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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE NACIONAL DE DIREITO - FND


SOCIOLOGIA GERAL
PROF. DRA. MARIANA TROTTA
TURMA C

A RESISTÊNCIA DOS POVOS TRADICIONAIS EM CENTROS


URBANOS: LUTAS, DESAFIOS E MOTIVAÇÕES

ANA BEATRIZ SCHITTINO, CAIO SADOCCI, CINTHIA SOBRAL, FERNANDA


GIACONNOSE, GABRIEL FIGUEIREDO, GABRIELA SANTOS, ISABELA LYRA,
LORRANY GUARABU, LUANA BENTO e RAPHAELLA MADEIRA.
SUMÁRIO

1. Introdução 2
2. O Sapê do Norte 3
3. A Aldeia Maracanã e os povos indígenas 11
4. Considerações finais 17
5. Referências bibliográficas 19

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo principal deste trabalho é fazer uma análise crítica da situação enfrentada por
povos tradicionais nos grandes centros urbanos. Contudo, nesta pesquisa, utilizaremos como
foco principal os povos indígenas e quilombolas por meio da análise de caso da Aldeia
Maracanã, localizada no Rio de Janeiro, e do Sapê do Norte, região com presença expressiva
de quilombolas no Espírito Santo. Ambos os casos servem de ferramenta para ilustrar as
dificuldades enfrentadas pelos povos tradicionais como um todo.
Os povos tradicionais são grupos étnico-raciais que se auto identificam como
tradicionais por possuírem uma forma própria de organização e relação com o espaço em que
vivem, usando os recursos naturais como forma de sobrevivência e reprodução de suas
culturas. Além dos citados anteriormente, no Brasil, também temos os seringueiros,
ribeirinhos, pescadores, jangadeiros, entre outros. Nesse sentido, são grupos que possuem
fortes vínculos com seus espaços por meio da noção de pertencimento, visto que a moradia
em seus respectivos lugares é passada de geração em geração.
Os indígenas compõem um grupo étnico que é reconhecido como o conjunto de
primeiros habitantes do Brasil e que, com o passar da história, foram vistos sob lentes da
superioridade racial, sendo subjugados e escravizados pelos invasores europeus. Apesar disso,
o Brasil é um país que ainda possui uma grande pluralidade desses grupos étnicos, tendo mais
de 305 etnias presentes em nosso território e mais de 274 línguas nativas (IBGE, 2010).
Em outro âmbito, com a Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 1888, houve a
abolição formal da escravidão no Brasil, mas na prática, o objetivo desta não foi concretizado
devido à ausência de políticas voltadas para a integração dos negros recém libertos na
sociedadade brasileira. Logo, a resistência dos negros foi de extrema importância e esta foi
dada majoritariamente pela formação dos quilombos.
Os quilombolas são os descendentes de escravos fugitivos que se organizaram nestes
grupos mencionados anteriormente. Ao longo da história do Brasil, vários quilombos foram
registrados, sendo o Quilombo dos Palmares o mais conhecido por ter agrupado mais de 20
mil negros ex-escravizados e ter representado a maior forma de resistência no período
colonial brasileiro. Nos tempos atuais, segundo dados do IBGE, em 2019, existiam 5.972
localidades quilombolas em nosso território. A maior parte luta para preservar sua cultura e
seu modo de vida, porém vivem em condições precárias pela falta de acolhimento e
reconhecimento do governo e da população. Nessa perspectiva, há uma semelhança

2
expressiva com relação à violência e discriminação que esses povos sofrem, tendo suas áreas
desmatadas pelo agronegócio e o extrativismo não sustentável, o que evidencia o perigo para
o modo de vida dessas populações.
Estas mazelas estenderam-se por centenas de anos até o dia hodierno e seus espaços
não são respeitados e suas vidas não são preservadas. Além disso, mesmo com a Constituição
de 1988 (100 anos após a abolição) concedendo direitos às comunidades tradicionais, muitos
encontram-se vulnerabilizados, sendo violentados e oprimidos por consequência de políticas
racistas e anti-indigenistas.
Nesse sentido, é notório que a reprodução de uma lógica racista afeta as condições
desses povos tradicionais, que têm seus direitos básicos violados, como o reconhecimento de
seus territórios e o acesso à saúde, educação e alimentação.

2. O SAPÊ DO NORTE

O Sapê do Norte é o conjunto das comunidades quilombolas situadas no extremo norte


do Espírito Santo, mais especificamente na região correspondente aos municípios de São
Mateus e Conceição da Barra. Atualmente é composto por 30 comunidades e cerca de 1200
famílias.
Em sua formação original, a região era formada por 12 mil famílias distribuídas entre
mais de 100 comunidades. Durante o período militar, sob a influência dos ideais progressistas
vigentes, aproximadamente 90% dos habitantes foram obrigados a se deslocarem para as
periferias dos centros urbanos, devido à intensificação do agronegócio na região. Essa questão
culminou no desmatamento exacerbado, além da contaminação da região por agrotóxicos e,
consequentemente, redução drástica da qualidade de vida nos quilombos. As monoculturas de
cana e eucalipto tiveram como consequência, não só a contaminação das nascentes dos rios da
região, mas também a formação dos chamados "desertos verdes".
Em suma, a atuação de empresas exploradoras de matéria prima no Sapê do Norte foi
responsável pela degradação ambiental do local e pelo desrespeito com os povos tradicionais.

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2.1. O Sapê do Norte através do tempo

O Sapê do Norte foi uma região conhecida por abrigar uma massiva concentração de
escravos no decorrer dos séculos XVIII e XIX. O intenso comércio humano deu-se por meio
do rio Cricaré, especialmente no município de São Mateus.
Inicialmente, os quilombos no norte do Espírito Santo começaram a surgir como resposta
à violenta política escravista proposta pelo modelo econômico da Coroa portuguesa
(FERREIRA, 2009). Tais comunidades eram formadas majoritariamente por negros trazidos
de África, que não suportando mais a contínua violência nas áreas produtoras de farinha de
mandioca, fugiam e formavam esses núcleos dentro da Mata Atlântica que proporcionava
certo isolamento e proteção para esses povos:

"Sua situação de relativo isolamento era favorecida pelo quadro natural da densa
floresta tropical e as dificuldades que impunha a sua penetração, acompanhado da
resistência dos indígenas na defesa de seu território - fatores que deixaram o norte do
Espírito Santo em situação quase inatingível pelos grandes projetos de desenvolvimento
até meados do século XX." (FERREIRA, 2009, p.2).

Essas comunidades são expressões reais de um cenário de extrema exploração de corpos


negros, historicamente violados e desconsiderados pela elite brasileira em diferentes
momentos. Nesse sentido, cabe ressaltar que o homem negro no período inicial, no qual esse
artigo se propõe a estudar, era considerado um "animal" despossuído de alma e era entendido
tão somente como mão de obra desqualificada. Portanto, não havia diferença entre o homem
negro e o boi usado, por exemplo, para carregar água.
Embora no século XVIII o Brasil - na época, uma colônia pouco articulada do Império
Português (JANCSÓ; PIMENTA, 2000) - já tivesse deixado de ser colônia de Portugal, o
sistema econômico não foi alterado. A lógica do plantation – grandes latifúndios voltados
para a monocultura e posterior exportação com a utilização de mão de obra escrava – era
aplicada nas fazendas do Espírito Santo. No que tange à mão de obra escrava, é fácil
encontrar comprovações que demonstrem a violência sofrida por esses corpos negros, como
por exemplo, o fato de que a farinha de mandioca era usada como escambo para a aquisição
de mão de obra escrava pelos grandes latifundiários. Nessas transações, é possível ver
claramente a objetificação do corpo preto e a sua mercantilização. Paralelamente, em meados
do século XIX, esse mesmo povo representava mais de 60% da população total do município
de São Mateus e mesmo assim não houve por parte da minoria elitista uma humanização
dessa população e a condição de escravizado não foi reconsiderada.

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Num panorama nacional, somente em 1888, com a assinatura da abolição da escravatura
pela princesa Isabel, que essas comunidades quilombolas saem da condição de ilegalidade e
crescem consideravelmente. Infelizmente, esse crescimento está atrelado à Lei de Terras
(1850) que dificulta e praticamente impossibilita que o recém liberto tenha acesso à terra para
sobreviver. Todavia, na região do Sapê do Norte, a Lei Eusébio de Queiroz culminou na
desvalorização da produção de farinha de mandioca o que propiciou o abandono de muitos
latifúndios e fazendas com a tecnologia produtiva, como salienta Simone Ferreira.
A desvalorização da farinha de mandioca e a paralela ascensão da agricultura cafeeira em
São Paulo criou um grande fluxo migratório em direção aos cafezais. O abandono das
fazendas de mandioca pela classe senhorial representou uma possibilidade de acesso à terra
para os negros que rapidamente se apropriaram delas. A ausência de interesses capitalistas sob
o Sapê do Norte facilitou a consolidação dessas comunidades que construíram seus modos
de vida conjugados à presença de uma natureza farta e diversificada (FERREIRA, 2009).
Mesmo com o crescimento dos quilombos do Sapê do Norte, a configuração do espaço
apropriado pelos antigos escravos, que passaram a se constituir enquanto campesinato após o
fim da escravidão e a desagregação econômica das fazendas, se manteve baseado sob a lógica
do uso comum. Em outras palavras, os recursos supriam sua existência por meio da pesca,
caça, agricultura e extrativismo, complementado por uma rede de trocas dentro do próprio
núcleo ou com comunidades próximas (FERREIRA, 2009).

2.2. O avanço das monoculturas sobre os quilombos

A degradação e apropriação insustentável e desumana da região do Sapê do Norte, a


princípio, foi produto direto do consenso entre as ambições internacionais, privadas e
estatais. A partir da segunda metade do século XX, a necessidade de evolução do sistema
produtivo nacional entrou em consonância com a comunidade internacional, que
incentivava a produção de matéria prima em países subdesenvolvidos1 para abastecer sua
demanda, resultando em uma janela de oportunidades para empresas de potencial
industrial, como aponta Ferreira:

1
Os que apresentassem condições propícias para o cultivo lucrativo, como legislação flexível, clima e
solo adequados, além da mão-de-obra barata.

5
“Este momento conjugava o interesse privado das empresas, o apoio do Estado e as proposições de
órgãos internacionais como a FAO, que preocupados com a geração de excedentes desses recursos
estratégicos para o uso industrial, a partir da década de 1960 passaram a subsidiar programas de
expansão da produção florestal em países como o Brasil” (FERREIRA, 2002, p. 94)

No caso particular do Espírito Santo, via-se a necessidade de rompimento com a


dependência das lavouras de café e cana de açúcar, o que permitiu a penetração do ramo da
celulose no estado. A partir dessa perspectiva, foram disponibilizados mecanismos para
possibilitar o incentivo à produção de monoculturas que visassem à exportação. A exemplo
disso, tem-se o novo Código Florestal de 1965 (Lei n° 4.771/65), que, ao mesmo tempo em
que mantinha normas de preservação, fornecia brechas para a expansão de monocultivos
(JUS.COM.BR, 2017). Além dessa norma, em 1974, é criado o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND), cujas características consistem na intervenção estatal, por meio da
iniciativa de investimentos e condução de projetos, e do financiamento da economia, por via
da captação de recursos internacionais (MENEZES; SCHERMA; MIYAMOTO, 2016). O II
PND tinha como objetivo declarado ascender o Brasil à condição de potência emergente
(tirá-lo da posição de país de terceiro mundo). Esse anseio pelo desenvolvimento, por via da
industrialização, foi tão intenso que transpassou as diversas camadas da sociedade a ponto de
estabelecer como hegemônico o ideal majoritariamente positivo acerca das atuações do setor
empresarial industrial brasileiro na área rural. Isso foi notado pelo grupo durante a entrevista
realizada com Marialva da Silva, ex-Diretora Geral da Brasil Ambiental, empresa responsável
pela gestão de resíduos industriais. Na entrevista buscamos compreender a perspectiva do
empresariado acerca da sua relação com as comunidades do norte do estado e as respostas da
entrevistada deixaram transparecer a presença de um pensamento hegemônico. Este último é
caracterizado pela ausência de uma ponderação consciente e ampliada sobre o impacto de
suas próprias ações, podendo até ser feito um paralelo em alguns aspectos com o ideal de
missão civilizatória presente durante a colonização portuguesa na América.
A Aracruz Celulose (AC), atual Fibria2, após ser comprada pela companhia Votorantim
Celulose e Papel (VCP) em 2009, é uma das gigantes que promoveu ofensivas contra o Sapê
do Norte. A empresa chegou no estado e se instalou em Aracruz em 1967 e, poucos anos
depois, estendeu sua área de atuação para São Mateus e Conceição da Barra, municípios
vizinhos, região onde há concentração de quilombos remanescentes. Segundo o relato de
Jorge Alexandre da Silva, 68, residente do Sapê do Norte, no início do processo de

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Líder mundial no mercado de produção de celulose branqueada.

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implantação da indústria, foram ofertados cerca de 25 mil empregos para a população rural,
prometendo uma melhor qualidade de vida. Todavia, Jorge aponta a relação entre a empresa e
os indivíduos como trabalho escravo. A AC empregava os habitantes da região sem nenhum
vínculo trabalhista e garantias formais de condições seguras e estáveis de trabalho, ao mesmo
tempo em que passava uma falsa imagem de que a empresa estaria levando o progresso à
região.
Após alguns anos, em vista da intensificação do conflito de terra e das consequências do
desmatamento, a população começou a coletar as pontas dos galhos do eucalipto e
transformá-las em carvão como alternativa de subsistência. Isso transcorreu bem até o
momento em que a empresa se desenvolveu o suficiente a ponto de conseguir aproveitar os
galhos no processo produtivo. A aparente harmonia foi desestruturada com a implantação de
políticas de criminalização da coleta dos galhos, por meio da mão da polícia, para criminalizar
os remanescentes quilombolas que faziam a coleta. Ou seja, uma das únicas formas de
geração de renda restantes, decorrente da invasão das terras e destruição dos recursos naturais
que por séculos garantiram a sobrevivência daquele coletivo, passou a ser criminalizada.
Algumas décadas posteriores de exploração da terra, pode-se dizer que, além dos ganhos
econômicos bem vistos aos olhos do capitalismo, a principal herança da AC na vida dos
indivíduos que habitam os quilombos atualmente é a homogeneidade do deserto verde. Onde
as comunidades baseavam sua subsistência, antes era ornada a diversidade da Mata Atlântica.
O território que fora ocupado pelos quilombolas e seus descendentes na progressão dos
séculos foi onde basearam sua cultura e sua resistência frente à escravidão e os resquícios por
ela deixados. Em outras palavras, o local por eles habitado, que ofertou a reestruturação de
suas vidas nos séculos XIX e XX, foi brutalmente arrancado de suas mãos, uma vez que a
onda desenvolvimentista chegou ao estado. Altiane Blandino, quilombola da comunidade de
São Domingos conta que eles não possuíam as escrituras das terras, visto que seus
antepassados passaram a ocupá-las como mecanismo de fuga à escravidão. Isso foi um dos
facilitadores para a AC conseguir o acesso às terras e ser declarada proprietária, despejando,
então, inúmeros moradores (FADNES, 2015). Jorge conta: “Os que resistiam eram tirados na
bala, na violência.”. Esse caso não é isolado, é apenas uma exemplificação da recorrente
violência estrutural e institucional contra as comunidades e povos tradicionais brasileiros.
De acordo com o relato de dona Maria Benedita da Conceição, moradora da comunidade
São Domingos, os quilombolas do norte do ES desenvolveram uma relação profunda e
harmônica com o meio em que viviam. A relação do Sapê do Norte com suas terras e com a
natureza é intrínseca às suas dinâmicas sociais, culturais, religiosas e econômicas. Todavia,

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com a chegada da transnacional de celulose, a continuidade do seu estilo de vida foi
impossibilitada. A moradora lamenta a situação vigente provocada pela firma e relata
saudades em relação aos tempos passados, visto que o plantio e o fluxo de água haviam sido
brutalmente alterados em consequência do desmatamento colossal.

“Aí que entrou essa firma que foi destruindo. Nós não tem mais nossos peixes, não tem mais nossas caças,
nossos córregos [...] Agora nós não tem mais nada disso[...] isso tudo acabou né.” (Dona Maria Benedita da
Conceição, 2012) 3

Além de apropriar terras antes pertencentes às comunidades quilombolas, o modelo de


plantio utilizado pela empresa (monocultura em milhares de hectares) é extremamente
maléfico ao meio ambiente. Conforme apresentado pelo Comitê Norueguês em Solidariedade
com América Latina (LAG Noruega), o cultivo de eucalipto em larga escala e a longo prazo,
como é o caso da Fibria, contribuiu para o desmatamento de 90% da cobertura original da
Mata Atlântica, segundo a ONG WWF. O ressecamento da hidrografia regional reduz
drasticamente a biodiversidade e induz à erosão do solo (FADNES, 2015). Ademais, é
fundamental pontuar a quantidade demasiada de agrotóxicos utilizados com intuito de se obter
a máxima produtividade de eucaliptos. Essas condições refletem a alteração do ciclo da água
(o que impacta diretamente na produtividade das plantações de subsistência) que, por sua vez,
promovem o desequilíbrio das teias alimentares. Ademais, resultam na contaminação, não
somente dos quilombolas, mas de inúmeros habitantes da região e de animais, culminando em
malefícios para toda a dinâmica biológica de uma região e até mesmo de um ou mais biomas.
Jorge relata a redução do nível de água, a contaminação geral das bacias hidrográficas e o
adoecimento de muitas pessoas. Um exemplo dado por ele da consequência direta na saúde da
população é o número preocupante de pessoas que desenvolveram cegueira e que faleceram
por intoxicação.

2.3. Movimentos de resistência e retomada das terras

Em meio às alterações fundiárias e ambientais na região do Sapê do Norte, a população


tradicional resiste. A devastação da floresta e a contaminação da água — o que torna o
alimento escasso e a produção agrícola praticamente inviável — são graves problemas que
ameaçam o uso das terras pelas comunidades quilombolas. Ainda assim, os grupos familiares

3
Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=X53JJuK0BaQ&t=1s

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que permanecem no local realizam formas de resistência cultural por meio de festividades,
rituais religiosos e a transmissão oral de saberes ancestrais, que concretizam a identidade e a
força dos povos tradicionais, além da busca por amparo judicial para a manutenção de seus
espaços. Entre essas comunidades que lutam contra a exploração ambiental e recorrem pela
titulação de seus territórios estão as comunidades de São Cristóvão, Serraria, Bacia do Rio
Angelim, Rota d’ Água e São Domingos.
No dia 29 de Julho de 2006, 300 moradores de comunidades quilombolas do Sapê do
Norte realizaram atos em busca da retomada dos territórios. Movimentos como a Rede Alerta
Contra o Deserto Verde, Movimento Sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA) prestaram apoio aos quilombolas e protestaram contra a atuação da
Aracruz Celulose. A plantação de eucalipto na região teve início na década de 70, e, desde
então, ativistas ambientais e habitantes da região se mobilizam contra a tomada de terras para
a monocultura. No dia dos protestos, Domingos Firmiano dos Santos, integrante da Comissão
Quilombola do Sapê do Norte, afirmou: “Queremos a terra que produz para as gerações
futuras, não o eucalipto”. Além disso, para Gildásio da Costa Paim, que integra a direção
estadual do MST, a Aracruz representaria as multinacionais na agricultura, e esse tipo de
plantio não deixa espaço para a produção de alimentos, visto que danifica a qualidade do solo.
(CISTATI, 2006).
Dentre as reivindicações expressas pelos habitantes do Sapê do Norte, destacam-se a
regularização e a retomada dos territórios quilombolas. Em um manifesto escrito no ano de
2009 pelo Observatório Quilombola e Territórios Negros, exprime-se a defesa ao Decreto
4887/03. Tal decreto expõe os trâmites administrativos para a identificação, o
reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O documento foi redigido
durante o mandato de Miguel Soldatelli Rossetto, Ministro do Desenvolvimento Agrário entre
os anos de 2003 e 2006. (OBSERVATÓRIO QUILOMBOLA, 2009).
Em entrevista, o correspondente do jornal Século Diário, Jorge Alexandre da Silva,
morador do Sapê do Norte, relata conflitos recorrentes entre a polícia militar e os quilombolas
na região:
“Um negro de linha guerreira foi muito perseguindo. Eles acharam um mandato de
prisão contra o filho dele. Fizeram um espetáculo, mais de 200 policiais para prender o
filho desse negro, tinha policia rodoviária federal, bombeiro, polícia com cavalo [...] E
sabe onde era a base de atuação deles? No escritório da Aracruz celulose, era lá que eles
ficavam.”

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Além dos episódios marcantes como o citado acima, o morador também destacou o
tratamento diferenciado pelas autoridades em relação aos grandes latifundiários e os
integrantes dos quilombos. Um desses exemplos foi o protesto em 2014 em que os
fazendeiros ocuparam com tratores uma importante rodovia do Espírito Santo reivindicando
melhores condições da estrada. O protesto seguiu sem interrupções e contou com a presença
da polícia rodoviária federal que participou do ato de forma pacífica. Dias depois, quando os
moradores dos quilombos do Sapê do Norte foram ocupar a rodovia para manifestar os
mesmos interesses dos fazendeiros, foram recebidos com bombas de gás lacrimogêneo, tiros e
agressões. Sobre isso, o entrevistado relata: “Na verdade, aqui temos um conflito social grave
numa clara luta de classes”.
Ademais, a busca pela reconversão dos monocultivos para agroecologia e recuperação
das nascentes, rios e córregos, deve ser feita a fim de assegurar a segurança alimentar dos
povos tradicionais dependentes da terra. Desse modo, em 2020, moradores do Sapê do Norte
organizaram mutirões no quilombo Linharinho voltados para recuperação dos solos
explorados pela Acracuz Celulose. O projeto conhecido como “Retomadas do Território
Quilombola Tradicional do Sapê do Norte” visa resgatar e recuperar as terras utilizadas
indevidamente para o plantio de eucaliptos, por intermédio da reconversão do solo, a fim de
que os povos tradicionais da região possam realizar o plantio de subsistência (SÉCULO
DIÁRIO, 2020). Além disso, movimentos como a "Rede Deserto Verde" e o "Projeto
Quilombos" organizam e executam atos e manifestações, com o propósito de pressionar as
autoridades e garantir seus direitos. O MST, em 2001, realizou a ocupação de uma
propriedade da Aracruz Celulose, destinando o espaço para 80 famílias do Sapê do Norte
(FERREIRA, 2002). Dessa forma, a resistência dos grupos quilombolas em consonância com
o aparato jurídico mostra-se indispensável na garantia de seus direitos ao território do Sapê do
Norte. A luta pela reconquista dos espaços antes destruídos pela imposição da lógica da
propriedade privada e exploração ambiental representa a força dos movimentos sociais que,
apesar das adversidades, persistem em prol da recuperação ambiental e preservação da cultura
dos povos tradicionais que ali habitam.
A situação de violência e desrespeito vivenciada pelas comunidades quilombolas do
Sapê do Norte, assim como relatado no presente artigo, é o retrato exato da soberania do
agronegócio em detrimento da preservação ambiental e da proteção da vida e cultura dessa
população. Sob as análises e coletas de informações, compreende-se a Fibria, antiga Aracruz
Celulose, como sujeito ativo da degradação fomentada pelo protagonismo do agronegócio na
economia espírito santense.

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O caso exposto acima reflete as práticas abusivas de empresas extrativistas e exploradoras
de matéria prima. As ocupações irregulares, além de contribuírem para a poluição das
nascentes dos rios e dos solos, corroboram a insegurança alimentar, visto que as terras
utilizadas para o plantio estão contaminadas. Ademais, a ação da Aracruz Celulose resulta na
superpopulação nas aldeias quilombolas, devido ao crescimento do contingente populacional
em espaços reduzidos pelas ocupações ilícitas.
Em vista disso, os movimentos de luta seguem no árduo comprometimento pelo seu direito
de re-existirem nas terras ancestrais, carregadas de representações étnicas e sociais. Sua
vitória, frente aos órgãos públicos e cooperativas, nem sempre é constante. Todavia, um fato
compreendido ao estudar a fundo o Sapê do Norte é a certeza de que suas batalhas serão
eternizadas, tanto em memória dos que se foram ainda sem ver a recuperação da vida naquela
região, quanto por aqueles que tomam essa causa como pauta fundamental.

“A gente fica com muita saudade porque o que era quando a gente nasceu e o que tinha, agora a gente
não vê mais.” (Dona Maria Benedita da Conceição, moradora da comunidade São Domingos)

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3. Os povos indígenas e a Aldeia Maracanã

3.1. A territorialidade

Os povos indígenas, possuidores de forte conhecimento e ancestralidade, são


diariamente vítimas de ataques advindos da fúria do capitalismo extrativista. Racismo,
invisibilidade, arquivamento no passado colonial, perdas territoriais. São diversos os desafios
enfrentados pela comunidade indígena brasileira, sempre com luta e união entre seus povos, e
que revelam a assimetria que afasta os povos tradicionais de seus direitos mais básicos.

Historicamente, a luta pelo direito aos seus territórios exige que diferentes estratégias
sejam adotadas pelos povos originários. O imperialismo europeu baseava-se na expropriação
de territórios pertencentes às comunidades tradicionais, enquanto que o capitalismo em sua
característica expansível e destrutiva, buscava a acumulação de excedentes da produção
agrícola. Ambos levaram à opressão e apagamento desses povos. Finalmente, com a
urbanização abrupta ocorrida no Brasil, houve cada vez mais um aumento no distanciamento
entre as preocupações econômicas e sociais, agravando, em especial, a questão fundiária.
(BRUZIGUESSI, 2021).

A retirada de posse dos territórios tradicionais está não somente relacionada à questão da
propriedade e da subsistência e produção, mas também à perda gradativa da identidade de
povos diversos. Essas invasões são uma afronta à cultura, aos costumes, à religiosidade e às
famílias nativas do país. A perpetuação de suas tradições e saberes é profundamente
impactada quando há uma desapropriação de um povo sobre suas terras. Essa imposição
também é fruto do mecanismo capitalista, que visa impor sua cultura sobre outros povos, a
fim de intensificar sua dominação, levando a uma subordinação formal (COUTINHO, 2011).

As vulnerabilidades ambientais, socioeconômicas e epidemiológicas impostas aos


povos indígenas é evidente (MARINHO et. al, 2021). Segundo o Censo Demográfico
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, os domicílios
indígenas apresentam maiores chances de ter saneamento básico precário. Nesse estudo
divulgado pelo IBGE, foram avaliados parâmetros como abastecimento de água, esgotamento
sanitário e destino do lixo (IBGE, Censo Demográfico 2010).

O trabalho revelou que as condições de infraestrutura dada aos indígenas residentes


em áreas urbanas é inferior, quando comparado a outras categorias de cor ou raça

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(MARINHO et. al, 2021). Tais observações corroboram a ideia do prejuízo indígenas em
diversos contextos territoriais, em especial nas áreas urbanizadas, como ilustra a figura 1.

Figura 1. Domicílios indígenas e não indígenas com condições não adequadas de saneamento. Fonte:
Censo Demográfico 2010.

Além da rara infraestrutura básica, em áreas urbanas, os conflitos também são intensos
e violentos, principalmente devido ao alto valor dos territórios em áreas centrais. De acordo
com relatos coletados em campo, que serão aprofundados posteriormente, as aldeias urbanas
sofrem constantes ataques verbais e físicos, devido a interesses de grandes construtoras. Com
isso, se faz necessária a montagem de esquemas de resistência pela própria população
indígena, sem o auxílio das forças policiais.

Fica claro, portanto, como o direito dos povos originários à sua territorialidade é
constantemente deturpado e desrespeitado, sendo inclusive inconstitucional. Em nosso estudo
de caso, abordaremos a seguir a trajetória de resistência exercida pela Aldeia Maracanã no
Rio de Janeiro, objeto de nosso estudo em questão.

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3.2. História da aldeia Maracanã

O nome “Maracanã” é originado do tupi-guarani e significa “semelhante a um


chocalho”. Bairro, estádio e também aldeia, a palavra carrega um contexto do cotidiano do
povo indígena, uma vez que se refere às aves chamadas "Maracanã-guaçu'', que emitem sons
semelhantes ao de um chocalho.

Desse modo, a Aldeia Maracanã precisou passar por alguns obstáculos para sua
criação. Em outubro de 2006, 17 etnias indígenas e apoiadores da causa realizaram um
seminário na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), visando encontrar uma
solução para aumentar a visibilidade da luta pelos direitos indígenas no Rio de Janeiro.
Assim, foi criado um movimento indígena unificado que aglutinou indígenas de várias etnias
(Guajajara, Xavante, Pataxó, Fulni-ô, Apurinã, Tukano, Xucuru, Puri, Way-Way), resultando
na fundação do Movimento Tamoio dos Povos Originários.

Saindo da UERJ, esse grupo pioneiro de ativistas indígenas iniciou uma caminhada
para realizar a ocupação do prédio do antigo Museu do Índio que, estava há 30 anos
abandonado pelo governo. Dessa forma, ali foram desenvolvidas diversas atividades culturais
indígenas para a população do Rio de Janeiro num movimento de resistência cultural que se
tornou mundialmente conhecido como Aldeia Maracanã, sendo retratado em uma miríade de
filmes e documentários de artistas oriundos de diversos países.

Em 2013, quando houve uma reintegração de posse violenta por parte do Estado, uma
parte dos ocupantes aceitou apartamentos do "Programa Minha Casa, Minha Vida", após
passarem um ano e quatro meses morando em contêineres na zona oeste do Rio de Janeiro.
Após a desocupação, o governo prometeu restaurar o prédio e transformar o local em um
Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas. Entretanto, como as promessas não
foram concretizadas, a aldeia foi retomada. Sendo assim, é extremamente importante dar
visibilidade para o tema, uma vez que o movimento precisa de apoio da população e de
políticas públicas do Estado para continuar re-existindo.

3. 2. Conflitos e resistências

O local onde estão os habitantes da aldeia Maracanã é um grande palco de disputas


judiciais desde o início da resistência. As lideranças locais pontuam diversos casos nos quais

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a aldeia foi invadida e, a todo momento, devem estar em alerta. Apesar das constantes
ameaças, a líder Potira Guajajara afirma:

"Nós não sentimos medo, porque somos da resistência. A nossa existência aqui que faz proteger o que é
nosso… às vezes temos invasões aqui e temos que fazer a guarda."

As invasões relatadas refletem a legitimação da violência perpetuada por algumas


figuras políticas, como o deputado Rodrigo Amorim4 e seus discursos de ódio ao povo
indígena. Contudo, quando se trata do judiciário, há uma forte tendência de invisibilização
dos povos indígenas, o que foi ressaltado pelo contexto pandêmico, tendo em vista o alto
número de tentativas de despejos (ALVES et. al, 2021). Tais decisões descrevem a defesa da
propriedade privada em detrimento do direito básico de moradia a determinadas minorias
como recorrente nos julgamentos dos magistrados. Durante a pandemia, as decisões do STF -
os ministros Ricardo Lewandowski e Edson Fachin - suspenderam as reintegrações de posse
até o fim da pandemia da COVID-19. Entretanto, com a letalidade reduzida da pandemia, já
houve novas tentativas de despejo desses povos, incluindo da aldeia Maracanã em março de
2021. Em outras palavras, as decisões dos tribunais superiores apenas postergaram o real
objetivo das políticas públicas: o extermínio da população indígena.

Nesse sentido, o Estado possui o monopólio da violência inerente ao seu funcionamento


com o discurso de manter as liberdades de todos (BUTLER, 2021). A constante tentativa de
despejo, no entanto, retrata a dificultosa coexistência das diversas nações que habitam o Brasil
e, desse modo, as culturas invisibilizadas tornam-se mais vulneráveis a ataques físicos e
ideológicos. As origens destes conflitos podem ser resgatadas a partir da ideia evolucionista
da história, em que as narrativas de minorias, como as dos povos tradicionais, rompem com
esse pensamento linear por serem resistência à políticas que exterminam a pluralidade cultural
(BHABHA, 1998). Sob esse prisma, o ato de resistência da aldeia Maracanã é decorrente da
rejeição dos povos indígenas nos grandes centros urbanos por romperem com a ordem social,
como pontuado por Guajajara:

"Nós já nascemos como resistência, as crianças também fazem resistência junto com os pais pois ele
tem que aprender como lutar pelos direitos deles".

4
Jornais diversos veicularam os discursos de Amorim e, em uma delas, reportado pelo jornal O
Globo, dizia que os indígenas são "lixo urbano" e "poluem as cidades". Ver mais em:
https://oglobo.globo.com/rio/aldeia-maracana-lixo-urbano-quem-gosta-de-indio-va-para-bolivia-diz-rod
rigo-amorim-23345028

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Esta cultura de luta é imposta justamente por quem deveria assegurar seus direitos: o
Estado. Contudo, as violências não se restringem aos despejos, mas a todas as outras
consequências provenientes das condições de vida desse povo. A disparidade entre o
tratamento dado pelas esferas de governança aos povos tradicionais constituem-se em
decorrência da identificação destes grupos como parte de um Estado homogêneo, no qual o
etnocentrismo desempenha a função de invisibilização e esquecimento da coexistência das
diversas nações que habitam um determinado país (CLASTRES, 1974, p.103).

3.3. Violência, resistência e a legislação

Durante o nosso trabalho de campo na aldeia, os depoimentos concedidos pelas


lideranças indígenas delinearam o conhecimento jurídico acerca das disputas territoriais, não
somente no Rio de Janeiro, mas em diversos locais do país. Como já mencionado
anteriormente, a nova tentativa do Ministério Público Federal, em maio de 2022, de desocupar
o espaço do antigo Museu do Índio ilustra o conflito entre a legislação brasileira e o bem-estar
dos povos indígenas. O contraste está indicado no Art. 36 da Lei 6001 (Estatuto do Índio) no
qual postula o seguinte:

"Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, compete à União adotar as medidas administrativas ou propor, por
intermédio do Ministério Público Federal, as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas
sobre as terras que habitem." (BRASIL,1973)

Este é apenas um exemplo, já que outras tentativas foram executadas em anos


anteriores. Uma delas ocorreu com sucesso em 2013 e realocou parte das famílias por meio do
programa "Minha Casa Minha Vida" a fim de prosseguirem com o plano de construção de um
estacionamento visando a Copa do Mundo (COSTA, 2014). Tanto o MPF quanto a FUNAI
são responsáveis por defender os interesses dos indígenas, contudo, a partir dos relatos das
lideranças da aldeia Maracanã, a única proteção do local é advinda da resistência indígena e
seu grupo de apoiadores. A única barreira entre eles e o despejo são as manifestações
organizadas que indicam o grande esforço do grupo para obter direitos que supostamente
deveriam ser concedidos pelos órgãos públicos.

A raiz do problema é histórica e estende-se por diversos estados com altos níveis de
violência praticados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e por latifundiários, como
aponta o Relatório Figueiredo. Este documento, que supostamente teria sido incinerado em
um incêndio em 1976, foi encontrado em 2012 com a maior parte de seus manuscritos

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intactos. Hodiernamente, estão disponibilizados no banco de dados do Ministério Público
Federal.

O acesso a eletricidade e água potável não são constantes no local. A segurança é débil.
As tentativas de despejo são recorrentes. O advogado da aldeia sofre retaliações do MPF e da
OAB. Estas informações relatadas pelo cacique Urutau e por Guajajara demarcam a grande
resistência do aparato público em seguir as leis constitucionais e as demais normas
estabelecidas em prol da segurança indígena no país. O movimento que se torna cada vez
mais forte dentro do âmbito jurídico e político, com apoio de professores universitários e
movimentos sociais, ainda encontra dificuldades em garantir o que lhes é previsto por lei. Este
caso é apenas um dos muitos retratos de violência contra os povos indígenas no país.

3.4. Aldeia Maracanã e a pandemia

A pandemia de covid-19 foi um momento delicado para toda a população. Hospitais


lotados e falta de assistência aos grupos mais necessitados pioraram a grave situação em que o
país se encontrava. O auxílio emergencial foi um programa do Governo Federal destinado aos
indivíduos mais vulneráveis e objetivava reduzir os impactos da pandemia. Entretanto,
segundo o relato de Potira, a população da aldeia Maracanã não contou com nenhum tipo de
ajuda do Estado que fosse destinado aos moradores da aldeia a superar o período pandêmico.

No entanto, os moradores da Aldeia Maracanã não sofreram diretamente com os


efeitos do vírus. Pelo relato de Potira, podemos perceber que eles conseguiram superar esse
período de crise com o acompanhamento de um posto de saúde local, o qual já frequentavam
anteriormente e também com a ajuda de doações de máscaras, álcool em gel e alimentos
advindas de instituições.

Potira também ressalta a relação entre a destruição da natureza com surgimento de


zoonoses (doenças transmitidas pelo contato com animais), como é o caso do vírus da
covid-19, que surgiu em Wuhan, na China, transmitida pelo contato com morcegos, segundo
um estudo feito pela OMS. Ao listar as plantas utilizadas na medicina indígena, ela menciona
a grande importância da preservação ambiental para o seu povo e como a exploração exercida
pelos não-indígenas provoca desastres ambientais que podem acabar interferindo no mundo
inteiro.

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4. Considerações finais

Ante o exposto, é importante salientar que ambos os casos analisados refletem as


políticas públicas no que tange à proteção das leis que garantem o bem-estar dos povos
tradicionais. Tanto no Sapê do Norte, quanto na Aldeia Maracanã, vemos uma forte violência
estatal para com a existência destes povos nos centros urbanos. A coincidência fulcral nas
duas localidades é o interesse empresarial e comercial de certas firmas no auxílio do despejo
dessas populações devido ao viés neoliberal do Estado, no qual o lucro excede a importância
da dignidade humana e do direito à moradia. Seja por uma plantação de eucalipto ou pela
construção de um mero estacionamento, os interesses estatais vem afastando-se cada vez mais
dos direitos previstos pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988, invisibilizando a
pluralidade de culturas existente em nosso vasto território e demonstrando a violência
implícita e explícita aos povos tradicionais.
Contudo, a força presente nos movimentos sociais vem ascendendo por meio das
diversas articulações feitas entre diferentes segmentos e pela maior inserção destes no meio
jurídico e político com o fito de garantir seus respectivos direitos fundamentais. A resistência
dos povos tradicionais nos meios urbanos demonstra que cada vez mais há novos meios de
luta. Mostra que o Estado e as empresas precisam reconhecer e respeitar o espaço deles dentro
da sociedade. Indicam que é possível ganhar espaço dentro das disputas territoriais. Mostram
ao Estado que é impossível vencer a luta popular.

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