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Essa distinção realmente existe no Vedānta, embora a forma como ele

expressou algumas vezes é meio equivocada (e só a título de exemplo:


Parameśvara no śaivismo seria o primeiro sentido de Absoluto a que ele se
refere). Mas de fato, existem dois níveis pelos quais o Absoluto pode se
referir: um nível inqualificado e um nível na coordenação com seus efeitos
(semelhante a distinção do Inefável e dele como sendo Uno/Bom em
relação ao mundo no caso do neoplatonismo).

Seguindo a escola do Advaita Vedānta, essa distinção corresponde a


saguṇabrahman e nirguṇabrahman, o brahman qualificado e o
inqualificado. Para o Advaita Vedānta não se trata de duas entidades
diferentes, é uma só realidade apreendida de dois modos distintos,
segundo sua natureza acidental e essencial respectivamente.

Sua natureza essencial seria satyam jñānam anantam: verdade/ser


indeterminado, consciência pura/indeterminada, e infinitude/beatitude. De
tal modo que esses não são três atributos diferentes, eles precisam ser
pensados como idênticos entre si: ele é o puro ser indeterminado (tipo
como um Parmênides), mas só a noção de ser pode sugerir que fosse algo
insensciente, e daí entra o segundo termo que explicita que a natureza
desse ser é pura consciência apenas (aqui entra o idealismo, porque ser é
o espaço das coisas que a consciência ilumina). Mas a consciência pode
ser pensada como se fosse delimitada por algo externo a ela própria; ou
que ela fosse dividida internamente, por isso acrescenta-se que ela é
infinita, sem delimitação ou oposição de qualquer tipo. A isso o Advaitin
acrescenta: em verdade, esses três termos não denotam brahman
realmente; esses termos são negativos apenas e descrevem uma relação
de proporcionalidade analógica. Eles negam a determinação no ser, negam
a determinação na cognição, e tenta sugerir-nos algo por essa negação.
Então é um uso negativo e indireto de significação, pois brahman não é
objeto direto de denotação por nenhuma palavra ou frase. Contemplar essa
natureza essencial de brahman é reduzir todas as coisas a isso, é como ver
tudo existindo e se resolvendo numa única luz unitária, como não diferente
disso, sem que nenhuma determinação tenha alguma subsistência própria.
Isso é, todas as coisas que são, são nisso, mas não são qualidades ou
atributos disso, são meros upādhis (como no exemplo do cristal
transparente posto ao lado de uma rosa vermelha: o cristal assume a cor
vermelha pela proximidade, mas em realidade não é vermelho. Pois os
fenômenos todos do mundo são como esse reflexo de vermelhidão no
cristal transparente, sem que exista uma rosa fora do reflexo). A natureza
acidental de brahman ou brahman inferior é contemplá-lo assumindo esses
upādhis como se fossem seu agregado psicofísico, por assim dizer. Aí
entra algo em termos de níveis hierárquicos, macro e microcosmos etc.
Aqui brahman tem três corpos: o causal, o sutil e o grosseiro. O corpo
causal é suas potências de conhecimento e ação repousando sobre sua
volição eterna: a forma seminal em que todas as coisas subsistem como
unas com sua luz, antes que suas determinações emerjam. Nisso ele é
Īśvara, o soberano (que é mais apropriadamente o que entendemos por
Deus aqui no Ocidente); e os seres senscientes todos existem aqui como
que imersos nele, indistintos dele. O corpo sutil de brahman é quando ele
projeta essas possibilidades em pensamento, como uma mente universal.
Aqui essa mente é una-e-múltipla, pois seu movimento se projeta tanto
como samaṣṭi (universal) quanto vyāṣṭi (particular). Todos os seres
senscientes têm sua vida psíquica aqui. E o corpo grosseiro de brahman é
quando ele projeta sua própria forma através dos poderes sensoriais da
sua mente, se percebendo sensorialmente como o corpo universal, aqui
novamente em modos universal e particular. Esses dois Brahman não são
realidades diferentes. É uma só realidade apreendida de dois modos
distintos.

As práticas de meditação e adoração voltadas ao brahman qualificado


permitem que a mente interaja com algo pensável, representável. E como
esse brahman tem vários níveis, essa meditação é um modo de krama
mukti, de libertação por estágios: a mente vai ascendendo ao longo desses
níveis. Esse é o modo de religiosidade mais conhecido por aqui, onde há a
relação entre o devoto e Deus etc etc.

Mas a meditação voltada ao brahman não-qualificado não permite interagir


com algo pensável, porque a consciência infinita não se permite fazer
objeto do pensamento - ela é aquilo pelo qual o pensamento é manifesto.
Ela não pode ser pensada pelo pensamento, é o que está pressuposto pelo
pensamento. Então brahman não-qualificado não pode ser representado,
ele é como um vazio luminoso no qual a mente entra quando dissolve sua
intencionalidade. A meditação do brahman não-qualificado é o que nos
conduz a sadyo mukti, libertação instantânea: não é uma ascensão por
estágios, não é algo representável hierarquicamente como acima ou
abaixo, transcendente ou imanente ao mundo. Simplesmente é o que é
(sat), e não há nada fora disso, e sempre foi o caso que isso é a realidade:
então isso não pode ser conhecido como objeto, nem pode ser conhecido
como o resultado de um processo, a conclusão de alguma prática ou algo
assim. Isso é simplesmente reconhecido como sempre sendo o caso,
quando esse reconhecimento emerge; e por isso esse momento de
reconhecimento é dito ser libertação imediata.

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