista Brasi- pografia no Brasil, São Paulo, Masp/Secretaria de Cultura, Ciência e
leira, 2º série, vol. T;n. T, p. 607, jun. 1879. Tecnologia do Estado de São Paulo, 1979.
228 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 229

lastima estar usando papel importado e expressa a esperança Baptiste teve por algum tempo sua própria tipografia, cha-
de que em breve já se possa dispor de papel nacional. Em mada apropriadamente Tipografia Franco-americana (não
1837, André Gaillard instalou outra fábrica nos arredores do confundir com a Typographia Franceza — cf. $69). Seu equipa-
Rio, seguida de outra, fundada em 1841, por Zeferino Fer- mento era francês, assim como seus tipógrafos, a julgar pelos
raz. Foram estas as primeiras de várias fábricas construídas erros de impressão. Nesse aspecto, estava apenas seguindo a
nas matas da Tijuca, algumas das quais sobreviveram até a prática que adotara em sua livraria, onde, embora, ocasional-
década de 1920, embora, nessa ocasião, se limitassem quase mente, empregasse brasileiros — o jovem Capistrano de Abreu,
que exclusivamente a produzir papel de embrulho. Em 1843, por exemplo — seus principais assistentes tinham nomes como
havia também uma fábrica de papel em Salvador. Todavia, A. Garraux, À. Franchou, H. Puyssegur e F. Briguiet.
a produtora de papel de imprensa mais importante no sé- Nosso primeiro impulso foi atribuir essa prática à perda de
culo xIx foi a Fábrica de Orianda, construída em Ponta da contato com os impressores parisienses devido à guerra franco-
Areia, nos arredores de Petrópolis, em 1851, por Guilherme -prussiana. Infelizmente, porém, para essa teoria, encontra-se
Schuech, barão de Capanema, um mineiro de origem aus- na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro uma carta bastante
tríaca; funcionou até 1861 (quando a aplicação de tarifas enigmática, que não traz o nome do destinatário, datada de 9
mais baixas para o papel importado tornou-a inviável eco- de maio de 1870 (ou seja, mais de dois meses antes do início
nomicamente). Quando Kidder e Fletcher'> escreveram que da guerra), que parece ser uma tentativa de contratar seu che-
os jornais do Rio de Janeiro eram todos impressos em pa- fe de oficina, que sabemos ter sido um certo Charles Berry:
pel produzido no local, referiam-se provavelmente ao papel
produzido por esta fábrica, que, diziam, era de melhor qua- Cher ami, je n'ai pas trouvé Mr. Berry, son contremaitre m'a dit
lidade do que o produzido em Paris. qu'il ne doit rentrer que vers les deux heures. Mais ce dernier m'a
Apesar de algumas experiências do barão de Capanema donné peu d'esperance: il pourvit qu'il ne loge plus ni commis ni
e dos donos da fábrica de Salvador com a utilização de fi- ouvriers. Vue [sic] le peu de probabilité que nous avons de réussir
bras de plantas brasileiras", no século x1x, o papel brasileiro de ce côté, je me suis informé & Mr. Domingos dos Santos, rue
era feito de trapos velhos de algodão ou linho puros, o que Nova do Ouvidor, m'a dit qu'il pouvait le prendre dans quelques
o tornava mais caro (embora melhor) do que o papel pro- jours, mais que, cependant, avant de rien arrêter, il desirerait le voir
duzido a partir da madeira, importado da Bélgica e de ou- et causer avec lui. Je vous prierais donc, quand vous le verrez, de me
tros lugares. À simples questão de assegurar um suprimento Venvoyer, pour que je le présente. [ai prévenu Mr. Santos que ce ne
adequado de trapos velhos pode ter sido um problema que sera, probablement, que dans deux ou trois jours.
acabou se tornando insolúvel. Por esta razão é que as fábri- Ce Mr. Santos est vous savez Vancien imprimeur de la Revista
cas europeias passaram a buscar, por volta de 1850, novas do Instituto.
matérias-primas, como madeira e esparto. O método me- Veuillez je vous pris présenter mes homages respectueux à Ma-
cânico de preparo da polpa de madeira fora inventado em dame Emile &« à Dona Catharina & recevoir les salutations cordial
1840,e o método da soda cáustica em 1851. [sic] de votre devoué serviteur et ami, B. L. Garnier".

Embora não haja provas de que esse sr. Berry seja o Char-
$59 A TIPOGRAFIA FRANCO-AMERICANA les Berry mencionado por Ernesto Senna em O Velho Com-
mercio do Rio de Janeiro's, sua volta às duas horas (da ma-
No começo da década de 1870, isto é, três ou quatro anos drugada?) estaria de acordo com o que se dizia a seu respeito:
antes do ataque dos tipógrafos a Garnier acima reproduzido, que ficava acordado até tarde, todas as noites, jogando car-

12. Kidder e Fletcher, op. cit. 14. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ms. 1-3, 8, 55.
13. Hugo Schlesinger, “Papel”, em Enciclopédia da Indústria Brasilei- 15. Ernesto Senna, O Velho Commercio do Rio de Janeiro, Rio de
ra, São Paulo, Brasiliense, 1969, vol. 4, pp. 1313-1326. Janeiro, Garnier, [19112].
230 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 231

tas. Segundo Senna, isso o deixava sonolento demais para rea- lenta, de enorme cabeça redonda, queixo fugídio, sentado,
lizar qualquer trabalho, e teria sido essa a razão pela qual B. com uma pena na mão, diante de uma escrivaninha alta, no
L. Garnier, no fim, teve de fechar sua tipografia. Lima Bar- canto mais afastado de sua sombria e poeirenta loja, desco-
bosa sugere não apenas que o vício do jogo de Berry o fizera lando selos não carimbados da correspondência recebida,
perder vários empregos anteriores, mas também que Garnier preservando os envelopes para serem usados novamente e
abrira seu departamento gráfico com o objetivo preciso de murmurando para si mesmo: “Ah! pauvre Baptiste, si j'étais
fornecer um meio de vida ao desafortunado compatriota. riche comme mon frêre...”'*.
Isso não explicaria o uso bastante considerável que Garnier Pobremente vestido, com um paletó de alpaca preta man-
fez de outros impressores no Rio desde que fechou sua pró- chado, calças frouxas e amarrotadas e uma suja boina de
pria tipografia até sua morte. veludo azul com uma borla, aparentemente passou todos os
Essa história da maior disposição de Garnier a impri- seus dias de trabalho, de uma vida reconhecidamente indus-
mir seus livros no Rio causa perplexidade. O rompimento triosa, nessa escrivaninha, começando às sh30 da manhã e
com os irmãos significava que não mais estava obrigado abandonando-a apenas por poucos momentos por deferência
a confiar-lhes seus trabalhos, mas a vantagem econômica com algum freguês que fosse um religioso, ou (se não houves-
de mandar imprimir seus livros na Europa era maior nas se muito trabalho a fazer) por ocasião da chegada, pouco fre-
décadas de 1870 e 1880 do que o fora antes. No caso de quente, de algum amigo íntimo que tivesse vindo bater papo.
Machado de Assis, há provas de que o próprio autor, sendo O assunto principal de suas conversas parece ter sido sua
um tipógrafo experiente, encarou prazerosamente a opor- terra natal: a cada mês, a partida do vapor deixava-o depri-
tunidade de acompanhar a impressão de suas obras. Mais mido, estado agravado sensivelmente pela guerra de 1870.
importante ainda é o fato de muitos romances da Garnier Era conhecido por seu ódio a Napoleão 111 e pela admiração
serem reimpressões de folhetins publicados em revistas e jor- que devotava a Gambetta, sentimentos consentâneos com
nais (cf. $62). Isso envolvia, às vezes, uma nova composição, o que sabemos da posição política do restante da família.
como ocorreu com Histórias da Meia-Noite, de Machado de Pela política da sua pátria de adoção, admite-se que não teve
Assis, reimpresso no Rio pela Tipografia Franco-americana, qualquer interesse.
em 1873, após ter aparecido no Jornal das Familias, impres- Seus modos foram reconhecidos como despretensiosos,
so em Paris durante os anos de 1870-1873. Frequentemente, até mesmo bondosos (sempre atribuía a tarefa de demitir
porém, era possível economizar conservando a composição qualquer de seus empregados ao guarda-livros), mas sua
para depois imprimir o livro. Foi o que ocorreu com Hele- cortesia foi tachada de subserviente. Teve certamente poucos
na (1876), outro romance de Machado de Assis, reimpres- amigos que poderiam modificar esse quadro de sua persona-
so diretamente a partir da composição usada para a versão lidade. Os únicos de que temos notícia foram José de Alen-
em folhetim em O Globo. De outra forma, só poderíamos car, Joaquim Manuel de Macedo (seus editados), os dois
supor que, à medida que B. L. Garnier foi envelhecendo, Fernandes Pinheiro — tio e sobrinho — e Joaquim Norberto
inclinou-se a preferir a conveniência à economia, e não há de Sousa e Silva (todos executaram trabalhos editoriais para
indícios de que isso tenha ocorrido. ele), Teodoro Maria Taunay (o cônsul francês, tio do viscon-
de) e o astrônomo imperial Emanuel Liais. Todos, porém,
com exceção do jovem Pinheiro (Luís Leopoldo), morreram
(60 A PERSONALIDADE DE B. L. GARNIER antes dele e jamais puderam falar em sua defesa.
Machado de Assis, em seu obituário em Páginas Reco-
Muito ao contrário, enquanto Plancher é lembrado por seu lhidas, nos transmite o retrato de um homem extremamente
espírito e Paula Brito por sua natureza bondosa, o “Bom solitário, que procurava no trabalho a única saída possível
Ladrão” Garnier adquiriu a reputação póstuma de avarento. para a aridez da vida:
As lembranças de seus contemporâneos descrevem a figura
nada simpática de um homem baixo, gordo, míope, de fala 16. Ernesto Senna, op. cit.
232 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 233

Durante meio século Garnier não fez outra coisa senão estar ali foi acompanhado por sua viúva e seus empregados (que di-
naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, ficilmente poderiam evitar essa obrigação) e apenas três ou-
com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Teresa para a tros acompanhantes: Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro, o
loja, de onde regressava antes de cair a noite, Uma tarde, ao en- jornalista Alexandre José de Melo Morais Filho e seu princi-
contrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os pal autor, Machado de Assis.
seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que Pior ainda que seu fracasso em fazer amigos foi o inegável
não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: sucesso em ganhar dinheiro. Tendo o brasileiro Paula Brito
“Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire, ce que chegado quase à falência na defesa da causa da literatura
vous auriez fait pendant cinquante ans?” Na véspera de sua morte, nacional, não foi muito diplomático da parte de um francês
se estou bem informado, achando-se a pé, ainda planejou descer na ganhar quase sete mil contos de réis com a mesma causa. A
manhã seguinte para dar uma vista de olhos à livraria”. infeliz amante e dona de casa, transformada em mulher ho-
nesta na última hora, recebeu apenas a miséria de 80 contos
A frase “regressava antes de cair a noite” sugere, sem dú- de toda essa fortuna (embora, considerando que também
vida, uma certa moderação na velhice — a loja permaneceria herdou a casa de morada de Garnier, essa quantia fosse su-
aberta até muito mais tarde. Até 1876, os vendedores das ficiente para mantê-la confortavelmente pelo resto da vida).
lojas no Rio trabalhavam das 6 da manhã às ro da noite e Senna”, que é arrasador em suas críticas, absteve-se de regis-
tiveram de entrar em greve para encerrar a jornada de traba- trar que a maior parte dessa fortuna era o próprio negócio
lho mais cedo e não trabalhar aos domingos. e seu capital de giro, grande parte do qual seria usado pelo
Machado de Assis também relacionou Garnier com Pau- sucessor de Baptiste Louis Garnier para reconstruí-lo numa
la Brito, observando como um preencheu o lugar deixado escala mais condizente com o Rio de Janeiro do início do
pelo outro: “Paula Brito foi o primeiro editor digno desse século xx, que se modernizava rapidamente.
nome que houve entre nós. Garnier ocupa hoje [1865] esse
lugar, com as diferenças produzidas pelo tempo e pela vas-
tidão das relações que possui fora do país”'*, Observação OS DIREITOS AUTORAIS Ç61
bastante imparcial: no sentido comercial, os papéis desem-
penhados por ambos eram quase idênticos, mas nos assun- Um bom jornalista pode chegar até mesmo a relatar fatos a
tos pessoais os dois eram muito diferentes. Onde o contraste favor de seu vilão favorito, de forma calculada para desacre-
entre ambos se revela de maneira mais pronunciada é nas ditá-lo, se isso ajudar a construir uma boa história, Senna sa-
amizades. Isso fica patente nos respectivos funerais. O enter- lienta, com uma indignação partilhada por Gilberto Freyre,
ro de Paula Brito foi um dos maiores a que a corte já assistiu; que repete a assertiva”, que Garnier, nos anos de 1870, pa-
do cortejo participaram mais de duzentas carruagens e, entre gava a seus tradutores (Salvador de Mendonça, Fernandes
os acompanhantes que pranteavam sua morte, havia gente Reis, Jacinto Cardoso, Abraches Gallo e outros) $400 por
de todas as camadas sociais. Naquele dia, o Rio “cobriu-se mil palavras — equivalente a algo entre 2508000 e 280$000
de luto”'*e os vereadores prontamente dedicaram uma rua por um volume de Júlio Verne, Xavier de Montepin ou Émile
à sua memória (o nome ainda subsiste). O féretro de Garnier Gaboriau (os autores mais populares da época). Se admi-
tirmos um preço de capa de 2$500 e uma tiragem de mil
exemplares, essa remuneração resulta em pouco mais do que
17. Joaquim Maria Machado de Assis, Páginas Recolhidas, Rio de
os 10% de direitos de autor, percentual considerado normal,
Janeiro, Garnier, 1900. Citado a partir da reimpressão em 1923, pp.
2657-262.
hoje, em quase todas as partes do mundo, para um trabalho
18. Joaquim Maria Machado de Ássis, em O Diário do Rio de Janei-
ro, 5 jan. 1865. 20. Ernesto Senna, op. cit.
19. Eunice Ribeiro Gondim, Vida e Obra de Paula Brito, Rio de Ja- 21. Gilberto de Melo Freyre, Ordem e Progresso, Rio de Janeiro, José
neiro, Brasiliana, 1965. Olympio, 1959.
234 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 235

original. Os níveis de remuneração adotados por Garnier Mesmo que Garnier tenha sido tão miserável quanto
destacam-se ainda mais quando comparados com os valores Senna, e outros insistem em afirmar, permanece o fato de que
que, nas últimas décadas do século xx, os editores brasileiros ele pagava direitos autorais com regularidade, não apenas aos
pagavam aos seus tradutores. Em 1970, pesquisamos os pre- tradutores, mas também aos autores brasileiros, e se podia agir
ços adotados por diversas firmas, quando a libra esterlina assim por frio cálculo comercial mais do que por idealismo
estava cotada a Cr$r1,00. Embora as traduções de livros patriótico, então estava fazendo mais do que qualquer outro
técnicos e de não ficção, bem como aquelas feitas de línguas para alicerçar solidamente a literatura da sua pátria de adoção.
menos comuns (isto é, de outras línguas além do inglês, do Transferir um autor para um editor o trabalho completo e o
francês e do castelhano), pudessem valer dez, quinze, ou até risco financeiro de publicar seu livro e ser pago por isso já era
mais cruzeiros por página, a remuneração de uma obra lite- possível, há muitos anos, na Inglaterra e na França; no Novo
rária do inglês ou do francês era, comumente, de quatro a Mundo, isso ainda constituía uma novidade — o que explica a
cinco cruzeiros por página; uma editora que escolhia tanto suspeita com que seus métodos eram frequentemente encara-
seus textos como seus tradutores por suas qualidades literá- dos (como em nossa citação de O Typographo, $57). Quando
rias alegava pagar Cr$7,00 por página. Se admitirmos que começou a favorecer escritores dessa maneira — em fins dos
uma página tem soo palavras, isto significa que muitos tra- anos de r8$0 —, menos de dez anos haviam passado desde que
dutores, em 1970, estavam recebendo cerca de 14 shillings tal prática se tornara comum nos Estados Unidos. Em compa-
e 6 pence por mil palavras, ao passo que Garnier, em 1870, ração com seus companheiros de profissão da América espa-
estava pagando (com o mil-réis equivalendo a 25 pence) o nhola, estava cerca de sessenta anos à frente do seu tempo. No
correspondente a ro pence por mil palavras. Não se pode es- honesto cumprimento dos contratos, coisa que nem mesmo
timar com precisão a desvalorização da libra nesse intervalo Senna põe em dúvida, estava à frente de muitas firmas do Rio
de um século, mas, como o valor do soberano de ouro, no e de São Paulo dos dias atuais. Infelizmente, como já observa-
começo de 1970, era bem superior a 30 libras, a diferença do mos ($42), mesmo uma porcentagem razoável a título de direi-
valor aquisitivo da libra nos dois períodos deve ter sido de tos autorais não pode proporcionar uma renda considerável se
no mínimo trinta vezes. Isso coloca a remuneração de Gar- as vendas são tão limitadas como forçosamente devem ter sido
nier para aquilo que, afinal de contas, não passava de uma no pequeno mercado comprador de livros do Brasil no século
medíocre obra literária executada com objetivos exclusiva- XIX. Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, autor de A
mente financeiros num nível 1,7 vezes acima dos preços mais Moreninha, de grande vendagem, morreu pobre em 1882, em-
baixos pagos no Brasil em 1970, e equivalentes praticamente bora muitos de seus livros ainda estivessem sendo reimpressos
aos Cr$7,00 por página pagos pelo editor preocupado com e ainda vendessem bastante bem pelos padrões da época.
a qualidade literária — ou aos preços de setembro de 1970 de Inúmeros fatores ajudam a explicar o sucesso de Garnier.
“Cr$10,00 ou Cr$12,00 a página” citados por Edgard Blii- O país continuava a gozar de prosperidade e de estabilidade
cher (quase certamente pensando em livros técnicos), Esses política (apesar do terrível trauma da Guerra do Paraguai).
níveis todos são, é claro, muito inferiores aos da América do O público leitor estava-se expandindo com o grande desen-
Norte, onde uma tradução literária para o inglês de um texto volvimento da economia brasileira depois de 1850*+. O pú-
português ou espanhol valia, no começo da década de 1970, blico leitor de romances, em particular, estava aumentando
cerca de us$20 ou Us$30 por mil palavras?. e era no campo da ficção, tanto nacional como estrangeira,
que Garnier dominava o mercado.
22. Em “Em Julgamento, um Livro muito Superior”, Correio do Li-
vro, vol. 4,n. 41, pp. 6-10, jan. 1971. $o.80 (obras técnicas) no Brasil com os de $0.75 até $1.50 na Argen-
23. Helen Wolf, em Publishers Weekly, 24 set. 1973, p. 120. Em janei- tina e de $1.20 até $2.00 no México.
ro de 1962, outra publicação norte-americana, Books in Latin Amer- 24. Para uma história do desenvolvimento da leitura no Brasil, sobre-
ica: A Report to Franklin Publications, Inc, fizera uma comparação tudo nesse período, cf. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, A Forma-
entre os pagamentos a tradutores por página de $0.40 (romances) até ção da Leitura no Brasil, São Paulo, Ática, 1996.
236 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 237

$62 OS ROMANCES E O FOLHETIM A grande maioria dos romans-feuilletons brasileiros era


constituída por traduções: Kidder*s alega ter lido com atenção
A grande popularidade do romance começou na Inglater- o Jornal do Commercio de um ano inteiro (circa 1839-1840)
ra com as obras de sir Walter Scott e Ann Radcliffe. No e registrou apenas uma história escrita por um brasileiro. No
entanto, somente no fim da década de 1830 é que se tor- entanto, um estudo de Sacramento Blake** revela que o total
nou pela primeira vez um gênero dominante na França, das obras brasileiras de ficção que apareceram em folhetim
pelo menos no que concerne ao mercado de livros, com ao longo dos anos foi suficiente para transformar esse gêne-
Balzac, Dumas pai, Alphonse Karr, Paul de Kock, Soulié ro num importante veículo para o talento literário nacional.
e Eugêne Sue. Sua expansão teve início na França quando O próprio Justiniano José da Rocha escreveu algumas his-
os jornais da época, excessivamente enfadonhos, começa- tórias originais, como Os Assassinos Misteriosos ($34), O
ram — por volta de 1827 — a depender das rendas auferi- Pária e outras, todas elas já esquecidas há longo tempo. Entre
das com a publicidade (costume imitado da Inglaterra) e os primeiros folhetinistas encontramos também os nomes de
se viram forçados, em consequência, a empenhar-se numa Martins Pena, Gonçalves de Magalhães e os historiadores
guerra para aumentar a circulação. Adotaram a solução Varnhagen e Pereira da Silva.
de caçar os leitores com o roman-feuilleton, ou ficção Por volta de 1870, mesmo um escritor desconhecido po-
em série. A Revue de Paris introduziu a ideia no final da deria receber mais ou menos 708000 por mês pela tradução
década de 1820, mas somente por volta de 1836 é que a de folhetins do francês; um nome consagrado que produzis-
prática se generalizou. Nessa ocasião, até mesmo o só- se originais brasileiros poderia ganhar 2008000 por mês —
brio Journal des débats teve o arrojo de publicar em série, ou seis vezes o salário de um professor de escola rural — o
em 1837-1838, as Mémoires du diable, de Soulié, e, em suficiente para que Aluísio Azevedo vivesse, nessa ocasião,
1842-1843, os Mystêres de Paris, de Sue. Para avaliar o exclusivamente de seus escritos.
possível impacto de um romance-folhetim popular, basta Os folhetins nunca desapareceram totalmente no Brasil.
vermos o exemplo do Constitutionel, cuja circulação, após Alguns autores do começo do século xx (Olavo Bilac, Me-
cair de 9 000 exemplares em 1836 para 3 600 em 1844, deiros e Albuquerque, Coelho Neto) recebiam salários regu-
subiu para 25 000 em 1845-1846, graças ao Juif errant, lares dos jornais para os quais colaboravam. Quase todos
de Sue. os romances de Lima Barreto apareceram inicialmente em
A publicação na forma de folhetim encorajava os com- forma seriada, e Clara dos Anjos, o último, foi publicado em
plicados enredos melodramáticos, sendo cada parte plane- forma de livro somente em 1948, vinte e quatro anos após
jada para terminar de forma a deixar o leitor aguardando sua publicação na Revista Souza Cruz. O Galo de Ouro,
ansiosamente a continuação — exatamente como fazem as de Rachel de Queiroz, foi publicado, pela primeira vez, em
telenovelas de nossos dias. capítulos, na revista O Cruzeiro, em 1950, assim como A
O Brasil, como sempre o fizera, imitou a França, em- Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, quatro anos depois.
bora não antes de 1839. O pioneiro nas traduções foi um À grande moda deste gênero, todavia, não ultrapassou o sé-
eminente professor, jornalista e deputado do Partido Con- culo xIx e seu declínio já era evidente em 1885, quando os
servador, Justiniano José da Rocha. São dele as versões bra-
sileiras de Mistérios de Paris, O Conde de Monte Cristo
e de muitos outros folhetins. Trabalhava tão rapidamente 25. Daniel Parish Kidder, Sketches of Residence and Travels in Brazil,
que o Jornal do Commercio conseguia publicar quase em Filadélfia, Sorin and Ball, 1845.
26. Augusto Victoriano Alves do Sacramento Blake, Diccionario Bi-
simultaneidade com o jornal de Paris. Ditando, alternada-
bliographico Brazileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1883-
mente, a dois amanuenses — que se sentavam nos extremos 1902; reimpressões: Neudeln, Kraus, 1969, e Rio de Janeiro, Conse-
opostos da sala enquanto ele andava, a passos largos, en- lho Federal de Cultura, 1970. Cf. também José Ramos Tinhorão, Os
tre um e outro — terminou Mystêres de Paris em um mês e Romances em Folhetins no Brasil, de 1830 à Atualidade, São Paulo,
Monte Cristo em dois meses e meio! Duas Cidades, 1994.
238 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 239

jornais começaram a perceber que relatar crimes de forma iniciou sua carreira literária com a publicação de Cinco Mi-
sensacionalista constituía um incentivo muito mais eficaz nutos, em capítulos, em seu jornal, no curso do mês de de-
para aumentar a circulação. zembro de 1896. Em 1º de janeiro de 1857, continuou com a
A reedição desses romances de folhetim sob a forma de publicação de O Guarani, que teve um sucesso muito maior.
livro era um gambito óbvio para o comércio editorial, e os Este último romance foi impresso na forma de livro pela
franceses adotaram-no quase imediatamente. À situação re- gráfica do Diário do Rio de Janeiro, de N. L. Vianna ($20),
sultante era, assim, praticamente o oposto da hoje existente no mesmo ano: o primeiro teve de esperar até 1860. Os ro-
no Reino Unido e na América do Norte, onde a editora de mances imediatamente posteriores de Alencar, inclusive seu
um romance procura vender sua seriação depois de firmado segundo livro de maior vendagem, Iracema (1865), foram
o contrato para o livro. impressos na forma de livro por Vianna ou por firmas meno-
Mais uma vez o Brasil imitou a França, mas a prática res, como a Typographia do Pinheiro; no entanto, em 1864,
dessas reimpressões foi adotada de maneira mais gradual Garnier já estava publicando as segundas edições de O De-
e a proporção de folhetins que apareceram na forma de li- mônio Familiar e da peça Asas de um Anjo. Imprimiu tam-
vros foi muito pequena. Paula Brito ($42) publicou algumas bém a segunda edição (1865) e as cinco subsequentes de O
obras de Teixeira e Sousa, de Bruno Seabra e de mais um ou Guarani, e a terceira de Iracema. Esta última obra chamou a
dois autores. De tempos em tempos, as publicações eram atenção do explorador (e poliglota) sir Richard Burton, en-
feitas por outras firmas (ou pelo próprio jornal, ou por um tão cônsul britânico em Santos, e de sua esposa, Isabel, que
impressor por encomenda do autor), além daquelas impor- a traduziu para o inglês, em 1886 (Londres, Bickers & Son),
tadas de Portugal (onde a grande quantidade de folhetins tendo sido, segundo parece, o primeiro romance brasileiro
produzidos por Camilo Castelo Branco começou a ser pu- publicado em inglês. À partir de 1867, quase todos os livros
blicada sob a forma de livro em 1851) e de obras em portu- de Alencar — escreveu cerca de vinte romances — trazem o
guês impressas em Paris. Mas somente a partir da metade da sinete editorial da Garnier”.
década de 1860, quando B. L. Garnier começou a publicar Bernardo Guimarães, que na época não ficava muito atrás
obras de ficção, é que teve início uma ampla produção de de Alencar em popularidade, publicou seu primeiro livro, um
romances no Brasil, na forma de livros. volume de poemas, Cantos da Solidão, na província de São
Seu interesse pode ter sido despertado por uma nova Paulo, em 1852 ($97); Garnier o reimprimiu em 1858 e edi-
moda entre os compradores brasileiros de livros: a posse de tou todas as novelas e antologias posteriores de Guimarães
coleções de seus autores favoritos. Isso poderia explicar sua até sua morte, inclusive O Ermitão de Muquém, em 1865,e
predileção por edições uniformes das “obras” de um autor. o grande êxito A Escrava Isaura, em 1875. Joaquim Manuel
Embora raramente arriscasse publicar o primeiro livro de um de Macedo, autor de livro ainda mais popular, A Moreninha
autor, ninguém editou, nesse período, mais livros brasileiros (primeira edição em 1844, a segunda em 1845, ambas da
de ficção do que B. L. Garnier, e praticamente não houve um Tipografia Francesa), tornou-se também autor da Garnier — a
romancista brasileiro de importância que não acabasse ten- partir mais ou menos de 1869 — assim como Luís Guimarães
do a maioria de suas obras publicadas por ele. O historiador Júnior e Domingos José Gonçalves de Magalhães, visconde
João Manuel Pereira da Silva, que também escreve romances de Araguaia, quando seus deveres diplomáticos não o obriga-
históricos, é um dos primeiros exemplos. Seu Jerônimo Cor- vam a permanecer no exterior. O poema épico de Magalhães,
te-Real apareceu no Jornal do Commercio em 1839/1840,
foi reimpresso em livro por Cruz Coutinho em 1854 e saiu
27. Em seu romance A Conquista, Coelho Neto (citado por Lúcia
como edição de Garnier, bastante revisto a partir da série Miguel-Pereira em Prosa de Ficção, 1870-1920) diz que “Alencar
original, em 1864. vendia os seus romances ao Garnier por quatrocentos mil réis,” preço
José Martiniano de Alencar foi muito mais importante de cada obra, e não de cada edição. No entanto, no mesmo romance,
para o sucesso de Garnier do que Pereira da Silva. O autor o escritor maranhense afirma ter vendido por oitocentos mil-réis os
de Iracema era o editor-chefe do Correio Mercantil quando direitos de um romance de seiscentas páginas.
240 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 241

A Confederação dos Tamoios, sua obra mais lembrada, já simples tamanho de um romance obriga comumente o escri-
havia sido publicada por Paula Brito ($42). tor a depender de um patrono ou do auxílio de um editor. Já
À longa ligação de Garnier com Machado de Assis é uma a poesia podia ser difundida de várias maneiras ao alcance
prova de que esse editor era capaz de reconhecer um real da capacidade financeira do autor. Na verdade, no Brasil de
talento literário num escritor que não fazia qualquer esforço meados do século xr1x (assim como na Roma Antiga!), os
para conquistar popularidade fácil e de que estava disposto a poetas tornavam-se conhecidos mais frequentemente atra-
apoiá-lo. Não que essa ligação tenha sido desvantajosa para vés dos recitais públicos do que da leitura. Escrever poesias
algum dos dois: sua primeira manifestação literária, Chry- também consome muito menos tempo do que escrever ro-
salidas (1864), vendeu oitocentos exemplares em um ano, e mances, o que torna mais fácil ser um poeta amador do que
todas as obras posteriores de Machado tiveram edições de um romancista em tempo parcial.
mil ou mais exemplares: boas marcas, se comparadas com os Outro aspecto importante de B. L. Garnier é o fato de ter
números citados por Werdet para os romances franceses**, empregado regularmente redatores-revisores qualificados
que, apenas uma década antes, não passavam de quinhen- para preparar para publicação textos da literatura brasilei-
tos exemplares, mesmo para os romances de Dumas e de ra dos primeiros tempos, tanto em prosa como em versos.
de Kock. Os acordos financeiros, bastante justos no início Usou extensamente o trabalho de Joaquim Norberto com
($r50 por exemplar de Chrysalidas, com 178 páginas, mais essa finalidade, ainda que, nessa área, seu primeiro trabalho
43 exemplares grátis), tornaram-se indiscutivelmente gene- publicado tenha sido produzido por outra editora: em 1861,
rosos quando ficou patente que as vendas eram certas: para Laemmert lançou a edição da poesia de José Bonifácio, o
Helena, um romance de 330 páginas, publicado em outubro Patriarca, preparada por Norberto. Daí em diante, prati-
de 1876, e vendido por 24000, Machado recebeu 600$000. camente de dois em dois anos, este intelectual preparava a
Como o autor manteve os direitos autorais, trata-se de um edição de alguma obra importante do passado, e todas para
pagamento magnânimo, qualquer que seja o padrão de jul- Garnier. À primeira foi Marília de Dirceu ($12), sendo a 32º
gamento, embora, é claro, ninguém possa esperar enriquecer edição dessa obra. Sobre essa edição, um catálogo da época,
com o recebimento de direitos autorais sobre apenas algu- do livreiro Garraux, de São Paulo, traz um texto elogioso
mas centenas de exemplares. Quincas Borba, publicado an- de dezoito linhas (numa lista em geral neutra), no qual se
teriormente em capítulos na revista quinzenal A Estação, afirma que “talvez não havia no Brasil livro mais popular”.
entre 1886 e 1891, e impresso em forma de livro de 433 Entre as edições posteriores de Norberto estão incluídas as
páginas, após rigorosa revisão, em novembro de 18971, foi Obras Poéticas de Silva Alvarenga, em dois volumes, publi-
contratado nas mesmas condições. cadas em 1864; as de Alvarenga Peixoto, em 1865; as Poe-
sias de Gonçalves Dias (falecido em 1864), em 1870; e as
Obras de Álvares de Azevedo, em três volumes, em 1873.
$63 LIVROS DE POESIA Garnier publicou também os poemas do próprio Norberto:
Flores entre Espinhos (1864).
À poesia continuava sendo um produto comercialmente im-
portante e Garnier foi um dos principais editores também
nesse campo. Assim, por exemplo, seu catálogo de 1865 OS LIVROS ESCOLARES $64
informa-nos que “no Rio de Janeiro, onde os livros geral-
mente se desfaziam em pó nas prateleiras das livrarias, os À petição de Garnier que reproduzimos em epígrafe deste
poemas de Bruno Seabra têm tido um grande êxito”. É me- capítulo menciona também “compendios para a instrucção
nos significativo, porém, para a história da literatura brasi- publica”. Os primeiros livros escolares brasileiros foram pu-
leira o fato de Garnier pagar direitos autorais aos poetas. O blicados pela Impressão Régia ($17), uma primeira tentativa
suscitada pelas guerras napoleônicas, que interromperam os
28. Edmond Werdet, De la librairie française, Paris, De-tu, 1860. suprimentos normais da Europa. Com o restabelecimento dos
242 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 243

intercâmbios, durante muitos anos pouca coisa ouvimos de Os dados mais antigos que obtivemos sobre a educação
livros escolares brasileiros. Não apenas o mercado era peque- brasileira estão no Annuario Politico, Historico e Estatístico
no demais para interessar a alguma editora nacional, como do Brasil para 1847, de Firmin Didot, e, infelizmente, são
também os métodos primitivos de ensino usados nas muitas muito incompletos. À cidade do Rio de Janeiro tinha então
escolas dispensavam inteiramente o uso de livros (cf. $92). 1352 crianças matriculadas nas escolas públicas (dezessete
Nas três primeiras décadas do século, o interesse do go- escolas para meninos e oito para meninas) e mais ou menos
verno havia-se voltado quase que exclusivamente para o quatro mil alunos em escolas privadas, de um total de 14300
ensino superior. Alhures falamos brevemente de alguns dos crianças em idade escolar. Minas Gerais tinha s 853 crianças
resultados desse interesse: a Academia Militar, no Rio de Ja- em escolas primárias públicas, 233 em escolas privadas
neiro ($17), as faculdades de medicina no Rio ($15) e em e 345 em escolas secundárias. São Paulo tinha 2615 crian-
Salvador ($25), e as faculdades de direito de Olinda ($51) e ças em escolas e 19 alunos em escolas normais. No Ceará,
de São Paulo ($97). À instrução secundária ainda era cons- havia so professores primários e um “lyceo” com 99 alunos.
tituída mais por “aulas avulsas” - classes independentes — Em Pernambuco, existiam 80 professores primários (dos
do que por escolas regulares. O ensino primário continuava quais 64 homens) e apenas sete professores secundários.
pouco desenvolvido. À emenda constitucional que se seguiu Nossa fonte não fornece dados sobre a Bahia, mas Robert
à abdicação de dom Pedro 1 (1834) transferiu para as assem- Avé-Lallemant, escrevendo sobre a situação desse estado
bleias das províncias (1834) a responsabilidade pela “instru- dez anos depois, registra 11792 alunos na escola primária e
ção pública” (isto é, os níveis primário e secundário) fora do 3 476 na secundária. Às primeiras estatísticas nacionais são
Rio de Janeiro. Paradoxalmente, isso parece ter estimulado relativas ao ano de 1869 e, mesmo então, apenas 120 mil
a ação do governo central: em 1837, foi criado o Colégio crianças brasileiras recebiam educação primária e menos de
Pedro 11 na capital, como uma escola secundária modelo, dez mil estavam nas escolas secundárias (cf. tabela 7, p. 844).
iniciativa seguida (como era a intenção) nas províncias mais Muitos dos livros escolares da Garnier foram escritos por
progressistas: Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco e Cea- J. M. de Macedo e pelo mais velho dos Fernandes Pinheiro
rá, por um rápido crescimento de instituições que procura- (Joaquim Caetano), entre eles o Curso Elementar de Litteratu-
vam imitar o modelo da corte. ra Nacional, de F Pinheiro (568 páginas, in-oitavo, 1862), que
Em 1850, Kidder e Fletcher queixavam-se da falta de deve ter sido o primeiro livro didático sobre literatura brasilei-
livros escolares produzidos no Brasil e adaptados às con- ra, ainda que a matéria seja tratada apenas numa parte de um
dições locais, o que, para eles, era um fator impeditivo do trabalho que cobre toda a literatura em língua portuguesa. No
progresso da educação nacional. Um dos poucos livros esco- entanto, o principal autor de livros didáticos da Garnier foi,
lares então existentes era o tradicional Lições de Eloquên- provavelmente, Felisberto Rodrigues Pereira de Carvalho, en-
cia, do padre Lopes Gama, em dois volumes, impresso, em tre cujas obras figuram Elementos de Grammatica Portugue-
1846, pela Typographia Imparcial de Paula Brito. À partir sa (1880), Selecta dos Authores Modernos (1881), Exercicios
dessa época, porém, começaram a surgir vários livros, en- de Lingua Portuguesa (1883), Exercicios de Estylo (1885),
comendados por seus autores para uso puramente local, e um Diccionario Grammatical Destinado a Auxiliar aos Es-
em muitas cidades livros escolares iguais a esse passaram a tudantes nos Exercicios de Analyse Etimologica e Logica da
ser, junto com os jornais, os produtos de tipografias locais. Lingua Portuguesa (378 páginas, 1886), Trechos Escolhidos
Nosso relato da impressão em São Luís do Maranhão ($45) para os Exercicios de Analyse Logica (1887), Arythmetica das
fornece alguns exemplos típicos; outros casos nas províncias Escolas Primarias, Lições de Historia Natural e Tratado de
são citados no capítulo 7. Contudo, o mercado ainda era ex- Methodologia (todos de 1888), Exercicios de Aritbmetica e
tremamente pequeno quando Baptiste Garnier se tornou o Geometria (1890?), Instrucção Civil e Moral (2º edição de
primeiro editor a envidar um verdadeiro esforço para aten- 1892) e Primeiro e Segundo Livro de Leitura (1892). Pratica-
der às necessidades de livros escolares brasileiros e assumir mente todos eles destinavam-se à escola primária. Como ex-
um risco comercial por sua própria iniciativa. plicamos no $92, no final da década de 1880, a qualidade da
244 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 245
educação básica, pelo menos nas províncias mais ricas, tinha OS MÉTODOS COMERCIAIS $66
melhorado suficientemente para criar um mercado viável de
livros de nível elementar. E, depois disso, o mercado da esco- É a Garnier que devemos o chamado formato francês, ao
la secundária, ainda muito limitado, tornou-se muito menos qual a maioria dos livros brasileiros se ajustou durante ses-
interessante para uma editora. Pelo fato de os livros escola- senta anos ou mais. Esse formato existia em dois tamanhos:
res não serem objetos muito duráveis, não sabemos quantos in-oitavo (16,5 x 10,5 cm), adotado principalmente nos pri-
compêndios de Felisberto de Carvalho, além do dicionário, meiros anos de seu trabalho editorial, e outro muito mais
tiveram a marca editorial da Garnier, mas sabemos que ele frequente, o longo in-doze (17,5 x 11,0 cm). Segundo Senna,
acabou trocando a editora — provavelmente após a morte de os dois surgiram por imitação da firma parisiense Calmann-
Baptiste — por uma firma que rapidamente se especializou no -Lévy (ou, como era chamada até maio de 1875, Michel Lévy
mercado do livro escolar: a Francisco Alves (capítulo 11). Frêres). À adequação a esses padrões generalizou-se de tal
Lajolo e Zilbermanºs, falando dos direitos de 20% pagos modo que, pessoalmente, não encontramos um único ro-
a J. €. Fernandes Pinheiro para cada edição que a Garnier mance do Brasil desse período que não se encaixe num desses
editou, sugere que já naqueles tempos o livro didático era dois formatos. Parece também que era de rigueur um roman-
muito mais rentável do que o de literatura. ce limitar-se a um único volume. Uma das poucas exceções
parece ter sido As Minas de Prata, de José de Alencar, publi-
cado em seis volumes em sua primeira edição de 1865-1866,
S65 AS TRADUÇÕES e reduzido para três na segunda edição (1877), ambas da
Garnier. Embora variações na paginação, no corpo da com-
No conjunto, Baptiste Louis Garnier tem a seu crédito a pu- posição, na mancha tipográfica etc. permitissem uma razoá-
blicação de 655 obras de autores brasileiros. Isso representa vel margem de liberdade dentro desse padrão (dependendo
a média de quase uma obra por quinzena durante todo o da estimativa que o editor fazia da tolerância do público), o
período em que esteve ativo como editor (grosso modo, de formato francês deve ter exercido tanta influência na deter-
1860 a 1890). Seu programa de traduções foi um acréscimo a minação do tamanho do romance médio no Brasil quanto a
este trabalho, e muito mais amplo. Os livros franceses cons- insistência da indústria editorial inglesa da época no roman-
tituíram o número quase total das traduções, representadas, ce em três volumes (three-decker). As obras brasileiras de
em sua maior parte, pelos romancistas populares: Dumas ficção dessa época possuem entre setenta mil palavras (por
pai, Victor Hugo, Montepin, Octave Feuillet, Arsêne Hous- exemplo, Iaiá Garcia, de Machado de Ássis) e pouco mais de
saye, Émile Gaboriau e Júlio Verne, o mais rentável de todos. cem mil (por exemplo, O Mulato, de Aluísio de Azevedo); a
Entre os livros que não eram de ficção, encontramos muitos extensão do three-decker inglês oscila entre rso mil e 2so
de ciência popular, campo em que os franceses se destaca- mil palavras.
vam na época: Louis Figuier, o naturalista Edmond Perrier, As exigências dos redatores e diretores de jornais com
o astrônomo Camille Flammarion (irmão do editor) e, em relação ao roman-feuilleton (número e tamanho dos “capí-
medicina, Auguste Debray. O Self-help, de Samuel Smiles, tulos”) também eram pertinentes. Embora alguns dos primei-
vendeu bem (com o título de O Poder da Vontade). No en- ros folhetins tenham sido muito curtos, resultando em meros
tanto, mesmo esse livro foi traduzido (por Antônio José Fer- folhetos de trinta ou quarenta páginas na forma de livro (Cin-
nandes dos Reis) a partir da edição francesa e, curiosamente, co Minutos, de Alencar, quando publicado em série, durou
por sugestão do próprio Smiles — por ser mais fácil chegar a apenas uma semana e, para que fosse publicado em forma de
uma acurada versão portuguesa a partir da edição francesa. livro, foi preciso juntá-lo com A Viuvinha), em pouco tempo
Baptiste Louis Garnier foi responsável também pela apre- tornou-se normal exigir um tamanho suficiente para estender
sentação do espírita Allan Kardec ao público brasileiro. a publicação a um ano. Memórias de um Sargento de Milícias,
de Manuel Antônio de Almeida, o primeiro folhetim brasi-
29. Lajolo e Zilberman, op. cit., p. 97. leiro de destaque, foi publicado no Correio Mercantil de 27
246 Baptiste Louis Garnier Baptiste Louis Garnier 247
de junho de 1852 a 31 de julho de 1853, aparecendo como que constitui uma indicação quase certa de que o número de
livro no ano seguinte, com algumas revisões feitas pelo autor, exemplares de uma edição estava sendo determinado mais
mas “mediocremente impresso na tipografia de Maximiliano pelo custo (e suas implicações no preço de capa) do que pela
Gomes Ribeiro, no Rio”3º, o que pode explicar seu “notável procura (em termos de prováveis compradores por ano).
fracasso”! nesse formato. À seriação, no mesmo jornal, de Tiragens de mil exemplares (que parecem ter sido sua
Os Moicanos de Paris, de Dumas pai, traduzido por Augusto norma) eram sem dúvida maiores do que as de outras nações
Emílio Zaluar, durou de 1854 a 1856. latino-americanas com mercados menores. Às edições me-
Foi Garnier quem introduziu também os preços de capa xicanas da época raramente ultrapassavam os quinhentos
fixos, com base na teoria de que todo livro tinha seu próprio exemplares, e L. E. Joyce, descrevendo a situação do Chile
e limitado mercado. Como a demanda era muito pequena já no começo da terceira década do século xx, nos diz que as
no Brasil, a maioria dos livros não teriam mais de trezen- novas obras que não eram de ficção limitavam-se a edições
tos compradores por ano (alegava ele), qualquer que fosse o de cerca de duzentos exemplares e mesmo um romancista
preço, e mesmo livros de boa vendagem raramente supera- consagrado não ousava ultrapassar uma tiragem de qui-
vam seiscentos ou oitocentos exemplares por ano. Como o nhentos exemplares — e ficava feliz quando conseguia ven-
catálogo da Casa Garraux, da então pequena e provinciana der a metade. Todavia, mil exemplares também eram, para
São Paulo, apresenta preços idênticos aos do catálogo do muitos tipos de livro, uma grande edição, mesmo para os pa-
mesmo Garnier, parece que a ideia de um preço de capa fixo drões europeus contemporâneos. Inclusive em Paris, como
foi amplamente aceita desde logo. apontamos anteriormente ($62), relativamente pouco tem-
À lenta marcha das vendas restringia naturalmente a ti- po atrás, edições de quinhentos exemplares eram normais
ragem, o que significava não apenas uma longa espera para para os melhores romancistas. Podemos também citar como
recuperar o investimento feito, como também um alto custo exemplo, para uma comparação com a Inglaterra, a editora
unitário de produção. Afirma E Conceição:*: literária Bodley Head, que publicou 49 títulos na década de
1890, dos quais apenas quinze alcançaram ou excederam os
As edições são insignificantes, raramente excedem a mil exem- mil exemplares, e dez deles tiveram uma tiragem de menos
plares, o que torna o livro mais caro so p.c. Com pequenas exce- de quinhentas cópias. Mesmo em 1930, a primeira edição de
ções, esse mesmo limitado número de exemplares só em um prazo um romance inglês era, em média, de 750 a mil exemplares.
muito longo é consumido, tendo acontecido que obras importan-
tíssimas até de interesse local em dez anos estejam ainda em sua
primeira edição! A FORTUNA DE BAPTISTE LOUIS GARNIER S67
Posteriormente ($$175 e 197), voltaremos ao assunto da Embora Baptiste Louis permanecesse no controle ativo de
relação entre custos de produção, tiragem e preços de capa. seus negócios até o fim da vida, uma saúde precária afetou
Nossa suspeita é a de que, na realidade, Garnier tenha sido sua energia nos seus últimos anos. Em 1891, entabulou ne-
forçado pelos altos custos brasileiros a imprimir edições maio- gociações para a venda de sua empresa, o que não se con-
res do que as que desejaria. Um exemplo extremo é a Historia cretizou devido ao preço oferecido. Segundo Lima Barbosa,
do Brazil, de Southey (traduzida por Luiz Joaquim de Olivei- citando um artigo no Jornal do Commercio de 14 de junho
ra e Castro), publicada em 1862, que, como a de Varnhagen, de 1908, teria recebido uma oferta equivalente a três mi-
editada por Laemmert, levou vinte anos para esgotar-se, O lhões de francos, cerca da metade da avaliação de sua fortu-
na por ocasião de sua morte. Diz Senna” que a oferta foi de
30. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 2. ed., São Pau- 1:5008000 em dinheiro e 1:000$000 em ações da compa-
lo, Nacional, 1975, p. 87. nhia que seria formada para assumir o controle da empresa,
31. Lajolo e Zilberman, op. cit., p. 19.
32. E Conceição, op. cit. 33. Ernesto Senna, op. cit.
248 Baptiste Louis Garnier

mas parece que os mil-réis foram transcritos errada


mente
como réis! Machado de Assis sugere que B. L. Garnie
r se tor
nara muito viciado no trabalho para poder aposentar-se; “()
gosto do trabalho, um gosto que se transformou em
pena,
porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôd
e mais:
o instrumento da riqueza era também o do castigo”M,
Garnier faleceu três anos depois, em 1º de outubro
de 1 894,
e, após o inventário, a firma passou para o irmão Fra
nçois:
-Hippolyte, que residia em Paris, voltando assim à condição
original de filial, no Rio, da Garnier Frêres. Como tal,
será
objeto do capítulo 12.

Laemmert

34. Machado de Assis, Páginas Recolhidas, op. cit.


A inexistência de proteção internacional
dos direitos autorais foi a causa de nossa
prosperidade, e o problema das edições
piratas [...] foi [...] invariavelmente resolvido
com base no princípio segundo o qual
“basta existir para ser legítimo”.

De um empregado inglês do editor


parisiense de sir Walter Scott em 1828'

LOMBAERTS $68

Nem todos os estrangeiros que se dedicavam ao comércio


de livros no Rio de Janeiro eram franceses. A Casa Crashley,
por exemplo, foi iniciada por um inglês que importava cai-
xões para seus compatriotas menos afortunados e que, aos
poucos, mudou seu negócio para a importação de material
de leitura. À livraria, que fechou as portas anos atrás, parece
que nunca se arriscou a fazer edições.
Outra livraria de propriedade de estrangeiros que quase
nunca editou livros, mas realizou trabalhos de impressão por en-
comenda, foi a do belga Jean Baptiste Lombaerts (1821-1875)
e seu filho Henri Gustave Lombaerts (1845-1897). Sua firma
era uma importante encadernadora e, na opinião de Orlan-
do da Costa Ferreira, “a maior das litografias montadas na
época”>, Como livreiros, trabalhavam principalmente com

1. C.M. Smith, The Working-man's Way in the World, Londres, s.e.,


1857, pp. 59-60, apud Marjorie Plant, The English Book Trade: An
Economic History of the Making and Sale of Books, 3. ed., Londres,
Allen « Unwin, 1974, PP. 434-435.
2. Orlando da Costa Ferreira, Imagem e Letra: Introdução à Biblio-
grafia Brasileira, São Paulo, Melhoramentos, 1976, p. 234.
252 Laemmert Laemmert 253

revistas e jornais importados, na rua do Ourives, nº 17, desde Norberto, Modulações Poéticas, e (como mencionado) as
1848 até 1904, época em que a loja foi demolida para dar duas primeiras edições (1844 e 1845) de À Moreninha, de
lugar à nova avenida Central (hoje Rio Branco). De 1871 a Joaquim Manuel de Macedo. Sob a direção de Leuzinger,
1879, produziram um suplemento em português para acom- tornou-se uma das tipografias mais bem equipadas do país
panhar um de seus principais periódicos importados, a revis- e veio a desempenhar notável papel no progresso da impres-
ta francesa La Saison. Depois, a partir de 1879, passaram a são no Brasil. Sofreu constantes modernizações com a im-
imprimir sua própria edição brasileira da revista, com o título portação dos mais recentes equipamentos da Alemanha e
de A Estação. À revista destacou-se pelo suplemento literário, dos Estados Unidos e com o recrutamento de artesãos quali-
que publicou um número apreciável de colaborações de Ma- ficados. Por volta do final do século, continua sendo a prefe-
chado de Assis; entre elas, muitas de suas Histórias sem Data rida do governo em detrimento de sua própria Typographia
e a seriação do romance Ouincas Borba ($62). Essas duas Nacional: imprimiu, por exemplo, o Catalogo da Exposi-
obras foram reimpressas por Lombaerts, na forma de livro, ção de Historia do Brazil, de Ramiz Galvão, publicado pela
para a Garnier, Pelo menos Quincas Borba foi produzido sob Biblioteca Nacional, em 1881-1883. Alfredo d"Escragnolle
a atenta supervisão do autor, que tinha adquirido profundo Taunay, após a infeliz experiência de ter a primeira edição
conhecimento de tipografia em seus dias de aprendiz na Typo- de seu romance Inocência impressa pela Typographia Na-
graphia Nacional. Lombaerts executou muitos outros con- cional, teve seu texto revisto e cuidadosamente impresso por
tratos de impressão, tanto para editoras como para autores. Leuzinger, “num elegante volume datado de 1884”>.
Magalhães de Azeredo refere-se a negociações, entabuladas No que concerne à tipologia, a influência da firma talvez
em 1892, em que lhe foi pedida a soma de 1:0008000 por uma não tenha sido das mais felizes. Por ser a principal intro-
edição de mil exemplares. dutora das novas famílias alemãs de tipos que inundaram
o mercado mundial na passagem do século, deve ter con-
tribuído amplamente para o enfraquecimento da tradição
$69 LEUZINGER nacional no tocante ao padrão de arquitetura tipográfica,
tão veementemente lastimado por Santa Cruz ($32).
De importância relativamente maior no setor de livros foi À participação de Leuzinger no desenvolvimento, no Bra-
a firma suíça de Leuzinger, fundada por George Leuzinger sil, da gravação em madeira (xilogravura) foi mais construti-
(1813-1892), do cantão de Glarus. Chegou ao Rio em 1832 va. Tanto a gravação em metal como a litografia, que a subs-
e, em julho de 1840, já havia economizado o suficiente para tituiu em larga escala no começo do século x1x ($33), tinham
adquirir a mais antiga papelaria da cidade, Ao Livro Verme- a desvantagem de serem incompatíveis com a impressão ti-
lho, de Jean Charles Bouvier, estabelecida na rua do Ouvi- pográfica, enquanto as tradicionais xilogravuras não podiam
dor, nº 31 (posteriormente renumerado para 33). À papela- reproduzir ilustrações para livros com delicadeza de detalhes.
ria continuou sendo, por muito tempo, o principal negócio Quando se percebeu que, gravando o desenho sobre madeira
de Leuzinger; em 1875, ainda descrevia seu estabelecimento cortada no sentido perpendicular da fibra — técnica popula-
como a “loja de papel”. Mas uma papelaria envolvia livros rizada por Thomas Bewick, um ilustrador inglês, no fim do
de escrituração mercantil, o que o levou a fazer encaderna- século XVIII = seria possível superar essa desvantagem, a nova
ções e a transformar sua firma, nos últimos anos do século, técnica passou rapidamente a ser empregada na maioria das
na mais importante encadernadora do Brasil, produzindo ilustrações de livros e jornais até o aperfeiçoamento dos mé-
trabalhos de padrão superior aos melhores europeus e ga- todos fotográficos (fotogravura e autotipia, ou clichê a meio-
rantindo, assim, contratos regulares para encadernar as pró- -tom) na década de 1880. Por volta de 1843, Leuzinger trouxe
prias publicações do governo nacional. da Alemanha dois talentosos gravadores em madeira, Eduard
Em 1852, Leuzinger adquiriu a Typographia Franceza,
fundada, em 1837, por Jean Soleil Saint-Amand, e que ha- 3. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, 2. ed.; São Paulo,
via publicado, em 1841, os primeiros poemas de Joaquim Nacional, 1975, p. 88.
254 Laemmert Laemmert 255

Hiislemann e R. Rollenberg. Infelizmente, Rollenberg morreu de B. L. Garnier e, no intervalo entre 1893, data da morte de
na grande epidemia de febre amarela de 1850 e Hiislemann B. L. Garnier, e a passagem do século, quando Hippolyte
retornou para a Europa no mesmo ano, não antes de deixar no Garnier decidiu revitalizar sua filial do Rio, tornou-se a
Brasil vários aprendizes bem treinados. Atribui-se a este ramo principal casa editora brasileira. | o
dos negócios de Leuzinger a introdução, no Brasil, dos car-
— Na verdade, a Laemmert havia-se estabelecido há mui-
tôes-postais ilustrados, os quais, por sua vez, encorajaram-no
to mais tempo do que a Livraria Garnier, pois suas origens
a aventurar-se na fotografia. Foi ele também o responsável remontam a 1827, data da abertura da agência conjunta |
pelas cinquenta e quatro xilogravuras que ilustraram o livro por Bossange e Aillaud (mencionada, de passagem, no $55).
Journey in Brazil (1868), do cientista viageiro Louis Agassiz € Eduard Laemmert (nascido em ro de agosto de 1806) e seu
de sua esposa norte-americana, Elizabeth Carey. irmão Heinrich (nascido em 27 de outubro de 1812) eram
Talvez o fato de serem conterrâneos tenha aproximado filhos de E W. Laemmert, um clérigo protestante de Rosen-
Louis Agassiz e Leuzinger, embora, na opinião de Melo Mo-
berg, no grão-ducado de Baden, que os educou em go nas
rais Filho, Leuzinger tenha conhecido quase todos os visitan- línguas antigas e |...] os guiou em outros estudos a q
tes proeminentes de língua francesa e alemã que chegaram dos para abrir [...] a carreira comercial 5, Quando os a
ao Rio na metade do século. Entre estes, destaca-se o arqui- completaram 14 anos, foram enviados para a capital duca ;
duque Maximiliano da Áustria, cuja curta visita, em 1860,
Karlsruhe, para um aprendizado no comércio de livros:
despertou-lhe, pela primeira vez, a paixão pelo Novo Mundo, Eduard foi trabalhar com o impressor e livreiro Gottlieb
o que acabaria por levá-lo à morte, sete anos mais tarde, em
Braun, e Heinrich com um livreiro chamado Marx.
Querétaro, como imperador destronado do México. Outro Em nenhum lugar da Europa a hegemonia cultural da
visitante real foi o príncipe de Joinville, terceiro filho de Louis
França era tão marcante quanto nos pequenos principados
Philippe, roi des français, que visitou o Brasil em 1 842-1843,
além do Reno, e, destes, nenhum estava tão exposto à in-
para casar-se com a princesa Francisca, irmã de dom Pedro 11.
fluência dessa cultura quanto seu vizinho próximo, Baden.
De maior importância bibliográfica foi a visita do jornalista
Por isso, não deve causar estranheza que, em 18 25, um am-
republicano exilado Charles Ribeyrolles, que aqui chegou, bicioso livreiro assalariado, imediatamente após terminar
em 1858, para preparar o texto que acompanharia o álbum
seus cinco anos de aprendizagem em Karlsruhe, tenha parti-
Brésil pittoresque, de Victor Frond*, e que morreu de febre do para Paris. Lá, Eduard Laemmert conseguiu um emprego
amarela dez dias antes de embarcar de volta para a Europa.
com Martin Bossange, ou, melhor, com Hector Bossange,
O autor mais importante a ser editado regularmente por pois parece que já então o filho era a figura dominante na
Leuzinger foi o historiador Capistrano de Abreu. Mesmo firma que Martin (nascido em 1766) fundara em 1785.
após sua morte, suas obras continúaram a ser confiadas à fir-
ma Leuzinger pela Sociedade Capistrano de Abreu até 1930,
praticamente quando a firma deixou de cuidar de edições. SOUZA LAEMMERT $71
Como tipografia, continuou com o nome de Gráfica Ouvidor.
Menos de dois anos depois, Bossange decidiu abrir uma filial
no Rio de Janeiro, uma sociedade entre Eduard Laemmert,
$70 E. & H. LAEMMERT: O COMEÇO
representante de Bossange, e um português chamado Souza,
que representava J. P. Aillaud (cf. S94). Aillaud era outro
Além de Leuzinger e Lombaerts, havia uma terceira firma com
editor-livreiro francês, com boas ligações com Os portugue-
um nome algo parecido, mas de importância muito maior:
ses e grande interesse pela língua portuguesa, além de ter-se
Laemmert. Foi durante muito tempo a principal concorrente

5. Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Furia


4. Victor Frond, Le Brésil pittoresque, Rio de Janeiro, s.e., 1859.
guez, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858-1923, vol. 10, p. 14, verbete
Trad. brasileira: Brasil Pitoresco, 2. ed., São Paulo, Martins, 1976.
Laemmert, Henrique.
256 Laemmert
Laemmert 257
destacado, entre outras coisas, por promover a tradução de
sir Walter Scott. O tradutor foi Caetano Lopes de Moura
Essa demora de três anos deveu-se provavelmente a uma
característica relutância da parte de Henrique (como passou
um mestiço baiano que estudara medicina, servira no exér-
cito de Napoleão e radicara-se depois em Portugal, onde
a chamar-se) a assumir compromissos muito depressa. Como
ocorre frequentemente em parcerias bem-sucedidas (Chapman
depois de ter perdido tudo na Guerra Civil Portuguesa, pas-
& Hall, na Inglaterra, no século x1x, Octalles e Monteiro Lo-
sou a dedicar-se a traduções, a vinte francos por trinta mil
bato, ou Bertaso e Érico Veríssimo, no Brasil, no século xx), as
palavras. Além dos vinte e quatro volumes de Scott, Caetano
personalidades dos sócios eram muito diferentes e, em virtude
traduziu Fenimore Cooper (entre outros) e escreveu livr
os da peculiar combinação de faro literário e viabilidade comer-
escolares e outras obras.
cial que constitui o negócio editorial, complementaram-se de
Diz muito do caráter de Eduard Laemmert o fato de
maneira admirável. Eduardo (o antes Eduard), enérgico, ousa-
Bossange ter confiado tal responsabilidade a um jovem de
do, artístico — e, segundo um comentário maldoso, “insinuan-
apenas 21 anos de idade e depois de tão pouco tempo como
seu empregado. À nova firma estabeleceu-se na rua dos La- te, ativo, intrigante” — era a fonte de energia, ideias e visão da
firma, o componente “Ariel”; Henrique, reservado, cauteloso,
toeiros — hoje Gonçalves Dias — no nº 88, com o nome de
prático, era “Caliban”, o contador metódico da firma.
Souza Laemmert, vendedores de “obras francesas modernas
de filosofia, administração, artes, ciências, poesias”*.
Em 1833, expirado o contrato da sociedade, Eduard
Laemmert decidiu permanecer no Brasil. Foi atraído, segun-
ATYPOGRAPHIA UNIVERSAL $72
do parece, pelo liberalismo do regime e, principalmente, pela
ausência de censura. Em pouco tempo, dominou a língua
O êxito com a venda de livros lhes permitiu, em meados da
década de 1840, deixar de lado as músicas, embora tenham
portuguesa o suficiente para tornar-se um escritor menor
continuado, por algum tempo, com outras linhas secun-
por sua própria conta, casou-se com uma jovem dama bra-
sileira “pertencente a uma família distincta”7 — na verdade dárias, especialmente água de colônia e água de soda! Em
pouco tempo, começaram a editar e, em 1839, iniciaram a
era filha de um deputado — e usou suas modestas economias
publicação de sua Folhinha anual, uma miscelânea literária
(e o substancial dote de sua esposa) para iniciar o próprio
organizada por Eduardo, que contribuiu com muito mate-
negócio, na rua da Quitanda, nº 77: a Livraria Universal.
rial de sua própria autoria. A principal linha editorial era
Nesse entretempo, Heinrich tinha passado, em 1832,
constituída por guias de bolso e outras publicações seme-
para “a afamada casa de J. G. Cotta em Stuttgart”?, à qual
lhantes, produzidas rapidamente para atender à demanda do
dedicou três anos de trabalho muito satisfatório até que
mercado. Isso os levou, em cinco anos, a publicar a primeira
Eduard o convenceu a vir para o Brasil: parece que Eduard
edição do Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial
voltou à Europa com esse objetivo. Heinrich chegou ao país
vindo de Amsterdã, no momento em que o irmão comple-
da Corte e Provincia do Rio de Janeiro. Ainda que não tenha
sido a primeira de tais publicações — guias semelhantes da
tava 29 anos de idade, mas, embora tenham começado a
cidade haviam existido desde o final do século anterior —
trabalhar juntos imediatamente, somente em 1838 é que
esse Almanack Laemmert em breve superou todos os con-
constituíram uma sociedade com o novo nome de “E. « H.
correntes, sobretudo por ser muito mais completo. Após uns
Laemmert, mercadores de livros e de música”.
poucos anos, foi ampliado de forma a abranger informações
sobre todo o Império, até que, em 1875, cada edição anual
6. Delso Renault, O Rio Antigo nos Anúncios dos Jornais: 1808-18 50 estendia-se a cerca de 1 700 páginas. Nessa época, a firma
Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, Pp. 75.
, já se mudara para a rua do Ouvidor: em 1868, tinham-se
7. Olegário Herculano de Aquino e Castro, “Discurso ao Instituto His- instalado no nº 68 dessa rua.
tórico e Geographico Brasileiro, 1880”, Almanack Laemmert, Rio de
Janeiro, Typographia Universal de Laemmert, 1881.
8. Innocencio Francisco da Silva, op. cit. 9. Edição Comemorativa do Centenário do Jornal do Commercio, org.
Victor Viana, Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1927, p. 105.
258 Laemmert Laemmert 259

No decorrer do ano de 1837, Eduardo decidiu implantar de encadernação, trabalhavam cinquenta homens, que pro-
um setor gráfico. Encomendou dois prelos na Alemanha e duziam por mês de quatro a cinco mil livros encadernados
comprou outro no Brasil, de Gueffier (um dos impressores e de treze a catorze mil brochuras. Em 9 de julho de 1862,0
franceses do Rio destacados por Rubens Borba de Moraes'º próprio imperador concedeu à oficina a honra de uma visita
por seu gosto e competência), que concordou em trabalhar oficial. O mais importante, porém, é que, aparentemente, os
para a firma Laemmert. Entrementes, Eduardo voltou a próprios operários aprovavam as instalações da tipografia,
Paris por três meses para aprender a arte da tipografia nas pois o terceiro número de O Typographo, órgão dos gráficos
principais casas de impressão da cidade, o que deu origem em greve, afirmava, no final de um artigo que atacava as más
ao boato de que pretendesse iniciar a publicação de um jor- condições de trabalho na indústria tipográfica (especialmen-
nal, A oficina tipográfica de Laemmert foi inaugurada a 2 te nas oficinas de jornais):
de janeiro de 1838, na rua do Lavradio, nº 71, Com O nome
de Typographia Universal, para combinar com o da livra- Sobre a typographia dos Senhores Laemmert não podemos dizer
ria. O faturamento cresceu de 6:788$950, em 1840, para muito pela falta de espaço que o nosso jornal sente; não obstante,
58:756$380, em 1850; e z14:511$702, em 1861, cifras somos levados a dizer alguma coisa, ainda que sejamos breves.
que podem ser comparadas com o valor dos livros impor- Essa oficina é por sem duvida a que se acha hoje em melhores
tados pelo Brasil durante o ano fiscal 1842/184 3, OU seja proporções no Rio de Janeiro; quanto ás condições hygienicas
103:4635661 (isto é, antes que boa parte das impressões que possue o seu pessoal é bom e mantem-se ali 80 empregados
brasileiras fossem feitas no exterior e quando as importa- mais ou menos,
ções eram taxadas com um pesado imposto de 20%). Em A officina de encadernação é a melhor desta côrte, e isso pro-
I 842, aos dois irmãos uniu-se o cunhado, Carlos Guilherme vam os trabalhos que d'ahi tem sahido, e sendo as machinas de
Haring, nascido na Alemanha em 1813, que se tornou o ge- impressão movidas a vapor.
rente da nova tipografia e, mais tarde, do Almanack, do qual A officina typographica é das mais bem montadas que hoje
foi supervisor de 1857 até sua morte, em 1871. Além disso, existem nesta côrte e o seu pessoal é excellente. Comprovam esta
também escreveu livros sobre a maçonaria. Innocencio da asserção as elegantes obras que existem que tem apparecido ahi
Silva descreve a oficina tipográfica, em 1859, sob a gerên- feitas, para as quaes ha concorrido muito trabalho artistico de que
cia de Haring, como “uma vastíssima casa, expressamente são dotados os typographos Pinheiro, Chaviz, Brum e outros.
construída [...] bem clara e arejada, onde trabalhavam mais Desejamos que essa officina prospere e possa por muitos annos
de 120 pessoas”. Quarenta compositores “ministravam tra- garantir aos artistas typographicos esse unico recurso de que os
balho para quatro prelos à Stanhope, e duas máquinas de alenta o trabalho".
movimento circular construídas pelo sistema de Koenig &
Bauer [que haviam inventado o primeiro prelo prático mo- O Almanack Laemmert nos. oferece uma descrição deta-
vido a vapor em 1810]. À produção total era de mil folhas lhada do pessoal da oficina tipográfica tal como operava vinte
por dia e, nos primeiros nove meses de 18 59, produziram e cinco anos depois. Havia, no total, 124 empregados, dos
“78 obras diversas de maior tomo e 49 brochuras, contan- quais cinco se ocupavam com a leitura das provas, quarenta
do-se entre estas a célebre [...] Folhinha de Laemmert, o pe- e dois com a composição, dez com a impressão, cinquenta e
ríódico bimestral Revista dos Tribunais (3000 exemplares) dois com a encadernação, cinco com estereotipia e clicheria
outro dito trimestral Revista Brasileira...”“", No ano ante- e quatro na administração e almoxarifado. Estava sendo
rior, fora introduzida a estereotipia e, numa oficina anexa construído um departamento para a produção de autotipias
(um processo novo, aperfeiçoado por Georg Meisenbach em
10. Rubens Borba de Moraes, O Bibliófilo Aprendiz, São Paulo, Na- 1882, de reprodução de fotografias para a ilustração de li-
cional, 1965, p. 73. ,
II. Innocencio Francisco da Silva, op. cit., vol, 9, Pp. 36, verbete Ha-
ring, Carlos Guilherme. 12. O Typographo, vol. 1,n. 3, 13 nov. 1867.
260 Laemmert Laemmert 261

vros), com máquinas e pessoal que chegariam de Viena e Paris entanto, acabou por concordar com o intento de Azeredo,
em janeiro de 1885. mas, então, este já havia partido para a Europa, de modo
Sete anos mais tarde, em 1891, as oficinas possuíam má- que o livro foi impresso no Porto, em 1898, pela Empre-
quinas que podiam imprimir simultaneamente em duas cores za Litteraria e Typographica. Evidentemente, a Laemmert
e outras capazes de imprimir, ao mesmo tempo, a frente e o ficou satisfeita com o resultado financeiro e tipográfico, pois
verso da folha. Tinham sua própria fundição de tipos e esta- acabaram firmando acordo semelhante para a publicação
vam até imprimindo papel-moeda para o estado de São Paulo. do segundo livro de Azeredo, Baladas e Fantasias, impresso
- O rasgado elogio publicado em O Typographo parece- em 1899 pela Centenari (o autor estava então em Roma),
ria, portanto, plenamente justificado, mas é o caso de per- embora o pobre Azeredo tivesse tido enorme trabalho para
guntar até que ponto seu possível exagero não se deve ao conseguir que pagassem o impressor italiano.
desejo de estabelecer um contraste com a Garnier, uma vez
que as observações acima citadas foram seguidas, três se-
manas depois, do ataque à Garnier que reproduzimos no PUBLICAÇÕES LAEMMERT DE HISTÓRIA, CIÊNCIA
S57.A razão pela qual Laemmert, ao contrário de seus con- E LITERATURA $73
correntes, insistia em manter uma oficina tipográfica tão
grande estava ligada, certamente, ao Almanack. Imprimi-lo O caso das obras de Azeredo foi excepcional. Todas as ou-
em oficina própria assegurava a pronta publicação de cada tras edições da firma foram feitas em sua própria tipografia,
edição anual, com a possibilidade de revisão até o último chegando a um total bastante considerável: em fins da déca-
momento da produção. Isso lhes permitia também manter da de 1850, a Laemmert tinha produzido 2.50 títulos; no co-
permanentemente em pé a composição, um bom arranjo meço da década de 1860, quase 400; em 1874, mais de 500
econômico para um trabalho desse tipo, onde, enquanto e, quando a firma abandonou a edição de livros, em 1909,
O grosso da matéria permanecia inalterado ano após ano havia produzido um total de 1440 obras de autores brasi-
havia uma necessidade progressiva de pequenas correções. leiros, além de cerca de 400 traduções do inglês, do francês,
Tendo decidido manter a tipografia por causa do Almanack do alemão e do italiano. Uma leitura cuidadosa do catálogo
era economicamente sensato usar sua capacidade óciosa da Garraux'* para 1883 revela até que ponto os Laemmert
para imprimir as demais publicações da firma. e seu concorrente Garnier dominaram as edições brasilei-
“Mesmo assim, parece que seus custos não eram compe- ras contemporâneas. À seção portuguesa desse catálogo tem
titivos com aqueles de impressões feitas no exterior, mesmo aproximadamente 7 500 itens, dos quais quase 50% trazem
em outros países da América Latina. Em janeiro de 1896 sinetes editoriais e colofões cariocas. Destes, as publicações
Magalhães de Azeredo entabulou negociações com O istave da Garnier constituem quase a metade e as da Laemmert
Massow, da Laemmert, para a publicação de seu Procella- pouco mais de um terço. Bem abaixo destes dois, aparece
rias, após uma edição feita por Dornalech y Reyes, de Mon- Serafim José Alves com 6%, vindo em seguida Nicolau Alves
tevidéu, quando o autor lá estivera. Era desejo de Azeredo com 4%. Guimarães, Leuzinger, Cruz Coutinho e J. P. Perei-
acompanhar pari passu todo o trabalho de impressão de sua ra Dias, as outras firmas cujos nomes aparecem com alguma
obra. Seriam “mil exemplares de 300 paginas, em optimo frequência, aparecem com cerca de 2% cada uma.
papel, com typo e frontispício escolhidos por mim, 400 pe- Todavia, a Garnier e a Laemmert não podem ser consi-
SOS Ouro, isto é, ao cambio de hoje, mais ou menos 2 contos deradas competidoras diretas. Desde o início, seus interesses
de réis [...] preço [...] immensamente inferior ao que no Rio tenderam a divergir o suficiente para criar uma divisão de
se offereceria”'3. A princípio, Massow relutou em permitir a facto do mercado. A Garnier concentrou-se em literatura e
um autor a supervisão da impressão de sua própria obra; no nos escritores franceses da moda que escreviam sobre ciên-
I3. Carmelo Virgilio (org.), Correspondência de Machado de Assis
14. Catálogo da Livraria Académica da Casa Garraux, São Paulo,
com Magalhães de Azeredo, Rio de Janeiro, INL, 1969, p. 78.
Garraux, [18832].

v
262 Laemmert Laemmert 263

cia popular ($65). Mesmo que tenha publicado alguns livros este mercado desguarnecido, a Laemmert não fez grandes
de história (entre eles a notável Historia do Brasil [1862], de esforços para explorá-lo, embora tenha editado o novo livro
Robert Southey, traduzida por Luiz Joaquim de Oliveira de Machado de Assis, Várias Histórias (1896), e alcançado o
e Castro e cuidada por J. C. Fernandes Pinheiro, em seis maior êxito literário desse mesmo ano, com Flor de Sangue,
volumes, e a História da Fundação do Império Brasileiro de Valentim Magalhães. |
[1864-1868], de Pereira da Silva, em sete volumes, com uma A principal editora brasileira no campo da literatura, na
segunda edição em 1870-1877, em três volumes), a história década de 1890, foi de fato a Livraria Moderna, de Domin-
e a ciência séria eram objeto, principalmente, do interesse gos Magalhães e Cia. No entanto, seus métodos comerciais
da Laemmert, como se poderia esperar em vista da naciona- não impressionaram pelo menos um de seus autores, pois
lidade de seus proprietários. Sua produção nessas matérias Magalhães de Azeredo, em carta dirigida a Machado de As-
incluiu a Historia Geral do Brazil, de Varnhagen (edições sis, datada de 2 de abril de 1896, expressava suas queixas:
de 1854-1857, 1877 e 1907), a publicação da Corografia “Não tenho porem, inteira confiança na pontualidade delle
Brasílica (1845), de Aires de Casal, do Estudo para a Solu- em pagamentos”'s. Ainda assim, foram os editores de Artur
ção das Questões de Câmbio e do Papel-moeda no Brasil, Azevedo, Adolfo Caminha (A Normalista, 1893; No País dos
de Júlio Roberto Dunlop, e do Tratado Descritivo do Brasil Yankees, 1894; Bom Crioulo, 1895), de Coelho Neto (Ba-
em 1587 (1851), de Gabriel Soares de Sousa, edição cuidada ladinhas e Bilhetes Postais, 1894; Fruto Proibido, Miragem
por Varnhagen, e da Navegação Interior do Brasil: Notícia e O Rei Fantasma, 1895: Lanterna Mágica e Seara de Ruth,
dos Projetos Apresentados para a Navegação de Diversas 1898), de Cruz e Sousa (Broquéis e Missal, 1893), de Gon-
Bacias Hidrográficas..., em 18 53 (246 páginas in-oitavo, zaga Duque e Emílio de Menezes. Publicaram também Paul
com um mapa muito detalhado, “Nova Carta Corográfica de Kock em português e foram responsáveis pelo último ro-
do Império do Brasil”, de um metro quadrado, gravado pelo mance de Aluísio Azevedo, Livro de uma Sogra (1895). No
Arquivo Militar), de Eduardo José de Moraes. Os Laemmert final da década, perderam um predomínio de curta duração
produziram também obras de referência, como o Dicionário para uma Garnier revitalizada ($80) e a independência para
Biográfico de Brasileiros Célebres nas Letras, Artes, Política, a Francisco Alves, que começava sua expansão ($92).
Filantropia, Guerra, Diplomacia, Indústria, Ciências e Ca-
ridade desde o Ano r500..., de Manuel Francisco Dias da
Silva, embora tenha havido uma certa coincidência, nessa LIVROS PRÁTICOS, TÉCNICOS, MÉDICOS E DIDÁTICOS $74
área, com a produção da Garnier de obras como Brasileiras
Célebres (1862), de Joaquim Norberto, e Os Varões Ilustres Os múltiplos manuais técnicos da Laemmerte os dotipo “faça
do Brasil durante os Tempos Coloniais (1868), de Pereira da você mesmo”, particularmente sobre agricultura, economia
Silva, em dois volumes. doméstica e etiqueta, devem ter-sido muito mais lucrativos
Por outro lado, apesar de ter editado alguns títulos como do que a literatura ou mesmo a história e a ciência. Nessa
a Coleção Completa de Máximas, Pensamentos e Reflexões, área, os Laemmert publicaram: Guia do Jardineiro, Horti-
do político que se tornou moralista Mariano José Pereira da cultor e Lavrador Brasileiro, de Custódio de Oliveira Lima,
Fonseca, marquês de Maricá (1773-1848), Parnaso Brasilei- 470 páginas, por s$000; O Cavalo, ou Tratado Completo
ro, ou Seleções de Poesias dos Melhores Poetas Brasileiros sobre a Criação, Alimentação e Aplicação das Raças Cavala-
desde o Descobrimento do Brasil (1843-1848), de Pereira res à Agricultura, à Indústria e à Arte, de Azevedo Machado,
da Silva, em dois volumes, Obras Oratórias (1853), de frei com mais de vinte ilustrações, por 5$000; o Novo Secretário
Francisco de Monte Alverne, em quatro volumes, e Estudos Luso-brasileiro, com 470 páginas, por 38000; e a Arte da
de Literatura Contemporânea: Páginas de Crítica (243 pági- Dança de Sociedade Ensinada em Lições Claramente Expli-
nas, in-oitavo, 1885), de Sílvio Romero, a Laemmert jamais
desafiou seriamente o domínio da Garnier no campo da li-
teratura. Mesmo quando a morte de Baptiste Louis deixou 15. Carmelo Virgilio, op. cit., p. 80.
264 Laemmert Laemmert 265

cadas por meio de 32 Figuras Gravadas, editada em 1846, suficiente para que decidisse imigrar definitivamente. Seu Di-
por 1$000, e que ainda era vendida em 1885. cionário de Medicina Doméstica e Popular apareceu em 1865
Os livros de culinária vendiam particularmente bem. O e revelou, segundo seu neto Rodrigo Otávio, “não apenas um
Cozinheiro Imperial, de R. C.M. (438 páginas, por 28500, grande conhecimento de medicina, fisiologia e ciência natural,
em brochura), alcançou onze edições em meados das déca- especialmente botânica, mas também um notável domínio da
das de 1840 e 1900 (ao qual B. L. G. respondeu em 1874 língua portuguesa”'*. Escreveu também Sucintos Conselhos
com o seu Cozinheiro Nacional de Paulo A. Salles); a Do- às Jovens Mães para o Tratamento Racional de seus Filhos e
ceira Brasileira, ou Novo Guia Nacional para se Fazerem Arte Obstétrica, ou Tratado Completo dos Partos; aventurou-
Todas as Qualidades de Doces Secos, de Calda, Cobertos e -se até mesmo no domínio da literatura, com Maria, a Bela
Confeitados, Compotas, Sopas, Doces, Conservas de Doces, Paulista: Comédia, com Parte em Verso, com Música por José
Natas e Creme de Leite... (a boca se enche de água só com Sant” Anna Gomes (irmão mais velho de Carlos Gomes).
a leitura do título!), de Constança Oliva de Lima, em 200 Os conselhos sobre a terapia a ser seguida precisavam do
páginas, por 28000, teve seis edições entre 1851 e 1890. apoio de uma farmacopeia, suprida até então pela Farmaco-
Os livros de medicina autoinstrutivos satisfaziam uma péia Geral para o Reino e Domínio de Portugal (1794), oficial
necessidade óbvia num país com uma população tão disper- em Lisboa, de autoria de Francisco Tavares. Esta foi desban-
sa e com grande escassez de médicos. Os donos de escravos, cada pelo Formulário, ou Guia Médico do Brasil, de Cherno-
em particular, tinham grande interesse em manter a saúde de viz, publicado pela Typographia Nacional, em 1841. Tendo
sua força de trabalho com um mínimo de despesas. Até 1842, publicado as três edições seguintes - em 1846, 1852 € 1856-
recorria-se ao livro de William Buchan, Domestic Medicine a Laemmert procurou Langaard para produzir, também neste
(1769), em tradução de Henriques de Paiva, mas nesse ano a caso, um substituto. Langaard escreveu O Formulário, publi-
Laemmert decidiu lançar algo mais atualizado e mais adapta- cado em 1867, que, apesar do fenomenal sucesso inicial, aca-
do às condições brasileiras, o seu Dicionário de Medicina Po- bou por ser suplantado pelo de Chernoviz, em edições pari-
pular e das Ciências Acessórias para Uso das Famílias. Seu au- sienses, cuja décima sétima saiu em 1904. É que, com a adesão
tor era Pedro Luís Napoleão Chernoviz, um refugiado polonês oficial do Brasil ao sistema métrico, implantado nos dez anos
do levante de 1830, que imigrou para o Brasil dez anos mais que se seguiram a 12 de agosto de 1862, parece que o públi-
tarde, após formar-se em medicina em Montpellier. Os Laem- co aceitou a mudança com mais rapidez do que Langaard.
mert confiavam a tal ponto no interesse que o livro despertaria Assim, seu livro acabou tendo prejudicadas as vendas por ter
que imprimiram três mil exemplares, uma tiragem quase sem mantido, até a terceira edição (1880), as medidas tradicionais.
precedentes na época, principalmente para uma obra em dois Cabe citar, entre outros livros médicos de Laemmert, o Trata-
volumes que deve ter custado cerca de 98000, mesmo em bro- do de Anatomia Descritiva, de José Pereira Guimarães.
chura. Por volta de 1851, lançavam nova edição, ampliada É verdade que Garnier foi-o principal editor brasileiro de
para três volumes in-quarto (com 1620 páginas e cinco pran- livros escolares até o aparecimento de Nicolau e Francisco
chas com ilustrações, por 12$000, ou 15$000 encadernados). Alves ($91), mas Laemmert também publicou alguns livros
Quatro anos mais tarde, Chernoviz voltou para a França e didáticos, entre eles a Aritmética, de C. B. Ottoni, em sua ter-
as edições subsequentes (em número de seis, além de uma em ceira edição e nas posteriores. De acordo com a autobiografia
espanhol para o México) foram impressas em Paris. do autor, as duas primeiras edições (de mil e cinco mil exem-
Não desejando perder um mercado tão lucrativo, Laem- plares respectivamente) foram publicadas por sua própria
mert convidou Theodore Langaard (1813-1883: quase um conta e granjearam muito sucesso, até que surgiu o boato de
contemporâneo exato de Chernoviz, que nascera em 1812 € que dom Pedro II desaprovara a obra. Temeroso de que isso
faleceu em 1881) para produzir um livro concorrente. Lan- pudesse prejudicar as futuras vendas, apressadamente vendeu
gaard tinha chegado ao Brasil em 1842 para — conforme diz
Gilberto Freyre — estudar moléstias tropicais, mas um inver- 16. Rodrigo Otávio Langaard de Menezes, Minhas Memórias dos
no passado na Dinamarca, quando para lá regressou, foi o Outros, Rio de Janeiro, José Olympio, 1934, p. 1 (série 1).
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os direitos autorais a Laemmert por “apenas” (!) 4:000$000, à edição de livros — que correspondem ao breve período que
em 1862; no entanto, as vendas da obra continuaram em antecedeu a guerra de 1914, quando a erudição alemã estava
ritmo excepcional. no auge de seu prestígio em todo o mundo — foram marca-
O livro escolar mais conhecido de Laemmert talvez te- dos por importantes textos alemães sobre ciência moderna
nha sido essa incrível expressão do chauvinismo brasileiro, em suas coleções Biblioteca do Século xx, como Mensch und
Por que me Ufano do meu País, obra de Afonso Celso, filho Erde (O Homem e a Terra, 1902), de Alfred Kirchhoff, e Die
do visconde de Ouro Preto (o último primeiro ministro do moderne Heihwissenschaft (Medicina Moderna, Gênio e Li-
Império), em comemoração ao quatrocentésimo aniversário mites do Saber Médico, 1902), de Edmund Biernacki, ambos
da descoberta do Brasil. Publicado no ano seguinte (1901), traduzidos por Capistrano de Abreu.
tornou-se imediatamente popular; a primeira edição foi ven- Carlos Jansen Múller, professor alemão do Colégio Pedro
dida totalmente em poucos meses e a obra foi leitura obriga- II, fez inúmeras traduções para Laemmert, sempre com o cui-
tória nas escolas secundárias por muitos anos. dado de omitir passagens julgadas inadequadas para a juventu-
de. Obrás como Contos Seletos de Mil e Uma Noites (18822),
e Aventuras Pasmosas do Celebérrimo Barão de Miinchhausen
$75 AS TRADUÇÕES EDITADAS POR LAEMMERT (1891) fizeram de Laemmert o pioneiro da literatura infantil
no Brasil. Miiller produziu também traduções de Robinson
Naquela época, como ainda hoje, as traduções constituíam Crusoe (1885), de Daniel Defoe, As Viagens de Gulliver a Ter-
parte considerável do catálogo de qualquer editora brasileira. ras Desconhecidas (1888), de Jonathan Swift, e Dom Quixote
Garnier, como dissemos ($65), interessou-se principalmente (r9or), de Miguel de Cervantes, mas nestes casos foi frustra-
por traduções da sua própria língua. Tendo em vista a impor- do pela existência de versões anteriores (embora nem sempre
tância da ciência e da cultura francesas na época, era inevitá- adaptadas para a leitura juvenil). Houve um Gulliver anônimo
vel que Laemmert também produzisse uma proporção signi- editado, em 1868, pela Garnier, “do original inglês, com vinte
ficativa de obras traduzidas do francês. Um dos primeiros e e quatro lindas gravuras”; e uma tradução indireta, a partir
interessantes exemplos foi o livro de Elias Regnault, Historia de uma versão francesa, por Henrique Leitão de Sousa Mas-
Criminal do Governo Inglez, desde as Primeiras Matanças carenhas (oficial do exército português), editada em Lisboa
da Irlanda, até o Envenenamento dos Chinos [...], Annotada, em 1785-1786 e reimpressa em 1817, além da edição de As
com Muitos Factos Modernos, [...] por um Brasileiro, que Viagens de Gulliver a Varios Paizes Remotos, de Pillet Ainé,
apareceu antes de decorridos três anos do aparecimento do impressa em Paris, em 1836. À primeira edição em português
original de 1843; a obra foi reimpressa (por outra editora) da obra de Cervantes (com o título de O Engenhoso Fidalgo
como propaganda antibritânica, ainda útil, no começo da Se- Dom Quixote de la Mancha) aparecera em Lisboa em 1794;
gunda Guerra Mundial. No entanto, a firma ocupava-se mais outra tradução, feita pelo Visconde de Castilho e outros, fora
de traduções do alemão. É possível que Amorosas Paixões do editada no Porto, em 1876, e mais outra (da autoria do Vis-
Jovem Werther, obra de Goethe, tenha sido traduzida pelo conde de Benalcanfor) publicada em Lisboa, em 1877-1878.
próprio Eduardo Laemmert. É que, segundo Ernesto Sen- Miiller considerava-se mal pago por seu trabalho, mas,
na, Eduardo forneceu a Antônio Feliciano de Castilho uma como disse a Rui Barbosa (que contribuíra com a introdu-
tradução literal do Fausto para o português, sobre a qual o ção de Gulliver), “um operário como eu aspira a mais algu-
escritor português teria baseado sua versão poética. Mesmo ma coisa do que ao rendimento nacional”?“8. O poeta Olavo
assim, este relato de Senna é conflitante com a história geral- Bilac foi outro tradutor de Laemmert. Depois que a firma
mente aceita de que Castilho trabalhou a partir de uma edi- abandonou a edição de livros, o poeta passou a traduzir
ção francesa"?, Os últimos anos em que Laemmert dedicou-se para a editora Francisco Alves (capítulo 11).

17. Ernesto Senna, O Velho Commercio do Rio de Janeiro, Rio de 18. Leonardo Arroyo, Literatura Infantil Brasileira, São Paulo, Me-
Janeiro, Garnier, [19112], p. 45. lhoramentos, 1968, pp. 172-175.
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$76 A PIRATARIA DOS DIREITOS AUTORAIS mórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de
Almeida, impressa em Pelotas em 1862, menos de doze me-
À imexistência, até 1912, de proteção internacional dos di- ses após sua morte.
reitos autorais no Brasil foi de considerável importância A primeira Convenção Pan-americana de Direitos Auto-
para a sobrevivência e o crescimento das editoras nacionais, rais, aprovada em Montevidéu em 1889, inspirou os criado-
como a Laemmert. Na verdade, até 1898, não houve, no res da nova Constituição Republicana de 1891 a incluir uma
Brasil, qualquer lei real de direitos autorais como tal. O ar- cláusula relativa aos direitos do autor, mas esta só recebeu
tigo 261 do Código Criminal do Império, promulgado em apoio legal com a lei n. 946, de 1º de agosto de 1898, aprova-
dezembro de 1830, rezava que era crime “imprimir, gravar, da por força da agitação liderada por Medeiros e Albuquer-
litographar ou introduzir quaesquer escriptos ou estampas que.Já se aventou a hipótese de que sua campanha foi auxilia-
que tiverem sido feitos, compostos ou traduzidos por cida- da pela segunda reunião dos países membros da Convenção
dãos brazileiros enquanto estes viverem e dez annos depois de Direitos Autorais de Berna, em Bruxelas, no ano de 1896;
de sua morte si deixaram herdeiros”; mas parece que isso no entanto, ela despreza o fato de que a primeira versão do
permaneceu letra morta. Na verdade, os deputados Aprígio projeto de lei é de 20 de agosto de 1894. De qualquer maneira,
Justiniano da Silva Guimarães (que apresentou um projeto Medeiros e Albuquerque era, pessoalmente, contrário à par-
de lei sobre direitos autorais à Câmara dos Deputados em ticipação do Brasil num acordo internacional; seu interesse
agosto de 1856) e Bernardo Avellino Gavião Peixoto (que restringia-se a garantir uma proteção das obras de cidadãos
repetiu a tentativa no ano seguinte) parecem ter desconheci- brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil.
do sua existência. O político e teatrólogo Quintino Bocaiú- Embora o advento da República tivesse fortalecido, as-
va escreve, em 1858, que lastima especialmente a ausência sim, os direitos legais formais da autoria literária, sua impor-
de uma lei que proteja os direitos de propriedade artística tação da doutrina americana dos direitos dos estados mem-
e literária. Todavia, a difundida repulsa moral contra este bros da União tornou a execução da lei quase uma questão
tipo de pirataria dentro do território nacional, bem como de opção local. Em nenhum outro lugar isso foi mais evidente
a vaga impressão de que os infratores provavelmente pode- do que no Rio Grande do Sul, onde, até as primeiras décadas
riam ser processados segundo os princípios gerais da lei da do século xx, a principal atividade de algumas editoras foi a
propriedade, parecem ter sido suficientes, durante o Impé- publicação ilegal de autores de fora do estado sulino ($124).
rio, para restringir o plágio de obras brasileiras a ocasionais Se os direitos efetivos dos autores residentes no Brasil
artigos de periódicos. Essa atitude foi corroborada por um eram incertos, os dos autores não residentes inexistiam. O
caso apresentado ao Tribunal Supremo em 1880. Paulina artigo 5 do tratado de paz com Portugal (assinado em 29 de
Maria Constant Proença processou Antônio José de Mello agosto de 1825), que reconhecia a independência do Bra-
por reimprimir (como parte do Médico do Povo, de Mure) o sil, de fato dispunha especificamente que “as propriedades
Guia Médico-Cirúrgico de seu falecido marido, José Henri- e escriptos dos subditos portuguezes seriam protegidos e re-
ques de Proença. O Tribunal decidiu em seu favor com base ligiosamente guardados no Brazil”?:º - embora mesmo em
no artigo 179, $22, da Constituição Imperial, que garantia Portugal não houvesse qualquer lei sobre direitos autorais
os direitos de propriedade do súdito brasileiro “sem distin- antes de julho de 1851! Esta deve ter sido uma das primeiras
ção alguma a qualquer espécie de propriedade”'º. Como a tentativas no sentido de introduzir, internacionalmente, a
viúva se havia naturalizado, a defesa não pôde sustentar a proteção dos direitos autorais, mas nenhum esforço foi feito
tese de que o autor era português. É claro que é sempre mais para sua concretização. Ao contrário, as editoras brasileiras
tentadora a pirataria de obras de autores mortos; talvez seja sentiram-se particularmente atraídas pelas obras dos auto-
esse o motivo de uma segunda edição, clandestina, de Me- res portugueses: publicá-las ilegalmente evitava até mesmo
os custos de uma tradução. Embora os leitores brasileiros
19. J. M. Vaz Pinto Coelho, “Da Propriedade Literária no Brasil”,
Revista Brasileira, 3* série, vol. 2,n. 6, p. 475, 1880. 20. J. M. Vaz Pinto Coelho, op. cit.
270 Laemmert Laemmert 271

de hoje não sejam apaixonados pela literatura portuguesa Este artigo provocou uma carta do irmão de Castilho,
contemporânea, antes de 1930 isso não acontecia. No sécu- José Feliciano, que estava então no Brasil, publicada pela
lo x1x, nomes como Camilo Castelo Branco, Almeida Gar- Revista em 31 de agosto de 1848:
rett, Castilho e Eça de Queirós — depois de O Primo Basílio
(1878) — desfrutavam de imensa popularidade no Brasil. A leitura neste Imperio não é tão extensa como nós ahi julgamos,
Sob este aspecto, as relações do Brasil com sua antiga me- nem póde ser avaliada por prismas enganadores... Todavia é para
trópole não foram de forma alguma excepcionais. Na verda- os nossos homens de letras um mercado importante, e que, por
de, constituem um caso semelhante ao das relações entre as varias causas, se póde considerar, como estando de facto, ha muito
editoras belgas e suas vítimas francesas, ou entre as editoras fechado para eles.
americanas e suas vítimas da Grã-Bretanha. As reações dos Concorre para este terrível effeito a impunidade das contrafac-
autores portugueses diante das edições brasileiras não au- ções. Obra de merito, que sahia de prelos portuguezes, geralmente
torizadas foram semelhantes às de Charles Dickens ou W. aqui se reimprime logo; hoje, por exemplo, annunciam os jornaes
S. Gilbert quando se defrontavam com publicações ilícitas a reimpressão da versão dos [Sete] Pecados Mortais [do autor fran-
transatlânticas de suas obras. Protestava a Revista Lisboen- cês Eugene Sue], feita pelo meu amigo e condiscipulo José Ferreira
se de 16 de dezembro de 1847: Reis, tradutor dos Mysterios de Pariz [também de Sue)... *!

Não ha um só dos illustres escriptores portuguezes contempora- É claro que usar uma tradução feita em Portugal era ain-
neos que não veja dentro em pouco o seu patrimonio repartido da mais barato, mais rápido e mais conveniente do que fazer
pelos bandidos. uma tradução não autorizada de uma obra em francês. Tal
Não é só um ou outro jornal que rouba das columnas das nossas prática poderia ser moralmente justificada com base na justa
publicações os mais acreditados artigos, rubricados com o nome do suposição de que a versão de Lisboa também era ilícita. Um
autor, mas sem indicar a fonte donde provém, para se pensar que exemplo quase certo disso foi o caso da tradução por À. V.
foram escriptos expressamente para o pobre parasita. [...] Não se de C. de Sousa do romance de grande sucesso Saint-Clair
limita a uma ou outra obra; agarram-se a colleções completas. das Ilhas, da inglesa Elizabeth Helme, que se universalizou a
O progresso nesse sentido é espantoso. Ainda ha pouco um im- partir da tradução francesa de Madame Montolieu, publica-
pressor do Brasil, vindo a Portugal, mimoseou o Senhor [António do pela Empreza Lusitana de Lisboa, na década de 1830, e
Feliciano de) Castilho com um exemplar da Noite do Castello im- reproduzido pela Garnier, no Rio, em 1854. Todavia, mesmo
presso, por sua conta, na officina de que era proprietario. entre os países que possuíam alguma proteção internacional
eficaz dos direitos autorais nessa época, a Rússia era o único
O impressor a que se referia era claramente Eduardo que conferia especificamente direitos de autor aos tradutores.
Laemmert, pois ele publicara o trabalho em questão nesse O argumento tradicional de-que a ausência de proteção
mesmo ano, em sua coleção Bibliotheca dos Poetas Classicos aos direitos autorais estrangeiros tolhia o desenvolvimento
da Lingua Portugueza. Em 1846, publicara Excavações Poe- da literatura nacional, porque desencorajava as editoras a
ticas, de Castilho, na mesma coleção, apenas dois anos após pagarem os direitos devidos para a publicação dos autores
a edição de Lisboa. A Revista prossegue: locais, foi usado com veemência por Silva Guimarães na de-
fesa de seu projeto de lei de 1856. Entretanto, este argumento
|...] Os prospectos que acabam de chegar são um indice dos nomes dificilmente se mantém diante da produção da Laemmert.
das victimas. O $r. João de Lemos será o primeiro. As suas poesias Sua média de quase quatro títulos nacionais para cada es-
formam o primeiro volume de uma colleção que abrange todos os trangeiro era muito mais favorável aos talentos nacionais do
nossos poetas modernos. Depois ha de vir o Amor e Melancolia do Sr. que a da maioria das editoras do Rio ou de São Paulo hoje;
Castilho. Segue-se o Canto do Bussaco. O Sr. Alexandre Herculano embora, para sermos justos, seja preciso dizer que a vanta-
não o deixaram no remanso da Ajuda sem lhe profanar os suaves e
religiosos sons de sua Harpa [do Crente], roubando-os também... 21. J. M. Vaz Pinto Coelho, op. cit.
272 Laemmert Laemmert 273

gem comercial de pagar uma quantia fixa ao tradutor — mes- de Egon Laemmert por seu filho Hugo, e de Gustave Massow
mo sem qualquer pagamento de direitos — sobre um direito por seu filho Hilário.
nacional dependente do tamanho da edição, é menos acen- Laemmert, assim como a José Olympio e várias outras
tuada em pequenas tiragens como as do tempo de Laemmert. editoras de hoje, mantinha uma biblioteca com um exem-
Datus €. Smith”: apresenta os custos comparativos (inclusive plar de cada edição produzida pela firma. Infelizmente, esse
os direitos de autor estrangeiro) para a América Latina como arquivo único foi destruído no grande incêndio que sofreu
um todo, em 1975: numa edição de mil exemplares, a tradu- em 1909, após o qual a livraria nunca mais foi reaberta. Os
ção é em média 22% mais cara do que uma obra de autor direitos autorais de sua propriedade, a clientela e a repu-
local, ao passo que numa edição de dez mil exemplares o tação foram vendidos a Francisco Alves, cuja empresa ad-
custo da tradução é, em média, 3% mais baixo. quiriu, assim, o mais famoso de seus títulos, Os Sertões, de
Argumentaríamos, ao contrário, que foi precisamente a Euclides da Cunha, sobre a guerra de Canudos. Laemmert
ausência da proteção de direitos autorais estrangeiros que sal- tinha-o publicado em dezembro de 1902 numa edição de mil
vou a nascente indústria editorial brasileira de ser destruída exemplares, esgotada em dois meses. Fizera uma segunda
pelas importações de Portugal e das impressões em português em junho de 1903 e uma terceira em 1905, num total de dez
feitas em Paris, com suas edições maiores e, portanto, direitos mil exemplares; pelos padrões da época, foi, sem dúvida,
autorais à parte, custos mais baixos. Se essa indústria tivesse um grande sucesso de vendas. Euclides, que teve de pagar a
sido tragada no nascedouro, é difícil ver como os autores bra- metade da impressão da primeira edição, recebeu 700$000
sileiros lograriam obter a publicação de suas obras! (segundo Monteiro Lobato”), e suas dificuldades financeiras
obrigaram-no a vender seus direitos à Laemmert definitiva-
mente, em 1905, por 1:800$000.
$77 LAEMMERT & CIA.

À visita a Antônio Feliciano de Castilho, em 1847, ocorreu O ANUÁRIO DO BRASIL $78


durante uma das viagens que Eduardo fazia à Europa com
uma frequência cada vez maior depois que sua empresa se À tipografia continuou sua existência e, com ela, o Almanack,
consolidou. Ia à Europa em parte por razões de saúde e em embora sua propriedade tenha passado, em rg1o0, para Ma-
parte por causa da educação de sua única filha: era viúvo nuel José da Silva, um português proprietário de publicação
na época. Em 1877, afastou-se completamente da firma e semelhante, o Anuário Geral de Portugal. Com isso, depois
foi para Karlsruhe, onde morreu repentinamente em 18 de de alguns anos, o Almanack recebeu um novo título, Anuá-
janeiro de 1880, dono de uma fortuna de 600:000$000. rio do Brasil, nome que passou a ser usado como marca das
Henrique, que permanecera no negócio, faleceu quatro publicações da firma no começo da década de 1920. À nova
anos depois. Todos os negócios passaram então para uma organização passou por inúmeras mudanças de proprietário,
sociedade formada por Gustave Massow (o genro de Hen- tornando-se Sérgio & Pinto em 1919, Álvaro Pinto & Cia.
rique), Egon Widmann Laemmert e Arthur Sauer. Este últi- em 1920, Alexandre Henault & Cia. em 1921, voltando ao
mo assumiu a direção da oficina tipográfica e os outros, a controle de brasileiros em 1925, quando foi adquirida por
da livraria. Em 18971, a firma foi reorganizada com o nome membros do Jockey Club do Rio de Janeiro, que lhe deram
de Laemmert & Cia., com um capital de 13 50:000$000. o nome de Empresa Almanack Laemmert Ltda. Alguns pou-
Em 1898, possuía filiais em São Paulo e no Recife. Em cos livros foram publicados nesse período, destacando-se o
1903, houve uma nova mudança de sócios, com a sucessão Livro de Ouro do Centenário da Independência do Brasil

23. Cassiano Nunes (org.), Monteiro Lobato Vivo, Rio de Janeiro,


22. Datus C€. Smith Junior, The Economics of Book Publishing in Record, 1986, p. 96, apud Lajolo e Zilberman, A Formação da Leitu-
Developing Countries, Paris, Unesco, 1977, p. 19. ra no Brasil, São Paulo, Ática, 1996, p. 109.
274 Laemmert

(500 páginas), produzido sob o patrocínio do Governo Fe-


deral, em 7 de setembro de 1922.
Todavia, em 1942, outro incêndio acabou com a longa
existência do Almanack: o último número foi o relativo ao
ano de 1943. Mas a firma continuou como tipografia, a Grá-
fica Laemmert, e por volta de 1970 voltou a publicar livros
com esse nome.

Ro CC
Hippolyte
sarnier

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