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NA BARRIGA DA BALEIA

Texto da profa. Eliane Oliveira – 11/04/2020


Morte. Não é fácil falar em morte. É um tabu, apesar de ela ser a maior parte da vida.
Começamos a morrer quando nascemos. Desfazemos anos conforme fazemos aniversários.
Cada dia que passa, nossa matéria morre um pouco enquanto vive. Mesmo quando a face
lisa do bebê insiste em desmentir essa verdade, essa é a verdade. A morte da matéria, de
qualquer matéria, é implacável. Não é possível se maquiar. Não é possível escondê-la. Dela,
não é possível se esconder. Qualquer botox, ao invés de preencher o velho com juventude,
só ressalta aos olhos de quem o vê que ali houve uma queda. A queda é bonita. A queda nos
faz bonitos. A queda é parte da vida. É uma passagem da densidade para a sutileza. Mas,
não nos convencemos disso, e, na tentativa de controlá-la (a queda, a velhice e a morte), nós
nos plastificamos. A mente de quem se plastifica confia no que é falso e acredita que é
possível frear o curso do rio cheio de quedas e impermanências, que o fazem rio. Pegamos
um punhado de areia fina nas mãos e a areia cai por entre nossos dedos. Temos algumas
possibilidades. Podemos sentir a coceguinha que a areia faz ao deslizar das mãos enquanto
vai embora. Ela vai embora, mas a coceguinha é extraordinária. A vida, na passagem da
areia pelos dedos, se eternizou. Ao invés disso, podemos apertar mais firme a areia nas
mãos enquanto ela desliza, querendo e crendo segurar seu insegurável deslizar.
Apertaremos a areia nas mãos, temerosos da sua queda, não desfrutaremos a coceguinha
que ela faz ao deslizar pelos dedos das mãos, e, ainda por cima, iremos perdê-la de qualquer
jeito, pois deslizar é a sua natureza de areia fina. Podemos ser gratos às cinzas que geram a
fênix ou podemos jogá-las fora no lixo como lixo, e não teremos a oportunidade da fênix,
que renasce. A perda pode ou não ser uma experiência feia e ruim. Depende. Depende da
nossa escolha.
Creio que estamos vivendo coletivamente uma experiência de morte e de luto. Através da
morte da matéria (da derrubada de corpos e de instituições), visita-nos uma experiência de
morte que nos alcança em dimensões internas mais profundas. São tempos coronarianos.
Tempos de corona. Tempos de assuntos relativos ao coração. Tempos da queda das coroas.
Os nomes corona (o vírus) e coronário (artérias que nutrem com sangue o coração) tem a
mesma raiz etimológica: coroa. Não é interessante? Essa relação - nome e cenário - me
conectam imediatamente à simbologia gravada na carta do tarot chamada “A Torre”.
Consiste numa torre muito alta e sem portas, em cujo topo está assentada uma suntuosa
coroa. Seus moradores coroaram seu castelo. Seu castelo era a sua verdade. Seu castelo era
sua riqueza. Seu castelo era seu poder. Seu castelo era sua vida. Não abriam mão dele. Mas
um dia, inesperadamente, um raio caiu sobre a torre, derrubou a coroa e jogou seus
moradores para fora do castelo. Na marra, porque, por eles, de tão ensimesmados,
continuariam castelocentrados. Foi morte. Foi queda. Mas, justamente o raio que trouxe a
morte ao seu castelo também libertou seus moradores, dando-lhes a chance de reverem o
que na vida merece coroamento. A tal possibilidade de se tornar fenix, desfrutando da
coceguinha da areia fina por entre os dedos.
Pois, em tempos de corona, as coroas dos castelos caem para dar lugar ao coroamento do
coração. Somos levados para um retiro. Isolamento. E, ainda: somos chamados a nos retirar
não somente para nos proteger, mas como a única forma de proteger a humanidade, num ato
de compaixão (sentir a dor do outro) pela sobrevivência do planeta. O planeta nos convoca
ao recolhimento, à meditação. Isso é claro e evidente. Para fazer essa passagem da
densidade para a sutileza (Páscoa), é preciso abrir mão de si em honra da existência do
outro.
O planeta faz seu balanço com severidade e nos questiona o que é a normalidade. Ele faz
isso em alto tom. Alguns, apegados às pedras dos seus castelos, reagirão como a fase de
negação num luto. Negarão a morte havida. E, segurando firme entre os dedos a poeira fina
do seu tombamento, aguardarão a volta a um ontem já ido. Outros, porém, fazendo coro
com o chamado do planeta, questionarão a normalidade, e, mais do que nunca, irão se
dispor à recriação de si, aqui e agora. Há nevoeiro? Sim, há nevoeiro. Quem pensa que um
dia enxergou ou enxergará tudo claro, se enganou. Não controlamos nada. Enxergamos bem
pouco. Mas, inspirando-nos no que dizem os mestres, durante o nevoeiro, podemos levar o
barco devagar.
Aprendi com Jung, um desses mestres, que, na hora das crises coletivas, é bom olhar para
os símbolos e para os mitos. São sabedoria eterna, universal, habitantes do inconsciente
coletivo. Eles não nos ensinam na teoria. Eles agem em nós na prática. Nós os atuamos.
Posso, por exemplo, nos sentir todos dentro do mito judaico de Jonas. Conta-se que havia
uma cidade chamada Nínive onde guerreiros que a dominavam matavam cruelmente os seus
moradores. Deus, compadecido, encarregou um homem justo chamado Jonas de ir até lá
para enviar um recado aos guerreiros: “Dou-lhes quarenta dias para se arrependerem, se
não, lançarei sobre vocês minha fúria”. Jonas sabia que essa era uma tarefa muito difícil.
Ficou apavorado de levar aos malfeitores a mensagem de Deus. Então, fugiu. Fugiu em um
barco para uma outra cidade que ficava em direção oposta à Nínive. Entretanto, durante a
viagem, acontece uma enorme tempestade cujas ondas gigantescas ameaçavam destruir o
barco e matar todos os embarcados. A tempestade só cessou quando Jonas é lançado ao
mar. Uma baleia engole Jonas e ele fica vivo no estômago dela por três dias e três noites.
Isolado e preso na barriga da baleia, Jonas cede ao profundo silêncio da alma e entra em
meditação. Ali, ele se ilumina. Compreendendo a importância da sua responsabilidade para
com seu tempo e para com aquele povo, é vomitado pela baleia numa praia, para seguir,
enfim, rumo à sua missão. O chamado de Deus é o chamado da sua consciência. Era preciso
abrir mão de si, das suas verdades, dos seus medos. Morrer. Mas, Jonas negou e fugiu da
sua consciência. Até que, após um retiro forçado ao ser engolido por um monstro do mar, o
enfrentamento de uma sombra presa nos calabouços da sua alma, despertou. Jonas estava
morto na normalidade quando julgava estar vivo. Meditou na barriga da baleia em processo
de digestão e de gestação de si mesmo. Ressurgiu. Agora sim, vive.
Eis a nossa prova. É uma prova. Aproveitaremos a “barriga da baleia” como um templo
para, humilde e honestamente, reavaliarmos as escolhas que tomamos como humanidade até
aqui; aproveitaremos a "barriga da baleia" como um útero para nos gerar como humanos e
sociedade justos, solidários e livres, integralmente, em dimensões econômicas, políticas,
culturais, emocionais, corporais, espirituais; fluiremos com a vida desde agora para um
tempo em que o coração do planeta será coroado; ou insistiremos em defender as coroas de
nossos castelos plastificados e caídos, mesmo que essa inconsciência nos leve para o nosso
fim como espécie?
Depende. Depende da nossa escolha. Eu, seguirei com o coração.
Rumo à vida, apesar da morte.
Boa Páscoa!
...
Escrito na sexta-feira da paixão (10/04/2020)

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