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Capitulo IV – Catimbó / Jurema

Não há porque supor que fatos análogos não se tenham reproduzido na história das
missões por todo o nordeste, onde dezenas delas foram fundadas, não apenas pelos
padres jesuítas, mas logo em seguida pelos capuchinhos, de início franceses, como é
o caso de Martinho e Bernardo de Nantes, e depois italianos, atuando esta última
ordem em torno das margens e ilhas do S. Francisco.
Todas essas missões foram marcadas pela mesma história de instabilidade, em virtude
dos conflitos com os fazendeiros, que disputavam com os padres o controle sobre a
terra e a massa indígena, requisitando-os para todo tipo de serviços e obras, bem
como expedições de combate aos índios arredios que assolavam as fazendas e o gado.
Assim sendo, a imagem que podemos formar desses tempos inseguros é a de um
sertão vasto, percorrido em todas as direções por tropelias de índios, "mansos" ou
"brabos", combates ferozes, missões fundadas e missões destruídas; terços militares
de índios, organizados por mercenários paulistas que acabavam por se assentar
como proprietários de terras e escravos nativos, e logo passavam a disputar os índios
com as mesmas missões que os tinham cedido para servir como soldados ou
prestadores de serviços.
Formava-se, assim, um quadro caótico que pouco a pouco ía conformando uma
sociedade nascente, onde a confusão favorecia o desmando e as ordenações régias
constituíam um simples apelo distante que os terratenentes cumpriam apenas na
aparência ou simplesmente descumpriam.
Podemos, então, imaginar o que se deu quando, por razões ultramarinas, o marquês
de Pombal finalmente derrotou aos jesuítas em sua luta pela consolidação do regime
absolutista em Portugal, e estes acabaram expulsos de todo o império em 1759,
inclusive da colônia, onde os aldeamentos foram "elevados" à condição de vilas
administradas pelos poderes locais; a mão-de-obra repartida e dispersada, o que
implicou no desaparecimento gradativo e inexorável de toda uma ordem
instaurada pelas missões e que durou pouco menos de um século, em meio a
instabilidades, mas que ainda assim deixou profundas marcas.
Muitas missões, por outro lado, eram conduzidas por padres de outras ordens
religiosas e puderam subsistir por mais tempo, sem que tivessem, contudo, a força
política dos jesuítas, ficando mais frágeis ainda ante os poderes locais, sobretudo
porque a coroa já começava a dirigir o principal de sua atenção para a área das minas
de ouro, relaxando sua preocupação com os sertões nordestinos, ao tempo em que a
própria administração colonial era transferida de Salvador para o Rio de Janeiro,
isolando ainda mais o sertão.
Dessa altura em diante, vemos este sertao cada vez mais densamente povoado por
toda uma camada de trabalhadores rurais mestiços, portadores de uma cultura
própria, marcada pelo isolamento do resto do país, cujos traços culturais fizeram
posteriormente a glória intelectual de Euclides da Cunha (1985) e seu panorâmico
retrato em "Os Sertões".
Sabemos, todavia, pela memória oral dos grupos indígenas que ainda hoje habitam
aqueles sertões, o quão intensa foi a sua participação no arraial de Antônio
Conselheiro, onde pereceram os últimos falantes de suas línguas nativas, e seus
principais pajés.
De fato, se o "culto de Uaraquidzam" não pode ser equacionado ao "culto do
Imperador" e o episódio de Canudos também não pode ser reduzido a tanto , é certo
que a participação dos índios naquele movimento indica sua identificação com o tipo
de religiosidade messiânica que alí teve lugar.
Nos relatos missionários desse primeiro momento do contato, não há qualquer
referência explícita à Jurema. Porém, há menção ao uso de bebidas rituais, sem que,
contudo, fossem especificadas.
O silêncio dos padres a esse respeito, e a consequente negligência em descrever
detalhadamente as bebidas, deve ser atribuído, sem dúvida, ao seu desconhecimento
do caráter xamânico da relação dos índios com as plantas, especialmente as
psicoativas como, de resto, com a natureza como um todo percebendo as beberagens
apenas como "embriagantes", e reduzindo-as, assim, à sua própria experiência
européia com as "bebidas".
Não admira que permitissem aos índios, mesmo aos supostamente cristianizados,
"com inalterável e nunca desmentida tolerância", "as danças, cantos, bebidas, com
tanto que em tudo houvesse o moderado resguardo, o próprio de seres humanos
dotados de razão", sem suspeitar que a "razão" indígena poderia possuir seus próprios
princípios.
Apesar da utilização ritual de bebidas ser quase que uma constante em qualquer grupo
indígena ou seja, sua presença não constituir nenhuma surpresa , é perfeitamente
lícito supor que entre essas bebidas se encontrasse a Jurema, talvez não com esses
nome, que é de orígem tupi, ao que tudo indica, porque, simplesmente, não haveria
outra razão capaz de explicar a onipresença de seu uso atual por quase todos os
grupos indígenas do nordeste, bem como pela população "cabocla" da região em geral.
É, aliás, da época da expulsão dos jesuítas a primeira referência de que tivemos notícia
acerca da utilização, por essas populações indígenas, da bebida da Jurema. Em meados
do século XVIII, seu uso já é o identificador de rituais e práticas proscritas pelos padres,
insistentemente conservadas pelos índios em meio à situação caótica em que se
encontravam mergulhados.
Que a jurema já era, de há muito, utilizada pelos indígenas de uma vasta região, se não
bastasse o argumento de ser ainda hoje conhecida e reverenciada, por praticamente
todos os grupos indígenas que hoje subsistem no nordeste, como elemento central de
seus rituais Ouricouri, Praiá ou Toré , o indica a notícia que dela temos para uma área
ainda mais distante que o Rio Grande do Norte e supostamente fora do âmbito
conhecido de sua difusão, como nos informa o vigário geral do rio Negro, Dr.José
Monteiro de Noronha, no seu "Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas
colônias do sertão da província", em 1768: "Os índios da Nação Amanajoz têm o furo
no beiço superior e o adornão com um canudinhodelicado de pennas amarellas, e
azues, de que também uzão nas orelhas, cujo furo é pequeno, e apertado, como o
beiço. Não são antropófagos, nem idolatras.
A sua religião é nenhuma. Há porém entre elles "Pithões", ou feiticeiros que só o são no
nome, fingimento e errada persuasão a quem consultam para predição dos sucessos
futuros, em que se interessam, e recorrem para a cura das suas enfermidades
mais rebeldes.
Nas cerimonias, ritos, bailes, adornos de pennas na rusticidade e cóstumes, não
diferem da Provincia do Amazonas. Nas suas festividades maiores usam os que são
mais habeis para a guerra da bebida que fazem da raiz de certo pau chamado - Jurema
- cuja virtude é nitidamente ”narcótica".
A difusão da Jurema e a insistência dos índios em recorrer secretamente a ela e aos
ritos aos quais estava ligada, atravessou todo o período colonial, mesmo quando estes
já se encontravam completamente inseridos no sistema produtivo das grandes
plantaçoes de cana-de-açúcar da zona da mata, onde seria de supor o abandono das
tradições e sua completa integração.
Entretanto, já às vésperas da independência da colônia, o que se nota é justamente o
contrário.
A essa altura, o encontro de crenças de procedências as mais diversas vai ganhando
atributos cada vez mais complexos, à medida que se vai cristalizando um quadro social
mais rico.
Pois, a imigração dos camponeses portugueses trouxe junto com eles um universo de
crenças riquíssimo, cujas origens se esfumaçam na noite dos tempos da mentalidade
ibérica.
Caboclos ou Índios, pouca distância os separava, ontem como hoje, e o trânsito entre
uma categoria e outra estava, como ainda está, muito mais ligado ao reconhecimento
dos estratos dominantes da sociedade que se formava ao seu redor, do que ao que
eles poderiam pensar de si mesmos.
As pressões sociais que desabavam sobre as ruínas do mundo de seus pais e avós com
a perda de suas terras, mesmo aquelas que lhes garantiam as missões até há pouco, e
sua incorporação como mão-de-obra semi escrava, davam-se num processo de
mudanças tão rápidas que as concepções nativas não poderiam mais integrar
totalmente nos termos estritos de seus universos simbólicos originais, quaisquer que
fossem.
Assim, o evolver dessas concepções não poderia senão dar lugar a tentativas as mais
desesperadas de resistir e se subtrair ao lugar social que gradativamente se reservava
a essas populações, e a presença de elementos culturais estranhos à cultura indígena
tradicional, ao invés de causar estranheza, é antes o que se deveria esperar nessas
situações.
Dessa maneira, no que concerne ao deslocamento gradativo do lugar social das
populações indígenas para os estratos mais baixos da nova sociedade, é interessante
observar como a derivação semântica do termo "caboclo" acompanha, no plano da
cultura regional, esse processo social que se dava concomitantemente.
O mesmo paralelo entre o deslocamento do lugar social do "caboclo" e a derivação
semântica do termo podemos fazer com o processo de penetração do uso da Jurema
no seio das camadas sociais que se constituíam, pois o conhecimento que dela tinham
os índios, e a importância que lhe atribuíam, logicamente acompanhava aqueles
homens aonde fossem.
Sem querer exagerar a importancia da planta, que ela, ou os significados em torno
dela, era um elemento cultural, entre outros, que se prestava para a constituição dos
novos sujeitos sociais: os "caboclos", como o fora para os "índios".

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