Você está na página 1de 4

A resolução de um problema exige, preliminarmente, admitir sua existência – por

mais óbvio que pareça. É possível que você se engane, sem culpa, como infelizmente ocorreu com
um caro amigo – há alguns anos – que teve a vida abreviada por tratar uma cirrose como se fosse
câncer. O erro não foi dele, que morreu, mas do diagnóstico médico. O amigo e família lutaram
bravamente. Sabiam que existia um problema e tentaram resolvê-lo.
Mas em sede de administração pública, não se pode apenas “culpar o médico”, mas
todos os responsáveis pela cadeia administrativa que replica, propositadamente por ignorância,
ausência de profissionalismo ou mesmo intencionalmente (por motivos pessoais), uma vez que ao
outorgar poderes acima dos direitos da população, a administração prescinde ser controlada para
coibir excessos.
E não adianta estrebuchar, se não o maior, um dos maiores Golpes de Estado da
História do mundo ocidental não teria sido possível, exatamente pelo fato do seu artífice não apenas
desobedecer o Direito Romano, marchado sobre Roma com suas legiões, no auge da sua
popularidade, após subjugar o consórcio gaulês e capturar seu Rei Vercigetórix – hoje Herói
nacional da França. Ao atravessar o Rubicão, lançando “a sorte”, César tomou a República Romana
para si, tornando-se o ditador absoluto e lançando uma guerra civil.
Carlos Magno Nazareth Cerqueira foi um desses que buscou entender as limitações
da Polícia Militar e tentou propor soluções factíveis para tal. Negro, filho de família pobre, teve
uma lúcida educação que não somente o direcionou a ser uma pessoa digna, mas também o levou
aos quadros da Polícia Militar, vez que seu pai não apenas preocupava-se com sua educação formal,
mas também preparava-o para a vida, quando lhe apresentava uma lista de profissões mais
tolerantes com pessoas negras.
Em sua trajetória, Nazareth manteria a coerência e, por isso, não rogaria-se em
enfrentar os desafios decorrentes tanto do preconceito racial, quanto de se dispor a pensar dentro de
uma corporação na qual muitos integrantes gostam de referir-se pejorativamente a quem reflete de
“filósofo”,
Ingressou na corporação em meados dos anos 1950, na Polícia Militar do Distrito
Federal, que à época fundava-se no Estado da Guanabara. Era o período entre duas ditaduras e após
a Segunda Guerra, quando gestava-se o sistema de segurança pública moderno, parido em fins dos
anos 1960.
Nazareth não se conformava com o status quo e buscava realizar seu serviço por
novos meios, pois ele entendia qual a proposta da polícia moderna, delineada no início do século
XIX NA Europa e no Japão, consagrado por William Peel, na Inglaterra.
Por isso, fugindo da truculência, ao enquadrar um preso, dizendo-lhe que deveria
lutar para sair do crime e ser pessoa melhor, Nazareth foi (punido?) retirado do serviço “de rua”. Já
em seus primeiros anos de serviço Nazareth repudiou o excesso de força, algo que declarava não
gostar:
Será que não posso ser um bom policial sem usar de violência? A violência pesava. Ficava
em conflito. Não gostava de saber que os soldados não gostavam da minha liderança.
Achava que eu era covarde. Será que eles tinham razão? Será que eu tinha errado de
profissão?

Cerqueira colecionou passagens que denotaram sua postura frente ao interesse


público, como homem probo que era:

ficara de comprar uma peça para a viatura do quartel; pedira-me que trouxesse a nota fiscal,
para o meu reembolso. Comprada a peça, não mais me lembro da importância paga, embora
lembre com bastante nitidez, que a vendedora perguntara-me se eu queria que constasse na
nota o desconto efetuado; perplexo, perguntei-lhe se não seria obrigatório; mais confuso
fiquei quando a vendedora dizia-me que ficava ao meu critério; fiz constar o desconto na
nota e para surpresa minha, ao contar ao tesoureiro toda essa história, ele assumiu a mesma
posição da vendedora, dizendo-me que o que ele queria era a nota fiscal, pouco
importando-se com o preço real da encomenda. Essa estória começou a inculcar-me
algumas preocupações a respeito das transações comerciais e sobretudo da lisura delas.
Verifiquei que se eu quisesse poderia ter levado vantagem na compra da peça, sem que
houvesse nenhuma reprovação e qualquer possibilidade de descoberta e da consequente
punição [...]. Isso soava para mim como um desafio, que eu resolvi enfrentar. Queria
mostrar que não me corromperia trabalhando com dinheiro público e que não tinha preço.
Jamais me venderia.

Foi um grande defensor da evolução da formação e capacitação policial, além das


preocupações com a saúde mental policial. Observava que ao se colocar os policiais nas ruas sem
material e apoio para resolver problemas de uma população à qual não se é fornecida dignidade,
saúde, educação e etec., inevitavelmente esse policial será embrutecido/desumanizado, pois não há
saúde mental que resista à tal pressão. Ele observou a ligação entre isso e os altos índices de
alcoolismo e suicídio na polícia.
Formado em Filosofia e Psicologia, Pós-Graduado, Cerqueira era defensor da
aproximação entre a Academia e a Polícia, para que através de debates fosse possível não apenas
tratar dos problemas da Segurança Pública, mas também da visão ruim entre as instituições.
Observava a necessidade de dinamização, pois

Até mesmo os novos, os novíssimos aspirantes com um ano e os velhíssimos com três são
alçados pela nuvem paralisante. O descontentamento azeda todas as camadas, mas ao invés
de dinamizá-las para a mutação, estabiliza-as no conformismo fatal. É o podia-ser-pior a
desarmar as intenções. O sonho que dormita em nossos corações dormita também na
consciência de cada um: é construir uma PM que seja respeitada pelo público e que se
respeite.

Infelizmente, Cerqueira, que na maior parte de sua trajetória defendeu sua


corporação, não foi devidamente – ou propositadamente – entendido nessa atitude, por identificar a
realidade e a necessidade de mudanças, sofrendo preconceitos e assédios, por isso. Segundo o
próprio, após um período na escola de Oficiais, no qual tentou diminuir disciplinas jurídicas para
focar em disciplinas mais adequadas ao serviço técnico policial e ao enfrentar o “trote excessivo e
brutalizador”, foi agraciado com uma viagem à França – para conhecer a Gendarmerie francesa –
que pode ter sido, também, “uma maneira inteligente de me tirar da EsFO. Estranhei o convite.”.
Ele queixava-se entender muito de Direito e de Exército, mas pouco de Polícia.
Cerqueira destacou-se na Escola de Oficiais, sendo primeiro colocado de turma por
um motivo pitoresco: o primeiro colocado não precisava portar o fuzil, que era substituído pelo
estandarte. Em 1956 concluiria o curso, recebendo das mãos do presidente Juscelino Kubistchek a
Espada de Oficial.
No campo da produção intelectual Nazareth enfrentou dificuldades, como óbices
impostos à sua pesquisa durante o curso de aperfeiçoamento, versando sobre a questão psicossocial
da polícia militar. Sofreria ainda assédio moral ao identificar fraude em diplomas que teriam sido
apresentados por filhos de Oficiais para ingresso na corporação, sendo chamado de inimigo dos
filhos dos Coronéis

A expulsão da escola deixou-me bastante depressivo, com graves repercussões na minha


vida pessoal. Em quinze dias tive três acidentes com meu automóvel, sendo que no último
fui parar em um hospital. Nos dias em que estive internado refleti sobre a minha posição e
decidi que mudaria de comportamento. Não lutaria para modificar o mundo e os outros.
Mas lutaria com todas as forças para que os outros não me modificassem.

Apesar de ser considerado um “criador de casos”, Cerqueira destacava-se por onde


passava, também, pela capacidade de planejamento e organização. Em paralelo, continuava sua
busca pelo conhecimento policial através da literatura internacional e da Criminologia. Produziria
textos sobre polícia e seus temas, sendo um dos mais destacados o “A PM e as tensões sociais.”,
com fortes influências de Miranda Rosa e López-Rey.
Ainda seria preso ao se envolver em um debate público com a ex Deputada Sandra
Cavalcante, defendendo a Polícia Militar de críticas da também professora. Teria a punição
cancelada alguns anos depois e também receberia a Medalha do Pacificador, do Exército.
Nazareth ainda coordenou a formação do primeiro corpo de policiais femininas da
Polícia Militar do Rio de Janeiro, a quem depois atribuiria competência de trânsito, em sua primeira
passagem pelo comando geral da corporação.
Nazareth foi subchefe do Estado Maior, chefe e comendante geral por duas vezes.
Somente suas passagens pelo comando geral daria um bom texto, principalmente pela
desonestidade como alguns tratam esses períodos até hoje.
Nazareth, segundo um seu biógrafo, “reunia o especialista com a sensibilidade do
humano” pensando a existência, não separando o pensar do existir. Para Nazareth

[...] A minha luta sempre, desde o tempo da Escola até o comando-geral, foi uma luta de
fazer uma polícia voltada para a coisa pública, voltada para o respeito aos direitos
humanos; tanto que não foi muito difícil para mim assimilar a filosofia do governador.
Porque, quando o governador disse para mim o que ele queria, aquilo já era coisa que eu já
buscava há muito tempo [...]

Em seu primeiro comando, herdava um legado de violência dos Esquadrões da Morte


que executaram milhares de pessoas e, ao mesmo tempo em que consorciavam com o próprio crime
que diziam combater, também defrontava-se com a ascensão do tráfico de drogas no pais.
Além do recrudescimento da crítica à polícia por parte da sociedade, principalmente
devido à violência e a corrupção policial. Seu desafio era trazer a ideia de Direitos Humanos como
uma realidade à sua corporação, essa era a sua possibilidade de criar a nova polícia que sonhara
“uma organização que se entendesse como órgão prestador de serviços, que tivesse compromisso
com o bem-estar da comunidade, garantidora de direitos civis.”
Era uma máquina de guerra contra o crime, no pior sentido do termo, à qual cabia a
Nazareth implementar a mudança de combater o inimigo e transformar em uma força de Segurança
Pública. Essa visão, da inadequação do modelo militar aplicado à Segurança Pública, ocorreu na
Europa ainda no século XIX, como já dito anteriormente.
Nazareth sairia do comando da polícia em 1987, após a posse do novo Governador.
Voltaria em 1991, encontrando não somente o desmonte das estratégias que
implementara, mas piores índices criminais. Muitas forças se levantariam contra Nazareth - vide as
chacinas da Candelária e Vigário Geral - que não se acovardou, focando em mudanças
organizacionais, como o estímulo ao “pensar a polícia”. Por outro lado, incentivou práticas como a
criação do PROERD inovador programa de enfrentamento ao problema: drogas x juventude.
Mas Nazareth seria derrotado definitivamente pela Operação Rio e pela eleição de
Marcelo Allencar, que ficaria conhecido pela criação da “gratificação faroeste”, responsável pelo
significativo aumento de morte de pessoas em confronto com policiais, tanto cidadãos comuns
quanto cidadãos policiais. Era comum os jornais darem notícias criticando a letalidade
descontrolada da polícia fluminense.
Por fim, escolhemos Nazareth pois ao fim de sua carreira, quando morto em uma
controversa execução à luz do dia, ele defendia que o policial ao entender e defender a humanidade
do outro, ele estaria a proteger a sua própria dignidade. Nazareth foi executado por um outro
policial que aparentemente foi uma vítima do processo desumanizador da violência que afeta a
saúde mental: uma das preocupações do Coronel durante toda a sua carreira. Em um momento em
que as polícias no Brasil encontram-se encalacradas em decisões profissionais questionáveis e
mesmo por partidarismos políticos nefastos, vale evocar a figura de um oficial que era visto também
como rígido, enérgico, muitas vezes intransigente e disciplinador, não por ser inflexível, mas por
entender e respeitar a administração pública e sua impessoalidade.
Eis Carlos Magno Nazareth Cerqueira!

Você também pode gostar