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divide inesperadamente em

A CARAVANA DA dois, sem avisos ou


Para, súbito, olhando assustado
indicações. Nessas
ILUSÃO para os caminhos a sua frente. Olha
encruzilhadas de maus
para um lado. Olha para o outro.
presságios, dúvidas,
DELÍRIO EM 1 ATO de Está visivelmente indeciso. Logo
indecisões e desenlaces, o ar
surgem, vindos do mesmo lugar,
Alcione está sempre parado. Consta
Lorde e Bela. Ele a ampara
que até mesmo o vento as
docemente com a mão sobre o
Araajo evita, temendo dividir suas
ombro. Bela está triste e abatida. Ao
forças. Os místicos
perceberem que Bufo parou mais
acreditam que em qualquer
adiante, Bela e Lorde também
encruzilhada, um dos
param e ela repousa a cabeça em seu
Para Qorpo-Santo, caminhos leva a virtude e o
peito. Indeciso diante da surpresa
Nelson Rodrigues e outro a perdição,
que o atormenta, Bufo vira-se para
Glauber Rocha, que me um ao céu e o outro ao
trás.)
ensinaram a liberdade do inferno, uma felicidade e o
delírio. outro a desgraça, um ao
apocalipse e o outro a BUFO — E agora?
Para Pablo Picasso, salvação. Os práticos
concluem apressadamente (Bela e Lorde o olham em silêncio,
louco genial que sobre sem entenderem a razão da
uma tela pintou essas que dois caminhos distintos
só podem levar a lugares interrupção e sem terem o que
personagens. responder. Durante esse momento de
distintos; enquanto os
Para Vera, Eid, Grassy, esperançosos silêncio, e vindo do mesmo lugar
suspeitam
Gilberto e Mabel, que sempre lite se pode chegar dos demais, surge Escroto,
trazem no cora-viz° os ao mesmo lugar horroroso, carregando às costas um
por
caminhos do mar e da diferentes caminhos. enorme saco. Distraído, sopra uma
montanha. música delicada em sua inseparável
E o fim de um dia. Vindo gaita. Ao se aproximar, os outros
da esquerda surge Bufo, em o olham com reprovação. Ele vai
(Descampado passos lentos.
absolutamente deserto. silenciando lentamente a sua gaita.
Esparsa vegetação, Está em cena a caravana da ilusão.
ressequida pelo sol, São quatro figuras exauridas pelo
destacando-se um esquálido cansaço das longas caminhadas,
arbusto. Um caminho se abatidas pela tristeza que a morte
recente do velho Bufão lhes deixou supostamente, vai
no coração; melancólicas pela dançar. Seus cabelos são
a altura do pescoço. Usa
nobreza envelhecida, envilecida e revirados de trás para a
um barrete vermelho,
esfarrapada de suas roupas de cores, frente, formando um
cuja ponta, resultado de
outrora fortes, mas agora pálidas e pequeno tufo,
alguma misteriosa
que, apesar disso, conservam a cuidadosamente armado,
armação, ergue-se
altivez nas atitudes e a intensidade meio para um lado da
tortuosa, mas não cai
nos sentimentos, movidos, quem cabeça.
sobre as costas. Leva um
sabe, pela fé e a esperança que lhes Escroto é o mais
pequeno saco apoiado
vem no sangue desde tempos esmulambado da
sobre o ombro, cuja boca
imemoriais. caravana. Uma calça
ele retém com a mão, a
Bufo usa roupa inteiriça, cobrindo altura do peito. Lorde se roxa, que lhe deixa as
a enorme barriga postiça puída nos veste quase como um canelas à mostra e um
joelhos e cotovelos. Em outros Arlequim, com losangos paletozinho cintado
tempos foi vermelha. Algo como um irregulares e de cores que certamente
nobre e rendado colarinho salta-lhe desmaiadas na roupa pertenceu a alguém
muito justa. O uso menor que ele, num azul-
secular esgarçou o claro que a sujeira e o
tecido nas articulações, tempo vem dando novos
deixando-o quase e sombrios matizes. Um
transparente. Enrolado lenço avermelhado sobre
ao pescoço tem sempre os ombros, com as
um cachecol, pontas pendentes dos
improvisado com o velho dois lados do peito nu,
trapo rosa desmaiado. pois não há camisa sob o
paletozinho.
Bela veste-se como
uma triste bailarina. Roto Todos usam velhas e
saiote rosa, manchado, gastas sapatilhas de
desbotado e sujo, e um couro cru, exceto Bela,
corpete marrom, que a que as tem em rosa
deixa mais esguia e pálido, mais delicada,
talvez mais elegante, porém, mais surrada.
embora seja muito mais Sem resposta para a
justo que o desejável sua pergunta, Bufo tenta
para quem, esclarecer aos de trás, o
que se passa, como quem BUFO — 0 caminho se bifurca...
pede auxílio:) 49
BUFO — E então, Está querendo
Lorde? Qual dos dois desafiar o destino? Já
LORDE — Não caminhos seguimos? não basta a morte do
entendi. LORDE — pai? Quer atrair sobre
Pergunte, então, qual nós a terrível
BUFO —
dos três . .? maldição? Você
Chegamos a uma
(Todos encaram sempre soube que,
encruzilhada. Por
Lorde como se ele para gente como nós,
onde seguir?
tivesse profanado não há volta nem
(A questão tem retorno!
velhos dogmas. Bufo
mais significado do (Um silêncio
se aproxima
que aparenta. Todos aterrador toma conta
ofendido e sem
se assustam, como se de tudo. Lorde abaixa
entender. Lorde tenta,
nunca tivessem sido a cabeça.
com humildade,
colocados diante de 50 Bela está visivelmente
explicar-se.)
tal situação. Um ansiosa com o
LORDE — Há
crescente mal-estar
também o caminho de
vai tomando conta de
volta.
Bufo. Nos outros, é a
decepção e o cansaço (A afirmação,
que assomam. aparentemente óbvia,
Escroto põe o saco no revolve sentimentos
chão e senta-se sobre profundos em toda a
ele como se antevisse troupe. Bufo controla
uma longa discussão. explosivas energias
A pergunta fica no ar, enquanto encara
sem resposta. Bufo ameaçadoramente
tenta, olhando ao Lorde.)
longe, descobrir para BUFO — 0 que está
onde leva um e outro acontecendo com
caminho. Seu esforço você, Lorde? a
parece Mad!. Volta- segunda vez que fala
se humildemente.) em voltar! Agora e
logo depois do
enterro. O que
significa isso, Lorde?
disse aquele velho na última feira,
que diferença faz se andamos para lá
clima ameaçador. Sentado sobre o ou para Em qualquer direção que a irmã do peito de Lorde, onde
saco, Escroto cobre os olhos, formos, estaremos girando, e ela, assustada com o que ouvia,
amedrontado. Bufo olha para trás, passaremos sempre pelos mesmos se aninhara. Bufo a abraça
para o caminho que já percorreu. lugares. ternamente.)
Depois, vira-se, mais calmo, para BUFO — Você fala pelo prazer BUFO — Bela, minha
Lorde.) que te dá o som das palavras. No innazinha, Bela. Temos que
BUFO — Para trás, já fundo, você é um músico, Lorde. nos habituar
conhecemos tudo. Temos que ir para Deveria estar ao lado de Escroto, ideia de que somos um a menos.
a frente, mano. acompanhando a gaita com o ritmo BELA — Hoje o meu
de suas palavras. coração ficou despedaçado para
LORDE — Agora que o pai se foi,
Bufo, você é o guia. Por herança. (Só agora Bufo percebe o estado sempre.
Por tradição e por direito. Eu de profundo abatimento em que BUFO — Vamos, Escroto,
concordo, aceito e respeito. Eu o mergulhou Bela. Afetuosamente, toque alguma coisa para nos
amo, como um irmão deve amar o retira alegrar.
innão. Mas não quero esconder os (Obediente, Escroto pega a
temores que me apertam o coração. gaita, mas toca uma música
Você fala em nossas tradições, mas profundamente triste.)
as nossas tradições não previam BUFO — O pai esta feliz
que um dia iríamos desaparecer. onde es- Teve um belo
BELA — Por Deus, Lorde! caixão feito de madeira fresca
LORDE — Bela, minha querida e uma cova bem funda. Queria
Bela, hoje, minha irmãzinha, nossa ser enterrado nu como nascera
gente somos apenas nós, e agora, e nós atendemos o seu último
desfalcada do pai. Talvez uns desejo. Onde está, está feliz.
poucos mais, espalhados e perdidos Temos que nos conformar.
por esse mundo. Para a nossa Ninguém pode viver
própria sobrevivência, como os eternamente.
últimos dessa raça, talvez as nossas (Bela abre velhos trapos de
tradições nem devam ser roupas coloridas, que trazia
preservadas. apertados contra o peito.)
BUFO — Cale-se, Lorde! BELA — A uma coisa muito
LORDE — Perdão, se os ofendo. triste que um homem, que
Mas, se a terra é redonda, como trazia tanta bondade no coração
e tanta sabedoria no espírito, mudo, todos comprometidos, loucos e os leprosos,
deixe atrás de si apenas os sob juramento, de manter palmilhando caminhos
trapos de sua única roupa... eternamente a tradição de empoeirados, como se
(Ela volta a esmagar os trapos miseráveis saltimbancos, tivéssemos fogo na sola dos
e leva-os ao nariz, cheirando- poetas, cantores, mágicos e pés.
os com sof reduzido.) malabaristas!
BELA — Lorde, por favor! BUFO — Esse fogo não está
LORDE — . . . E teus filhos, na sola dos pés, mas no
acompanhados de um músico LORDE — Vivemos como os
coração, mano.
LORD— Está bem...
(Bufo vai então, vamos
até mais
adiante,
perscrutando
bem os
caminhos.)

LORDE — Eu começo a
me perguntar: por que
fazemos isto? Por
que somos isto? Que sentido BUFO — Agora, cale-se! BELA — E o que o pai
há em ser o que somos? (Bela estende os trapos sempre dizia e e o que
BUFO — Nada tem sobre um esquecido arbusto, eu acho.
sentido. Somos porque como se fosse uma (Silêncio. Lorde olha
somos. E isso é tudo o que esfrangalhada bandeira.) fixamente Bela e parece
podemos saber. BELA — Quero que o encontrar naquele olhar a
BELA — Uma noite o pai vento leve o cheiro do seu energia e a coragem que, por
me disse que quando eu era suor e espalhe sua energia um momento, lhe
bebe, ele se distraiu comigo pelo mundo. escaparam.)
no colo e eu engoli uma (Bufo faz um sinal a (Todos se reanimam. Volta a
estrela cadente. Minha vida Escroto, que interrompe a alegria. Escroto ergue o saco as
seria rodar mundo e encantar música.) costas e trauteia sua gaita.)
as pessoas, dizia o pai. BUFO — 0 pai dizia: 0 BELA — Vamos! Vamos andar!
(Bufo acaricia os cabelos homem o único animal que BUFO — Vamos com Deus!
de Bela. Eles sorriem.) sonha. E que pode realizar (Em meio ao entusiasmo da parte-
LORDE — Amei os seus sonhos. E, entre os da, Lorde, súbito, pára e fica sério.)
cegamente o pai, mas ele foi homens, nós fomos LORDE — Mas vamos... para
impiedoso em nos exigir destinados a isso: a criar onde?
tanto! O isolamento, o sonhos e morrer de ilusão. (Silêncio perplexo. Bufo fica
anonimato, as necessidades, (Bela aproxima-se de preocupado como se entendesse o
tudo para manter vivo um Lorde e dá-lhe um beijo em que Lorde está realmente
sonho louco! cada face.)
perguntando. Bela, depois de um BUFO — É mais fácil ser guiado costas. Lorde também se
momento atônito, fala com o ímpeto do que guiar. Essa função me movimenta.)
de uma descoberta.) incomoda. BELA — Que seja
BELA — Vamos para adiante, ora! BUFO — Parece que para a montanha! Mas
(Silencio. Lorde a encara.) um caminho leva ao mar vamos logo!
LORDE — Mas por qual dos e outro a montanha. 0 (Mais uma vez, em
caminhos? que prefere, Bela? meio ao movimento de
BELA — O mar, partida, Lorde volta a se
(Silêncio. Agora, a dúvida está em
Bufo! Quero engolir a imobilizar, preocupado.)
todos. Bufo não sabe o que dizer.
Na verdade, nem tem o que dizer. brisa salgada que vem LORDE — Bufo!
Paciente, Escroto repõe o saco no do mar! (Todos se imobilizam e
chão.) BUFO — Lorde! silenciam. Bufo volta-se
LORDE — Isso nunca aconteceu LORDE — As em direção a Lorde.
antes, porque o pai sabia o caminho montanhas! E que sejam Todos se entreolham e
e nós nem imaginávamos que altas! refazem, mentalmente, a
poderia haver mar° ou outros. contagem dos votos,
BUFO — Escroto:
BUFO — Tem razão, Lorde. A confirmando, com
(Escroto aponta um dos caminhos.) desânimo, o empate e
inexperiência me traiu.
BUFO — Você o impasse. Silêncio
BELA — O que não pode também acha que por ali angustiado e
acontecer — por Deus, que não! se chega ao mar? constrangedor. De
Nunca! — É seguirmos caminhos
(Escroto confirma alegremente.) repente, Bela grita, com
diferentes! Será o fim do que o pai
BUFO — Eu quero a o mesmo ímpeto de uma
sonhou! Será o nosso fim! Será o
montanha. E, por Deus, descoberta.)
fim de tudo! E essa dúvida é um
mau presságio. A dádiva é o vamos sair logo daqui! BELA — Então,
princípio do inferno. Vamos todos para a iremos para onde soprar
montanha! o vento!
(Silêncio. Bufo pensa. Lorde
também pensa.) (Mais uma vez, todos (Sem pensar muito, Bufo
se reanimam. Escroto molha o dedo na língua e o
volta a pôr o saco nas ergue. Um tempo
uma infinidade de objetos, cantam, exceto Escroto,
de todas as espécies, tipos, que acompanha, com a sua
de silenciosa tamanhos, cores, gaita. Bela dança entre
expectativa, até a finalidades... Aos os homens, tomando a
constatação poucos, percebe-se si a função de oferecer
melancólica.) que no mistério-só stun a cada um o enorme
BUFO — Não há repousam trapos, pão para a mordida.)
vento. frangalhos, fiapos e
pedaços fantásticos da
( Silencio.
memória milenar dessa
Bufo vacila.
gente sem eira nem beira.
Todos aguardam. Por
Resgatá-los daquele
fim, anuncia.)
sepulcro ambulante é um
BUFO — Vamos ritual mágico no qual
ficar por aqui. Ajeite- surgem, milagrosa e
se, Escroto. misticamente, o pão e o
(Escroto repõe o vinho. Guardião
saco no chão. silencioso desse
Silêncio.) tesouro e sacerdote
BUFO — Até que único dessa
algum sinal nos celebração, Escroto flat,
indique o caminho. ante a grave
(Mais um tempo de responsabilidade, mas
silêncio e Bufo aceita, alegre, o
recompõe-se, afinal oferecimento de auxílio de
satisfeito com a Bela, que se aproxima. E
própria decisão.) surgem pesadas
BuFo — E vamos canecas, onde se
comer, que tenho serve o vinho, e que
fome! são, depois, distribuídas.
Um grande pão passa de
mao em mao, após
(Escroto abre o
cada gulosa e saudável
enorme saco e, de
abocanhada. E, enquanto
dentro, vai retirando
comem e bebem, todos
encruzilhadas, paira no ar
malditocio. Fantasmas e seres
TODOS (cantando) — sinistros de outros mundos rondam um branco cavalo alado, que
na obscuridade. Os mortais bordeja e rodopia em torno da
Muito riso, pouco siso vivificam em seus sonhos os caravana perplexa e
Diz o velho ditado monstros que escondem sete chaves amedrontada. A música
Se com o siso nao mordo o pão na luz do dia. A noite guarda silencia e os ruídos surdos das
Que seja logo arrancado. mistérios insondáveis sob o escuro asas do animal ecoam pelo
Se no vinho está a verdade No tecido do seu manto. E nesse deserto sombrio. Todos estão
caminho do vento, a liberdade Se momento, em meio a alegria da sobressaltados e na defensiva.
andarilho enche o bucho, troupe, a noite aborta uma estranha Bela procura a proteção de
figura, coberta por negro manto e Lorde e esconde os olhos
0 resto é luxo. rosto monstruoso. Cavalga célere daquela visão.)
Por isso eu quero é:
BUFO — Quem vem lá,
Morder o pao, me encharcar no
visão esquisita!
[vinho,
Abrigar-me ao vento, viver no (Resfolegante, o cavalo
[caminho relincha, rodopia e empina
E quando vai-se o sol e rompe a com a silenciosa figura.
[lua Escroto se arma com um
porrete.)
Só vejo alegria na noite e na rua!
BUFO — Responde,
espírito das trevas! Por quem
( . . . E a noite desce suave sois?
sobre a alegria da troupe. Mas, por (0 cavalo vai se acalmando,
mais suave, a noite é sempre mantendo ainda um trote ágil,
traiçoeira. Dizem os místicos que é a mas tranquilo.)
noite que os espíritos do mau
ganham a liberdade para passear LORDE — Por aqui os
sobre o mundo e azarar os vivos. E a ladrões usam máscaras, Bufo.
hora dos grandes pressentimentos, BUFO — 0 que quer de nós,
dos sustos e sobressaltos, quando pia coisa esquisita?
a coruja e voejam os morcegos, (Silêncio. 0 cavalo para. A
quando preparam-se armadilhas e figura desmonta.)
emboscadas, quando se tramam as
grandes traições e, nas LORDE — Cuidado, Bufo!
(A figura vem se BUFO - Mantenha a BUFO — . . . See came o
aproximando. Bufo se distância. Não temos nada que que quer, só temos ossos, mas
assusta.) lhe possa servir ... a não ser lutaremos para não os perder.
BUFO — Fica onde está. que queira restos de pão e um Recua! Recua!
pouco de vinho
(A figura para. Bate a mão
carinhosamente no cavalo, que (A figura avança em
desaparece na escuridão ) direção ao grupo.)
seios quase a mostra sob a BUFO — E o caminho por onde
(Calmamente, a figura blusa justa e já esfiapada. veio, leva ao mar ou a montanha?
lama para trás o capuz do Pulseiras, brincos e colares ZIGA — Primeiro ao mar, depois
manto negro e retira a de metal pobre, enegrecido A montanha, adiante ao mar, depois
mascara monstruosa. E uma e esverdeado pelo tempo. A montanha
mulher, misteriosamente Tanto Bufo quando Lorde a (Bela serve-lhe mais vinho.)
bela, de cabelos Iongos e olham fascinados,
LORDE — Não há cidades
negros, enfeitados por fitas fixamente, magnetizados.)
grandes?
de cores pálidas e por LORDE — E o seu
cavalo? (Ziga o olha por um tempo, sem
moedas enegrecidas.) responder.)
ZIGA — Não sou um ZIGA — Virá quando eu
chamar. ZIGA — E vocês, o que fazem por
inimigo. Uso disfarces para aqui?
proteger-me dos bandidos (Bela, que fora ajudar
que vagam por estas BUFO — Somos artistas
Escroto, entrega a Ziga o
paragens. Sou apenas uma estamos de
pão e uma caneca de vinho.
cigana, amaldiçoada e passagem
Ela come e bebe em
banida... Chamam-me silêncio, sob o olhar atento ZIGA — Ah, artistas!
Ziga... E tenho fome. de todos, particularmente de (Ziga levanta-se e os olha
(Silêncio. Diante da Bufo e Lorde.) atentamente.)
sinceridade e da fragilidade ZIGA — Não havia ZIGA — Então, vocês existem
de Ziga, a trupe muda seu música por aqui? mesmo, de verdade! Ouvia falar de
estado de ânimo.) BUFO — Toque, Escroto, vocês, quando era criança Mas
BUFO — Venha teve alguma coisa para a... nunca pensei que fazem
sorte: temos pão e vinho. ZIGA — . . . Ziga. canções, não é assim?
Sirva-a, Escroto. (Escroto toca uma BUFO — Nao apenas canções
(Ziga avanca alguns música estranha. Ela come e vamos às feiras e
passos, olhando bebe em silêncio.) ZIGA — Lêem mãos, adivinham o
detidamente para cada um futuro!
do grupo. Vai retirando LORDE — De onde vem BUFO — Não! Nada de futuro!
lentamente o manto negro, você? Mal respeitamos o pouco que
revelando uma mulher ainda sabemos do nosso passado.
jovem e sensual. Saia longa, ZIGA — De la.
ZIGA — Ninguém mais quer
que foi vermelha, suja, LORDE — E para onde vai? saber do passado, e sim do futuro.
rasgada e envelhecida. Os ZIGA — Para lá. Agora, vocês têm bom pão e ótimo
vinho, mas, e amanhã, o que Só vi que as últimas pessoas vivas
acontecerá? música. Ziga para de rir eram os contestadores
(Silencio.) e encara fixamente LORDE — Você é
ZIGA — Quem responder terá Lorde.) bela, atraente e
direito a felicidade. ZIGA — O que quer misteriosa como a lua,
saber da cidade? mas fala com rancor, e
(Ziga ri diabolicamente. Lorde faz
LORDE — Tudo. cavalga mascarada
sinal a Escroto para interromper a
como os foragidos, e
ZIGA — Nunca foi a
bebe como os que têm
uma cidade?
muita sede, e se diz uma
LORDE — Já estive
banida e amaldiçoada
perto, numa feira que
Não terá
ZIGA —
sido, por algum motivo
Não Vá. grave, banida da
LORDE — cidade?
Por que? (Ziga fica séria e olha
ZIGA — Na cidade, prolongadamente para
os homens tornaram-se Lorde, que se inquieta.)
ratos esfomeados e vão ZIGA — Não sei se
devorar uns aos outros e, respondo as suas palavras ou
antes que em qualquer ao seu coração, mas o que
outro lugar, as cidades posso dizer é que não tenho
vão arder nas chamas do rancor dos ratos da cidade,
Apocalipse. tenho piedade deles. Afinal,
(Silencio. Todos eles fizeram o que achavam
meditam, preocupados.) que devia ser feito. Banida
BUFO E por lá, não há sou, como o meu povo,
artistas? condenado a vida errante,
ZIGA — Nada sei em eterna penitência por ter
sobre artistas negado hospedagem à
Mas não me lembro de ter visto nada Virgem Maria, quando da
parecido corn vocês fuga para o Egito.
BUFO — De certa absoluta, completa,
forma, somos também que não deixará o
(Depois de uma banidos, mas não menor vestígio do
pausa reflexiva, Ziga vemos o trabalho homem sobre a
torna-se alegre.) como um castigo, mas Terra. Olha com
ZIGA — Mas, para sim como um atenção a sua volta e
compensar, nascemos privilégio inevitável. veja que o fim dos
sem o pecado Nossos antepassados tempos já começou.
original: viemos de diziam que somos (Ziga acaba de
Adão, mas não de Eva, feito os sonhos. comer.
e sim de sua primeira Existimos porque Timidamente-
mulher. Por isso, não alguém nos sonha. 54 , Bela se aproxima e
fomos castigados com Agora, por exemplo, pega o resto
o trabalho eterno, no sonho desse
como o restante dos alguém, eu digo estas
homens. palavras e faço estes
BUFO — Então, o movimentos .
trabalho é um castigo? Diziam também
ZIGA — Não é que somos hóspedes
o que dizem? das grandes fantasias
BUFO — Não noturnas dos homens,
entre nós. tão intensas, que nos
ZIGA — Quer dizer tornaram visíveis
que seu trabalho é aqueles que estão
fonte de prazer? acordados... Mas
BUFO — Muito, diziam, e isso me
parece terrível, que
muito prazer.
quando quem nos
ZIGA — Vocês não
sonhar acordar, nós
tem religião? desapareceremos...
BUFO — Sim . A ZIGA — Um dia
arte. desapareceremos
ZIGA — Mas afinal, todos. Com sonhos ou
que espécie de gente sem sonhos. Será a
são vocês? destruição total,
cabeça e um tremor de repulsa
perpassa-lhe o corpo. Em silêncio,
do pão. Depois, lutando para vencer ergue a cabeça e olha
a timidez, estende-lhe a mão.) ZIGA — Aconteceu!
prolongadamente para Bufo e (Ela pega o man to negro,
BELA — Por favor, fala do meu depois para Lorde.)
destino. veste-o e repõe a mascara
LORDE — Adeus. monstruosa no rosto. De um
(Ziga afasta a mão de Bela com
(Todos ficam atônitos e, por um lado e outro de Ziga, Bufo e
firmeza.)
instante, paralisados, sem Lorde se aproximam quase
ZIGA — Não! Sou agradecida a compreenderem.) que ao mesmo tempo. Ela se
vocês, por isso nao quero saber o vira para Bufo.)
BUFO — Mas... por que?
que acontecerá amanhã. E acho ZIGA — Você me
(Sem responder, Ziga olha para
melhor que vocês também não deseja.
Bufo, depois para Lorde.)
saibam. Não é má-vontade, meu BUFO — Muito.
bem. Eu própria nunca olhei para a
palma da minha mão. (Ela se vira para Lorde.)
(Ziga acaricia os cabelos e o rosto ZIGA — Você me
de Bela. Percebe o silencioso mal- deseja.
estar que causou e tenta mudar o LORDE — Muito.
rumo da conversa e o clima do (Ziga se afasta dos dois,
ambiente.) deixando-os frente a frente,
ZIGA — Quando estou feliz, gosto cara a cara, olho no olho. Vai
de dançar. Toque alguma coisa, ir- até Bela e beija-lhe a testa.)
mão, que dançarei para vocês. ZIGA — Adeus.
(Escroto toca. Bela o acompanha. (Vai até Escroto e olha-o
Ziga dança insinuantemente entre os demoradamente.)
homens, durante algum tempo. ZIGA — Desejo que
Tanto Lorde quanto Bufo estão encontre depressa a sua voz,
cada vez mais fascinados, rapaz.
envolvidos e enfeitiçados. Bela e (Ziga vai se afastando.
Escroto também começam a dançar. Lorde, ainda preso ao olhar de
Súbito, Ziga para de dancar, como Bufo, grita-lhe.)
se tivesse sido assaltada por negros
pressentimentos, num clima intenso LORDE Ziga!
que prenuncia a tragedia. A (Ziga para, sem se voltar.)
música silencia. Ziga abaixa a
LORDE Fique! LORDE — Quero (Silêncio. Bufo não sabe
ZIGA — Nao, eu partir! como enfrentar a situação.)
VOU! LORDE — BELA — Lorde! BUFO Ziga Desculpa
Não, vou eu! Mas é melhor que se vá...
BUFO — Fique com ela!
Adeus.
BUFO — Nao, LORDE — Você a merece
Lorde! (Ziga vai saindo, Lorde se
mais do que eu.
antecipa e a retém pelo braço.)
(Bela pega os trapos do
LORDE — Você a ama. falecido pai, que estavam da nao se virou. Parece que vai dizer
Eu vi no brilho dos seus estendidos no arbusto e os algo, mas hesita e acaba por desistir.
olhos e nas pancadas do seu põe sobre os ombros de Sai lentamente, olhando cada um dos
coração. Você é bom e Lorde. Depois, abraça-o e que ficam fixamente, como se
generoso. Merece a mulher beija-o nas duas faces.) pretendesse guardar-lhes uma última
que deseja . BELA — Que o espírito imagem, até desaparecer por
E precisamos nos do pai o acompanhe. completo. Desamparada e abatida,
multiplicar. (Lorde vai até Escroto e o Bela se aproxima de Bufo e repousa
ZIGA — Maldiçao! abraga.) a cabeça contra o seu peito. 0
BUFO — Você também a silêncio é cortado pela música que
LORDE — Toque! Toque Escroto tira da sua gaita. Ziga vai
quer. para aliviar esta dor ... virando-se lentamente em direção a
LORDE — Sim, quero... (Escroto toca. Lorde vai Bufo. Seu olhar poderoso se fixa
Mas prefiro conhecer agora até Bufo e se em Bela que, aos poucos afasta-se
mundos novos e partir abraçam apertada e de Bufo em direção a Escroto que,
quando alguém pode ocupar demoradamente. Depois, se mais gratificado, continua a tocar.
o meu lugar no coração de beijam nas duas faces.) Bufo, por sua vez, aproxima-se de
todos.
BELA — Bufo, diga- Ziga, atraído pelo seu olhar
(Silêncio. Lorde, lhe: "Deus permita que magnético. Juntos, abraçam-se
segurando Ziga, aguarda a volte depressa." fortemente, sob o som da gaita de
decisão de Bufo.) Escroto, agora acompanhada por
BuFo — Deus permita
BUFO — Nós a amamos, que volte depressa. Bela.)
Lorde. Você bem o sabe, e BUFO — Eu a quero, Ziga, com o
BELA — Assim, ele
o nosso amor resistirá a fogo ardente dos que nunca amaram.
partira mais descansado.
separação. Se é o seu
(Lorde dá alguns passos ZIGA — Venha, vou mostrar-lhe
sonho, o seu desejo, se
lentos e olha para as costas as estrelas e ensinar-lhe como
estará mais feliz na cidade,
de Ziga que ain- governam os nossos destinos.
vá e seja
forte! Não tema a (Bufo e Ziga passeiam de mãos
maldição dos nossos dadas pelo fundo do palco, olhando
antepassados, que ameaça para o céu, para onde Ziga aponta,
com punição os que se como se ensinasse os mistérios da
rendem. astrologia. Enquanto isso, na frente,
Bela vai aproximando lentamente o
seu rosto do de Escroto, como que (Escroto segura com (Bela se levanta e beija-o.
atraída pela magia de sua música efirmeza as duas mãos de Lentamente começa a se
pela força do seu olhar, até beijá-lo
Bella.) despir diante de Escroto. Ao
prolongadamente. Ao fundo, Ziga, ESCROTO — Se você fundo, Ziga vai se afastando
com ambas as mãos em volta do pudesse me ouvir, eu lhe de Bufo.)
pescoço de Bufo, fala com contaria uma história dos
dificuldade.) nossos antepassados, que
ZIGA — Quero você, mas seu pai repetia sempre.
não posso multiplicar a sua gente.Olhe para os meus olhos,
Meu ventre é seco e duro como uma Bela, e tente compreender
pedra. Por isso fui amaldiçoada o que digo sem falar: se
pela minha raça. Não sirvo para um homem atravessasse
nada. De mim nao nasce vida, so o Paraíso em um sonho e
anuncio te desse uma flor como
prova de que havia estado
ódio e destruição. Tenho ali, e se ao despertar
que vagar pelas estradas encontrasse essa flor em
até o fim dos tempos. sua mão
BUFO — Ainda assim, eu a quero. Então, o que havia acontecido? Bela,
(E os dois se abraçam o que está acontecendo
afetuosamente. A frente, agora. Mas eu sou mudo
Bela e Escroto afastam os e você não pode me
lábios, sem desfazer a ouvir... Bela querida, eu
intensa ligação do olhar.) a quero, mas sou mudo,
BELA — Não sei se sou feio, sou monstruoso
pode me entender, mas (Escroto retira
eu o quero. lentamente a sua
ESCROTO — Se eu horrenda máscara,
não fosse mudo, diria que revelando um belo e
a quero mais do que o saudável rosto.)
som da minha gaita, mais ESCROTO — Entenda
do que a minha vontade a língua dos mudos,
de falar... Mas você não minha Bela. Esse é o meu
pode me ouvir... Não se verdadeiro rosto, mas
ouve sentimentos tenho vergonha de
mostrá-lo.
se deixa ver pelos encruzilhada. E o fim
efeitos de sua ayao, de mais um dia. Em
ZIGA — Tenho que
quando esculpe a pedra passos lentos, Bufo
ir. Quis você, mas foi
dura da montanha, passa pelo casal, Para,
só por um instante. Sou
quando faz surgir do acaricia o ventre de
incapaz de amar. Você
galho seco as folhas, as Bela.)
é um sonho e eu
flores e frutos, quando 56 BUFO — E como vai
anuncio o fim do sonho
faz nascer, crescer, ele?
BUFO — Por favor, envelhecer e morrer. 0
eu a amo. (Ziga se tempo passa
afasta lentamente até implacavelmente,
desaparecer. Bufo a deixando marcas nas
persegue, desesperado, pedras, na vida, no
desaparecendo também. rosto. E quando
A frente, Bela, já nua, Bela se ergue e, já
entrega-se a Escroto vestida, revela a sua
com volúpia e prazer. adiantada gravidez. Ao
Enquanto seus corpos fundo, Ziga e seu cavalo
rolam pelo chão, vê-se, ensandecido passam
ao fundo, Ziga e seu num galope furioso,
cavalo branco e alado, empinando e
a ziguezaguear rodopiando. Diante de
desesperadamente de Bela, a acariciar-lhe o
um lado para o outro. ventre, está Escroto,
Os ruídos do animal se sem máscara e olhar
fundem com os ruídos bestificado. Nesse
do casal em gozo. Bufo momento, surge Bufo,
ressurge, perseguindo vindo do mesmo lugar
Ziga e o cavalo, até que de onde surgirá no
todos desaparecem. começo desse delírio.
Com calma e em Tanto tempo passou
silêncio, Bela se veste desde então, que a
sob o olhar fervoroso e trupe retorna,
apaixonado de Escroto. provavelmente sem o
0 indefinivel tempo so saber, a mesma
outros, é a decepção e o cansaço
BELA — Crescendo. Já dá chutes que assomam. Escroto põe o saco mente transfigurado. Em
e cambalhotas. no chão e senta-se sobre ele, como lugar do Arlequim com
se antevisse uma longa discussão. roupa justa e esgarçada em
BUFO — Bom sinal!
A pergunta fica no ar, sem resposta. losangos de cores
(Bufo avança até mais adiante. Bufo tenta, olhando ao longe,
Escroto se ergue e põe o saco nas desmaiadas, veste um
descobrir para onde leva um e outro sofisticado smoking, sapatos
costas. 0 casal anda alguns passos, caminho. Seu esforço parece
revelando o cansaço de quem brilhantes, cabelos bem
htaw. Volta-se humildemente.) penteados e rosto bem
participou da longa caminhada. BUFO — E então, Escroto? Qual
Mais barbeado. Vem surgindo
dos dois caminhos seguimos? sorridente, mas ao ouvir a
frente, Bufo agora se depara com a
(Nesse momento, Lorde está pergunta de Bufo, parece
encruzilhada. Para, olhando
retornando, pelo mesmo caminho preocupado, abrindo os
assustado para os caminhos a sua
em que partira. Lorde vem braços como tentando
frente. Olha para um lado. Olha
completa- impedir a passagem do irmão
para o outro. Está visivelmente
indeciso diante da surpresa que o pelo Caminho em que vem.)
atormenta. Vira-se para trás:) LORDE — Não será por
BUFO — E agora? aqui, Bufo! (Todos encaram
Lorde, assustados. Num
(Bela e Escroto o olham em
primeiro momento, Bufo não
silêncio, sem entenderem a razão da
o reconhece )
interrupção e sem terem o que
responder. Sem resposta para a sua BUFO — Quem vem lá,
pergunta, Bufo tenta esclarecer o visão esquisita!
que se passa, como pedindo LORDE — Sou eu, Bufo.
auxílio:) Seu irmão Lorde.
BUFO — 0 caminho se bifurca. (Ao, finalmente,
BELA — Não entendi. reconhecer o irmão, Bela
BUFO — Chegamos a uma pronuncia o seu nome entre
encruzilhada. Por onde seguir? alegre e decepcionada.)
(A questão° tem mais BELA — Lorde! E você?!
significado do que aparenta. Todos (Bufo o olha
se assustam como se nunca tivessem prolongadamente sem
sido colocados diante de tal esconder a sua profunda
situação. Um crescente mal-estar decepção.)
vai tomando conta de Bufo. Nos
BUFO Lorde! Bufo, quanto mais olha para Não imagina quanto fico
(Há um tempo de silêncio Lorde, mais pasmo fica.) contente em vê-la grávida!
constrangedor. Todos, BUFO — Deus do céu! Enfim, a caravana vai
petrificados, encaram Lorde. (Sorrindo, Lorde descobre a crescer!
Escroto pega a sua gaita e gravidez de Bela.) BELA — Que falta você
toca, suave e lentamente a LORDE — Bela! Que Deus faz, Lorde! Está feliz?
canção do início desse delírio. proteja esta santa barriga! LORDE — Sim, estou.
Trouxe-lhe a camisa do pai.
caiu a maldição que pune os
BELA — Otimo! Servirá que se rendem.. . LORDE — Não, não é mulher! É
para enrolar o bebe. BUFO — Fico feliz. difícil explicar, mas a sensação é a
(Lorde tenta se aproximar LORDE — . . . E que as mesma de fazer amor o dia todo,
para entregar a camisa, mas nossas tradições já não estão fazer amor a vida toda.. .
a distância Bufo o de acordo com os tempos. . . BUFO — E artista, Lorde, ainda
intercepta.) BUFO — Já não é mais há por lá?
BUFO — Não se um dos nossos, Lorde. LORDE — Claro. Há os
aproxime, Lorde! Desculpe- Deixe as nossas tradições glorificados, como eu, e os que
me, mano, mas mantenha em paz. lutam pela glória. Talvez existam
esta distância. LORDE — Está certo, outros, mas desconheço.
LORDE — Eu entendo. Bufo. Mas peço-lhe: não BUFO — E por que não devemos
(Lorde estende a camisa venha por este caminho. A seguir o seu caminho?
no mesmo esquálido cidade tem muitos atrativos LORDE — Porque é preciso
arbusto, onde tempos atrás e muitas tentações... E, preservar artistas como vocês.
estivera.) infelizmente, somos fracos... Vocês são a esperança de
Inventaram por lá uma ressurreição da arte, depois do
LORDE — E então, ainda
seducao diabolica e Apocalipse. Não devem se
se consegue um bom pão e
irresistível chamada Gloria. contaminar. Vocês e a arte são uma
um bom vinho por essas
feiras? BUFO — E o que é única coisa, pura, simples, bruta,
Glória? indestrutível. Lá, a Glória fez os
BELA — As feiras
diminuem, Lor-de. As BELA — Uma mulher, artistas maiores que a arte. E
cidades crescem e, parece, Bufo! Fico feliz, Lorde! depois do Apocalipse, os que se
nós nao agradamos mais. salvarem só saberão ensinar a
glória, não a arte.
BUFO — Bela! BUFO — Não entendo o que diz.
(Bela se cala. Faz-se LORDE — Sei que não entende.
silêncio.) BUFO — Mas entendo bem uma
BUFO — Por que veio, história que o pai contava. Um
Lorde? Pensa em seguir homem adormeceu e sonhou que
conosco? tinha tanta sede que sua alma, em
LORDE — Não, Bufo. forma de lagarto, deixou o corpo e
Vim apenas para... Para meteu-se em uma vasilha para
dizer que sobre mim não beber; o dono da vasilha, porém,
tapou-a e o homem, impedido de
recuperar sua alma, morreu. Não é a BELA — Adeus,
mesma história, Lorde? Lorde. Seja feliz.. .
LORDE — Agora sou eu que já LORDE — Toque,
não entendo. Mas não importa. Só Escroto! Toque para
lhe peço pelo amor que tem ao pai, aliviar essa dor.
vá por aquele caminho. (Escroto toca uma
(Silencio. Lorde começa a sair, de música muito triste.
costas.) Lorde vai desaparecendo.
LORDE — Você promete, Bufo? Bufo começa a andar em
(Silêncio. Lorde continua direção ao outro
recuando.) caminho. Bela e Escroto
LORDE — Adeus... o acompanham. Na
passagem, Bela recolhe a
camisa do pai. Ao som da
música de Escroto, a
caravana da ilusão vai
desaparecendo
lentamente, quando
irrompe Ziga, cavalgando
o branco e alado cavalo,
que rodopia de um lado
para o outro, relincha e
empina até alcançar o
caminho de Lorde e
desaparecer.)

FIM
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