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ISSN 2318-0811 ure |, Nimero 1 (Usneio-Nunho 2013: 153-162 O Uso do Conhecimento na Sociedade” Friedrich August von Hayek™ Resumo: Hayek discute neste artigo que tipo de conhecimento deve ser utilizado nas ciéncias sociais, especialmente na Economia. Mostra que no mundo real o dito “conhecimento cientifico” falha na coordenagio da atividade econémica e que 0 co- nhecimento “pratico”, ou das circunstancias de tempo e espago, é que ¢ relevante nas decisdes dos agentes econémicos. Palavras-chave: Imperfeicdo do Conhecimento, Sociedade, Ciéncias Sociais, Sistema de Pregos, Planejamento, Circunstancias de Tempo e Espaco. The Use of Knowledge in Society Abstract: In this article Hayek questions what kind of knowledge must be used in Social Sciences, especially in Economics. He shows that in the real world, the so said “scientific knowledge” failed to promote the coordination of economic activity. He also states that the “practical” knowledge, or the circumstances of time and space, is the relevant kind of knowledge for the economic agents’ decisions. Keywords: Imperfection of Knowledge, Society, Social Sciences, Pricing System, Planning, Circumstances of Time and Space. Classificagao JEL: D4, B25, B53 * O artigo foi publicado originalmente com o titulo “The Use of Knowledge in Society” em setembro de 1945 na American Economic Review, v.35, n. 4, p. 519-30, sendo reeditado como quarto capitulo do livro: HAYEK, F. A. von. Individualism and Economic Order, University of Chicago Press, 1948. Traduzido do inglés para o portugues por Philippe A. Gebara Tavares, * Friedrich August von Hayek nasceu em Viena, no dia 8 de maio de 1899, na ocasiéo, ainda Império Austro- Hiingaro. Recebeu os titulos de doutor em Direito (1921) e Ciéncia Politica (1923) pela Universidade de Viena, onde também estudou Filosofia, Psicologia e Economia. Com a ajuda de Ludwig von Mises (1881-1973), no final da década de 1920, fundou e dirigiu o Austrian Institute for Business Cycle Research, antes de ingressar na London School of Economics em 1931. Tornou-se stidito inglés em 1938 e, em marco de 1944, langou seu famoso livro O Caminko da Servidao (Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010). Viveu na Gra-Bretanha até 1950 e depois mudou-se para os Estados Unidos, onde permaneceu de 1950 a 1962. Em 1974, recebeu o Prémio Nobel de Economia pode sua Teoria da Moeda e futuages econémicas. Faleceu em 23 de marco de 1992, em Freiburg, na Alemanha, onde vivia desde a década de 1960. 154 (0 Use do Conhecimento na Sociedade Qual problema queremos resolver quando tentamos construir uma ordem eco- némica racional? Em determinadas hipéteses bem familiares, a resposta é assaz, simples: se possuimos todas as informagées relevantes, se podemos comegar a partir de um dado siste- ma de preferéncias, e se dominamos completa- mente o conhecimento dos meios disponiveis, © problema que permanece é puramente de ordem légica. Isto é, a resposta para a ques- t30 sobre qual seria o melhor uso dos meios disponiveis esta implicita em nossas hipéte- . Assim, as condicées que a solugao desse problema “étimo” devem satisfazer ja teriam sido totalmente resolvidas ou, sido mais bem expressas em férmula matematica, mas resu- mindo-as da forma mais breve possivel, diri- amos que as taxas marginais de substituigao entre duas commodities ou fatores tm de ser as mesmas em todos os diferentes usos. Este, contudo, nao é — enfatizamos - problema econémico que a sociedade enfren- ta. O calcul econémico que desenvolvemos para resolver este problema légico, embora seja um passo importante para sua resolucao, ainda nao nos fornece uma resposta. A ra730 para tal é que os “dados de input”? a partir dos quais o cdlculo econémico comega nunca sao “dados", nem poderiam sé-los, a uma tinica mente que poderia desenvolver as suas impli- cages em beneficio de toda a sociedade. O carater peculiar do problema da or- dem econémica racional é determinado pre- cisamente pelo fato de que 0 conhecimento das circunstincias, do qual devemos fazer uso, nunca existe de uma forma concentrada ou integrada, mas apenas como bits dispersos 1 Isto é, a maior eficiéncia exequivel. (N. do'T,) ? Preferiu-se aqui traduzir 0 termo inglés “data” por “dados de input” para evitar a ambiguidade que se poria em relagio a traducdo do termo “given”, que aparece logo depois. Este deve ser traduzido pelo adjetivo plural “dados”, o qual, por sua vez, coincidiria ortograficamente com o primeiro, que é substantivo, caso fosse traduzido literalmente como os “dados”, em contraposigao a algo “dado”. (N. do T) daquele conhecimento incompleto e frequen- temente contraditério que todos os individu- 6s isolados possuem. O problema econémico da sociedade nao 6, portanto, somente um problema de como alocar recursos “dados” — se por “dado” entende-se aquilo que é dado a uma tinica mente que resolveria reflexiva- mente 0 problema posto pelos “dados de input”. E mais a questao de como assegurar 0 melhor uso dos recursos conhecidos para to- dos os membros da sociedade, para fins cuja importancia relativa apenas estes individuos conheceriam. Ou, para sintetizar, este é um problema sobre a utilizacao do conhecimento que nao é dado a ninguém em sua totalidade. Essa caracteristica de nosso proble- ma fundamental tem sido obscurecida, para minha preocupagao, em vez de ser ilumina- da por muitos dos recentes aperfeigoamen- tos em teoria econémica, especialmente pe- los variados usos da Matematica. Embora o problema do qual queira por principio tratar neste artigo seja aquele da organizacao eco- némica racional, deverei, em seu curso, ser levado diversas vezes a apontar suas estreitas ligagdes com certas questées metodoldgicas. Muitos pontos a que quero fazer mencio sao, na verdade, conclusdes para as quais diversos caminhos da reflexdo inesperadamente con- vergiram. Porém, uma vez que no momento vislumbro tais problemas, esse percurso nao & nenhum acidente: parece-me que muitas das discussdes atuais a respeito tanto da teo- ria econémica, quanto da politica econémica, tém origem comum em um equivoco sobre a natureza do problema econémico da socieda- de. Esse equivoco, por sua vez, é causado por uma transferéncia indevida aos fenémenos sociais daqueles habitos de pensamento que viemos desenvolvendo em nossa lida com os fenémenos da natureza. II Na linguagem comum, descrevemos com a palavra “planejamento” aquele com- plexo de decisées inter-relacionadas sobre MISES: Reva Interlscotnar de Flosoa, Dire Economia Friedrich August von Haye 155 a alocagdo dos recursos disponiveis. Toda a atividade econémica é neste sentido, plane- jamento; e em toda sociedade na qual muitas pessoas colaboram, este planejamento, quem quer que o faga, teré de ser baseado, em al- guma medida, no conhecimento. Este, em primeira instdncia, nao é dado para o plane- jador, mas para uma outra pessoa, que, de algum modo, terd de ser reconduzido para o planejador. As varias maneiras pelas quais 0 conhecimento em que as pessoas baseiam os seus planos Ihes sao comunicadas constituem © problema crucial de toda teoria que queira explicar o processo econémico, e o problema sobre como utilizar, da melhor maneira pos- sivel, o conhecimento, inicialmente disperso entre todas as pessoas, é uma das principais questées da politica econémica - ou do proje- to de um sistema econémico eficiente. A resposta a esta questdo esté intima- mente ligada a outra questao que surge aqui, a de quem deve fazer o planejamento. E em torno dessa questo que toda discussio sobre “pla nejamento econémico” gira, Nao é uma dis- cussao sobre se o planejamento deve ser feito ou nao: é uma disputa sobre se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma nica autoridade e cobrindo todo o sistema econémico, ou se é para ser dividido entre va- rios individuos. Planejamento no sentido espe- cifico em que © termo ¢ usado no debate con- temporaneo significa, necessariamente, pla- nejamento central — que dirige todo o sistema econémico de acordo com um plano unificado. Competigao, por outro lado, significa planeja- mento descentralizado por varias pessoas dis- tintas. O ponto de transicao entre os dois, so- bre o qual muitas pessoas falam, mas do qual poucos gostam quando veem, é a delegago do planejamento a indiistrias organizadas, ou, em outras palavras, aos monopélios. Qual desses sistemas tenderd a ser mais eficiente dependera principalmente do uso mais ou menos pleno que farao do conhe- cimento existente. Isso, por sua vez, depende do sucesso que obteremos ao pér 3 disposi- cao de uma tnica autoridade central todo o conhecimento que devera ser usado, 0 qual, inicialmente estava disperso entre varios di- ferentes individuos, ou da transmissao aos individuos desse conhecimento adicional que necessitam, a fim de habilita-los a combinar seus planos com os dos outros Tl Nesse ponto, ficard evidente de pronto que a posicdo tornar-se-é diversa dependen- do dos diferentes tipos de conhecimento. A resposta & nossa questo giraré, por conse- guinte, em torno da relativa importancia dos diferentes tipos de conhecimento: aqueles mais suscetiveis a estar a disposigdo de indi- viduos particulares, e aqueles que devemos esperar com mais confianga encontrar em uma autoridade composta de experts devida- mente escolhidos. Se é hoje amplamente pres- suposto que esta tiltima categoria estaré em melhor posigao, isto é porque um tipo de co- nhecimento, a saber, 0 conhecimento cientifi- co, ocupa agora um lugar téo proeminente na imaginagao publica que tendemos a esquecer que nao é 0 Unico tipo relevante. Pode-se ad- mitir que, na medida em que o conhecimento ientifico esta envolvido, um corpo de experts devidamente escolhidos pode estar em me- Ihor posigao para comandar todo o melhor conhecimento disponivel - embora isso esteja apenas deslocando a dificuldade para o pro- blema de selecionar os experts. O que gostaria de salientar ¢ que, mesmo admitindo que esse problema possa ser facilmente resolvido, ele & apenas uma pequena parte de um problema mais amplo. Hoje é quase heresia sugerir que 0 co- nhecimento cientifico ndo ¢ a soma de todo © conhecimento. No entanto, um pouco de reflexdo mostrar que ha, além de toda divi- da, um corpo de conhecimento muito impor- tante, mas nao organizado, que nao poderia ser chamado cientifico no sentido de conhe- cimento de regras gerais: o conhecimento das circunstancias particulares de tempo e espa- co. E por esta razio que praticamente todo individuo tem alguma vantagem sobre todos

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