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MATIAS, Wagner Barbosa. MASCARENHAS, Fernando. As Transformações Da Atuação Do Estado e As Políticas Sociais Contemporâneas
MATIAS, Wagner Barbosa. MASCARENHAS, Fernando. As Transformações Da Atuação Do Estado e As Políticas Sociais Contemporâneas
Resumo: Este estudo discute as características e a passagem do Estado de Bem Estar Social para o
Estado Schumpeteriano, com a reestruturação do capitalismo em meados da década de 1970. Desde
então, o Estado diminuiu sua atuação no atendimento das necessidades humanas e amplia seu papel
na organização e sustentação da acumulação capitalista. Nesse sentido, o fundo público é canalizado
para o atendimento das necessidades do capital e as políticas sociais assumem um caráter de amorte-
cedor das tensões sociais, promovendo a coesão social e, por outro lado, atuam como moeda, que
impulsiona o crescimento econômico e os lucros dos membros da burguesia.
Palavras Chave: Welfare State. Estado Schumpeteriano. Políticas Sociais.
Abstract:This study discusses the characteristics and the passage of the Welfare State to Social State
Schumpeterian, with the restructuring of capitalism in the mid-1970s. Since then, the state reduced its
role in human needs and expands its role in the organization and support of capitalist accumulation.
In this sense, the public fund is channeled to meet the needs of capital and social policies assume a
character buffer of social tensions, promoting social cohesion and on the other hand, act as currency,
which boosts economic growth and profits members of the bourgeoisie.
Keywords: Welfare State. State Schumpeteria. Social Policies.
1 Mestre em Educação Física pela Universidade de Brasília (UnB), servidor do Ministério do Esporte
(ME) e da Secretaria de Educação do Distrito Federal, Brasil. Bolsista do CNPq – Brasil. E-mail:
<wagner.matias@outlook.com>.
2 Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), docente da Facul-
dade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Bolsista do CNPq, Brasil.
E-mail: <fernando.masca@uol.com.br>.
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As transformações da atuação do Estado e as políticas sociais contemporâneas
Introdução
P
ara compreendermos a atuação O Welfare State e as políticas de
do Estado na contemporaneida- antivalor
de, é preciso identificar as trans-
formações sociais produzidas pelas Nas primeiras décadas do século XX,
lutas de classe e frações de classe ao percebemos uma intensificação dos
longo do desenvolvimento da socieda- conflitos entre as classes sociais e, co-
de regida pelo capital. mo consequência, a conquista de direi-
tos políticos e sociais pela classe traba-
Neste estudo nos propomos, à luz da lhadora. Na época borbulhavam na
teoria marxista, apresentar as caracte- Europa levantes dos trabalhadores e o
rísticas que o Estado adquiriu com a espectro comunista rondava o mundo
reestruturação do capitalismo ocorrida capitalista. Além disso, ocorrem o crack
a partir de meados de 1970, bem como ou crise de 19293 e a queda nos níveis
seus impactos para as políticas sociais. de acumulação de capital.
Inicialmente, por meio da revisão da
literatura, abordamos o Welfare State e Como resultado, após a segunda guer-
as políticas de antivalor; na sequência, a ra mundial a burguesia altera o modo
passagem do ‚Estado Social‛ para o de regulação social. Nesse sentido,
‚Estado antissocial‛ e, por fim, a confi- surge o Welfare State, ‚aquele modelo
guração das atuais políticas sociais. estatal de intervenção na economia de
mercado que, ao contrário do modelo
Nesse percurso não abrimos mão das liberal que o antecedeu, fortaleceu e
categorias contradição, totalidade e expandiu o setor público e implantou e
mediação, pois essas nos possibilitam geriu sistemas de proteção social‛
compreender as relações sociais cons- (PEREIRA, 2011a, p. 23).
truídas para além da aparência do ob-
jeto estudado. Assim, não partimos Observa-se que pela primeira vez os
daquilo ‚que os homens dizem, imagi- membros da burguesia passaram a
nam ou se representam, e também dos pagar impostos, especialmente com o
anos narrados, pensados, imaginados, mecanismo de progressividade sobre a
representados, para daí se chegar aos renda e as posses; os trabalhadores e os
homens de carne e osso; parte-se dos pobres em situação de pauperização se
homens realmente ativos, e com base beneficiaram com serviços públicos e
no seu processo real de vida *...+‛
(MARX; ENGELS, 2009, p. 31).
3 A crise de 1929 que se arrastou até o fim da
segunda guerra mundial em diversos países é
marcada pela superprodução, retração do
consumo, aumento do desemprego, das taxas
de juros, queda das ações da bolsa de valores
etc.
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para o controle social‛ (BARBALET, que produziu uma massa salarial que
1989, p. 97). impulsionava a produção e o consumo
Se o sistema de proteção social do Wel- de bens em grande volume; segundo, a
fare State garantia, na sua fase mais subordinação das finanças às necessi-
progressista, o atendimento das neces- dades da indústria e à manutenção das
sidades humanas, apesar da coexistên- taxas de câmbio fixo; terceiro, a pre-
cia de pauperização relativa e bolsões sença de instituições fortes nos Estados
de pobreza, especialmente, na periferia para disciplinar os movimentos do
do capitalismo, do lado do capital capital privado, tanto para suprir as
também não faltavam benesses (OLI- deficiências setoriais de investimentos
VEIRA, 1998). como para fortalecer a demanda
(CHESNAIS, 1996).
Em nenhum momento o Estado deixou
de exercer seu papel de classe, além Entretanto, em meados da década de
disso, a exploração do trabalhador con- 1970, o capital rompe as amarras e
tinuava a existir por meio da extração combate duramente o fordismo e os
de mais-valia relativa ou da mais-valia princípios econômico-sociais Keynesi-
absoluta. Na verdade, isso somente anos que sustentavam o Welfare State.
deixará de existir quando o capital for Desde então, assistimos à intensifica-
superado em todas as relações que são ção da exploração do capital sobre o
estabelecidas a partir dele. trabalho.
Além disso, poderíamos citar as duas blico financiando políticas sociais. Elas
crises mundiais do petróleo, o rompi- podem acontecer desde que atendam
mento do acordo de Bretton Woods6 e as necessidades de reprodução do ca-
a intensificação da internacionalização pital.
das empresas. A conjunção destes ele-
mentos dilacerou o ‚Estado social‛. É claro, portanto, que o objetivo real do
capital monopolista não é a ‘diminuição’
do Estado, mas a diminuição das fun-
É importante ressaltar que as críticas
ções estatais coesivas, precisamente aque-
de liberais ou neoliberais ao Welfare las que respondem à satisfação de direi-
State, ao seu possível papel ‚interven- tos sociais. Na verdade, ao proclamar a
cionista‛, ao seu tamanho e aos valores necessidade de um ‘Estado mínimo’, o
gastos com políticas sociais existiam que pretendem os monopólios e seus
representantes nada mais é do que um
desde o seu surgimento. Para intelec- Estado mínimo para o trabalho e má-
tuais como Hayek7 o modo de regula- ximo para o capital (NETTO; BRAZ,
ção e produção existente levava os in- 2009, p. 227, grifo do autor).
divíduos à servidão e à paralisia do
desenvolvimento da sociedade. As medidas para setores como inova-
ção tecnológica, formação de mão de
Na verdade, eles tentam ‚[...] destruir obra flexível e barata e políticas focali-
a relação do fundo público com a es- zadas de coesão social sempre foram
trutura de salários, com a correção das amplamente incentivadas pelo bloco
desigualdades e dos bolsões de pobre- no poder.
za‛ (OLIVEIRA, 1998, p. 46), deixando
a população de baixa renda relegada à Porém, o novo regime que se instala a
caridade pública ou a uma ação estatal partir de 1970 altera completamente a
evasiva e eventual. sociabilidade humana, a organização
política, econômica, cultural; a forma
O combate ao Welfare State não signifi- de lidar com a natureza, com a cons-
ca que seja uma luta de frações da bur- trução de conhecimento e o modo de
guesia contra a presença do fundo pú- atender as necessidades humanas e do
capital. Esse novo projeto da burgue-
6 O acordo de Bretton Woods definiu regras e a sia, mascarado ‚por muita retórica
criação de instituições e procedimentos para
sobre liberdade individual, autonomia,
regular a política econômica internacional.
Cada país devia adotar uma política monetária
responsabilidade pessoal e as virtudes
que mantivesse a taxa de câmbio de suas moe- da privatização, livre-mercado e livre-
das dentro de um determinado valor indexado comércio, legitimou políticas draconi-
ao dólar que, por sua vez, estaria ligado ao anas destinadas a restaurar e consoli-
ouro. Ao Fundo Monentário Internacional
dar o poder da classe capitalista‛
(FMI) coube emprestar recursos para os países
suportarem as crises. Em 1971, os EUA cance-
(HARVEY, 2011, p. 16).
laram a conversibilidade direta do dólar em
ouro. O capitalismo contemporâneo privile-
7 F. Hayek foi um dos principais pensadores
gia o atendimento das necessidades do
liberais do século XX.
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Jessop (1998, p. 33) considera que, ape- dos empregos) e mobiliza milhares de
sar de o Estado continuar com algumas voluntários12.
de suas típicas funções capitalistas, de
apoio à acumulação e de hegemonia Como alerta Pereira (2009), o Estado
política e controle social, existe no ce- não é um invólucro isolado das rela-
nário atual um deslocamento de poder ções de classe. Não foi ele por si só que
do Estado em três direções: a) ‚para colocou como prioridade a primazia da
cima‛, em direção aos organismos in- acumulação de capital, hoje hipertrofi-
ternacionais, grupos dos países ricos ada em detrimento do atendimento
que acabam controlando e ditando a das necessidades humanas.
circulação de capitais e mercadorias; b) A reconfiguração das políticas sociais
‚para baixo‛, do Executivo federal pa-
ra as esferas regionais e locais; c) ‚para Diante dessas constatações, cabe a se-
fora‛, que são as redes horizontais de guinte questão para se avançar na re-
poder - internacional, regional e entre flexão: quem sofre as consequências
governos e o ‚terceiro setor‛. com o Estado a serviço da acumulação
de capital? A resposta parece óbvia.
A presença de instituições supraesta- No caso brasileiro, como na maioria
tais como o Fundo Monetário Interna- dos países, recai justamente em quem
cional, o Banco Mundial, os grupos de financia as medidas de acúmulo de
países do G8 e G20 desempenha cada capital: os trabalhadores.
vez mais influência no direcionamento
dos fluxos de capital e na proteção da O Estado, ao diminuir os recursos para
acumulação de capital (HARVEY, as políticas sociais, destitui direitos
2011). sociais e o atendimento (parcial) das
necessidades humanas, antes garanti-
Cabe destacar, também, o papel que das pelo fundo público, agora são sa-
vem sendo exercido pelas entidades do tisfeitas no mercado. Mas se as políti-
chamado ‚Terceiro Setor‛ que, com a cas neoliberais ‚[...] provocaram au-
contrarreforma do Estado, passou a mento do desemprego, destruição de
desenvolver funções típicas da admi- postos de trabalho não-qualificados,
nistração pública. O mundo das Orga- redução dos salários devido ao aumen-
nizações Não Governamentais (ONGs) to da oferta de mão-de-obra e redução
movimenta mais de US$ 1 trilhão por de gastos com políticas sociais‛
ano, aproximadamente 8% do PIB do (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 127),
planeta. No Brasil, ele reúne mais de como fazer isso?
200 mil organizações e representa cerca
de R$ 10,9 bilhões anuais, empregando O salário, que antes era liberado para
cerca de 1,2 milhão de pessoas (2,2% o consumo de bens, agora custeia as
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cançando a esfera da cultura [...] (NET- a contrapartida disso, é que várias de-
TO, 2012, p. 217). zenas de Estados nacionais foram
obrigados a renunciar a qualquer pre-
O processo cíclico de reestruturação do
tensão à soberania, tornando-se verda-
modo de produção capitalista parece
deiros Estados-anões‛ (NETTO; BRAZ,
chegar numa nova e definitiva encruzi-
2009, p. 238).
lhada, as crises não são mais cíclicas,
mas estruturais, pois, além do acirra-
Sem dúvida, estamos vivendo numa
mento dos conflitos sociais pelo mun-
época sombria, com um progresso tec-
do, a situação de exploração da huma-
nológico extraordinário e com um en-
nidade se agrava e os recursos naturais
riquecimento de grupos e determina-
são cada vez mais minguados14.
das frações da burguesia, em paralelo,
um empobrecimento e embrutecimen-
Um retorno ao keynesianismo parece
to humano como nunca visto. Parece
mais uma farsa15. A realidade de hoje é
que retornamos com os primórdios da
bem diferente dos anos 1930, há uma
exploração capitalista, só que de forma
interdependência e entrelaçamento
mais agressiva. A ação do Estado se
entre capitais bem maiores, bem como
assemelha cada vez mais àquele da
uma coordenação na política entre os
época relatado nos primeiros escritos
bancos centrais de todo o mundo. Na-
de Marx.
quela época os países tinham mais au-
tonomia para realizar medidas prote-
A focalização das políticas sociais, a
cionistas, hoje isso parece impossível
monetarização e as ações de ativamen-
com a lógica da mundialização de capi-
to dos trabalhadores servem para am-
tais.
pliar a acumulação de capital e aliviar
a situação de miséria social, seja no
No mundo contemporâneo, as mega-
centro ou na periferia do capitalismo.
corporações dividem entre si a propri-
edade de setores estratégicos no plane-
Diante do car{ter ‚destrutivo‛ do capi-
ta, como: biotecnologia; produtos far-
talismo atual, do atendimento das ne-
macêuticos; produtos veterinários;
cessidades do capital em detrimento
alimentos e bebidas; sementes etc, ‚*...+
das necessidades humanas, só nos res-
ta concordar com Mészáros (2012), ao
14 Conforme relatório apresentado pela rede
WWF a demanda humana por recursos natu- afirmar que o século XXI deverá ser do
rais chega a 50% do que o planeta pode supor- ‚socialismo ou a barb{rie‛, não tendo
tar e se continuarmos neste ritmo, em 2030 uma terceira via.
vamos precisar de uma capacidade produtiva
equivalente a dois planetas para satisfazer os
Referências
níveis anuais de nossa demanda (RECUR-
SOS..., 2010).
15 Alusão a celebre frase de Karl Marx ‚A his- ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do
tória se repete, a primeira vez como tragédia e trabalho: ensaios sobre a afirmação e
a segunda como farsa‛.
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