Você está na página 1de 10
SAUDE No mundo ocidental, a maioria de nés, mesmo sem nos darmos conta, enxerga o mundo a partir de uma separacao total entre a mente e 0 corpo, de forma que um nao se mistura com 0 outro de modo algum, Diferentes pensadores contribuiram para a produs3o desse modo de ver 0 homem e para a producao desse dualismo mente/corpo que nao nos ajuda a intervir eficazmente no processo de satide-doenca. O filésofo Descartes, conhecide como o “fundador da filosofia moderna”, dizia que mente e corpo se tratavam de duas substancias diferentes. Plato, muito antes, separava 0 mundo da matéria, onde tudo é mutavel, imperfeito e perecivel, do mundo das ideias, que sao eternas, perfeitas e imutaveis. E hoje, esse tipo de visio de mundo se manifesta quando dizemos que “fulano nao tem nada, ¢ psicolégico”. Logo, nao € de se surpreender que exista uma enorme dificuldade para que a relacao entre estes dois campos se configure em um campo de producdo conjunta. Na prética, quem lida com um nao lida com 0 outro. Desta forma, entendemos que é necessdrio néo sé construir um espaco alternativo de interseccao entre atributos diferentes, mas sim desenvolver uma visio que supere esta distingao rigida entre mente e corpo em que os fendmenos destas classes aparentemente distintas sejam compreendidos como parte de um todo integrado que nos constitui e nos produz. 2.1 Em direcao a novos objetos de cuidado em saude, pela vida da Atencao Basica: cuidado do sofrimento de pessoas Eric Cassell, importante médico de familia americana, aponta para o fato cotidianamente observavel de que existem pessoas que sofrem ¢ nao esto doentes (ou enfermas), ¢ muitas podem estar gravemente doentes (e enfermas) e mesmo assim nao sofrer. A partir dai, a obra de Cassell direciona-se a construir esse novo modelo, e nos ajudar a compreender do que se trata cuidar de pessoas que sofrem. Ao longo deste capitulo, iremos explorar o alcance de tal equag3o, que comporta trés nocées aparentemente simples - cuidado, sofrimento e pessoa — com destaque para a rica articulagao que ela traz ao campo da Sade Mental na Atengao Bésica. A Satide Mental e Atengao Basica so campos que convergem a um objeto comum e o que festa em jogo em ambos é a superacao das limitagées da visio dualista do homem, a construcéo de um novo modelo dinamico, complexo e nao reducionista e a orientaao para novas formas de pratica na area de Saude. 2.1.1 O que é uma pessoa? Toda pessoa tem uma vida passada e as memérias de uma pessoa com tudo 0 que ela viveu, aprendeu e experimentou fazem parte da sua vida presente e de como ela enxerga o mundo. “Roubar das pessoas seu passado, negar a verdade de suas memérias, ou zombar de seus medos e preocupacoes fere as pessoas. Uma pessoa sem passado ¢ incompleta”, diz Cassell TAL Ministério da Satide | Secretaria de Atencdo a Satide | Departamento de Atencéo Basica Toda pessoa tem uma “vida futura” em que deposita seus sonhos, expectativas e crencas quanto ao futuro que influenciam muito a vida presente. Muitas vezes, um grande sofrimento pode causar temor em perder essa sua vida futura em virtude de algum problema de saide, Toda pessoa tem uma vida familiar repleta de papeis, identidades constituidas a partir da histéria familiar, propiciando sentimento de pertencimento. As experiéncias e historias familiares também constituem a pessoa, Toda pessoa tem um mundo cultural Esse mundo influencia a saide, a producdo de doengas, define valores, relagdes de hierarquia, nogdes de normal e patolégico, atitudes consideradas adequadas frente aos problemas da vida e propicia isolamento ou conexao com 0 mundo. Toda pessoa é um ser politico com direitos, obrigagdes ¢ possibilidades de agir no mundo ena relagao com as pessoas. Problemas de satide podem contribuir para que a pessoa se sinta impotente nesta esfera, ou que se considere incapaz de ser tratada como seus pares em suas reivindicacées e possibilidades de aco Toda pessoa tem diversos papéis: pai, mae, filho, profissional, namorado, amante, amigo, irma, tio etc. A vivéncia de cada um deles envolve diferentes relacdes de poder, de afeto, de sexualidade etc. As pessoas também sao cada um desses papéis, que podem ser prejudicados em situacées de agravo a saiide, além de serem mutaveis. Toda pessoa tem uma vida de trabalho, que esté relacionada a seu sustento e, possivelmente, de sua familia, Muitas pessoas consideram-se uteis por meio do trabalho, e muitos quase definem a propria identidade por aquilo que fazem. Toda pessoa tem uma vida secreta, na qual deposita amores, amizades, prazeres e interesses que nao séo compartilhados com outras pessoas importantes de sua vida, Todos nés possuimos necessidade de exercer atividades de automanutencao, de autocuidado e de lazer. Um sofrimento considerdvel pode surgir se uma pessoa é privada de qualquer uma ou varias dessas esferas e, a0 ignorar isso, 0 profissional de Satide deixa de abordar uma importante causa de sofrimente. Toda pessoa tem um corpo com uma organicidade e anatomia singular composto por processos fisicos, fisiolégicos, bioquimicos e genéticos que o caracterizam. Mas, além disso, toda pessoa ‘tem um corpo vivide, que muito diferente do corpo estudado na Anatomia, na Biologia e na Bioquimica. Cada um tem uma rela¢o com o préprio corpo que envolve histéria pessoal, pontos de exteriorizagdo de emogdes, formas de ocupar 0 espaco e de se relacionar com 0 mundo. 0 corpo é ao mesmo tempo dentro e fora de mim, podendo ser fonte de seguranga e orgulho, ou de ameaca e medo Toda pessoa tem uma autoimagem, ou seja, como ela atualmente se vé em relagao a seus valores, a seu mundo, a seu corpo, e aqueles com quem ela se relaciona. Toda pessoa faz coisas, e sua obra no mundo também faz parte dela. Toda pessoa tem habitos, comportamentos regulares dos quais pouco se dé conta, que afetam a propria vida e a dos outros e que podem ser afetados por problemas de saiide. SAUDE Toda pessoa tem um mundo inconsciente, de modo que faz e vive um grande numero de experiéncias que nao sabe explicar como e por qué. Toda pessoa tem uma narrativa de si e uma dos mundos, algo que junte todas as experiéncias de vida passadas, presentes e 0 que se imagina do futuro, em um todo, que “faca sentido” para aquela pessoa Quase toda pessoa tem uma dimensdo transcendente, que se manifesta na vida didria com valores que podem ou no ter a ver com religido. a dimensao que faz com que a pessoa se sinta como parte de algo atemporal e ilimitado, maior que sua vida comum - seja Deus, a histéria, a patria ou qualquer coisa que ocupe esse lugar na vida de um individuo. E assim por diante, em uma lista tao grande quanto a complexidade e & criatividade de cada vida. A medida que as pessoas interagem com os ambientes em que vive, essas esferas, que compdem as pessoas, vao se constituindo e formando sua prépria histéria, cada uma seguindo uma dinmica prépria com regras e parametros para um modo de viver especitico. Paralelamente, 4a esferas influenciam umas as outras, e cada uma ao conjunto que é a pessoa, ou seja, embora auténomas, sao interdependentes. Podemos visualizé-las como um grupo de bolas magnéticas de diferentes tamanhos, as quais se mantém acopladas, unidas, porém sem perder suas existéncias individuais, formando ‘algo como um grande cacho de uvas. Em suas dindmicas particulares estabelecem relacoes de complementariedade, de concorréncia, de antagonismos, de sinergias, de sincronias e dissincronias, de mitua alimentac3o, de saprofitismos, parasitismos etc. O todo dessas esferas fe todas suas relacdes compéem o que chamamos de uma pessoa, que pode se apresentar dos modos os mais distintos e aparentemente incongruentes ou incoerentes, mas a estabilidade fluida dessas esferas que giram e rodam umas sobre as outras, constituindo um sistema aberto, nos da a sensacio de identidade. A identidade é vivida e percebida pela preservagao de um conjunto de correlagdes entre tais esferas, que embora estejam em constante movimento, tende ‘a manter um conjunto mais ou menos regular de correlacdes entre si, 0 que nos explica porque sentimos que somos os mesmos embora saibamos que nos transformamos a cada dia. No caso de Roberta e dos usuarios e familias que ela atendeu, qual a sua impressao? Voce acha que as pessoas estavam sendo vistas a partir de todos estes prismas, de forma complexa, ou eram vistas de forma reduzida a um ou outro aspecto de si? E como seré que Roberta via a si propria? Sera que ela conseguia dar valor a todas as suas dimensées e lancar mao delas nos atendimentos que realizava? 2.1.2 O que é 0 sofrimento? Pois bem, é sobre essa pessoa complexa, descrita anteriormente, que emergem os fendémenos 0s quais damos o nome de doencas. Deixando as questées causais e as redes de determinacoes, TAL Ministério da Satide | Secretaria de Atencdo a Satide | Departamento de Atencéo Basica podemos entender a doenca como sendo o surgimento de uma nova dimensio, uma nova esfera no conjunto preexistente, Esta nova esfera vai influir nas outras esferas de acordo com as relacées que se estabelecerem entre elas ¢ pelos deslocamentos e modificagbes das correlacées prévias. Sofrimento ndo ¢ 0 mesmo que dor, embora a dor possa levar a um sofrimento, mas nao 6 qualquer dor que nos faz sofrer. Da mesma forma, 0 sofrimento nao equivale a uma perda, embora as perdas possam, ocasionalmente, nos fazer sofrer. Voltando a0 caso, Roberta atendia Fernando, que foi por ela encaminhado ao Caps-ad, € sua mée Lucimara, que sempre ia 8 UBS com diversas quelxas. Podemos também pensar: quem vai tanto assim UBS pode estar com um grande nivel de sofrimento, do qual no consegue dar conta sozinha. E provvel que, até a chegada de Roberta, os médicos que a antecederam trataram o sofrimento de Lucimara unicamente a partir do viés da doenca, € assim ela foi recebendo varios diagnésticos (e varios tratamentos a esses diagndsticos). Mas esses tratamentos nao estavam ajudando Lucimara a sofrer menos. Pelo contrério, parecia um circulo vicioso, sem fim: quanto mais ela sofria, mais ela procurava o posto, mais diagnésticos medicamentos recebia, e mais ela sofria e por ai val.. Quando Roberta foi efetiva em cuidar de um problema de saiide grave de Fernando, Lucimara passou a sofrer muito menos e todas aquelas queixas que a levavam & UBS puderam receber condutas mais adequadas. Ou seja, pode ser que enquanto no se desse a atencdo a outras dimensdes da vida de Lucimara - sua familia, seu papel de mae, seus medos, suas memérias— ela continuaria queixosa, procurando a UBS com frequencia, seu sofrimento continuaria a ser mal interpretado como doencas simplesmente fisicas, e ndo diminuiria - a0 menos nao pelos cuidados de satide. Nao que esas doencas nao a fizessem sofrer, mas sim que poderiam no ser o motivo principal de seu sofrimento, e possivelmente estavam servindo de forma de exteriorizac3o de um sofrimento maior de outra ordem. Sendo assim, partindo desta perspectiva multidimensional e sistémica proposta por Cassell, podemos entender o sofrimento como essa vivéncia da ameaca de ruptura da unidade/identidade da pessoa. Tal modelagem nos permite que a abordagem do sofrimento psiquico - seja ele enquadrado nas situagdes descritas como sofrimento mental comum ou nos casos de transtornos graves e persistentes, como as psicoses — possa adquirir maior inteligibilidade e estratégias de acdo ‘mais racionais, abrangentes, e menos iatragénicas. Frente a este objeto, as intencSes, os objetivos fe as metas por trés das acdes do profissional de Saide se modificam. Sendo assim, torna-se fundamental para 0 profissional da AB manter-se atento as diversas dimens6es do sujeito que se apresenta a sua frente. 2.1.3 O que é cuidado? Tendo em vista que cada pessoa ¢ um conjunto de dimensées diferentes com relagdes distintas entre cada esfera, devemos, em cada encontro com a pessoa que sofre, dar ateng3o a0 SAUDE conjunto dessas esferas, em uma abordagem integral, e assim identificar quais transformacées ocorreram, como cada mudanga influiu em cada uma das esferas, quais correlacdes estdo estagnadas ou ameacadas, enfim, 0 que est provocando adoecimento e 0 que esta em vias de causar adoecimento. Da mesma forma, devemos identificar que esferas ou relacées propiciam mais movimento, estabilidade e coesao ao conjunto, Poderemos entao elaborar estratégias de intervengéo em algumas ou varias dessas esferas, dentro de uma sequencia temporal, e buscando reintroduzir uma dindmica de dissipac3o das forcas entropicas para reduzir 0 sofrimento & promover a retomada da vida. O esforco em realizar esse exercicio com os usuarios e os familiares pode se chamar de Projeto Terapéutico Singular. (Ou seja, um projeto terapéutico é um plano de ago compartilhado composto por um conjunto de intervengées que seguem uma intencionalidade de cuidado integral & pessoa. Neste projeto, tratar das doengas nao ¢ menos importante, mas 6 apenas uma das acdes que visam ao cuidado integral. Um Projeto Terapéutico Singular deve ser elaborado com o usuério, a partir de uma primeira andlise do profissional sobre as miltiplas dimensdes do sujeito. Cabe ressaltar que esse € um processo dinamico, devendo manter sempre no seu horizonte o carater provisério dessa construso, uma vez que a prépria relacdo entre 0 profissional e o usuario esta em constante transformagao. E dificil resistir 8 tendéncia de simplificagdes e & adoco de formulas magicas. Mesmo quando nos propomos a transformar nossa pratica em algo aberto e complexo, enfrentaremos dificuldade fe angustia por nao saber lidar com situagdes novas. Carregamos conosco nosso passado de formacao reducionista (seja biolégica ou psicolégica) e frente ao desconhecido podemos nos sentir impotentes, de modo que é facil recair em explicagdes simplistas, que nos permita agir de acordo com um esquema mental de variaveis seguras e conhecidas. Ao focarmos no sofrimento, corremos assim o risco, enquanto profissionais de Saude, de negligenciar as dimensOes da pessoa que esteja indo bem, que seja fonte de criatividade, alegria e producio de vida, e ao agir assim, podemos influencid-la também a se esquecer de suas préprias potencialidades. Quando alguém procura um servigo de Sade, acredita-se estar com um problema que algum profissional deste servico possa resolver. Cabe ao profissional de Sade estar atento ao problema, porém sem perder de vista 0 todo, de modo que possa com cada sujeito perceber e criar novas possibilidades de arranjo para lidar com 0 problema. O profissional de Sade no deve olhar fixamente para o sofrimento ou a doenca, ou apenas a queixa, mas deve se lembrar que seu trabalho é produzir vida de forma mais ampla, e para isso cuidar de maneira integral Interdependéncia: Sofrimento de pessoas, familias, comunidades, territérios Convidamos © leitor a um répido exercicio de visualizacao. Exploramos largamente a modelagem de pessoa como um conjunto de dimens6es interdependentes, um sistema aberto, que mantém certa estabilidade e nogdo de unidade, mas em constante transformacao. Se olharmos com atengao, perceberemos que as familias podem ser compreendidas da mesma forma, sendo as dimensdes compostas por cada membro da familia, a casa, as ruas, 0s animais de estimagio etc. O mesmo se aplica 8 comunidade, que engloba cada pessoa em suas familias e em outras redes de relagdes como: ruas, escolas, templos religiosos, parques, sistema politico, financeiro etc, Se formos além, podemos ver relacées entre cidades, estados, paises, planetas, e enfim, todo 0 universo. Podemos olhar muito de perto, dentro de cada pessoa, o conjunto de células, de estruturas internas as células, de moléculas, étomos, particulas subatémicas etc. TAL Ministério da Satide | Secretaria de Atencdo a Satide | Departamento de Atencéo Basica Neste conjunto de interconexées, o profissional de Sade nao esté fora, como um cientista em seu laboratério poderia acreditar que esta. Cada profissional é também uma pessoa, um conjunto de dimensées interdependentes, e esta relacionado ao meio em que vive também em uma relacao de interdependéncia, Sua histéria, seus medos e seus préprios sofrimentos estarso, la quando estiver em cantato com cada usuario, e é justamente por também ter todas esas dimensdes que ¢ possivel perceber a existéncia delas no outro. Da mesma forma, cada encontro faz com que o conjunto coeso da pessoa que é 0 profissional também se modifique um pouco, e cada ado executada pelo profissional cria algum nivel de transformagso nao s6 no usuario atendido, mas na familia, na comunidade e no préprio servico de Saude. No caso de Roberta, podemos perceber que seus sucessos e satisfacées profissionais ocorreram quando ela se permitia entrar em contato com pessoas em toda sua complexidade, e lancava mao das varias dimensdes que a compunham, enquanto pessoa. Mas sem ter tido contato com outras formas de pratica e de compreensao do sujeito e dos objetivos do cuidado - em outras palavras, sem conseguir visualizar a interdependéncia ~ Roberta sentiu-se impotente, e sofrendo, deixou seu trabalho se transformar em algo repetitivo e estéril, sem travar encontros com pessoas e sem conseguir aliviar o sofrimento de muitos daqueles que ela atendia 2.1.4 Territérios existenciais e coesao social Atengdo Basica prima pela organizacao territorial dos servicos de Satide. A concepgso de territério com a qual iremos trabalhar engloba a dimensao da subjetividade e contribui para enriquecer as possibilidades de abordagens de territério no campo da Saude. © territério € um componente fundamental na organizacao dos servicos da Atencio Basica, pois é a partir deles que se estabelecem limites geograticos e de cobertura populacional que ficam sob a responsabilidade clinica e sanitaria das equipes de Saude. Mas a nocao geografica de territério, enquanto espaco fisico com limites precisos, nao € suficiente para dar conta da sociodinamica que as pessoas € 0s grupos estabelecem entre si. A nogio de territério-vivo, de Milton Santos, considera as relacdes sociais e as dinamicas de poder que configuram os territérios como lugares que tomam uma conotacéo também subjetiva, Na Saude também utiliza-se a concepcao de territérios existenciais de Guattari (1990). Os terrtérios existenciais, que podem ser individuais ou de grupo, representa espagos e processos de circulagao das subjetividades das pessoas. Sao territorios que se configuram/desconfiguram/reconfiguram a partir das possibilidades, agenciamentos e relagdes que as pessoas e grupos estabelecem entre si Incorporar a concepsao de territrios existenciais implica considerar nao apenas as dimensoes subjetivas daqueles que séo cuidados, 0s usuarios, mas também a subjetividade dos trabalhadores de Sade. E trabalhar com sade pressupde que os préprios trabalhadores de Saude permitam deslocamentos em seus territérios existenciais, j que a principal ferramenta de trabalho em satide mental & a relacéo. SAUDE Assim, retomando 0 caso deste caderno, quando Roberta atendeu Fernando, o jovem. ‘emagrecido que estava usando crack, ela provocou novos agenciamentos ao acionar colegas de sua equipe, como a assistente social e a agente de Saiide, que a ajudaram 2 ampliar repertério de possibilidades de cuidado na rede de Saude, E isso repercutiu, inclusive, na melhora dos problemas de saiide da mae do rapaz Roberta facilitou 0 processo de configuracdo de novos terrtérios exstenciais sobre os quais se constituiu a sustentac3o de uma rede de cuidado para Fernando. O caso de Fernando também é ilustrativo de um desafio cotidiano na Ateng8o Bésica. A situacdo-problema aparece com 0 uso compulsive de drogas por parte de Fernando, mas esta é uma questao social mais complexa, que extrapola as dimensées da satide individual, pois afeta muitas comunidades marginalizadas, que tm em comum os problemas associados & pobreza, & violencia, ao tréfico de drogas e a0 pouco investimento e 8 penetracao das politicas publicas e das instituicdes estatais. S80 comunidades com maior dificuldade em manter a sua coeséo social, ou seja, os lagos que unem as pessoas no seio da comunidade e da sociedade (ONU, 2012). A coesio social tem sido sugerida como um indicador de sauide dessas coletividades. Entre as situacées que podem ameagar a coesdo social, encontramos: a desigualdade socioeconémica; as migracées; a transformacao politica e econdmica; as novas culturas do excesso; 0 aumento do individualismo e do consumismo; as mudangas nos valores tradicionais; as sociedades em situacao de conflito ou pés-conflito; a urbanizacao répida; 0 colapso do respeito a lei e a economia local baseada nas drogas (ONU, 2012). Algumas respostas possiveis as ameacas da coesio social passam pela ampliacao e articulagao de politicas pablicas intersetoriais, pelo estimulo dos grupos comunitarios existentes e pela melhoria das condigdes sociais em geral. A Atengéo Basica também tem contribuigées nese campo, sobretudo por meio do desenvolvimento de tecnologias leves e intervencdes que possibilitem a configuracdo/ desconfiguragao/reconfiguragao dos territérios existenciais individuais e coletivos, Destocar © olhar da doenca para o cuidado, para o alivio e a ressignificagdo do sofrimento e para a potencializaco de novos modos individuais e grupais de estar no mundo aponta na direg3o, de concepcées positivas de salide mental. E alguns indicadores que podem ser levados em consideragao neste sentido incluem: a) 0 desenvolvimento de novos modos de grupalidade, de maneira a estimular uma maior participagdo das pessoas nas decisdes de um grupo, na producao de beneficios que extrapolem os interesses pessoais e na ampliacéo da autonomia desse grupo; b) a valorizacao da criatividade com o exercicio do pensamento divergente, das atividades simbélicas e abstratas e da interagao social; ©) a utilizago do tempo livre, o tempo de lazer e repouso; 4) 0 desenvolvimento de uma consciéncia social que aborde, de maneira critica, os problemas individuais, grupais e sociais em geral (ROSSI, 2005). ‘As questées aqui apresentadas implicam em considerar que hé dimensées individuais, grupais e sociais na produgdo do sofrimento e que, portanto, também as respostas devem focar intervengdes nesses diferentes ambitos. TAL Ministério da Satide | Secretaria de Atencdo a Satide | Departamento de Atencéo Basica Ao longo dos préximos capitulos deste caderno, iremos aprofundar as perspectivas aqui apresentadas e oferecer elementos que ajudem a compor uma caixa de ferramentas diversificada para que os profissionais que atuem em Atencio Basica possam dar conta de diversas situagées de sofrimento, incorporando as diferentes esferas das pessoas, familias e comunidades nas estratégias de cuidado Referéncias CASSELL, E. J. The Nature of Suffering and the goals of medicine, 2“ ed. Oxford University Press, 2004, GUATTARI, F As tras ecologias. 13. ed. Campinas, SP: Papirus, 1990. ORGANIZACION DE LAS NACIONES UNIDAS. Informe de la Junta Internacional de Fiscalizacién de Estupefacientes correspondiente a 2011. Nueva York: ONU, 2012. ROSSI, R. O. R. El hombre como ser social y la conceptualizacién de la salud mental positiva. Investigacién en Salud, [S.L, v. 7, n. 2, p. 105-111, 2005.

Você também pode gostar

  • 9 Vamos Fazer Magia
    9 Vamos Fazer Magia
    Documento25 páginas
    9 Vamos Fazer Magia
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Dia Das Crian+ºas - Recursos Gratuitos
    Dia Das Crian+ºas - Recursos Gratuitos
    Documento12 páginas
    Dia Das Crian+ºas - Recursos Gratuitos
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 01
    Slides Aula 01
    Documento8 páginas
    Slides Aula 01
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 07
    Slides Aula 07
    Documento6 páginas
    Slides Aula 07
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Grupo 2
    Slides Grupo 2
    Documento7 páginas
    Slides Grupo 2
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slide 01
    Slide 01
    Documento17 páginas
    Slide 01
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 05
    Slides Aula 05
    Documento9 páginas
    Slides Aula 05
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slide Aula 02
    Slide Aula 02
    Documento8 páginas
    Slide Aula 02
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Capítulo 10
    Capítulo 10
    Documento20 páginas
    Capítulo 10
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 04
    Slides Aula 04
    Documento7 páginas
    Slides Aula 04
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 01
    Slides Aula 01
    Documento9 páginas
    Slides Aula 01
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações
  • Slides Aula 02
    Slides Aula 02
    Documento3 páginas
    Slides Aula 02
    SABRINA PEREIRA DA SILVA
    Ainda não há avaliações