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Aulas 1 e 2

Significação original do termo “ethos”.


Aplicação ao agir humano (“praxis”).
“Ethos” como costume, como hábito (“hexis”)
e como ato (“praxis”).

A ética é a ciência do “ethos”.


A ética filosófica é uma ciência que tem por objeto a realidade do “ethos”: um
fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e que se impõe à
experiência do indivíduo.
Procedendo-se a um estudo fenomenológico do “ethos” [isto é, a uma descrição do
fenômeno “ethos” (procedimento preliminar a todo tratamento científico de um
objeto)], observa-se que:

O “ethos” tem uma estrutura dual (uma dupla face):


ele é uma realidade sócio-histórica (social, portanto);
mas só existe concretamente na “praxis” dos indivíduos
(ou seja, é também uma realidade individual).
Socialmente, o “ethos” apresenta-se na forma de costume.
No indivíduo, o “ethos” apresenta-se na forma de hábito (“hexis”).

O termo “ethos” é uma transliteração de dois vocábulos gregos:


“ethos” (com eta inicial) = costume;
“ethos” (com epsilon inicial) = hábito.

“Ethos” (com eta inicial) significa:


o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social;
a realidade histórico-social dos costumes;
o costume socialmente considerado;
numa palavra: os costumes.
[Originalmente, “ethos” (com eta inicial) significava a morada, o covil ou o abrigo dos
animais.
Trata-se, como se vê, de uma transposição metafórica muito feliz, uma vez que os
costumes são a “morada” do homem, a “casa simbólica” do ser humano.
Com efeito, a partir do “ethos”, o mundo torna-se “habitável” para o homem.
Enquanto “espaço humano”, o “ethos” não é dado ao homem, mas é por ele construído
e incessantemente reconstruído.]
“Ethos” (com epsilon inicial) significa:
a constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo
“ethos” (com eta inicial);
a presença dos costumes no comportamento dos indivíduos;
o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e
legitimado pela sociedade;
o comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos
atos;
a disposição habitual para agir de uma certa maneira;
numa palavra: o hábito.

Hábito é o costume interiorizado pelo indivíduo.


Um hábito forma-se pela repetição de atos (“praxis”) que termina por resultar numa
“segunda natureza”.
[A rigor, “ethos” (com epsilon inicial) designa o processo genético do hábito;
o termo desta gênese, a sua forma acabada e o seu fruto,
é designado pelo termo “hexis”,
que significa o hábito como possessão estável.]

Assim, o costume (forma de aparição social do “ethos”)


leva o indivíduo a repetir determinados atos (“praxis”),
que constituem nele um hábito (“hexis”: forma de aparição individual do “ethos”), que
ajuda na transmissão e na perpetuação do costume.

Há, pois, uma circularidade causal dos três momentos:


costume (“ethos” - eta),
ação (“praxis”)
e hábito (“ethos” - epsilon / “hexis”):
o “ethos” como costume, na sua realidade histórico-social,
é princípio e norma dos atos (“praxis”)
que irão plasmar o “ethos” como hábito (“hexis”),
que, por sua vez, reforça o “ethos” como costume.
Ou ainda:
o costume (“ethos”) alimenta o hábito (“hexis”) porque leva à prática de atos
(“praxis”) de acordo com o costume (“ethos”);
e o hábito (“hexis”) de praticar atos (“praxis”) de acordo com o costume
(“ethos”) reforça o mesmo costume (“ethos”).
O costume é fonte das ações éticas,
e a repetição dessas ações acaba por plasmar os hábitos:
a ação é, portanto, a mediadora entre os momentos constitutivos do “ethos” como
costume e como hábito.

Nos três conceitos apresentados (“ethos”, “praxis” e “hexis”), estão representados


os três aspectos da ética:
no “ethos”, está a dimensão objetiva;
na “praxis”, a dimensão intersubjetiva;
e em “hexis”, a dimensão existencial do indivíduo ou subjetiva.

“Ethos” e razão: origem e definição da ética:

A origem da ética:
A ética, como disciplina filosófica, originou-se do saber ético.
Na tradição cultural da Grécia Antiga, nos séculos V e IV a.C., as expressões
privilegiadas do “ethos” (a religião e a sabedoria da vida) haviam perdido (ou vinham
perdendo) a credibilidade (a força de persuasão), configurando-se, assim, uma
conjuntura de crise do “ethos”.
Em resposta a esta crise, o saber ético recebeu uma nova expressão, uma nova forma
de linguagem: a linguagem do “logos” demonstrativo ou da ciência (“episteme”), tida
como capaz de conferir ao saber ético uma nova e mais eficaz força de persuasão.

Por sua própria finalidade de saber normativo, indicativo e prescritivo,


o saber ético é um saber antes vivido do que pensado.
É este saber que a ética filosófica se propõe a pensar.

Os “primeiros passos” da ética filosófica na Grécia Antiga:


A ciência nasceu na Jônia do século VI a.C. como ciência da natureza (“physis”).
A natureza é o domínio do universal e do necessário: as relações causais entre os
fenômenos naturais são sempre universais e necessárias.
Analogicamente, o “ethos” está para o mundo humano como a “physis” está para o
mundo da natureza.
Ocorre que o “ethos” não é universal como a “physis”, cujos fenômenos são sempre os
mesmos em qualquer que seja o contexto cultural em que são observados; o “ethos” é
particular: é sempre o “ethos” de uma determinada cultura histórica.
Ademais, embora pelo hábito ele adquira uma certa regularidade, o “ethos” é
irredutível a um tipo de explicação pela qual um fenômeno sucede necessariamente a
um outro fenômeno, comportando sempre a dimensão da liberdade de escolha dos
sujeitos éticos.
Coloca-se, então, o desafio teórico de pensar o “ethos” segundo o método e a
linguagem da ciência, isto é, de fundar a ética (ciência do “ethos”):
como conciliar o universal (da ciência) e o particular (do “ethos”)?
como conciliar o necessário (da ciência) e o livre (do “ethos”)?
Três abordagens deste problema (paradigmas) foram apresentadas: o
convencionalismo, o naturalismo e o intelectualismo (ou normativismo).
[1] O convencionalismo foi adotado pelos primeiros sofistas (p.ex.: Protágoras).
Segundo este paradigma, o “ethos” se fundamenta na simples convenção (“nomos”),
num “pacto social”.
A convenção é, deste modo, o universal do “ethos”, particularizado nas diversas
tradições e costumes.
[2] O naturalismo foi adotado pela última geração dos sofistas (entre eles, Górgias).
Conforme o naturalismo, a satisfação das exigências elementares da natureza,
manifestadas sem véus na tirania dos desejos e no imperativo do poder, responde à
pergunta “como devo viver?” (pergunta com a qual Sócrates inaugurara a reflexão
ética).
[Para dizê-lo mais extensamene, a questão socrática que está na origem da ética é:
“como devemos viver de acordo com nossa natureza de seres racionais e livres?”]
[3] O intelectualismo (ou normativismo) é o modelo fundamental da reflexão ética no
ocidente: trata-se do paradigma ético por excelência.
Originalmente socrático, este paradigma foi levado adiante por Platão e por
Aristóteles.
Em Platão, o bem (idéia suprema) é a norma do agir ético [trata-se de um paradigma
ideonômico: a idéia (bem) é a norma].
O bem não depende da convenção social nem se identifica com o determinismo da
natureza, representando, assim, a superação do convencionalismo e do naturalismo.

Fatores que favoreceram o surgimento da ética filosófica na Grécia Antiga:


Um dos fatores que favoreceu o surgimento da ética filosófica na Grécia Antiga
reside no fato de que, naquele tempo, a religião grega não se apresentava
formalmente como promulgadora de leis e mandamentos morais, não se constituindo,
portanto, como fonte primeira e instância última reguladora do “ethos”.
Isto permitiu que a nova razão científica se debruçasse sobre o “ethos” sem maiores
impedimentos.
Outro fator que favoreceu o surgimento da ética filosófica na Grécia Antiga foi o
advento do regime democrático e o estabelecimento da lei da cidade.
A homologia entre a lei da cidade e a lei do “kosmos” significou um poderoso estímulo
para que a razão demonstrativa, que já se exercia no domínio da lei do “kosmos”, se
estendesse também à lei da cidade.
A definição da ética:
A ética é um tipo determinado de saber,
que Aristóteles foi o primeiro a definir: saber prático.
[A ética é um saber da “praxis” e, ao mesmo tempo, um saber prático;
ela tem em vista não apenas o conhecimento do bem,
mas igualmente o propósito de tornar bom o seu praticante.]

A ética é um saber de natureza filosófica:


a ética tem uma natureza intrinsecamente filosófica;
há uma relação constitutiva entre ética e filosofia;
os problemas fundamentais da ética exigem o recurso à razão filosófica.
[Historicamente, a ética nasceu na Grécia dos séculos V e IV a.C. como disciplina
filosófica.
Toda a história do pensamento subseqüente atesta que a conceptualidade filosófica
é a única adequada para uma compreensão dos fundamentos da ética: a ética
fundamental é, necessariamente, uma ética filosófica.
Também teoricamente, e não apenas historicamente, pode-se afirmar o estatuto
filosófico da ética.]

O objeto da ética é o “ethos”: a ética é a ciência do “ethos” (cf. AULA 1 E 2).


[O “ethos” é um fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e que se
impõe à experiência do indivíduo;
é uma realidade que se apresenta à experiência com a mesma evidência inquestionável
com que se apresentam os seres da natureza:
a existência do “ethos” é uma evidência primitiva e indemonstrável.]

Segundo Tomás de Aquino, o objeto da ética é:


“a ação (ou operação) humana ordenada a um fim”;
ou ainda: “o homem enquanto age voluntariamente em vista de um fim”
Cumpre destacar nesta definição dois termos:
(1) a ação humana (“praxis”), e
(2) a sua ordenação a um fim (“telos”).
A livre ordenação deste ato a um fim por parte do agente é o que o caracteriza como
ato moral ou “praxis” ética.

A ação humana é a ação de um ser inteligente e livre, o que pressupõe uma


antropologia filosófica; já a questão do fim (questão teleológica) remete-nos a uma
metafísica.
Pode-se, então, afirmar que, para se estabelecer os fundamentos da ética, duas
disciplinas filosóficas são necessárias: a antropologia filosófica [concepção filosófica
do homem (sujeito ético)] e a metafísica [ciência do ser (bem, fim)].

O objetivo da ética é:
fundamentar (dar razão a, justificar racionalmente) o “ethos”.
Ou seja, trata-se, para a ética,
de tematizar a racionalidade implícita do “ethos”;
ou de explicitar a racionalidade imanente do saber ético.

Os dois grandes sistemas que dominam a história da ética filosófica são:


a ética do bem (Aristóteles), e
a ética do dever (Kant).

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