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Superior Tribunal de Justiça

HABEAS CORPUS Nº 641.877 - DF (2021/0024612-7)

RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS


IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
LUÍS CLÁUDIO VAREJÃO DE FREITAS - DF009689
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTICA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITORIOS
PACIENTE : MAURO DE JESUS GOMES DOS SANTOS
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E
TERRITÓRIOS
EMENTA

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO.


INADEQUAÇÃO. CITAÇÃO VIA WHATSAPP. NULIDADE. PRINCÍPIO
DA NECESSIDADE. INADEQUAÇÃO FORMAL E MATERIAL. PAS DE
NULlITÉ SANS GRIEF. AFERIÇÃO DA AUTENTICIDADE. CAUTELAS
NECESSÁRIAS. NÃO VERIFICAÇÃO NO CASO CONCRETO. WRIT NÃO
CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. Esta Corte - HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis
Junior, julgado em 10/6/2020 - e o Supremo Tribunal Federal - AgRg no HC
180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no
HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -,
pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do
recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da
impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato
judicial impugnado.
2. A citação do acusado revela-se um dos atos mais importantes do processo. É
por meio dela que o indivíduo toma conhecimento dos fatos que o Estado, por
meio do jus puniendi lhe direciona e, assim, passa a poder demonstrar os seus
contra-argumentos à versão acusatória (contraditório, ampla defesa e devido
processo legal).
3. No Processo Penal, diversamente do que ocorre na seara Processual Civil, não
se pode prescindir do processo para se concretizar o direito substantivo. É o
processo que legitima a pena.
4. Assim, em um primeiro momento, vários óbices impediriam a citação via
Whatsapp, seja de ordem formal, haja vista a competência privativa da União
para legislar sobre processo (art. 22, I, da CF), ou de ordem material, em razão da
ausência de previsão legal e possível malferimento de princípios caros como
o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
5. De todo modo, imperioso lembrar que "sem ofensa ao sentido teleológico da
norma não haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa
hipótese constituiria consagração de um formalismo exagerado e inútil"
(GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães;
FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 11. ed. São
Paulo: RT, 2011, p. 27). Aqui se verifica, portanto, a ausência de nulidade sem
demonstração de prejuízo ou, em outros termos, princípio pas nullité sans grief.
6. Abstratamente, é possível imaginar-se a utilização do Whatsapp para fins de
citação na esfera penal, com base no princípio pas nullité sans grief. De todo
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modo, para tanto, imperiosa a adoção de todos os cuidados possíveis para se
comprovar a autenticidade não apenas do número telefônico com que o oficial de
justiça realiza a conversa, mas também a identidade do destinatário das
mensagens.
7. Como cediço, a tecnologia em questão permite a troca de arquivos de texto e
de imagens, o que possibilita ao oficial de justiça, com quase igual precisão da
verificação pessoal, aferir a autenticidade da conversa. É possível imaginar-se,
por exemplo, a exigência pelo agente público do envio de foto do documento de
identificação do acusado, de um termo de ciência do ato citatório assinado de
próprio punho, quando o oficial possuir algum documento do citando para poder
comparar as assinaturas, ou qualquer outra medida que torne inconteste tratar-se
de conversa travada com o verdadeiro denunciado. De outro lado, a mera
confirmação escrita da identidade pelo citando não nos parece suficiente.
8. Necessário distinguir, porém, essa situação daquela em que, além da escrita
pelo citando, há no aplicativo foto individual dele. Nesse caso, ante a mitigação
dos riscos, diante da concorrência de três elementos indutivos da autenticidade do
destinatário, número de telefone, confirmação escrita e foto individual, entendo
possível presumir-se que a citação se deu de maneira válida, ressalvado o direito
do citando de, posteriormente, comprovar eventual nulidade, seja com registro de
ocorrência de furto, roubo ou perda do celular na época da citação, com contrato
de permuta, com testemunhas ou qualquer outro meio válido que autorize concluir
de forma assertiva não ter havido citação válida.
9. Habeas corpus não conhecido, mas ordem concedida de ofício para anular a
citação via Whatsapp, porque sem nenhum comprovante quanto à autenticidade
da identidade do citando, ressaltando, porém, a possibilidade de o comparecimento
do acusado suprir o vício, bem como a possibilidade de se usar a referida
tecnologia, desde que, com a adoção de medidas suficientes para atestar a
identidade do indivíduo com quem se travou a conversa.
ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, não
conhecer do pedido e conceder "Habeas Corpus" de ofício, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer, João Otávio de Noronha e Reynaldo
Soares da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 09 de março de 2021 (data do julgamento)

MINISTRO RIBEIRO DANTAS


Relator

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HABEAS CORPUS Nº 641.877 - DF (2021/0024612-7)
RELATOR : MINISTRO RIBEIRO DANTAS
IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
LUÍS CLÁUDIO VAREJÃO DE FREITAS - DF009689
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTICA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITORIOS
PACIENTE : MAURO DE JESUS GOMES DOS SANTOS
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E
TERRITÓRIOS

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO RIBEIRO DANTAS (Relator):

Trata-se de habeas corpus substitutivo, com pedido liminar, impetrado em favor


de MAURO DE JESUS GOMES DOS SANTOS, apontando como autoridade coatora o
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
O acórdão supostamente violador do direito de ir e vir do paciente restou assim
ementado:

"HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.


VIAS DE FATO. CITAÇÃO POR MEIO ELETRÔNICO. CIÊNCIA PELO
PACIENTE DA ACUSAÇÃO QUE RECAI CONTRA SI. ALEGAÇÃO DE
NULIDADE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO CONTRADITÓRIO E À
AMPLA DEFESA. COAÇÃO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. ORDEM
DENEGADA.
1. Diante da Covid-19, a citação eletrônica por Whatsapp deixa de ser
suscitada por uma questão de modernização da Justiça e passa a ser
necessária por uma questão de segurança e integridade física do ser
humano, ambos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da CF/88.
2. A ciência do teor da denúncia é inequívoca, consoante demonstra a
troca de mensagens entre o denunciado e a oficial de justiça pelo aplicativo
Whatsapp, ocasião em que o paciente inclusive manifestou interesse em ser
representado pela Defensoria Pública.
3. Conforme dispõe o artigo 563 do CPP, “nenhum ato será declarado nulo,
se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. No
caso concreto, nota-se que não houve prejuízo processual objetivamente
demonstrado que importe em nulidade do ato de citação, uma vez que os
elementos necessários para o conhecimento da denúncia foram
devidamente encaminhados ao denunciado e não há dúvidas quanto à
ciência, pelo acusado, do ato da citação e do teor da acusação.
4. Habeas Corpus admitido e ordem denegada." (e-STJ, fl. 159).

Irresignada, a defesa impetra o presente writ alegando a nulidade da citação por


telefone, via WhatsApp.
Nesse sentido, afirma, incialmente, ser a citação um dos mais importantes atos
atos de comunicação processual. Adverte que a legislação que dispõe sobre a informatização do
processo judicial (Lei n.º 11.419/06) veda expressamente, sem qualquer ressalva, a realização de
citações por meio eletrônico em processo criminal, no seu art. 6º. E, nestes termos, conclui que a
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portaria que autorizou esse método citatório (Portaria GC nº 155/2020) é incompatível com o
processo criminal.
Explica não existir qualquer diligência no sentido de confirmar os dados pessoais
do citando, nem tampouco qualquer documento escrito no qual se possa verificar a resposta dele
ao oficial de justiça:

"Ainda, sequer existe nas diligências de ID 76314845 qualquer informação


acerca de ter-se procedida a confirmação de dados pessoais, na verdade
sequer existe no documento resposta escrita do paciente sobre a ciência do
processo, ou seja, não há como aferir a resposta deste tendo em vista que o
conteúdo da sua resposta inexiste no processo.
Ora, Excelências?, uma vez não praticado o ato em conformidade com a
lei, caberia, no mínimo, a demonstração inequívoca nos autos do
cumprimento do mandado?, sob pena do não conhecimento do acusado
sobre os fatos a ele imputado." (e-STJ, fl. 8).

Requer, liminarmente, a suspensão do processo.


E, no mérito, a anulação do ato citatório, determinando-se a feitura de nova
comunicação.
A liminar foi indeferida.
O Ministério Público Federal ofertou parecer pelo não conhecimento do remédio
constitucional ou pela denegação.
É o relatório.

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EMENTA

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INADEQUAÇÃO. CITAÇÃO VIA WHATSAPP. NULIDADE. PRINCÍPIO
DA NECESSIDADE. INADEQUAÇÃO FORMAL E MATERIAL. PAS DE
NULlITÉ SANS GRIEF. AFERIÇÃO DA AUTENTICIDADE. CAUTELAS
NECESSÁRIAS. NÃO VERIFICAÇÃO NO CASO CONCRETO. WRIT NÃO
CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. Esta Corte - HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis
Junior, julgado em 10/6/2020 - e o Supremo Tribunal Federal - AgRg no HC
180.365, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no
HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -,
pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do
recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da
impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato
judicial impugnado.
2. A citação do acusado revela-se um dos atos mais importantes do processo. É
por meio dela que o indivíduo toma conhecimento dos fatos que o Estado, por
meio do jus puniendi lhe direciona e, assim, passa a poder demonstrar os seus
contra-argumentos à versão acusatória (contraditório, ampla defesa e devido
processo legal).
3. No Processo Penal, diversamente do que ocorre na seara Processual Civil, não
se pode prescindir do processo para se concretizar o direito substantivo. É o
processo que legitima a pena.
4. Assim, em um primeiro momento, vários óbices impediriam a citação via
Whatsapp, seja de ordem formal, haja vista a competência privativa da União
para legislar sobre processo (art. 22, I, da CF), ou de ordem material, em razão da
ausência de previsão legal e possível malferimento de princípios caros como
o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
5. De todo modo, imperioso lembrar que "sem ofensa ao sentido teleológico da
norma não haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa
hipótese constituiria consagração de um formalismo exagerado e inútil"
(GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães;
FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 11. ed. São
Paulo: RT, 2011, p. 27). Aqui se verifica, portanto, a ausência de nulidade sem
demonstração de prejuízo ou, em outros termos, princípio pas nullité sans grief.
6. Abstratamente, é possível imaginar-se a utilização do Whatsapp para fins de
citação na esfera penal, com base no princípio pas nullité sans grief. De todo
modo, para tanto, imperiosa a adoção de todos os cuidados possíveis para se
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comprovar a autenticidade não apenas do número telefônico com que o oficial de
justiça realiza a conversa, mas também a identidade do destinatário das
mensagens.
7. Como cediço, a tecnologia em questão permite a troca de arquivos de texto e
de imagens, o que possibilita ao oficial de justiça, com quase igual precisão da
verificação pessoal, aferir a autenticidade da conversa. É possível imaginar-se,
por exemplo, a exigência pelo agente público do envio de foto do documento de
identificação do acusado, de um termo de ciência do ato citatório assinado de
próprio punho, quando o oficial possuir algum documento do citando para poder
comparar as assinaturas, ou qualquer outra medida que torne inconteste tratar-se
de conversa travada com o verdadeiro denunciado. De outro lado, a mera
confirmação escrita da identidade pelo citando não nos parece suficiente.
8. Necessário distinguir, porém, essa situação daquela em que, além da escrita
pelo citando, há no aplicativo foto individual dele. Nesse caso, ante a mitigação
dos riscos, diante da concorrência de três elementos indutivos da autenticidade do
destinatário, número de telefone, confirmação escrita e foto individual, entendo
possível presumir-se que a citação se deu de maneira válida, ressalvado o direito
do citando de, posteriormente, comprovar eventual nulidade, seja com registro de
ocorrência de furto, roubo ou perda do celular na época da citação, com contrato
de permuta, com testemunhas ou qualquer outro meio válido que autorize concluir
de forma assertiva não ter havido citação válida.
9. Habeas corpus não conhecido, mas ordem concedida de ofício para anular a
citação via Whatsapp, porque sem nenhum comprovante quanto à autenticidade
da identidade do citando, ressaltando, porém, a possibilidade de o comparecimento
do acusado suprir o vício, bem como a possibilidade de se usar a referida
tecnologia, desde que, com a adoção de medidas suficientes para atestar a
identidade do indivíduo com quem se travou a conversa.

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VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO RIBEIRO DANTAS (Relator):

Esta Corte - HC 535.063/SP, Terceira Seção, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior,
julgado em 10/6/2020 - e o Supremo Tribunal Federal - AgRg no HC 180.365, Primeira Turma,
Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/3/2020; AgR no HC 147.210, Segunda Turma, Rel. Min.
Edson Fachin, julgado em 30/10/2018 -, pacificaram orientação no sentido de que não cabe
habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não
conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato
judicial impugnado.
Assim, passo à análise das razões da impetração, de forma a verificar a
ocorrência de flagrante ilegalidade a justificar a concessão do habeas corpus, de ofício.
Inicialmente, destaque-se que o tema dos autos é bastante novo e motivado em
grande medida pelo estado atual de coisas, notadamente pelas restrições de locomoção impostas
pela pandemia da Covid-19. Nesta Corte, foi possível encontrar os seguintes habeas corpus com
tema semelhante: HC 633.317/DF; HC 644.629/RJ; HC 644.544/DF; e HC 644.543/DF. Assim,
diante da potencialidade de futuras nulidades em cascata, decidi submeter o tema a este colendo
Colegiado.
De fato, a citação do acusado revela-se um dos atos mais importantes do
processo. É por meio dela que o indivíduo toma conhecimento dos fatos que o Estado, por meio
do jus puniendi lhe direciona e, assim, passa a poder demonstrar os seus contra-argumentos à
versão acusatória estatal. Aperfeiçoa-se, assim, a relação jurídico-processual penal ensejadora do
contraditório e da ampla defesa, por meio do devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, da CF).
É essa versão estatal devidamente contraditada pelo acusado que torna possível,
eventualmente, impor-se pena ao indivíduo (Princípio da necessidade). Diversamente do que se
verifica na seara Processual Civil, em que se pode prescindir do Direito adjetivo para se
concretizar determinado direito substantivo, no processo penal, o processo penal, para que se
possa falar em pena, é indelével.
Nas precisas palavras de Aury Lopes Júnior, podemos dizer que:

"Existe uma íntima relação e interação entre a história das penas e o


nascimento do processo penal, na medida em que o processo penal é um
caminho necessário para alcançar-se a pena e, principalmente, um
caminho que condiciona o exercício do poder de penar (essência do
poder punitivo) à estrita observância de uma série de regras que
compõe o devido processo penal (ou, se preferirem, são as regras do jogo,
se pensarmos no célebre trabalho Il processo come giuoco de
CALAMANDREI). Esse é o núcleo conceitual do 'Princípio da
Necessidade'." (LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 15ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2018. p. 22; grifou-se).

Veja-se que a citação produz vários efeitos no processo penal. Após ser citado, o
réu que deixar de comparecer sem motivo justificado para qualquer ato ou mudar-se sem
comunicar o novo endereço ao juízo sofrerá o efeito processual da revelia, não sendo mais
intimados dos demais atos processuais (art. 367 do CPP). Note-se que o ato citatório é tão
importante que o acusado citado por edital (citação ficta) tem a seu favor, desde que não
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constitua advogado, a suspensão do processo (o prazo prescricional, nessa hipótese, também é
suspenso), de modo que a persecução penal só continue quando ele, ciente da acusação, possa
exercer a sua defesa.
Com efeito, não se pode prescindir, de maneira alguma, da autêntica, regular e
comprovada citação do acusado, sob pena de se infringir a regra mais básica do processo penal,
qual seja a da observância ao princípio do contraditório. Como explica Eugênio Pacelli, "O
contraditório, ... junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental ... do
processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do
cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse
público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da
sanção de natureza penal." (PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24ª ed. São Paulo:
Atlas, 2020, p. 76).
Note-se, portanto, que, a princípio, vários óbices impediriam a citação via
Whatsapp, seja de ordem formal, haja vista a competência privativa da União para legislar sobre
processo (art. 22, I, da CF), ou de ordem material, em razão da ausência de previsão legal e
possível malferimento de princípios como o devido processo legal, o contraditório e a ampla
defesa.
De todo modo, saliente-se que, apesar de a infringência à norma constitucional
com conteúdo de garantia acarretar como sanção a nulidade absoluta, a doutrina corretamente
indica ser "preciso examinar, caso a caso, se o vício ou ausência do ato processual defensivo
prejudica a ampla defesa como um todo, ou se não têm eles esse alcance" (GRINOVER, Ada
Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. As
nulidades no processo penal. 11. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 75). Nessa obra, encontra-se a
seguinte explanação:

"Com a evolução dos estudos em torno do procedimento, motivados pela


ideia de que ele constitui um dos elementos essenciais da relação jurídica
processual, caminha-se para o exame da invalidade não mais com base
apenas na atipicidade do ato, visto isoladamente, mas em face de sua
função dentro do procedimento, realidade unitária de formação sucessiva."
(Ob. cit., p. 22)

Com isso, é lícito assinalar que "sem ofensa ao sentido teleológico da norma não
haverá prejuízo e, por isso, o reconhecimento da nulidade nessa hipótese constituiria consagração
de um formalismo exagerado e inútil" (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio
Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Ibidem, p. 27). Aqui se verifica, portanto, a
ausência de nulidade sem demonstração de prejuízo ou, em outros termos, princípio pas nullité
sans grief.
Nessa senda, registre-se não ser adequado fechar-se os olhos para a realidade.
Excluir peremptória e abstratamente a possibilidade de utilização do Whatsapp para fins da
prática de atos de comunicação processuais penais, como a citação e a intimação, não se
revelaria uma postura comedida. Não se trata de autorizar a confecção de normas processuais
por tribunais, mas sim o reconhecimento, em abstrato, de situações que, com os devidos cuidados,
afastariam, ao menos, a princípio, possíveis prejuízos ensejadores de futuras anulações. Isso
porque a tecnologia em questão permite a troca de arquivos de texto e de imagens, o que
possibilita ao oficial de justiça, com quase igual precisão da verificação pessoal, aferir a
autenticidade do número telefônico, bem como da identidade do destinatário para o qual as
mensagens são enviadas.
É possível, assim, imaginar-se, por exemplo, que, após o agente público comunicar
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sua qualidade e a sua pretensão citatória, requeira a emissão, via Whatsapp, de arquivo com a
foto de documento de identificação do acusado, um termo de ciência do ato citatório assinado de
próprio punho, quando o oficial eventualmente possuir algum documento do citando para
comparar as assinaturas, ou qualquer outra medida que torne inconteste tratar-se de conversa
travada com o verdadeiro denunciado.
Destaque-se, aqui, que a mera confirmação escrita da identidade pelo citando não
nos parece suficiente para a finalidade de tornar o acusado ciente da imputação, especialmente
quando não houver foto individual do citando no aplicativo que permita identificá-lo.
Necessário distinguir, porém, essa situação daquela em que, além da escrita pelo
citando, há no aplicativo foto individualizada dele. Nesse caso, ante a mitigação dos riscos, diante
da concorrência de três elementos indutivos da autenticidade do destinatário, número de telefone,
confirmação escrita e foto individual, entendo possível presumir-se que a citação se deu de
maneira válida, ressalvado o direito do citando de, posteriormente, comprovar eventual nulidade,
seja com registro de ocorrência de furto, roubo ou perda do celular na época da citação, com
contrato de permuta da linha telefônica, com testemunhas ou qualquer outro meio válido que
autorize concluir de forma assertiva não ter havido citação válida.
No caso concreto, às fl. 93 e 94 (e-STJ), é possível observar a certidão de
intimação via Whatsapp, bem como imagem da conversa travada entre oficial de justiça e
acusado. Na conversa, verifica-se que o citando não possui foto que diminuiria os riscos de uma
citação inválida. Além disso, apesar de poder constatar o envio de documentos ao citando, este
não encaminha nenhuma prova de sua identidade.
Note-se que as instâncias de origem consideraram inequívoca a ciência do teor da
denúncia:

"No caso dos autos, observa-se que a ciência do teor da denúncia é


inequívoca, consoante demonstra a troca de mensagens entre o denunciado
e a Oficiala de Justiça (ID: Num. 21761937 - Pág. 70).
Ademais, nos termos da certidão de ID: Num. 21761937 - Pág. 69, a
Oficiala de Justiça, que goza de fé pública, informou "Certifico e dou fé
que, em cumprimento ao r. mandado, no dia 03.11.2020, às 16h30,
PROCEDI A CITAÇÃO E INTIMAÇÃO (por meio do whatsapp
-99559-4281) DE MAURO DE JESUS GOMES DOS SANTOS CPF nº
035.282.441-78, e diante da concordância do intimando, encaminhei
contrafé para o seu whatsapp. (cópia anexa). Certifico que após o
recebimento do mandado, o intimando informou estar ciente e informou
ainda que não tem condições de pagar advogado particular e deseja ter a
sua defesa realizada pela assistência judiciária gratuita"." (e-STJ, fl. 126;
grifou-se).

Apesar disso, diante da ausência de dado concreto que autorize deduzir tratar-se
efetivamente do citando, não se pode aferir com certeza que o indivíduo com quem se travou o
diálogo via Whatsapp era efetivamente o acusado. Destaque-se que a presunção de fé pública
não se revela suficiente para o ato. Por isso, na hipótese, imperiosa a decretação da nulidade.
Porém, se, eventualmente, in concreto, o indivíduo compareça em juízo, mesmo
sem qualquer cautela adotada pelo oficial de justiça, o vício estará sanado, pois atendida a
finalidade do ato (cientificar o acusado sobre a imputação).
Ante o exposto, não conheço do habeas corpus, mas concedo a ordem de ofício,
para anular a citação via Whatsapp, porque, in casu, foi feita sem nenhum comprovante quanto
à autenticidade da identidade do citando, ressaltando, porém, a possibilidade do uso da referida
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tecnologia, desde que, com a adoção de medidas suficientes para atestar a identidade do indivíduo
com quem se travou a conversa.
É o voto.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUINTA TURMA

Número Registro: 2021/0024612-7 PROCESSO ELETRÔNICO HC 641.877 / DF


MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 07039473920208070005 07040972020208070005 07507275220208070000


7039473920208070005 7040972020208070005 7507275220208070000

EM MESA JULGADO: 09/03/2021

Relator
Exmo. Sr. Ministro RIBEIRO DANTAS
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RIBEIRO DANTAS
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. FRANCISCO XAVIER PINHEIRO FILHO
Secretário
Me. MARCELO PEREIRA CRUVINEL

AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
LUÍS CLÁUDIO VAREJÃO DE FREITAS - DF009689
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTICA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITORIOS
PACIENTE : MAURO DE JESUS GOMES DOS SANTOS
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Vias de fato

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUINTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"A Turma, por unanimidade, não conheceu do pedido e concedeu "Habeas Corpus" de
ofício, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator."
Os Srs. Ministros Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer, João Otávio de Noronha e Reynaldo
Soares da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator.

Documento: 2030054 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 11 de 5

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