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DESCARTAR

Outro ideal apropriado na gestão neoliberal é o de empoderamento. Como

refletem Baquero (2012), Roso e Romanini (2014) e Cornwall (2018), existem

diferentes perspectivas de empoderamento, por ser um conceito relativamente recente

nas discussões científicas. Podem ser encontradas discussões a respeito das

potencialidades emancipatórias de processos de empoderamento, e também outras

problematizando o risco do caráter neoliberal e antiemancipatório de tais movimentos.

Entender estas diferentes perspectivas do empoderamento é fundamental para

compreender os lados producentes e contraproducentes, os paradoxos e contradições

destas relações.

Para Baquero (2012), o termo empoderamento começa a ser mais utilizado, pelo

menos de maneiras mais formais e documentadas, a partir do século XVI durante a

Reforma Protestante de Lutero sob o nome empowerment. Contudo, a utilização

crescente do termo se deu a partir da segunda metade do século XX, sobretudo a partir

da década de 1960, pelos movimentos relacionados à luta pela emancipação humana.

Baquero (2012) aponta que o empoderamento opera em níveis comunitários e

individuais. O empoderamento comunitário é um processo de mudanças nas estruturas

sociopolíticas; um processo pelo qual sujeitos e grupos se inserem em formas

participativas de discussão da realidade comunitária, a fim de atingir objetivos

coletivamente definidos, a partir de debates e reconhecimento de conflitos. É um

processo de articulação de diferentes interesses coletivos em busca da conquista de

direitos. Neste mesmo sentido, o empoderamento individual diz respeito à capacidade

de as pessoas se sentirem mais participativas nos processos que determinam suas


existências. O empoderamento individual é intra e interpessoal; é relacional, no sentido

de transformar as percepções as pessoas têm a respeito de suas interações.

Segundo Baquero (2012) os empoderamentos individuais e comunitários agem

no sentido de reequilibrar as estruturas de poder na sociedade. Porém, houve uma

apropriação “indevida” do termo, por conta de relações neoliberais e pela inserção da

ideia de empoderamento na realidade das organizações de trabalho. A autora afirma que

a apropriação organizacional do termo empoderamento gera uma redução do significado

desse processo ao nível do aumento da produtividade de sujeitos e grupos.

Sendo assim, como aponta Baquero (2012), o empoderamento individual, que se

destaca pela capacidade interpessoal de significação das relações, se diminui ao

conceito de self made man, onde, a partir de então, cada sujeito, isoladamente, se faz

pelo seu próprio esforço pessoal. Nesta noção deturpada do empoderamento individual,

o sujeito não trabalha para perceber suas relações, mas para evita-las, para aumentar

apenas sua autoafirmação enquanto sujeito isolado de outros. Roso e Romanini (2014)

entendem que, embora o empoderamento individual seja importante para transformar

sujeitos a partir de suas relações com os outros, este processo pode ser passível de

enfoques ilusórios, criando noções de sujeitos independentes uns dos outros.

É neste sentido que Cornwall (2018) aponta o paradoxo do empoderamento

individual. A autora se utiliza do termo light empowerment para afirmar que, por conta

das relações neoliberais e das noções de empoderamento a serviço do desenvolvimento

e do progresso, o termo foi destituído de toda e qualquer confrontação com a realidade

social e da reflexão sobre as iniquidades materiais e sociais.

Sendo assim, para Cornwall (2018), o termo caiu em um uso individualizado de

autoempoderamento, onde cada um é responsável por si. O foco passou a ser o

crescimento individual numa noção atomizada, baseada em interesses próprios de cada


indivíduo. Neste sentido, o autoempoderamento gera ilusões de indivíduos

autoempreendedores, autorrealizadores, auto libertários.

Capítulo I: A Subjetivação na Relação com a Realidade

A Individualidade Enquanto Interdependência Social

Para Elias (1994) nenhuma pessoa está fora do campo social, e é justamente por

participar deste constante processo relacional, em rede com outras pessoas, que nos

fazemos humanizados. Os indivíduos sempre existem e só existem por se comporem em

níveis fundamentais de relação uns com os outros. “Não existe um grau zero da

vinculabilidade social do indivíduo, um ‘começo’ ou ruptura nítida em que ele ingresse

na sociedade como que vindo de fora, como um ser não afetado pela rede” (p. 31).

Considerados num nível mais profundo, tanto os indivíduos quanto a sociedade

conjuntamente formada por eles são igualmente desprovidos de objetivo.

Nenhum dos dois existe sem o outro. Antes de mais nada, na verdade, eles

simplesmente existem – os indivíduos na companhia de outros, a sociedade

como uma sociedade de indivíduos [...]. e essa existência não finalista dos

indivíduos em sociedade é o material, o tecido básico em que as pessoas

entremeiam as imagens variáveis (Elias, 1994, p. 18).


Todas as ações ou quaisquer questões da existência individual se emaranham

com as de outras pessoas e produzem consequências na rede relacional. Cada pessoa

está vinculada a outra, mesmo que desconhecida, por laços invisíveis e de dependência

funcional. “Os tipos mais díspares de funções tornaram-na dependente de outrem e

tornaram outros dependentes dela. Ela vive, e viveu desde pequena, numa rede de

dependências que não lhe é possível modificar ou romper” (Elias, 1994, p. 22).

Na complexidade das sociedades ocidentais, os indivíduos se vinculam

continuamente e formam cadeias relacionais. A ação de qualquer pessoa só é possível

porque outras pessoas também cumprem outras ações e funções dentro da rede, assim

como a ação de uma pessoa isolada resulta na produção da ação de outras pessoas.

“Cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente

dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas,

assim como todas as demais [...] são elos nas cadeias que a prendem” (Elias, 1994, p.

23).

Toda pessoa se faz como parte de uma interligação de pessoas, de um “todo

social”, não importa qual seja ou sua configuração cultural. Neste processo, cada ser

humano é constituído através de sua criação por outros seres humanos que já existiam.

A condição básica da existência individual é a inserção na existência simultânea de

várias pessoas que se relacionam.

Juntos, eles compõem um continuum sócio-histórico em que cada pessoa cresce

– como participante – a partir de um determinado ponto. O que molda e

compromete o indivíduo dentro desse cosmo humano, e lhe confere todo o

alcance de sua vida não são os reflexos de sua natureza animal, mas a

inerradicável vinculação entre seus desejos e comportamentos e os das outras


pessoas, dos vivos, dos mortos e até, em certo sentido, dos que ainda não

nasceram – em suma, sua dependência dos outros e a dependência que os outros

têm dele (Elias, 1994, p. 43).

As relações entre as pessoas têm papel fundamental na composição de cada

indivíduo singular. A rede humana, esta estrutura reticular, mostra que a

interdependência que temos uns com os outros sujeita o indivíduo. Desta forma, o que

se chama de individualidade e a própria interrelação social não são opostas ou

antitéticas.

Além disso, a própria noção de individualidade, bem como suas formas de

constituição e de diferenciação, só se desenvolve pela pertença das pessoas em grupos,

ou em sociedades. “Cada pessoa só é capaz de dizer ‘eu’ se e porque pode, ao mesmo

tempo, dizer ‘nós’. Até mesmo a ideia ‘eu sou’, e mais ainda a ideia ‘eu penso’,

pressupõe a existência de outras pessoas e um convívio” (Elias, 1994, p. 57).

A criança que nasce, até então com funções mentais ainda indiferenciadas,

somente transforma seus impulsos e sua condição de desamparo em processos

psicológicos mais complexos, numa posição de indivíduo, na relação de

interdependência com outros seres humanos. “Isolada dessas relações, ela evolui, na

melhor das hipóteses, para a condição de um animal humano semisselvagem (Elias,

1994, p. 27).

Uma vez que o controle relacional relativamente indiferenciado da criança

recém-nascida só se torna diferenciado e regulado por meios humanos na relação

com outros seres humanos, o que emerge como “alma” do indivíduo adulto não
é estranho à sociedade e associal “em si mesmo”, mas algo que, já em sua

própria base, constitui função da unidade relacional [...] (Elias, 1994, p. 39).

Termos muito comuns para a atualidade, como “mente”, “razão”, “eu”, e até sua

aparente oposição com “alma”, “sentimento” e “outro”, não são dados por natureza. O

reconhecimento de funções psíquicas, com suas diferenças conceituais e na forma como

atuam na divisão do psiquismo humano, só acontece pelo fato de a pessoa nascer e

pertencer a uma sociedade de pessoas.

Tais funções não se regulam por um trabalho biológico ou por um mecanismo

naturalmente herdado, como o crescimento físico e dos órgãos, mas por conta da

interrelação social. As funções psíquicas se produzem enquanto tal porque se veiculam

para a relação com a realidade, “são formas particulares de autorregulação da pessoa

em relação a outras pessoas e coisas” [grifo do autor] (Elias, 1994, p. 36).

Pensar a individualidade enquanto um processo que se desenvolve nas relações

com as pessoas não significa entende-la como algo passivo. O que se molda no

indivíduo a partir das interdependências é um centro ativo. Existe uma autorregulação

do indivíduo, que se dá na relação com os outros e limita a autorregulação destes outros

sujeitos, assim como a autorregulação destes limita o indivíduo. “Dito em poucas

palavras, o indivíduo é, ao mesmo tempo, moeda e matriz” (Elias, 1994, p. 52).

A característica especial desse tipo de processo, que podemos chamar de

imagem reticular, é que, no decorrer dele, cada um dos interlocutores forma

ideias que não existiam antes ou leva adiante ideias que já estavam presentes.

Mas a direção e a ordem seguidas por essa formação e transformação das ideias

não são explicáveis unicamente pela estrutura de um ou outro parceiro, e sim


pela relação entre os dois. E é justamente esse fato de as pessoas mudarem em

relação umas às outras e através de sua relação mútua, de se estarem

continuamente moldando e remoldando em relação umas às outras, que

caracteriza o fenômeno reticular em geral (Elias, 1994, p. 29).

Fica evidente, então, que individualidade e condicionamento social, mesmo que

entendidos como opostos ou separados, nas nossas sociedades, são duas funções

recíprocas, que se produzem nas interações e que não existem isoladamente. A relação

mútua entre individualidade e condicionamento social diz da influência que o indivíduo

sofre dos outros semelhantes e do que ele influencia na produção dos outros, da

“dependência que os outros têm dele e a sua dependência dos outros; são expressões de

sua função de matriz e moeda” [grifo do autor] (Elias, 1994, p. 56).

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