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TRANSAMAZÔNICA - CADERNO - Texto
TRANSAMAZÔNICA - CADERNO - Texto
[Teatro]
FICHA TÉCNICA
revisão de texto
Danilo Horã
designer gráfico
Felipe Uchôa
fotos
Melvin Quaresma
foto do autor
Christiane Forcinito
realização
Este projeto foi contemplado pelo Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo
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menino — Sempre quis ter uma arma. Um revólver 38. Um fuzil AR-
15. Um fuzil M16. Sempre quis pôr na mão uma arma de verdade. Um
troço doido pulsando no meio dos dedos. Já passou o tempo de ficar cor-
rendo por aí com armazinha de mentira, brincando de polícia e ladrão.
Sempre quis ter uma arma. Uma pistola 9mm. Uma espingarda 12. Um
fuzil FAL. Um fuzil G3. Uma metralhadora .30. Uma metralhadora .50.
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pistoleiro — E morreu?
menino — Não. Foi só um sonho. [Pausa] Onde tá a arma?
pistoleiro — Não sei. [Pausa] Que arma?
menino — O revólver 38.
pistoleiro —Tá aqui.
menino — Onde?
pistoleiro — Na minha mão.
menino — Não tô vendo.
pistoleiro — Olhe bem.
menino — Tô olhando.
pistoleiro — É só você levantar bem o corpo. Segurar o revólver na
mão. Mirar bem o inimigo, o corpo do inimigo.
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pistoleiro — Espere.
menino — Por quê?
[Pausa]
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colono — O que dizer o senhor não sabe? Quantos filhos a dona tem?
Quantas bocas ela tem pra dá o de comer? Quantos pratos sobre a mesa?
Quantos metros de tecido ela precisa pra vestir tanta gente? O senhor
o que faz? A dona reza o rosário toda noite. Defuma a casa. Joga água
benta na porta. Faz promessa pra São Benedito. Agora, o senhor vem com
essa conversa que a dona não crê. Não crê em quem? No senhor ela não
credita mesmo não. Nem nos olhos encardidos que o senhor tem. Nem
no rosto liso e no terno acinzentado. Ela não usa óculos porque não quer.
A vista dela foi entregue pra Santa Luzia. A fé dela é em Nossa Senhora
de Nazaré. A dona sabe ladainha de cor. Sabe o nome e o sobrenome da
gente. É chamada de mãezinha por toda a gente da região. E o senhor vem
com esse monte de papel. Essas letras miúdas. Essas palavras difíceis. Es-
sas desculpas esfarrapadas. Antes de prender a dona vai prender os meus
meninos e a mim também. O senhor leve a minha lavoura. A minha casa.
Mas essa dona o senhor não leva não. De jeito nenhum. Injustiça é coisa
do demônio. O senhor não sabe? Pode chamar juiz, delegado, prefeito,
presidente. Pode invocar Dom Sebastião. A dona fica. Pra curar nossas
feridas. Pra ensinar que chá serve pra esta e praquela doença. Pra cuidar
do mato e das ervas santas. A dona fica. Pros nossos filhos nascerem com
os cinco dedos na mão. E chorar depois do parto. A dona é parteira velha.
Benzedeira. Mulher de saber que ninguém furta. Nem o senhor que é
doutor. Nem o senhor que é patrão. O senhor fique avisado. Não ande
torto. Segure a língua. A dona não sai daqui não.
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Deve ter sido tão triste a morte do Cristo. Eu queria ser um mosqui-
tinho para levar água até a boca do Cristo para que o Cristo não morresse
com sede. Não me sai da cabeça que o Cristo morreu com sede. Deve ser
tão triste morrer com sede.
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pistoleiro 2 — E daí?
pistoleiro 1 — Ele punha uma fita k-7 no som da caminhonete. Ele
punha a música bem alta. E saía pela estrada com a música bem alta.
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pistoleiro 1 — Aquela...
pistoleiro 2 — Qual?
pistoleiro 1 — Não sei.
pistoleiro 2 — Você comia o cu do Magal era?
pistoleiro 1 — Eu não.
pistoleiro 2 — Fica aí lembrando a música que o doidão tocava no
som da caminhonete.
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pistoleiro 1 — Aquela...
pistoleiro 2 — Qual?
pistoleiro 1 — Não sei.
pistoleiro 2 — Você precisa entender uma coisa.
pistoleiro 1 — O quê?
pistoleiro 2 — Desconfie até da sua sombra. Dos canalhas. Desconfie
dos canalhas.
pistoleiro 1 — Em Deus?
pistoleiro 2 — Em Deus tampouco.
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pistoleiro 2 — E daí?
pistoleiro 1 — Ele atirou na freira. Ele atirou na freira com o revólver 38.
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pistoleiro 1 — Um tiro?
pistoleiro 2 — Que tiro?
pistoleiro 1 — Um tiro de revólver. Um tiro na cabeça.
pistoleiro 1 — E morreu?
pistoleiro 2 — Morri.
pistoleiro 1 — E doeu?
pistoleiro 2 — Doeu o quê?
pistoleiro 1 — O tiro. O tiro doeu?
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pistoleiro 2 — E daí?
pistoleiro 1 — Ele punha uma fita k-7 no som da caminhonete. Ele
punha a música bem alta. E saía pela estrada com a música bem alta.
pistoleiro 2 — E morreu?
pistoleiro 1 — O corpo se esbagaçou na estrada.
pistoleiro 2 — Em tempos.
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pistoleiro 1 — Aquela...
pistoleiro 2 — Qual?
pistoleiro 1 — [Canta a canção “India”, de José Asunción Flores, com
letra do poeta Manuel Ortiz Guerrero]
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[Cantarola]
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