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ESQUILO abrirei_ a danga; tenho nas minhas méos a boa sorte dos meus senhores, visto que este sinal nocturno equi- vale ao lango das trés cenas. De qualquer modo que eu possa, quando o senhor da casa regressar, tomar a sua m&o querida na minhal Sobre o resto, calo-me; um pesado boi calca a minha lingua. A prépria casa, se pudesse ter a sua voz, falaria claramente. Na parte que me toca, consinto em falar para aqueles que sabem, mas para os que néo sabem esquego tudo. CORIFEU — Ha dez anos que os grandes adversé- rios da Priamo, o rei Menelau e Agamémnon, o pode- roso par dos Atridas, honrados por Zeus com um duplo trono e um duplo ceptro, levaram deste pais uma frota argiva de mil navios de guerra para a sua contenda. lrados, clamavam por Ares em grandes gritos, seme- Ihantes aos dos abutres que, angustiados pelos seus filhotes, batem as asas volteando no ar para velarem pela sua ninhada. Mas, no alto dos ares, um deus, Apolo, Pan ou Zeus, ouvindo os gritos estridentes soltos por estes héspedes do céu, envia Erinys para punir os culpados com 0 castigo que se segue ao crime. Assim, um deus superior em poder, Zeus hospita- leiro, envia os filhos de Atreu contra Alexandre. Ele pretende que, devido a uma mulher voltivel, Danaios e Troianos se defrontem em lutas sem fim, onde os membros se prostam, os joelhos se dobram por terra e a langa voa em estilhas desde o inicio do combate. Hoje, qualquer que seja o curso dos acontecimentos, © resultado final esta fixado pelo destino. Nem o rasteiro fogo, nem as libagées, nem as 14- grimas abrandarao as inflexiveis iras das oferendas que se recusam arder. Pelo nosso lado, cujo corpo envelhecido néo pode Pagar a sua divida, deixados que fomos na retaguarda da expedicaéo, aqui estamos apoiando a um bordéo a nossa forga semelhante a da crianca, pois a medula que existe dentro dos jovens peitos 6 igual & da dos anciéos, e Ares néo tem aqui cabimento. Que pode fazer um velho cuja ramagem jé se dobra pela sua muita idade? Caminha sobre trés pés e, n&o tendo mais forca do que uma crianga, erra qual um sonho aparecido em pleno dia. 142 ——— TEATRO COMPLETO Mas tu, filha de Tindaro, rainha Clitemnestra, que tens? Que noticias nos das? Que sabes? Na fé de que mensagens ordenas tantos sacrificios? Todos os deuses protectores da cidade, deuses do céu e dos infernos, deuses das portas e da Praga pu- blica, tém os seus altares abrasados de oferendas. De todos os lados, a chama dessas oferendas, vinda do fundo do palacio, se eleva até ao céu, avivada pelos encorajamentos de um d6leo cuja docura nao engana Sobre tudo isto diz-me o que 6 possivel e permi- tido dizer e cura-me da inquietagdo, que ora me per- turba o espirito e ora, frente aos sacrificios de que fazes brotar a chama, me ‘dé esperancas de poder sanar a minaz preocupacéo que me rdi o coragéo de magoa. CORO — Cada vez ouso menos repetir o pressé- gio de vitéria que assinalou a partida dos homens feitos, porque os deuses deixam ainda na minha idade for¢a bastante para inspirar persuasdo através dos meus cantos, e para lembrar como os dois poderosos reis dos Aqueus, que comandavam de comum acordo a juventude grega, partiram, de lanca em Punho e braco apto & vinganga, para a terra dos Teucros, guiados por impetuoso paéssaro. Aos reis dos navios apareceram nas cercanias do palacio dois reis dos passaros, um negro, outro de cauda branca, do lado da m&o que brande a langa, num local visivel a todos os olhares; devoraram uma lebre mais a ninhada, que haviam apanhado no fim da sua _corrida. ‘Entoo o hino Itigubre, IGgubre; oxalé o resultado seja feliz! ‘Ao vé-los, 0 sdbio adivinho do exército reconheceu nestes belicosos comedores de lebres os dois Atridas unidos pela vontade, os chefes da expedi¢cao. E expli- cou assim o prodigio: «Com © tempo os que hoje partem tomardo a cidade de Priamo e todos os tesouros acumulados adentro das suas murathas por um povo opulento. O Destino sa- qued-los-4 brutalmente. Tende, porém, cuidado que o ciume dos deuses néo mine nem obscurega o terrivel freio que 6 este exército forjado para conquistar Tréia. Pois, levada pela piedade, a casta Artémis esté 143 SQUILO indignada contra os cées alados do pai, que imolaram, antes de parir, a lebre infeliz com os filhotes que tinha dentro de si: porque ela tem horror ao festim das Aguias. Entoo o hino Iugubre, ligubre; oxala o resultado seja feliz! A bela deusa, tao favordvel aos ternos filhotes dos terriveis leGes e tio benevolente para os nutridores de todas as feras, convida-me a explicar os sinais dados por estes pdssaros, sinais simultaneamente felizes e importunos A mim, Péan que suaviza: «lmploro-te para que Artémis n&éo envie aos Gregos ventos contraérios que retenham por muito tempo os seus navios no porto e n&o exija um sacrificio extraordindrio, abomindvel e sem festim, o qual suscitara entre pais disputas que nao respeitaréo um esposo; porque de sentinela a casa hd um intendente terrivel que surgiraé um dia, a Célera insidiosa, que n&éo esquece que tem uma filha para vingar.» Tais foram as predigdes fatais, ligadas a grandes acontecimentos, que ‘Calchas fez ouvir @ casa real, apés os pressd4gios da partida. De acordo com eles, canto o hino lugubre, IGgubre; oxal4é o resultado seja feliz! Zeus, qualquer que ele seja, se esta denominacao Ihe agrada, sob este nome o invoco. E que, avaliando tudo muito bem, nao vejo que Zeus possa verdadeira- mente aliviar-me do fardo das minhas inquietagées. ‘O que fol grande outrora, desbordante de auddcia @ pronto para todos os combates, nem sequer parece ter existido. O que se ergueu depois encontrou o seu vencedor e desapareceu. Mas o homem que proclamar do fundo da sua alma o triunfo de Zeus ser4 realmente um sdbio. ‘Porque foi ele que abriu o caminho da sabedoria aos mortais estabelecendo a lei de que a ciéncia seria © prego da dor. Quando a lembranca do mal cai gota a gota sobre o seu corac¢&o durante o sono, a sabedoria, apesar disso, penetra-o sob o constrangimento benéfico dos deuses sentados no seu augusto assento. & entéo que o primogénito dos chefes da frota dos Aqueus, sempre diferente para com os adivinhos, se | i | I 144 TEATRO COMPLETO submete aos azares da fortuna. O povo aqueu impacien- ta-se por esta imobilidade e esgotam-se os viveres dos navios imdéveis em frente de Chalsis na margem agi- tada do Aulis. Os ventos sopram do Strimon, trazendo demoras funestas, a fome, os ancoradouros perigosos, a dis- perséo dos homens, n&éo poupando cascos nem cor- dame e, com o prolongar da espera, esgotando e dila- cerando a flor dos Argivos. — quando o adivinho, invocando Artémis, indica aos chefes um remédio mais penoso ainda que a tempestade cruel, os Atridas, batendo no solo com o seu ceptro, nao podem reter as l4grimas. E o primogénito dos reis grita: «Cruel 6 a minha sorte, se desobedeco; cruel também se tenho de matar © meu ente querido, ornamento da minha casa, e ma- cular, junto do altar, as minhas m&os paternas com o sangue da virgem imolada. De ambos os lados, nao ha sendo desgraca. Mas como desertar da frota e trair os meus aliados? Contudo, se o sacrificio de minha filha e o seu sangue virginal apaziguarem os ventos, pode-se sem crime desejé-lo ardentemente. Que assim sejal» E, uma vez subjugado pela necessidade, as dispo- sig6es do seu espirito mudaram; animado de um pen- samento impio, criminoso, sacrilego, tomou uma deci- s&o inaudita. E que o funesto desvio do espfrito, que esté na origem dos nossos males, inspira os mortais com os seus vergonhosos conselhos. Portanto, ousa sacrificar a filha para sustentar a guerra empreendida por causa de uma mulher e abrir caminho &@ frota. Os chefes, no seu ardor belicoso, nao deram impor- tancia as suas suplicas e aos apelos que ela fez ao pai, t&o-pouco @& sua idade virginal, e o pai, depois de orar aos deuses, fez sinal aos ministros do sacrificio para a arrastarem, como se fosse uma cabra, e erguerem até ao altar. Envolta em seus véus, agarrando-se deses- peradamente ao préprio chéo, tiveram que amordacar a sua bela boca para que néo se ouvissem as impreca- ¢6es que soltava contra a familia, com a forca e a violéncia muda de um travdo. E enquanto a sua ttinica cor de agafrao deslizava pela 145 €SQUILO terra, suplicava piedade aos seus sacrificadores com um profundo olhar. Era como uma imagem que qui- sesse falar, ela que tantas vezes, nos banquetes sump- tuosos de seus pais, cantava e entoava com a sua voz de virgem sem macula o feliz hino da terceira libacéo Para lhe testemunhar o seu amor. O que acontecerd néo o sei nem nisso quero falar. No entanto, a arte de Calchas néo 6 va e a Justica compreende aqueles que sofrem. S6 se conhece o futuro quando ele se cumpre, deixemo-lo portanto acon- tecer, j4 que fazer o contrdrio seria lamentarmo-nos de antem&o, pois tornar-se-4 claro & luz do dia quando surgir. Oxal4é que possamos ver o cumprimento destes ordculos, tal como o deseja aquela que se aproxima e que 6 0 Unico amparo da terra de Apis! (Aparece Clitemnestra) CORIFEU — Vim render homenagem ao teu poder, Clitemnestra, porque 6 justo honrar a esposa do rei quando © esposo deixou o trono deserto. Mas diz-me, tens alguma nova noticia? Ou 6 a esperancga de a rece- beres que te leva a fazer todos estes sacrificios? Ouvi- -la-ia de bom grado, mas reparo que guardas siléncio. CLITEMNESTRA — Possa a aurora, com a sua boa- -nova, assemelhar-se, como diz o provérbio, a noite de que ela é filha. A noticia que vais ouvir, a tua espe- ranga tornar-se-4 alegria: os Argivos tomaram a cidade de Priamo. CORO — Que dizes? A tua noticia deixa-me bo- quiaberto, de tal modo me custa a crer. CLITEMNESTRA — Tréia esté em poder dos Argi- vos: estas palavras nfo sao bastante claras? CORO — A alegria invade-me o coragéo e faz-me chorar. CLITEMNESTRA — Os teus olhos revelam os bons sentimentos que sentes. CORO — Mas diz-me, que te prova ser essa noticia verdadeira? 146

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