Você está na página 1de 61

KEILA FERNANDES BATISTA

UMA DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A QUESTÃO


DA PROSTITUIÇÃO SAGRADA NO ANTIGO CRESCENTE
FÉRTIL

Londrina
2011
KEILA FERNANDES BATISTA

UMA DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A QUESTÃO


DA PROSTITUIÇÃO SAGRADA NO ANTIGO CRESCENTE
FÉRTIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de História da Universidade
Estadual de Londrina.

Orientadora: Profª. Drª. Monica Selvatici

Londrina
2011
Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

B333d Batista, Keila Fernandes.


Uma discussão historiográfica sobre a questão da prostituição sagrada no
antigo crescente fértil / Keila Fernandes Batista. – Londrina, 2011.
63 f. : il.

Orientador: Monica Selvatici.


Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História –
Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, 2011.
Inclui bibliografia.

1. Prostituição – Historiografia – TCC. 2. Crescente fértil, região –


TCC. 3. Relações de gênero – Historiografia – TCC. 4. História – TCC.
I. Selvatici, Monica . II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e
Ciências Humanas. III. Título.

CDU
930.2
KEILA FERNANDES BATISTA

UMA DISCUSSÃO HISTORIOGRÁFICA SOBRE A QUESTÃO


DA PROSTITUIÇÃO SAGRADA NO ANTIGO CRESCENTE
FÉRTIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de História da Universidade
Estadual de Londrina.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________
Profª. Drª. Monica Selvatici (Orientadora)
Universidade Estadual de Londrina

____________________________________
Prof. Dr. Julio Cssar Magalhães de Oliveira
Universidade Estadual de Londrina

____________________________________
Profª. Drª Maria de Fátima da Cunha
Universidade Estadual de Londrina

Londrina, _____de ___________de _____.


Dedico este trabalho a meus pais, Suzana e
João, alicerces da minha vida.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente a minha orientadora Monica Selvatici


que desde o início tem me orientado e ajudado com paciência e graciosidade.

A minha família: minha mãe Suzana, meu pai João e meu irmão Eliel, pelo
amor, carinho e apoio. Por nunca deixar de acreditar em mim e por serem parte importante
das minhas conquistas.

A Rodrigo Rabelo, pelo amor e compreensão, por estar ao meu lado nos
bons e maus momentos e por confiar na minha capacidade.

Gostaria de agradecer também meus colegas de cursos, companheiros nessa


jornada rumo ao sucesso. Gostaria de agradecê-los pela companhia, pela ajuda em momentos
de dificuldade e pelos bons momentos que passamos juntos.

A essas pessoas toda a minha gratidão e amor.


“Mas era o mais significativo de todos os rituais...
uma experiência aterradora para mulheres e homens.
Uma entrega à luxúria e ao desconhecido.”

(Neil Gaiman: Vidas Breves – Capítulo 5)


BATISTA, Keila Fernandes. Uma Discussão Historiográfica sobre a questão da
Prostituição Sagrada no antigo Crescente Fértil. 2011 Número total de folhas 61.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2011

RESUMO

O presente trabalho pretende discutir a construção da ideia de prostituição sagrada no Antigo


Crescente Fértil a partir da análise de trabalhos historiográficos do século XIX, XX e início
do século XXI. Analisaremos como as relações de gênero e o contexto histórico dos autores
têm reflexos sobre a leitura e interpretação das fontes bem como sobre o desenvolvimento de
sua obra, contribuindo assim para a construção da ideia que cada autor desenvolve.

Palavras-chave: Prostituição sagrada; Crescente Fértil; relações de gênero; contexto


histórico; historiografia.
BATISTA, Keila Fernandes. A Historiographical Discussion about the Sacred
Prostitution issue on the ancient Fertile Crescent. 2011 Número total de folhas 61.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2011

ABSTRACT

This work intends to discuss the construction of the idea of sacred prostitution in the Fertile
Crescent, parting from the analysis of historiographical works from the 19th and 20th centuries
and beginnings of the 21st century. We will examine how gender relations and the authors’
historical context influences the reading and interpretation of the sources, as well as the
development of their work, thus contributing to the construction of each author’s idea.

Key words: Sacred prostitution; Fertile Crescent; gender relations; historical context;
scholarship.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Senhora entronizada................................................................................................ 62


Figura 2 – Mulher na janela ..................................................................................................... 62
Figura 3 – Os amantes ............................................................................................................ 63
Figura 4 – Dignatária canaaita com um cajado .......................................................................... 63
13

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 14

1. CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE GÊNERO PARA A


HISTORIOGRAFIA.............................................................................................................. 17
1.1. A PROSTITUIÇÃO FEMININA NA HISTORIOGRAFIA.............................................................. 21

2. HERÓDOTO E A BÍBLIA HEBRAICA......................................................................... 27

3. VISÕES DA HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA SOBRE A


PROSTITUIÇÃO SAGRADA NA MESOPOTÂMIA E NA TERRA
DE CANAÃ.......................................................................................................................... 34
3.1. UMA ABORDAGEM DA ‘PROSTITUIÇÃO SAGRADA’ NO SÉCULO XIX: A ANÁLISE DE PEDRO
DUFOUR................................................................................................................................. 35
3.2. ABORDAGENS DA ‘PROSTITUIÇÃO SAGRADA’ NO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI: A
ANÁLISE DE CATHERINE SALLES, EMMET MURPHY E EDSON HOLTZ LEME........................... 38

3.3. ANÁLISE E DESCONSTRUÇÃO DA IDEIA DE PROSTITUIÇÃO SAGRADA NO FIM DO SÉCULO XX

E INÍCIO DO XXI..................................................................................................................... 40

4. UMA VISÃO DE CONJUNTO DO DEBATE HISTORIOGRÁFICO........................ 49

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 57

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 59

ANEXOS ................................................................................................................................ 61
14

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é fazer uma discussão historiográfica sobre a ideia


da “prostituição sagrada” em regiões do antigo Crescente Fértil. A partir da discussão de
trabalhos historiográficos que possibilitem o desenvolvimento de um panorama geral sobre o
assunto, pensaremos a respeito de como o contexto dos autores que escrevem sobre o assunto
influencia na construção da ideia de prostituição sagrada que cada um apresenta, e também
apontar as relações de gênero presentes nos trabalhos levando em consideração o lugar do
qual fala o autor e quais fontes ele utiliza.
O enfoque sobre esta temática – a “prostituição sagrada” no antigo Crescente
Fértil – nos permitirá refletir sobre como a historiografia pode construir e articular ideias que
são reforçadas ou, posteriormente nesse caso, contestadas por diferentes autores. Podemos
perceber nessas articulações e debates relações de poder dentro da própria historiografia.
É importante frisar que o trabalho discutirá a ideia de “prostituição sagrada”
especificamente feminina em regiões do Crescente Fértil (especificamente Suméria, Assíria,
Canaã e Babilônia), em razão de nossa seleção das fontes antigas que tratam sobre o assunto,
quais sejam, a descrição que Heródoto faz em sua obra Histórias de certo costume das
mulheres babilônicas, e as diversas menções à prostituição sagrada que aparecem nos livros
da Bíblia hebraica.
No primeiro capítulo faremos uma análise dos estudos de gênero e suas
contribuições para as pesquisas históricas. Desde seus primeiros esboços a partir das ideias de
intelectuais feministas como Simone de Beauvoir e Margareth Mead no final da década de
1940 e com as correntes feministas da década de 1960 (que escreviam a História das
Mulheres) essa categoria de análise possibilitou a expansão dos horizontes dos trabalhos
historiográficos.
As figuras femininas que apareciam nas pesquisas tradicionais se resumiam a
poucas mulheres que tinham muito destaque em determinada sociedade, como Joana D’Arc,
Lucrecia Bórgia, Rainha Elizabeth I. Mas sempre apareciam de forma a ressaltar que a
presença de uma mulher em uma narrativa histórica era algo que acontecia raramente. As
intelectuais feministas questionavam essa visão tradicional e começaram a buscar na história a
presença de mulheres comuns, de mulheres diversas e a sua importância para os processos
históricos estudados. A preocupação em buscar visibilidade para os agentes femininos dentro
da história permitiu que temas já pesquisados fossem ampliados e novos temas fossem
iniciados.
15

Outra discussão que será apresentada é da prostituição feminina na


historiografia. Os autores que defendem a existência da “prostituição sagrada” pensam essa
prática influenciados pelo conceito que cada um tem de prostituição. Portanto, apresentaremos
alguns autores que falam sobre prostituição e como eles definem esse termo, pois a partir do
conceito que cada um tem sobre prostituição, eles constroem a ideia de “prostituição sagrada”.
Para discutir a construção da ideia sobre a “prostituição sagrada” precisamos
conhecer as fontes que deram base para os pesquisadores desse assunto. Neste sentido, no
segundo capítulo apresentaremos as principais fontes utilizadas, principalmente pelos autores
do século XIX e início do século XX, para fundamentar a existência da “prostituição
sagrada”: o relato encontrado na obra Histórias de Heródoto, no qual o historiador grego
descreve um costume religioso das mulheres de Babilônia que deveriam ir, ao menos uma vez
na vida, ao templo da deusa Milita e esperar que um estranho lhes oferecesse dinheiro em
troca de seus favores sexuais. A segunda fonte utilizada é a Bíblia hebraica que em alguns
livros faz referências às prostitutas do templo.
Frisamos que apesar de alguns autores modernos falarem rapidamente dessa
prática na Fenícia, eles desenvolvem a análise baseados nas fontes já citadas, que enfocam a
Babilônia e a região de Canaã, e os pesquisadores mais recentes usam fontes orientais
originárias da Suméria, Assíria, Canaã e Babilônia, portanto, a discussão será centrada nas
informações que os autores reuniram sobre essas localidades específicas.
No terceiro capítulo iniciamos a discussão da historiografia moderna com a
análise da obra de Pedro Dufour, História da Prostituição Em Todos Os Povos Do Mundo
Desde A Mais Remota Antiguidade Até Aos Nossos Dias. O autor desenvolve seu trabalho em
1885 e apresenta um texto moralizante que responsabiliza as mulheres pelo comportamento
imoral da prostituição. Quanto à “prostituição sagrada”, o autor a enxerga como prática
monstruosa dos antigos povos pagãos, principalmente os povos do Oriente próximo. O autor
analisa o relato de Heródoto e o relato do livro de Baruc, presente na Bíblia hebraica.
Dufour é o autor mais antigo que será discutido nesse trabalho, porém
autores do século XX – concordando com ele sobre a existência da prostituição sagrada –
também se embasam no relato de Heródoto. Entre esses autores discutidos estão: Lujo
Basserman que escreve na década de 1960; Catherine Salles e Emmet Murphy que fazem uma
referência a essa prática na década de 1980; Edson Holtz Leme, que em 2009, fala sobre
prostituição sagrada baseado no relato de Heródoto, mas sob uma perspectiva diferente que
analisa essa prática como costume religioso de grande importância.
16

No item seguinte discutimos os pesquisadores que questionam a existência


da “prostituição sagrada” na antiguidade. Estes, além das fontes já citadas, utilizam fontes
orientais, tais como listas de funcionários do templo, textos literários e religiosos, leis e
imagens em incrustações e placas de argila. Essas fontes não são apresentadas
individualmente nesse trabalho, porém a análise delas por parte dos autores é discutida, pois é
de grande importância para o tema.
Os três autores analisados nesta terceira parte são Gerda Lerner, Gonzalo
Rubio e Stephanie Lynn Budin que discutem a ideia influenciados pelas pesquisas de História
das Mulheres e pelos estudos de gênero. Seus trabalhos foram produzidos entre a década de
1980 e o início do século XXI.
O fato de a prática da prostituição sagrada no antigo Crescente Fértil ter
recebido vários questionamentos na historiografia recente demonstra que ainda existem
importantes lacunas nessas pesquisas. Pretendemos, neste sentido, concluir a presente
monografia tecendo uma visão de conjunto das análises historiográficas sobre o assunto e
pensando, assim, questões para futuras pesquisas que podem ser levantadas a partir das
lacunas deixadas por esses trabalhos.
17

1. CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE GÊNERO PARA A HISTORIOGRAFIA

Para iniciar a discussão sobre a construção da ideia da “prostituição sagrada”


nos templos na região do antigo Crescente Fértil entre o terceiro e segundo milênio a.C.,
abordarei primeiramente como essa ideia tem sido tratada na historiografia sobre a
antiguidade, pois o debate dessa questão está muito ligado à sociedade e ao contexto do qual
fala o historiador. Poderemos perceber assim, nas obras que serão abordadas, se as relações de
gênero estão implícitas na produção historiográfica, em que medida, e de que forma. Mas
antes de iniciar a leitura de tais obras, devemos discutir algumas linhas gerais do estudo de
gênero e suas contribuições para a produção historiográfica.
Os estudos de gênero na historiografia têm sido utilizados pelos
pesquisadores para trazer novos temas às pesquisas historiográficas, bem como para ampliar
os já existentes e dar voz a personagens que durante muito tempo estiveram silenciados  por
uma visão mais tradicional da historiografia e por falta de fontes , como mulheres e homens
comuns, e homossexuais.
Antes de o termo “gênero” começar a ser utilizado tal como o fazemos
atualmente, nota-se que já existia uma preocupação em separar o sexo (característica
biológica) do comportamento e temperamento, que seria definido pela cultura e a convivência
em sociedade. Debates sobre o lugar ocupado pela mulher na sociedade e quem era, ou eram,
essa(s) mulher(es), foram propostos por intelectuais como a antropóloga Margareth Mead que,
em 1949 na obra “Male and Female: a Study of the Sexes in a Changing World”, já separava
o sexo biológico do comportamento construído culturalmente, dizendo que as diferenças
sexuais justificavam a constituição dos papéis sociais e que essas constituições eram
diferentes em cada sociedade. De maneira similar, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir,
também em 1949 em seu livro “O Segundo Sexo”, já pensava a mulher como ser que se
constrói e que é construído culturalmente. Sobre essa obra, a filósofa Judith Butler diz que
para Beauvoir, elegemos um gênero sobre uma carga cultural já estabelecida, e a partir disso
nos reconstruímos e interpretamos diariamente.
Na década de 1960, o crescimento e a consolidação do feminismo fizeram
com que as mulheres, que reivindicavam o reconhecimento de seu lugar e importância na
sociedade e, com isso, seus direitos à igualdade, buscassem também seu lugar na história.
Entre as décadas de 1960/70, a entrada maciça das mulheres nas universidades (ao menos na
Europa e Estados Unidos) produziu o que a historiadora Margareth Rago chama de
“feminização do espaço acadêmico e das formas da produção dos saberes” (RAGO, 1998:
18

91). Uma vez inseridas no espaço acadêmico, as mulheres trouxeram consigo suas dúvidas e
questões, pois elas se buscavam ao longo da história, fazendo assim surgir narrativas e
personagens até então silenciados. Fazia-se então “a história das mulheres”, na qual, para
muitos pensadores, a categoria mulher era análoga às categorias de classe e raça, pois buscava
um redirecionamento e redefinição das pesquisas históricas, incluindo os personagens
oprimidos e analisando a natureza de sua opressão. Mas a “história das mulheres” era
rejeitada por muitos pesquisadores, e estava separada da “história dos homens”. Os
historiadores da política, da economia, das guerras não consideravam a “história das
mulheres” como parte do resto da história, excluindo-a, portanto.
Com o tempo e com as pesquisas essa história foi sofrendo desdobramentos,
trazidos por questões pertinentes à construção do papel das mulheres em diferentes
sociedades, e sobre quem era considerada mulher dentro dessas sociedades, buscando então
incluir as mulheres na história, mas sem vitimá-las ou exaltá-las.
A partir da década de 1980, o termo “história das mulheres” dá lugar à noção
de gênero, categoria de análise mais refinada. Segundo Joan Scott, historiadora feminista
americana, o uso mais recente do termo gênero surgiu com as feministas americanas que
rejeitavam o determinismo biológico existente nos termos “sexo” e “diferenciação sexual”, e
insistiam no caráter social que, para elas, fundamentava as distinções sexuais. Em sua obra
“Gênero: Uma categoria útil para a Análise Histórica”, Scott discute o lugar da categoria
gênero na historiografia e fala sobre as principais abordagens na análise de gênero feitas por
intelectuais feministas.
As teóricas que buscam a origem da legitimação do patriarcado apontam a
reprodução como justificativa para a subordinação das mulheres. Ainda sobre o
patriarcalismo, Scott cita a teórica feminista Catherine Mackinnon que, fazendo uma analogia
com Marx, diz que a subordinação ocorre por conta da própria sexualidade da mulher: “A
sexualidade é para o feminino o que o trabalho é para o marxismo: o que nos pertence mais e,
no entanto, nos é mais alienado” (MACKINNON apud SCOTT, 1990: 5). Sobre a visão das
autoras marxistas, em comparação com as teóricas do patriarcalismo, Scott diz ser uma visão
mais histórica, porém ainda limitada, pois pretende encontrar uma explicação simplesmente
material para o gênero.
Sobre as escolas feministas anglo-americana e francesa, Joan Scott explica
que estas foram influenciadas pela reinterpretação da obre de Freud por Lacan, que introduziu
o estudo da linguagem na teoria psicanalítica. Em termos lingüísticos, a autora afirma que a
teoria das relações objetais de Freud é literalista e reduz a produção da identidade de gênero e
19

a gênese da mudança a estruturas de interpelação muito pequenas (divisão do trabalho de casa


e as obrigações parentais), enquanto que a teoria lacaniana fala exclusivamente do sujeito
individual e da relação antagônica entre homem e mulher, e tenta universalizar as categorias e
relações entre homem e mulher, o que para o historiador resulta em uma leitura redutora do
passado.
Joan Scott pensa o gênero como categoria útil para a análise histórica. E,
para demonstrá-lo, aponta as relações de gênero utilizadas pela teoria política (que para ela é
um dos domínios onde o gênero pode ser empregado para análise histórica) para criticar ou
justificar o reinado de monarcas, estabelecendo as representações de masculino e feminino e,
assim, os papéis adequados para o homem e para a mulher. A autora diz ser possível, também,
utilizar o gênero como categoria analítica na história de guerras, da diplomacia e da
economia.

Os temas da guerra, da diplomacia e da alta política aparecem


freqüentemente quando os(as) historiadores(as) da história política
tradicional colocam em questão a utilidade do gênero para o seu
trabalho. Mas, também, temos que olhar além dos atores e do valor
literal das suas palavras. As relações de poder entre as nações e o
estatuto dos súditos coloniais foram tomados compreensíveis (e,
portanto legítimos) em termos das relações entre homem e mulher.
A legitimação da guerra – sacrificar vidas de jovens para proteger o
Estado– tomou formas diversificadas desde o apelo explícito à
virilidade (a necessidade de defender as mulheres e as crianças, que
de outra forma seriam vulneráveis) até a crença no dever que teriam
os filhos de servir aos seus dirigentes ou a seu (pai) rei, e até
associações entre masculinidade e potência nacional. A alta política,
ela mesma, é um conceito de gênero porque estabelece a sua
importância decisiva e seu poder público, as razões de ser e a
realidade da existência de sua autoridade superior, precisamente
graças à exclusão das mulheres do seu funcionamento. O gênero é
uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi
concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição
homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido
(SCOTT, 1990: 10).

Segundo Margareth Rago, o gênero começa a ser pensado como categoria


teórica entre as décadas de 1980 e 1990, apoiando-se no pós-estruturalismo de Michel
Foucault e Jacques Derrida e sendo incorporado por diferentes correntes historiográficas.
Quando fala sobre o surgimento, desenvolvimento e as reações aos estudos de gênero, a
autora, baseando-se na perspectiva foucaultiana de que a identidade é o que nos encerra,
reflete sobre como a desconstrução da identidade era necessária para pensar a construção das
relações de gênero, pois segundo ela “A própria noção de identidade era historicizada e
20

questionada juntamente com a ilusão da interioridade e da essência que a informava. A figura


do sujeito tal como a pensamos era definitivamente destruída, porque puramente ficcional”
(1998: 93).
Para M. Rago, o estudo de gênero busca mais do que a inclusão das mulheres
no discurso histórico: com ele, pretende-se encontrar uma categoria adequada para conhecer
os mundos femininos, “para falar das práticas das mulheres no passado e no presente e para
propor novas possíveis interpretações imagináveis na ótica feminina” (1998: 95).
Atualmente, o estudo de gênero não trata mais da história das mulheres, mas
da história das mulheres e dos homens. É a categoria que busca entender os processos, as
relações culturais, sociais e de poder envolvidas na construção das identidades das mulheres e
dos homens e na pluralidade desses seres culturais. Assim sendo, podemos pensar o gênero
como a construção cultural das diferenças sexuais, como uma categoria de análise que faz
emergir novas perspectivas para as questões das pesquisas históricas. Pensar o corpo como
uma construção cultural em constante mudança, e não apenas como um ser biológico acabado,
auxilia na reflexão sobre como as diferenças entre homem e mulher são definidas de acordo
com a sociedade que se estuda.
As perspectivas da nova história, do pós-estruturalismo e da psicanálise
foram grandes apoios para a consolidação dos estudos de gênero; e com essa consolidação, os
historiadores passaram a dar mais atenção a essa categoria, o que ajudou e ajuda a expandir os
horizontes dos questionamentos historiográficos. Hoje existem grupos que se dedicam
exclusivamente a produzir pesquisas voltadas para as perspectivas de gênero  como, por
exemplo, grupos de estudos feministas e grupos formados por representantes das lutas dos
homossexuais , abrindo grandes leques de possibilidades para a pesquisa e análise de
diferentes elementos de períodos históricos diversos.
Podemos assim dizer que a categoria gênero, desde seus primeiros esboços
com a história das mulheres e até hoje com toda a sua pluralidade, tornou-se mais abrangente
e trouxe para a historiografia novas formas de se pensar a história e seus atores, trazendo à
tona assuntos, questões e figuras que estavam submersos por uma visão tradicional acerca dos
papéis masculino e feminino na sociedade e pela falta de fontes. Isto a transformou então em
uma categoria de análise muito importante, e cada vez mais difundida entre os pesquisadores
das ciências humanas. (PEDRO, 2005)
Como podemos perceber, o estudo de gênero é muito amplo e nos traz
inúmeras possibilidades de pesquisa. Neste trabalho monográfico refletirei sobre o papel da
mulher em sociedades do antigo Crescente Fértil no 3° e 2° milênio a.C. Este objetivo, porém,
21

seria ainda demasiado amplo e vago; pois dentro da categoria “mulher” existe uma vasta
diversidade de “mulheres”: mulheres livres, escravas, jovens, velhas, sacerdotisas, esposas,
mães, filhas, virgens, prostitutas; e, dentro de cada grupo, outros se desdobram: a ideia de
“mulher” varia de acordo com a cultura, sociedade e crenças de cada comunidade. Assim
sendo, centrarei a análise sobre as chamadas “prostitutas sagradas”, e buscarei formas de
perceber como o papel dessas mulheres foi tratado pela produção historiográfica  se, para
os diferentes autores, elas eram prostitutas cultuais ou uma classe de sacerdotisas que
desempenhava deveres sexuais em prol de sua crença, ou ainda, se ao longo do tempo, o papel
religioso desempenhado por essas mulheres se modificou.
Com a produção existente sobre essas mulheres, que demonstra ampla
variedade de interpretações entre os historiadores por conta de seu ofício, e com os
direcionamentos dados pelo estudo de gênero, será possível analisar como essas relações estão
inseridas na construção da visão de uma “prostituta sagrada”, e como o papel dessas mulheres
é pensado de acordo com o contexto no qual estão inseridos os historiadores que sobre elas
escrevem.

1.1. A PROSTITUIÇÃO FEMININA NA HISTORIOGRAFIA

Mas, antes de tratar diretamente dos autores e, especificamente, das


“prostitutas sagradas”, pensemos nas mulheres prostitutas em geral, e em sua função. A
prostituição é aclamada como a mais antiga profissão do mundo e por certo é um fenômeno
muito presente na sociedade atual bem como nas sociedades do passado, e que sempre
envolveu nomes importantes e muito conhecidos de diferentes esferas sociais: a história está
cheia de freqüentadores famosos de bordéis e ilustres meretrizes. Mesmo à margem da
sociedade, a prostituição floresceu e se consolidou. A prostituição avançou ao longo da
história, sendo marginalizada e ameaçada de diversas formas, em diferentes lugares, mas
sempre presente, sempre inevitável.
Em algumas sociedades antigas, a prostituição era tão presente, que passou a
ser aceita no seio da sociedade, como no caso da cidade de Atenas, que no século VI a.C. teve
a prostituição regulamentada por Sólon. Mesmo que a intenção deste estadista fosse controlar
as atividades das prostitutas fazendo-as usarem vestimentas diferentes e perucas, estas
ganhavam cada vez mais espaço na vida dos gregos. Um reflexo da aceitação da prática da
prostituição na sociedade grega era a presença das hetaerae, cortesãs de luxo que
22

acompanhavam os homens mais ricos e importantes em banquetes e festas, muitas vezes


exercendo influência na vida destes homens.
Em sociedades como a nossa, que sofrem a influência da moral cristã, o ato
de se prostituir, ou seja, trocar sexo por dinheiro, sempre foi visto como algo censurável. Mas
mesmo assim desperta muita curiosidade, quando não certo fascínio, sobre o imaginário da
sociedade. Questões sobre as origens dessa profissão, quem eram e quem são hoje essas
pessoas que ganham a vida com serviços sexuais, sobre quem busca esses serviços, como essa
prática ganhou lugar e importância na sociedade e assim nela se mantém, incitaram os
pesquisadores de diversas áreas, principalmente das ciências humanas a pensar sobre a
prostituição e sobre as relações, construções e reflexões inseridas nesse mundo proibido e
misterioso.
Segundo Emmet Murphy, a prostituição é um produto da civilização
(MURPHY, 1983: 11). A afirmação de Murphy se mostra um tanto quanto vaga, pois para
justificar a prostituição como fenômeno da civilização, ele apenas diz que quem molda a
história dos bordéis, além das prostitutas, são os proprietários, patrocinadores e clientes
importantes como políticos, filósofos e reis; assim sendo, diz, “não se admira que a instituição
não existisse na maioria das sociedades primitivas” (1983: 11) porém, não se aprofunda na
justificativa dessa afirmação. Podemos então, a partir dessa afirmação de Murphy, pensar que
a prostituição, como profissão e como transação comercial, é um fenômeno da civilização e
da concentração de pessoas em centros urbanos.
A respeito disso, Jaime Brasil afirma que a socialização das mulheres foi a
principal responsável pela transformação do corpo e do sexo em um item de comércio. Para
ele, a prostituição surgiu em razão de uma necessidade social: “A civilização e as suas
consequências: o urbanismo, a sociedade privada, o mercantilismo, a acumulação de riquezas,
o pauperismo, alteram o ritmo natural da vida e necessariamente o das manifestações sexuais”
(BRASIL, s/d: 2). Assim vemos que, para esse autor, a prática da prostituição é uma
consequência da socialização das mulheres, resquícios de promiscuidade masculina e da
escravidão feminina e está, desde os seus primórdios, ligada diretamente com o comércio e
com as necessidades sociais de aplacar os desejos sexuais masculinos  visto que, segundo
Jaime Brasil, as mulheres se entregam a esse destino exclusivamente por conta da pobreza.
Embora, atualmente, haja mais tolerância e às vezes até uma glamourização
da prostituição, é importante ressaltar que essa prática ainda continua portando o estigma de
comportamento imoral, que não pode integrar a vida social. A prostituição continua não sendo
23

discutida, sua presença marcante no cotidiano das sociedades não é comentada, e permanece
ainda marginalizada, criticada e em alguns lugares é até criminalizada.
O sexo pago existe à margem do convívio social e as pessoas que o praticam
são consideradas contrárias ao modelo moral estabelecido pela sociedade dominante, tendo
seus lugares estabelecidos por aqueles que estão integrados a essa sociedade. Porém, é
necessário pensarmos como as prostitutas conduzem suas vidas no limiar entre o meio social e
a marginalidade, como a identidade dessas mulheres é construída por elas mesmas e por
aqueles que as marginalizam. Essa perspectiva a respeito da prostituição aparece em algumas
obras historiográficas do século XIX e início do século XX. Podemos perceber na escrita de
alguns historiadores juízos de valor que são revelados ao longo da obra, que compreendem a
prostituição como prática desviante e proibida.
Sobre a prática da prostituição, o historiador português Pedro Dufour diz que
a prostituição e as prostitutas existem e existiram em todos os tempos e todos os povos do
mundo e que essa prática é “uma das chagas mais vergonhosas da humanidade” (DUFOUR,
1885), mas reconhece a presença da mesma dentro da sociedade, inclusive com a proteção da
lei. Sua obra tem como foco mostrar a degradação que a prostituição proporcionou ao longo
dos séculos, para prevenir aos leitores, ou seja, escreve-se a história da prostituição para
mostrar como a prática prejudica a sociedade e, por isso, deve ser evitada. Assim, o
pensamento de Dufour reflete a mentalidade conservadora da sociedade portuguesa no século
XIX, que vê a prostituição como um mal para a sociedade. Para ele o pensamento cristão, ao
lado da filosofia, poderia ser um corretivo para amenizar os seus danos.
De acordo com o autor, na medida em que as civilizações desenvolvessem os
valores morais a prostituição perderia sua força até sumir completamente e, como ela tenderia
a desaparecer, seria necessário escrever a sua história, assim como foi escrita a história de
tantos outros costumes da humanidade que desapareceram. O texto do autor também traz uma
visão acusadora da mulher, colocando-a como culpada pela disseminação desse
comportamento nocivo, pois, ao argumentar com o discurso de Rabuteaux citado por Dufour,
que trata a prostituição como uma forma de escravidão da mulher, diz: “a prostituição
apresenta-se-nos mais venal do que servil, porque é sempre voluntária e livre” (DUFOUR,
1885). E essa prática é livre porque “em tempo algum a mulher foi escrava a ponto de não ser
dona do seu corpo, já no lar doméstico, já no santuário do templo, já nos prostíbulos das
cidades” (1885). Com isso, podemos pensar que Robert Dufour associa a prostituição somente
às mulheres, e que elas são ou se tornam prostitutas sempre por vontade própria, sem dar
24

atenção à exploração sexual de mulheres pobres e escravas ou aos vários motivos pelos quais
as mulheres decidem se prostituir.
A imagem da prostituta é assim construída à margem da sociedade, por
agentes, em sua maioria, agentes masculinos, que estão inseridos nessa sociedade. A
mentalidade guiada pela moral cristã e pelos valores masculinos responsabiliza a mulher pela
disseminação daquela prática: a mulher que nega o seu papel de esposa e mãe, ou seja, que
não está ligada à reclusão de seu lar e à submissão à autoridade do homem é considerada
responsável por um comportamento contrário àquele que deveria apresentar, e como no
contexto desse autor a castidade da mulher é algo valioso e que deve ser preservado, torna-se
para ele mais compreensível um homem procurar uma prostituta, para preservar as mulheres
ditas de família, do que uma mulher se tornar uma prostituta.
Analisando a fala dos autores das obras sobre a prostituição, é necessário
atentar para a definição que cada um apresenta sobre o que seja prostituição, pois às vezes
podemos ficar sugestionados a pensar que esses pensadores tenham a mesma ideia que nós
sobre o significado dessa prática, e com isso, tornar nossa interpretação anacrônica. É possível
perceber que P. Dufour pensa a prostituição como o ato de trocar favores sexuais por dinheiro
ou bens, e que esse costume das mulheres se iniciou desde os tempos primitivos, quando elas
ofereciam seus corpos em troca de parte da caça ou pesca dos homens. Esse hábito evoluiu,
chegando ao lar, no caso da prostituição hospitaleira que discutiremos mais adiante, e depois
aos templos, para posteriormente tornar-se um exercício legal, mas que já começava a ser
distanciado do convívio social.
Já Lujo Bassermann, em sua obra “História da Prostituição: uma
Interpretação Cultural”, chama a prostituição de “amor venal”, que seria o ato de vender sexo.
Para ele, diferentemente de Dufour, a prostituição hospitaleira e aquela que ocorria nos
templos não possuem nenhum vínculo com o presente, apesar de considerá-las como
constituindo os primórdios da prática da prostituição. Em sua obra, Bassermann não se
preocupa em apontar os desvios cometidos pelos praticantes do “amor venal”, pois no início
do livro deixa claro que o aceita “como parte integrante da vida burguesa da humanidade”
(BASSERMANN, 1968: 4). Assim, ele tenta reconstruir a história da prostituição como
integrante da vida social, mesmo que por vezes excluída do seio da sociedade.
Até então, a produção historiográfica não dava voz às mulheres, muito
menos às mulheres prostitutas; a imagem destas era moldada de acordo com o que pensava
uma parcela (predominantemente masculina) da sociedade, aquela que possuía o poder de
estabelecer os limites entre o lícito e o ilícito e que, ao escrever a história da prostituição e das
25

prostitutas, distinguia, segundo sua própria concepção, o moral do imoral. Retomaremos esses
autores mais adiante para discutir a construção da ideia da “prostituição sagrada” em
sociedades do antigo Crescente Fértil (a antiga Mesopotâmia e a região de Canaã), e como
podemos perceber as relações de gênero presentes nas obras de tais autores.
Para o sociólogo Bernardo Coelho, a prostituição é um fenômeno social, e “a
prostituta é uma personagem presente no cotidiano” (COELHO, s/d: 5); mas, ainda assim, é
percebida como pertencente a uma esfera social diferente da dominante. A sociedade exclui a
prostituta pelo seu comportamento considerado imoral e, sendo marginalizada, para a
sociedade a mulher prostituta não tem identidade senão esta: a de prostituta. Ela é, portanto,
definida (e estigmatizada) por sua mal vista atividade. Porém, podemos pensar que também
ela mesma, enquanto mulher constrói-se de alguma forma, constituindo uma identidade (de
gênero). Segundo este autor, as correntes feministas, ao longo dos anos de pesquisas e
reflexões sobre a prostituição, elaboraram teorias sobre a função social desta atividade.
Inicialmente a prostituição era vista como produto das necessidades sexuais dos homens,
fazendo parte do sistema de dominação masculino, e a prostituta seria integrada à sociedade
como dona de um “comportamento desviante” que contribuiria para esse sistema de
dominação. Coelho diz não existir tal comportamento desviante, e afirma que o que existe é o
julgamento que alguns atores sociais, munidos de um poder simbólico que os permite agir
assim, sobre aqueles que não possuem tal poder.
Em um segundo momento, a análise feminista se concentra na dependência
econômica da mulher como uma das grandes causas para a entrada na prostituição, ainda
sendo vítima da opressão masculina. Mas essa ideia não traz uma nova perspectiva para as
pesquisas sobre a prostituição, pois ainda explora os mesmos argumentos da ideia anterior
ou seja, mantém o foco na subordinação feminina. Para Bernardo Coelho, essas teorias
feministas não levam em consideração que o gênero feminino como um todo fora vítima de
violência simbólica durante o processo de socialização (s/d: 17). Ao pensar nas prostitutas
como únicas vítimas da violência de gênero, a perspectiva feminista reafirma a velha
dualidade entre a mulher “de família” e a mulher imoral, ainda mantendo, assim, as prostitutas
à margem da sociedade.
É possível vislumbrar as relações de gênero na prostituição quando pensamos
na hierarquização das mulheres na sociedade como um mecanismo de subordinação, onde
estas são divididas em, por um lado, as mulheres “respeitáveis”, integradas na sociedade por
serem o modelo ideal de subordinação ao sexo masculino, e por outro as “imorais” (as
prostitutas). Segundo Coelho, esta última categoria representa uma ideia de libertação sexual
26

feminina, mas que não deixa de corresponder a um modelo de subordinação, pois essa
disponibilidade sexual implica a dominação e exploração sexual da mulher pelo homem.
Segundo o autor, ao dar atenção à voz das prostitutas, a perspectiva
feminista, embasada no pós-estruturalismo, começa a enxergar a prostituição como trabalho e
forma de emancipação, pois a mulher toma consciência e controle de seu corpo. E tomando
consciência de seus corpos, essas mulheres passam a reconhecer seu papel e sua importância
na sociedade e, mesmo quando a sociedade tenta marginalizá-las, elas, que constroem sua
própria identidade, têm a capacidade de se reconhecer, organizar-se e reivindicar seu lugar
dentro da ordem social. As relações de poder entre prostituta e cliente começam a se
modificar, transformando-se em uma relação de troca.
Por muito tempo houve silêncio e/ou distanciamento quanto a questões
referentes ao lugar dos envolvidos com a prática do amor ilícito. Sempre se falou muito dele,
mas de forma velada. A preocupação em se fazer a história da prostituição sempre existiu;
mas integrar essa história ao cotidiano, à história do resto da sociedade, não era o objetivo, até
meados do século XX. O que se pretendia era apresentar um discurso moralizante, expor os
perigos dessa prática e daqueles que com ela se envolviam. Buscar as relações entre
prostitutas e sociedade e a importância dessas relações, e pensar a construção da identidade da
mulher prostituta, sem ter como base os discursos morais e marginalizantes, é um desafio
recente.
É importante entender como a prostituição está inserida na historiografia e
como os estudos de gênero têm contribuído para a escrita de uma história da prostituição.
Entender as contribuições da categoria gênero, assim como as diversas noções de prostituição
é necessário para pensar como a ideia de “prostituição sagrada” foi sendo construída sobre o
conceito de prostituição que cada autor utiliza e como as relações de gênero estão inseridas
em seus trabalhos. A partir disso é possível refletir sobre como os autores abordam a questão
da existência da “prostituição sagrada” (afirmando-a ou questionando-a), e como eles
classificam as mulheres que desempenhariam a função de “prostitutas sagradas” ou
sacerdotisas.
27

2. HERÓDOTO E A BÍBLIA HEBRAICA

Há relatos da existência da prática da “prostituição sagrada” no antigo


Crescente Fértil, Grécia, Índia e nas sociedades pré-colombianas. Nesse trabalho abordarei
apenas a ocorrência na antiga Mesopotâmia e em Canaã (nome atribuído pela Bíblia hebraica
para a região do atual estado de Israel).
A prática da “prostituição sagrada” seria caracterizada como o ato de vender
sexo em nome de uma divindade (provavelmente deuses da fertilidade). Isso ocorreria dentro
do templo da divindade a qual se prestava o culto, e o sexo seria parte de um ritual. O
pagamento seria oferecido ao templo e/ou à deusa (a maior parte das divindades da fertilidade
são femininas) ou deus desse templo. Muitos autores afirmam que esse costume se trata de
um ato de prostituição, outros discordam dizendo que o que havia era um ritual de fertilidade
que não possuía nenhuma ligação com a prostituição.
A ideia de “prostituição sagrada” tem gerado muitas divergências entre os
historiadores. Diferentes autores produziram obras que falam dessa prática. As obras que
serão discutidas mais adiante apresentam diferentes versões para o mesmo costume. Os
autores que afirmam ou questionam a existência da “prostituição sagrada” na Mesopotâmia e
em Canaã, são, como já dito, influenciados pelo seu contexto sócio-cultural quando
desenvolvem a sua argumentação a respeito daquilo que defendem em seu trabalho.
Entretanto, além do contexto histórico no qual estão inseridos, os autores se inspiram em
algumas fontes da antiguidade que, a partir da leitura feita por cada autor, criam condições
para a construção da ideia da “prostituição sagrada”. Essas fontes são interpretadas de
diferentes formas pelos autores, mas embasam os trabalhos.
Existem duas principais fontes citadas nos trabalhos sobre a “prostituição
sagrada” na Mesopotâmia e nas terras do antigo Israel: um fragmento da obra Histórias de
Heródoto e alguns trechos da Bíblia Hebraica. Essas duas fontes serão aqui apresentadas para
que seja possível analisar a leitura que os autores, que serão discutidos posteriormente, fazem
delas.
O fragmento da obra Histórias de Heródoto é a fonte mais utilizada para se
falar de “prostituição sagrada”. Esse fragmento faz parte do relato que Heródoto faz de sua
viagem ao Oriente Próximo no século V a.C., e no qual descreve a cidade de Babilônia bem
como seu povo e os seus costumes. O trecho descreve um costume que, segundo Heródoto, é
o mais vergonhoso dos babilônios, ligado à religião e que, mais tarde, foi associado à
“prostituição sagrada”:
28

A instituição mais indecorosa dos babilônios é a seguinte: todas as


mulheres habitantes da região devem ir a um templo de Afrodite uma
vez na vida e ter relações sexuais com um desconhecido. Muitas
delas, orgulhosas por causa de sua opulência, consideram indigno
misturar-se com as outras mulheres e vão até as proximidades do
templo em carruagens cobertas, em cujo interior permanecem, com
numerosos serviçais à sua volta. Em sua maioria as mulheres agem da
maneira seguinte: ficam sentadas no recinto de Afrodite com uma
coroa de corda na cabeça. Há uma multidão delas, umas chegando,
outras saindo, e são estendidas cordas em todas as direções no local
onde as mulheres ficam esperando os homens, para que estes possam
circular e as escolham. Depois de uma mulher sentar-se naquele
lugar, não voltará à sua casa antes de um estranho lhe haver lançado
dinheiro nos joelhos e de ter tido relações sexuais com ele fora do
templo. Lançando o dinheiro, o homem tem que dizer as seguintes
palavras: “Chamo-te em nome da deusa Milita” (Milita é o nome
dado pelos assírios à Afrodite). A importância em dinheiro pode ser
qualquer uma, e a mulher nunca se recusa; ela não tem esse direito,
pois aquele dinheiro se torna sagrado; ela segue o primeiro homem
que lhe joga qualquer dinheiro, sem rejeitar nenhum. Depois de ter
relações com tal homem ela volta à casa, pois terá cumprido suas
obrigações sagradas para com a deusa; posteriormente, por mais
dinheiro que se lhe ofereça não se consegue seduzi-la. As mulheres
belas e bem proporcionadas não demoram a voltar para suas casas; as
feias, porém, esperam muito tempo sem poder cumprir a obrigação
imposta por essa instituição, e há algumas que ficam lá durante três e
até quatro anos. Em certos lugares da ilha de Chipre existe um
costume praticamente idêntico a esse. (HERÓDOTO 1.199)

É importante destacar que nesse trecho Heródoto, mesmo ao mencionar o


pagamento oferecido às mulheres do templo, não classifica o costume como “prostituição
sagrada” ou apenas prostituição, e não utiliza nenhum termo específico para indicar as
mulheres como prostitutas. Ele ainda destaca que esse ato ocorria apenas uma vez na vida das
mulheres que depois não se entregavam por dinheiro nenhum. Mas, mesmo que a fala de
Heródoto não faça referência diretamente à “prostituição sagrada”, muitos autores a utilizam
como evidência da existência da mesma, principalmente no final do século XIX e até meados
do século XX. Esses autores inclusive utilizam um termo específico não só para as
“prostitutas” do templo da deusa Milita, mas para todas as mulheres envolvidas com rituais de
fertilidade: hieródula, termo grego para “escrava do templo”.
Os autores da corrente historiográfica positivista eram fortemente
influenciados pelos escritos clássicos, e os escritos de Heródoto, o aclamado pai da história,
eram considerados relatos dos fatos tais como ocorreram. Há na obra de Heródoto, assim
como na de outros autores gregos, uma marcada preocupação em relatar os fatos da forma
mais fiel e clara possível. O interesse de Heródoto pela investigação (historié) fez com que ele
29

fosse criticado por alguns historiadores gregos, como Tucídides, por narrar fatos que não
presenciou, no caso das Guerras Médicas, e por escrever não somente sobre o povo grego,
mas também sobre os povos estrangeiros. Ser testemunha daquilo que é descrito é a condição
mais importante do historiador grego da antiguidade, por isso Tucídides critica Heródoto
quando este tenta relatar fatos históricos dos quais não foi testemunha ocular.
Para François Hartog, a intenção de Heródoto ao descrever as Guerras
Médicas (as quais não assistiu) e a Guerra do Peloponeso (da qual viu o início) era evitar que
aquilo que os homens fizeram se apagasse com o tempo e cessasse de ser contado. E ao
escrever sobre essas guerras, além de elaborar uma representação do passado próximo grego,
Heródoto, ao falar sobre os gregos e os bárbaros, também constrói uma representação do
mundo baseada na mentalidade imperialista ateniense (HARTOG, 1980: 137).
Embora o historiador grego antigo fosse originário de Halicarnasso, há
também na construção da narrativa de Heródoto a influência do pensamento ateniense. É
importante estar atento a essa influência, pois ela acaba por direcionar a forma como
Heródoto descreve as vitórias e o povo grego e como ele retrata os bárbaros e seus costumes.
Um dos contatos que Heródoto teve com a pólis ateniense, segundo Fábio Adriano Hering, foi
no período do apogeu da Atenas democrática de Péricles, período no qual sua estadia teria se
prolongado nessa cidade. Segundo Hering “Atenas teria dominado a vida de Heródoto como
dominara, com mão imperial, praticamente todo o mundo grego” (HERING, 2000: 158).
Percebemos isso na obra de Heródoto quando ele descreve as grandes vitórias de Atenas e, às
vezes, quando trata com certa estranheza os povos e os costumes bárbaros. Porém, para
Hering, a visão etnocêntrica pressuposta nos relatos de Heródoto é mais presente nas leituras
modernas de sua obra.

No caso de Heródoto, deve-se ter em conta que a velha “concepção


grega sobre os bárbaros”  ou, melhor, a reinvenção moderna dela
 foi fundamental para que se estabelecesse uma ordem discursiva
que pudesse dar conta do “contato entre o europeu e os seus
‘outros’(HERING, 2004: 218).

Ou seja, a narrativa de Heródoto traz reflexos do pensamento grego e como,


a partir desse pensamento, Heródoto olhava para os bárbaros, porém a leitura que se faz da
obra de Heródoto entre o século XIX e XX reforça intensamente esse olhar, pois trata a obra
como fonte de verdade incontestável e a usa para afirmar as condições hegemônicas das
narrativas históricas ocidentais. No caso do trecho sobre as mulheres do templo de Milita,
30

Heródoto julga o costume como vergonhoso, pois desenvolve sua narrativa a partir de um
contexto – o ateniense – no qual as mulheres estavam ligadas ao âmbito doméstico e sua
sexualidade sob domínio do pai ou marido. Mesmo assim, Heródoto não se refere à prática
descrita por ele como “prostituição sagrada”. Mas, podemos perceber que autores como Pedro
Dufour vêem neste relato a afirmação da existência da prostituição sagrada, mesmo quando a
mesma não é referida por Heródoto.
Fontes que também são muito utilizadas para dar embasamento à ideia de
“prostituição sagrada” na terra de Canaã são alguns dos fragmentos da Bíblia Hebraica.
Produzidos em períodos e contexto diferentes dos relatos de Heródoto, os textos bíblicos
tiveram papel importante na construção da ideia da “prostituição sagrada”, principalmente
para os autores dos séculos XIX e XX que são influenciados pelos valores morais do
cristianismo. Além disso, assim como o relato de Heródoto, os textos bíblicos eram
considerados portadores de uma verdade incontestável.
Em certos momentos os textos da Bíblia hebraica fazem referência à prática
da “prostituição sagrada”, ou às prostitutas (e em alguns trechos, aos prostitutos) do templo.
Alguns dos livros mais antigos da Bíblia hebraica que fazem referência a esse costume ou aos
seus praticantes são datados em seu formato final entre os séculos VII e VI a.C., sobretudo do
tempo do exílio da Babilônia.
Um relato importante que aparece no livro de Gênesis é o que conta sobre
Tamar e seu sogro Judá. No relato Tamar que havia se casado com o filho mais velho de Judá,
ficou viúva de dois de seus filhos antes de engravidar. Judá então promete a Tamar que a dará
como esposa a seu filho mais novo assim que este tiver idade para casar. Porém Judá não
cumpre a promessa. Então Tamar se disfarça de “prostituta cultual” para atrair o sogro e assim
gerar um filho.

No correr do tempo morreu a filha de Sua, mulher de Judá; e,


consolado Judá, subiu aos tosquiadores de ovelha em Timna, ele e seu
amigo Hira, o adulamita. E comunicaram a Tamar: Eis que o teu
sogro sobe a Timna, para tosquear as ovelhas. Então, ela despiu as
vestes de sua viuvez, e, cobrindo-se com um véu, se disfarçou e se
assentou na entrada e Enaim, no caminho de Timna; porque via que
Selá já era homem, e ela não lhe fora dada por mulher. Vendo-a Judá,
teve-a por meretriz; porque ela havia coberto o rosto. Então se dirigiu
a ela no caminho e lhe disse: Vem, deixa-me possuir-te; porque não
sabia que era sua nora. Ela respondeu: Que me darás para coabitares
comigo? Ele respondeu: Enviar-te-ei um cabrito do rebanho.
Perguntou ela: Dar-me-ás penhor até que o mandes? Respondeu ele:
Que penhor te darei? Ela disse: O teu selo, o teu cordão e o cajado
que seguras. Ele, porque, lhos deu e a possuiu; e ela concebeu dele.
31

Levantou-se ela e se foi; tirou de sobre si o véu e tornou às vestes de


sua viuvez. Enviou Judá o cabrito, por mão do adulamita, seu amigo,
para reaver o penhor da mão da mulher; porém não a encontrou.
Então perguntou aos homens daquele lugar: Onde está a prostituta
cultual que se achava junto ao caminho de Enaim. Responderam:
Aqui não esteve meretriz nenhuma. Tendo voltado a Judá, disse: Não
a encontrei; e também os homens do lugar me disseram: aqui não
esteve prostituta cultual nenhuma. (Gênesis 38:12-21)

No fragmento do capítulo 6 do livro de Baruc (que teria sido escriba e


secretário do profeta Jeremias), o costume descrito é similar ao que Heródoto descreve em seu
relato sobre as mulheres da Babilônia no século V a.C. Baruc capítulo 6 também é entendido
como a “Carta de Jeremias”, documento que os eruditos datam do período helenístico, entre o
fim do século IV e o fim do século II a.C.

Quanto às mulheres, elas se cingem de uma corda e se sentam nos


caminhos, queimando flor de farinha como incenso; quando, pois,
uma delas é recolhida por um dos passantes e com ele dorme, zomba
da vizinha por não ter sido escolhida como ela o foi, nem ter sido
desatada a sua corda. Tudo o que concerne a eles é mentira: como
então pensar ainda ou proclamar que são deuses? (Baruc 6:42-44)

Outra referência às prostitutas (e prostitutos) do templo acontece na


passagem de Deuteronômio que proíbe o culto a outras divindades e a participação em rituais
de fertilidade.

Não haverá prostituta sagrada entre as filhas de Israel, nem prostituto


sagrado1 entre os filhos de Israel. Não tratas à casa de Iahweh teu
Deus o salário de uma prostituta, nem o pagamento de um “cão” por
algum voto, porque ambos são abomináveis a Iahweh teu Deus.
(Deuteronômio 23:17-18)

Em Oseias, a passagem se refere novamente às prostitutas do templo (na


tradução da Bíblia de Jerusalém, hieródulas) com quem os sacerdotes e o povo de Israel e
Judá haviam “sacrificado” (participado de rituais de fertilidade):

1
A palavra usada pela Bíblia Hebraica para se referir aos prostitutos é “cão” (qedesh).
32

Não castigarei as vossas filhas porque se prostituem, nem as vossas


noras porque cometem adultério, pois eles próprios afastam-se com as
prostitutas e sacrificam com as hieródulas. Um povo que não tem
entendimento caminha para a perdição. (Oseias 4:14)

É importante ressaltar que nos trechos citados, segundo a Harper Collins


Study Bible – New Revised Standard Version, a expressão hebraica utilizada para prostituta
do templo é qedesa (ou kedesha) que quer dizer “consagrada” (esta se dedicaria a cultos de
fertilidade), mas que é traduzida como prostituta do templo ou prostituta sagrada2. Segundo o
historiador Gonzalo Rubio, que veremos mais adiante, essas mulheres são por muitas vezes
relacionadas à prostituição pelos relatos bíblicos por conta de sua independência sexual.
Embora eles não constituam nosso objeto de estudo, é necessário destacar
que em livros como Deuteronômio e Reis há a menção à também existência de homens
prostitutos do templo ou prostitutos sagrados, os qadesh, por vezes referidos como sodomitas
no texto bíblico, embora esta seja uma tradução bem pouco fiel ao termo. No livro de 1 Reis,
é mencionada a existência de prostitutos do templo em Judá no reino de Roboão.

Houve até prostitutos sagrados na terra. Ele imitou todas as


abominações das nações que Iahweh havia expulsado de diante dos
filhos de Israel. (1 Reis 14:24)3

De acordo com os comentaristas da Harper Collins Study Bible – New


Revised Standard Version, os prostitutos do templo, assim como as qedesa, eram pessoas
consagradas aos deuses e que ocupavam papéis importantes nos cultos de fertilidade.
Os textos que compõe o Antigo Testamento, segundo W.G. Lambert,
formam uma coleção de escritos montada por uma comunidade religiosa que pretendia
promover e conservar sua fé (LAMBERT, 2006: 77). Esses textos, ao fazerem referência à
religião dos povos que estão à sua volta, trazem a visão de uma sociedade monoteísta e
patriarcal sobre práticas de comunidades pagãs que habitavam a região de Canaã, os assim
chamados cananeus ou canaanitas, e alguns povos mesopotâmicos, como os babilônios.
Sabendo disso, podemos compreender que os costumes dos canaanitas e babilônios,
principalmente os costumes religiosos, são estranhados pelos hebreus.

2
Nas notas de rodapé da Harper Collins Study Bible (NRSV) é dito que a palavra para prostituta do templo é
kedesha que significa ‘mulher consagrada’. Os tradutores do texto bíblico para o inglês sabem que kedesha é
mulher consagrada, mas continuam traduzindo-o como ‘prostituta do templo’. Isso parece ser um sinal de que
eles partilham das conclusões da historiografia que afirma a existência da prostituição sagrada e enxerga as
sacerdotisas como prostitutas.
3
Referências aos prostitutos do templo podem ser encontradas em: 1 Reis 15:12, 1 Reis 22:46 e 2 Reis 23:7.
33

Também percebemos nos textos do Antigo Testamento (forma pela qual a


Bíblia hebraica é chamada pelos cristãos) como a figura da mulher é submetida à autoridade
masculina e como a sexualidade feminina é rigorosamente controlada. E a crença em um
único deus faz com que os cultos a outras divindades sejam vistos como práticas abomináveis.
Logo podemos pensar que os rituais de fertilidade nos quais as mulheres tinham certa
autoridade e gozavam de liberdade sexual (dentro e fora dos templos), eram relacionados com
prostituição, pois segundo Lambert, a carga moral dos hebreus não é encontrada nas religiões
mesopotâmicas que, segundo ele, têm como um dos traços principais o hedonismo, enquanto
os hebreus prezavam a castidade e os prazeres espirituais concedidos pelo seu único deus. O
autor afirma isso quando compara um trecho da Epopeia de Gilgamesh no qual Gilgamesh é
convidado por Siduri a comer, beber, dançar e passar a noite com as mulheres no jardim dos
deuses, pois a busca pelo prazer seria a tarefa da humanidade, com uma passagem do livro de
Eclesiastes que aconselha que os prazeres da vida sejam aproveitados sem excessos e sem que
Deus seja esquecido.
34

3. VISÕES DA HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA SOBRE A


PROSTITUIÇÃO SAGRADA NA MESOPOTÂMIA E NA TERRA DE CANAÃ

Como disse Michel de Certeau: “uma leitura do passado, por mais controlada
que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente”
(Certeau, 1975: 34). A partir desta afirmação, pretendo desenvolver a análise de alguns
trabalhos historiográficos a respeito da “prostituição sagrada” levando em consideração como
o contexto no qual os autores estão inseridos exerce influência sobre sua escrita, visto que o
historiador não pode se desvencilhar do presente quando escreve acerca do passado, pois sua
escrita é guiada por sua interpretação do passado que é construída no presente.
Ao analisar o olhar desses autores sobre a prática especificamente feminina
da “prostituição sagrada” na antiguidade, será possível perceber como as relações de gênero
se colocam nesses trabalhos. Para isso é importante refletir não só sobre os papéis femininos e
masculinos no passado, mas também a ligação entre a história do passado e as práticas
históricas atuais. A visão do papel feminino presente no contexto dos historiadores que
escrevem sobre a “prostituição sagrada”, tem reflexos sobre como eles enxergam o papel
feminino em outros períodos.
Segundo Joan Scott, a história é responsável pela produção das diferenças
sexuais, pois uma narrativa nunca é neutra, e o gênero, que é construção cultural das
diferenças sexuais, pode ser utilizado para analisar a construção e a consolidação de um
poder. Aqui, ele será utilizado para analisar como a ideia de prostituição sagrada foi
construída pela historiografia.
Diferentes autores trazem diferentes interpretações sobre essa prática.
Discute-se a sua própria existência, função religiosa, social e econômica; e são apresentadas
diferentes versões de rituais e costumes religiosos que foram associados à prostituição
sagrada.
Como já foi citado, as fontes mais utilizadas são trechos da Bíblia Hebraica e
os relatos de Heródoto. Estas fontes se tornam a base para a argumentação dos autores que
defendem a existência da prostituição sagrada como instituição presente na sociedade
mesopotâmica e na terra de Canaã. Autores que escrevem mais recentemente e trazem uma
discussão diferente, que tenta desconstruir essa prática, se utilizam dessas mesmas fontes, mas
também analisam fontes cuneiformes, como placas de argila e listas de funcionários de
templos, leis, hinos e poemas da antiga Mesopotâmia, por exemplo.
35

3.1 UMA ABORDAGEM DA ‘PROSTITUIÇÃO SAGRADA’ NO SÉCULO XIX: A ANÁLISE DE


PEDRO DUFOUR

Sobre a questão da “prostituição sagrada” na historiografia, Pedro Dufour,


historiador português, cristão do século XIX, baseado nos relatos de Heródoto, afirma a
existência dessa prática nos templos mesopotâmicos e se utiliza de juízos de valor para
classificar a prostituição como prática imoral. A obra de Dufour traça um histórico da prática
da prostituição desde a antiguidade até o século XIX com a intenção de advertir a sociedade
quanto aos riscos de tal costume.
Como já vimos no primeiro capítulo, para esse autor a prostituição é um mal
tão antigo quanto o mundo (DUFOUR, 1885) e esteve e está ligado à história das religiões,
das leis e dos costumes, e principalmente, na fala desse autor, à figura das mulheres.
Para P. Dufour existem três formas de prostituição no período antigo e
moderno: a prostituição hospitaleira, a prostituição sagrada e a prostituição legal, sendo as
duas primeiras fenômenos da antiguidade. A prostituição hospitaleira, que teria surgido
quando as pessoas se organizaram socialmente e constituíram família, consistia na prática de
que, ao receber um hóspede em casa, o dono da casa deveria oferecer-lhe a melhor estadia
possível, sendo este hóspede sinal de bom agouro, segundo o autor. Assim o dono da casa
deveria tratá-lo com extrema cordialidade e alegria, deixando o hóspede dormir em seu
próprio quarto na companhia de sua esposa ou filhas. O autor ainda completa dizendo que as
mulheres se entregavam ao estranho com muita boa vontade, interessadas nos possíveis
presentes que ele poderia lhes dar.
Em sua obra, Dufour fala da prostituição sagrada na Babilônia, na Fenícia, na
Armênia, na Grécia e em Roma. Mas aqui destacarei apenas o que o autor diz sobre essa
prática na Babilônia. Para ele o costume da “prostituição sagrada” é quase contemporâneo ao
da prostituição hospitaleira. Com a organização das religiões “pagãs” lembremos que
estamos falando de um autor cristão, resultado da invenção dos deuses (1885), as pessoas
começaram a fazer oferendas de seus bens para as divindades, logo as mulheres lhes
ofereciam seus corpos. Segundo o autor, essa prática, que inicialmente ocorria sem
organização e nenhum respeito nos templos de divindades pagãs e nos bosques sagrados, foi
regulamentada e organizada pelos sacerdotes, tornando-se a essência dos cultos de fertilidade.
Notamos que até então Dufour não cita o pagamento pelos serviços sexuais
oferecidos nos templos, ele apenas diz que as mulheres entregavam sua virgindade e seu
pudor (no caso das mulheres casadas) como oferenda aos deuses.
36

Segundo ele, “esta prostituição sagrada, por mais extraordinária, inverossímil


e monstruosa que pareça, é um fato de incontestável verdade histórica” (1885), e para
confirmar sua posição sobre esse costume, utiliza o relato de Heródoto, citado no capítulo
anterior (mesmo que este não classifique o ato como prostituição) e que escreve no século V
a.C., e o trecho do livro de Baruc capítulo 6 versículos 42-44, redigido entre o fim do século
IV e o final do século II a.C., de acordo com os especialistas. Essas fontes falam do costume
das mulheres do templo de Milita (Belit-Ishtar)4 na Babilônia. Dufour enxerga nesse costume
a prática da prostituição sagrada, pois as mulheres se entregam em nome da deusa e oferecem
o dinheiro a ela.
Segundo o autor, a “prostituição sagrada” pertenceu apenas às religiões que
ele chama de idólatras, sendo que, com o crescimento do cristianismo e a organização da
Igreja cristã essa prática, assim como outros ritos pagãos, perdeu suas forças. Mas esse
costume já estava tão enraizado na vida religiosa das pessoas comuns que houve um esforço
por parte dos sacerdotes das divindades suplantadas para manter, mesmo que disfarçada, a
prostituição sagrada, ou traços dela dentro dos ritos cristãos. Pedro Dufour diz que os indícios
dessa permanência eram a música e a dança que, segundo ele, eram “insidiosos auxiliadores
da sensualidade” (1885), alguns santos que lembravam a figura dos deuses, o batismo, no qual
se exigia que as mulheres ficassem completamente nuas e nas procissões nas quais as virgens
se cobriam com véus e carregavam amuletos dos ídolos pagãos.
Esses traços dos antigos cultos dentro das liturgias cristãs, segundo Dufour,
causavam grande indignação nos cristãos, pois se tentava manter ritos idólatras e imorais
dentro da “religião fundada na moral mais pura, e que se destinava a satisfazer as mais nobres
aspirações da alma” (1885).
Percebe-se então, na fala do autor, a influência explícita da moral cristã
presente na Europa do século XIX aliada ao pensamento positivista que guia a leitura das
fontes utilizadas pelo autor. A historiografia do século XIX buscava fontes que fossem
confiáveis para evidenciar fatos ocorridos. A obra de Heródoto, que era considerada um
escrito clássico, é uma dessas fontes de extremo valor e precisão para os historiadores desse
período. Pedro Dufour confere à obra de Heródoto o status de verdade incontestável, pois o
historiador grego teria visto com os próprios olhos as mulheres da Babilônia sentadas no
templo de Milita esperando que um estranho as chamassem. Esses autores se inspiravam na
perspectiva antiga grega pela qual os historiadores deviam estar preocupados com a clareza da

4
Segundo Catherine Salles, Dufour “deforma” o nome da deusa babilônia Belit-Ishtar e o transforma em Milita
(SALLES, 1982: 34).
37

exposição, a veracidade dos fatos e com a condição de testemunha ocular, portanto os autores
gregos, que escreveram sobre aquilo que presenciaram, eram muito valorizados e suas obras
consideradas fontes de relatos históricos verídicos.
O livro de Baruc capítulo 6 (Carta de Jeremias), que também é citado pelo
autor, ganha igualmente o peso de uma fonte inquestionável. Este, ao descrever as costumes e
cultos de povos idólatras e seus “falsos deuses”, aborda um costume similar ao costume
babilônico narrado por Heródoto no século V a.C. Como a obra que está sendo discutida é de
um autor cristão, a fonte bíblica se mostra de grande importância, pois além de confirmar a
verdade histórica, apresenta o ponto de vista religioso, que compõe o contexto no qual o autor
vive e, assim, molda a sua escrita.
Vemos que a leitura que P. Dufour faz das fontes é dirigida pelos valores
morais da sociedade na qual ele vivia. O conservadorismo da sociedade portuguesa e os
valores cristãos condenavam a prática da prostituição, assim como atribuíam a
responsabilidade dessa prática às mulheres. Aqui podemos analisar como as relações de
gênero se colocam em sua obra: a liberdade sexual e a própria sexualidade feminina, no
contexto do autor, eram reprimidas e vistas como algo condenável pela sociedade. Exaltava-se
a castidade e o pudor da mulher e o seu papel social se limitava ao âmbito doméstico como
esposa e mãe.
Ao observar o papel das mulheres e como a prostituição é vista em sua
sociedade, de acordo com os códigos e valores morais fundamentados pelo cristianismo, que
são colocados pela parcela dominante da sociedade, que é masculina, o autor reflete na sua
escrita sobre o passado aquilo que está presente em seu contexto. Isso pode ser percebido ao
destacarmos que Heródoto, em nenhum momento em seu relato, caracteriza o costume das
mulheres babilônicas como prostituição, e nem estas como prostitutas. Ou seja, ao observar
como as mulheres da Babilônia, obrigadas pelo dever religioso, ofereciam seu corpo a um
estranho em nome de uma deusa “pagã”, o autor aponta essa atitude como sendo traço da
imoralidade e ignorância dos povos da antiguidade, pois de acordo com o pensamento vigente
no seu contexto, a mulher deveria ser casta, para isso seu corpo e sua sexualidade eram
controlados pela família e pela Igreja. O fato de que o corpo fosse uma oferenda a uma deusa
pagã também tem um peso muito grande dentro do contexto no qual Dufour escreve, pois em
uma sociedade de tradição cristã, o culto a outros deuses assume um aspecto ilícito e
marginal.
Pedro Dufour tenta, por meio de sua leitura de fontes, explicar o que seria a
prostituição sagrada. Ao analisar sua obra, percebe-se que não há muita distinção entre a
38

prostituição sagrada, ou prostituição religiosa como o autor diz algumas vezes, e a


prostituição comum, a venda do sexo. A respeito dessa diferenciação, Lujo Basserman, que
escreve na década de 1960, diz que a prostituição hospitaleira e a prostituição sagrada, mesmo
sendo as práticas que deram origem à prostituição comum (o comércio do sexo), não possuem
nenhum vínculo com essa forma comum de prostituição. Para ele a prostituição sagrada era
um dever religioso que não tem nenhuma ligação com a prostituição tal qual a conhecemos.
Além de Dufour, outros historiadores modernos utilizam a narrativa de
Heródoto de modo a provar a prostituição sagrada como fato histórico. Este é o caso de
Catherine Salles e Emmet Murphy.

3.2. ABORDAGENS DA ‘PROSTITUIÇÃO SAGRADA’ NO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI:


A ANÁLISE DE CATHERINE SALLES, EMMET MURPHY E EDSON HOLTZ LEME

A historiadora Catherine Salles, em seu livro Nos Submundos da Antiguidade


fala rapidamente sobre a “prostituição sagrada” na Mesopotâmia baseada no relato de
Heródoto. Porém a autora diz que não se pode dizer muito sobre a prática, pois existem
poucas fontes que a relatem.
É possível notar em sua obra, escrita em 1982, uma ligeira confusão quanto à
função das “prostitutas” do templo. Ao falar sobre as mulheres do templo de Milita (Belit-
Ishtar), Salles chama essas mulheres de hieródulas5, que segundo ela são cortesãs sagradas e
membros do corpo sacerdotal dos templos de divindades da fertilidade. Porém, as mulheres do
templo de Milita ou Belit-Ishtar não são sacerdotisas, tampouco fazem parte do corpo
sacerdotal do templo daquela deusa. Elas apenas estão cumprindo um dever sagrado. A autora
também acaba por confundir as sacerdotisas que realizavam serviços sexuais com escravas
prostitutas dos templos gregos. Talvez porque, para ela, a prostituição sagrada grega foi
inspirada naquela ocorrida no Oriente próximo.
Salles também destaca a reação dos historiadores e geógrafos gregos a essa
prática. Segundo ela, estes teriam ficado chocados com o costume visto como algo
escandaloso. Por isso é difícil compreender as intenções e as significações do rito, já que os
autores gregos apresentam explicações frequentemente fantasiosas para o mesmo (SALLES,
1982: 33).

5
Esse é o termo em grego para funcionário do templo, porém é associado à imagem da prostituta sagrada,
provavelmente por conta das prostitutas escravas dos templos de Afrodite.
39

Emmet Murphy escreve em 1983 seu livro A História dos grandes Bordéis
do Mundo. Ele se utiliza igualmente do relato de Heródoto para falar da prática da
prostituição sagrada. Ele também cita ligeiramente a personagem bíblica Rahab, apontando-a
como uma prostituta ligada à religião (MURPHY, 1983: 14).
O autor fala da existência do kakun, templo dedicado à deusa suméria da
fertilidade Ishtar/Inanna. Segundo ele, esse templo abrigava três classes de mulheres: a
primeira desempenhava as funções nos ritos sexuais do templo; as mulheres da segunda classe
se movimentavam por toda a área do santuário e recebiam os visitantes interessados e a
terceira classe, que era a mais baixa, segundo Murphy, tinha mais liberdade para buscar
clientes nas ruas e tinha má reputação (1983: 15). Para esse autor “devemos um dos melhores
relatos da prostituição sagrada ao historiador grego Heródoto” (1983: 15) quando o mesmo
descreve o dever que as mulheres babilônicas tinham com a deusa Milita. Porém, mesmo
conferindo à obra de Heródoto o mesmo peso que Dufour, percebe-se que na obra de E.
Murphy não há a intenção moralizante que vemos em Dufour. O que o autor pretende é
apenas traçar um histórico da prostituição desde seus primórdios, a partir das fontes
disponíveis, e pensar sobre seu lugar na sociedade, portanto não se aprofunda na discussão
sobre a “prostituição sagrada”.
Um autor recente que concorda com a existência da prostituição sagrada
baseada nos relatos de Heródoto é Edson Holtz Leme. Porém, em seu livro Noites Ilícitas, o
autor aponta a “prostituição sagrada” como um ofício religioso que dava prestígio às
sacerdotisas que o praticavam, e que decai quando os homens começam a assumir lugares
importantes dentro dos templos.

A relação sacro-mercantil da prostituição perdurou por muito tempo.


Com a ascensão ao poder de governantes e sacerdotes homens, a
posição hierárquica até então mantida pelas sacerdotisas-prostitutas,
bem como o culto às deusas, entrou em declínio. Com a perda do
prestígio que antes detinham, essas mulheres passaram a ocupar
papéis subalternos nos templos sendo, posteriormente, expulsas.
(LEME: 2009: 109)

O que se pode perceber é que esses autores mais recentes, mesmo


concordando com a existência da “prostituição sagrada”, ressaltam que a mesma tratava-se de
um dever sagrado que era cumprido por mulheres de grande importância na sociedade
mesopotâmica e que não deve ser encarada como prostituição comum. Dois escrevem na
década de 1980, e um escreve em 2009, portanto o contexto no qual escrevem é totalmente
40

diferente do contexto de Dufour. As novas perspectivas históricas, documentos diversificados


e as relações de gênero permitem que esses autores façam análises mais completas dessa
prática, pensando a importância do papel das sacerdotisas na antiga Mesopotâmia, o valor dos
ritos de fertilidade para essa sociedade, o interesse econômico dos templos em manter
escravas prostitutas (Catherine Salles por vezes coloca as hieródulas no mesmo patamar das
escravas prostitutas).

3.3 ANÁLISE E DESCONSTRUÇÃO DA IDEIA DE PROSTITUIÇÃO SAGRADA NO FIM DO SÉCULO

XX E INÍCIO DO XXI

Na década de 1980, Gerda Lerner, autora de origem austríaca, residente nos


Estados Unidos que escreveu obras voltadas para a história das mulheres, traz uma nova
perspectiva sobre a questão da “prostituição sagrada”.
Lerner usa o termo “serviço de sexo ritualístico” e não “prostituição
sagrada”, pois ela diz que ao tratarmos essa prática como prostituição, nos afastamos de seus
significados (LERNER, 1986: 238) e discorda do fato de que esse serviço sexual tenha dado
origem à prostituição comercial. O “serviço de sexo ritualístico”, segundo Lerner, fazia parte
do culto a divindades femininas da fertilidade. Esses cultos datam do neolítico, e deles foram
encontradas evidências arqueológicas na Europa, no Mediterrâneo e na Ásia Oriental, como o
caso de estátuas femininas que possuem grandes seios e nádegas (1986: 238). Também é
possível identificar a presença desses cultos na Mesopotâmia a partir de fontes literárias,
pictóricas e legais que datam desde o 3° milênio a.C.
Os templos mesopotâmicos possuíam uma equipe de funcionários que
serviam aos deuses, os alimentando e cuidando do templo, pois se acreditava que o deus ou
deusa residia no templo. A equipe era formada por sacerdotisas e sacerdotes, artesãos, artistas
e escravos que desempenhavam diversos papéis de acordo com a divindade de cada templo. O
sexo ritualístico estava incluído nas atividades do templo, assim como apresentações de
dança, música e interpretação.
6
Mulheres de família real, geralmente, eram sacerdotisas en (LERNER,
1986: 239), as principais sacerdotisas de alguns templos. Segundo Ciro Flamarion S. Cardoso,
antes dos meados do terceiro milênio antes da era cristã, não havia separação entre o templo e

6
En priestesses. (LERNER, 1986: 239)
41

os palácios reais, e neles habitavam uma espécie de funcionário, no templo chamado de en


(chefe). Espécie de sacerdote ou sacerdotisa que cuidava das tarefas administrativas, e no caso
dos sacerdotes homens, ficavam encarregados da chefia militar (FLAMARION, 1990: 27).
Sobre essas sacerdotisas, Lerner diz que comandavam rituais e cultos e não
se casavam, eram a contrapartida dos sacerdotes homens (1986: 239) e não deixavam o
templo. Na Suméria, elas recebiam a deusa Inanna no ritual do Sagrado Casamento, na
Babilônia eram as mais importantes sacerdotisas do deus Sin (deus Lua) e da deusa Ishtar. As
referências a essas sacerdotisas datam do período babilônico antigo.
Outro tipo de funcionárias do templo eram as chamadas nin-dingir. A autora
não se aprofunda muito sobre elas nem cita o significado do termo, mas diz que existem
muitas referências a elas datadas da época de Hammurabi (1792-1750 a.C.). Elas poderiam
viver fora do templo, mas sua reputação era cuidadosamente guardada.
A autora discorre sobre as sacerdotisas naditum, termo que significa
literalmente “deixada em pousio” relação entre o estado da terra que é deixada inculta com
o estado da sacerdotisa que não pode ter filhos. As naditum vinham de famílias importantes, e
segundo algumas evidências (o significado da palavra é uma delas) eram proibidas de ter
filhos. As naditum traziam grandes dotes para o templo, e podiam deixar o claustro para
cuidar de seus negócios (comprar e vender terras e escravos), podiam adotar crianças e deixar
suas posses para uma herdeira do sexo feminino, que provavelmente também era ou seria
sacerdotisa.
Para falar do “serviço de sexo ritualístico” e das diferentes classes de
sacerdotisas, Lerner se utiliza de listas de funcionários dos templos, leis (código de
Hammurabi e as Leis Assírias) como fontes. É possível perceber no texto da autora que
nenhuma das fontes que ela utiliza faz referência à prática da prostituição. Segundo a autora a
ideia de “prostituição sagrada” surge quando os pesquisadores confundem as várias tarefas
realizadas nos templos, inclusive o sexo ritualístico e a função dessas sacerdotisas, com
prostituição. Alguns desses autores se utilizam do termo hieródula (palavra grega que se
refere a uma funcionária do templo) para designar essas mulheres que praticariam a
“prostituição sagrada”.
Sobre o relato de Heródoto sobre as mulheres do templo de Milita, Gerda
Lerner diz que, ao lado dos relatos de Estrabão, é a fonte que mais influenciou os
historiadores modernos no que diz respeito à “prostituição sagrada”. Segundo ela, “não há
nenhuma confirmação para essa história, além de Estrabão, e não há nenhuma “lei” conhecida
que regulamente ou que faça referência a essa prática. Heródoto pode ter confundido as
42

atividades de prostitutas ao redor do templo com um ritual envolvendo todas as virgens


assírias” (LERNER, 1986: 243). Muitos historiadores repetem a citação de Heródoto como
evidência histórica da “prostituição sagrada”, como no caso de Pedro Dufour e Emmet
Murphy. Porém, Gerda Lerner encara a função das sacerdotisas como exemplo importante de
serviço de sexo sacro que pode ter sido distorcida.
A partir da fala de Lerner é possível perceber que os relatos de Heródoto e as
traduções incorretas e interpretações confusas das fontes orientais contribuem para a
construção da ideia da “prostituição sagrada”. A autora se preocupa em expor as confusões
feitas (como no caso das sacerdotisas confundidas com prostitutas e o sexo ritualístico como
prostituição) e defende que ao longo dos anos, ocorreu nas comunidades do Crescente Fértil
uma mudança na mentalidade que foi se tornando mais patriarcal.
Assim, as mulheres que tinham destaque na vida religiosa tiveram seu espaço
reduzido, quando cada vez mais homens ocupavam os papéis principais dos templos. As
sacerdotisas que dirigiam e participavam dos cultos ligados à fertilidade foram sendo
marginalizadas e colocadas na mesma escala de prostitutas comuns. As prostitutas comuns já
circulavam próximas aos templos, pois era onde havia mais fluxo de pessoas, ou seja, fluxo de
clientes, assim o serviço de sexo ritualístico e a prostituição comum acabaram por se
confundir.
Lerner é uma pesquisadora da área da História das Mulheres e uma das
fundadoras do campo de História das Mulheres e da organização de Mulheres Historiadoras,
portanto é preocupada com as questões de gênero, principalmente no que diz respeito ao papel
feminino na história. Fortemente influenciada pelo pensamento feminista, ela escreve na
segunda metade da década de 1980, quando as pesquisas na área de gênero sofriam mudanças
influenciadas pelo pós-estruturalismo e as novas perspectivas históricas da história cultural e
da micro-história. Nesse período as mulheres também já tinham uma maior visibilidade na
sociedade e os grupos feministas continuavam lutando pela igualdade de direitos dentro da
sociedade. A desconstrução da imagem da prostituta sagrada feita por Lerner pode ter sido
motivada pela desconstrução e a reconstrução do papel feminino dentro das condições de sua
sociedade. Assim percebemos que sua escrita é influenciada pelo seu contexto quando a
autora coloca o patriarcalismo como causa da marginalização dos serviços sexuais femininos
e sua relação com a prostituição.
Além de sua escrita estar dentro do contexto de uma História das Mulheres, a
autora também analisa uma variedade maior de documentos. Assim, é possível vislumbrar um
panorama mais abrangente do papel feminino das sacerdotisas dos templos mesopotâmicos. A
43

autora analisa com muito cuidado as fontes mesopotâmicas, e a partir delas ela aponta a
importância do papel feminino na religião, e como este foi sendo, aos poucos, suprimido pelo
patriarcalismo.
Concordando com a não existência da prática da “prostituição sagrada” a
historiadora britânica Stephanie Lynn Budin, em seu livro The Myth of Sacred Prostitution in
Antiquity, afirma que a “prostituição sagrada” nunca existiu, e procura mostrar as evidências
que levam a essa conclusão. Também oferece novas interpretações para o significado desse
mito dentro de seu contexto antigo.
Para a autora “prostituição sagrada” corresponde ao ato de vender o corpo
para propósitos sexuais, e parte (senão o todo) do dinheiro recebido pertence à(s)
divindades(s) (BUDIN, 2008: 3). Ela fala de três tipos separados de prostituição presentes nas
fontes que analisa (Heródoto e a Bíblia hebraica): a prostituição somente uma vez na vida
e/ou venda da virgindade em honra de uma deusa; prostituição de mulheres (e talvez
homens)7 profissionais que eram propriedades do templo e a prostituição temporária antes do
casamento, ou em alguns rituais (2008: 3).
Mesmo existindo referências à “prostituição sagrada” nas fontes clássicas,
Budin afirma que essa prática nunca existiu, pois as definições das fontes são muito abstratas.
Assim em sua obra, ela tenta esboçar como, ao longo dos séculos, a imagem da “prostituição
sagrada”, relacionada com os rituais de fertilidade, foi sendo construída pelas fontes clássicas
e por seus leitores.
Algumas “evidências” arqueológicas, como placas de argila da Mesopotâmia
que apresentam cenas de sexo, contribuíram para a construção da ideia de “prostituição
sagrada” oferecendo a ilusão da confirmação daquilo que diziam as fontes clássicas. Tanto
que a autora diz que a “prostituição sagrada” nada mais é que uma construção literária. Assim
a autora faz uma análise dos termos utilizados nas fontes clássicas e nas fontes orientais, pois
“muitas palavras identificadas como “prostituta sagrada” no antigo idioma do Oriente
Próximo (sumério, acadiano, ugarítico e hebraico) têm uma identificação incerta” (BUDIN,
2008: 5)8. Enquanto existem essas incertezas quanto aos termos utilizados nas fontes
orientais, os termos para prostituição que aparecem nas fontes clássicas redigidas em grego
são bem definidos. Por exemplo: é certo que em grego pornê se refere a uma prostituta e
hetaerae uma cortesã de alta classe.

7
Nas listas de funcionários do templo que a autora utiliza como fonte, são encontrados cargos ocupados por
homens nos cultos de Inanna/Ishtar. Esses homens eram músicos e/ou atores, utilizavam indumentária feminina e
poderiam participar dos rituais que envolviam a prática sexual desempenhando o mesmo papel das sacerdotisas.
8
Tradução da autora.
44

Poucos textos foram usados para construir o mito da “prostituição sagrada.”


Budin cita Heródoto e Estrabão, porém diz que os relatos destes autores nada têm a ver com
prostituição sagrada. O que ocorre é que o os autores que já estavam familiarizados com o
mito, o enxergavam em qualquer passagem ou acontecimento que relacionasse rituais e
sexualidade, algo que ela denomina de “sexo sagrado”, que seriam as práticas sexuais
presentes em cultos e rituais de fertilidade. Um exemplo de sexo sagrado é o que ocorria no
ritual do “Sagrado Matrimônio”, no qual a relação sexual entre a deusa Inanna, representada
por uma sacerdotisa, e o deus Dumuzzi, representado pelo rei, era encenada todos os anos a
fim de trazer fertilidade para a terra e para os animais.
A “prostituição sagrada” é considerada pela autora como um mito que se
desdobrou ao longo do tempo e chega até nós em diferentes versões, inclusive dizendo que a
“prostituição sagrada” foi inventada por Heródoto. Esses mitos podem ser encontrados,
inclusive, nas perspectivas de análise acadêmicas, as que levam em consideração a cultura
popular e nos “movimentos da Nova Era”, como diz S. Budin.
Há uma grande divergência entre os estudiosos da “prostituição sagrada” no
século XX e início do século XXI, e segundo a autora, aqueles que recusam a existência da
“prostituição sagrada” são aqueles que olharam para as fontes orientais e não encontraram
evidências da prostituição sagrada neles. Enquanto as fontes clássicas diziam que a
“prostituição sagrada” existia e muitos estudiosos dessas fontes acreditam que essa prática de
fato existiu, mesmo quando consultavam os estudos sobre o Oriente Antigo, confirmavam
essa existência com base nas informações dos clássicos.
A autora se preocupa em desconstruir a ideia de “prostituição sagrada”,
considerada por ela um mito. Para isso ela analisa as definições do termo do Oxford Classical
Dictionary e do Dictionary of the Ancient Near East, bem como as referências de Heródoto e
do Antigo e do Novo Testamento. Ela aponta a possível presença de homens envolvidos com
a prática do sexo ritualístico, que até então é relacionado apenas às mulheres.
Ou seja, enquanto Lerner destaca a importância do papel feminino na religião
da antiga Mesopotâmia, Budin se preocupa em fazer menção, mesmo que não tão
incisivamente, à presença masculina nos rituais de fertilidade. Podemos notar no trabalho da
autora os reflexos do estudo de gênero implícito em sua fala. A mesma se preocupa em
desconstruir uma ideia que é ligada à imagem feminina, demonstrando haver referências da
presença masculina em algumas fontes, como no caso da Bíblia Hebraica. Percebe-se que a
fala da autora é influenciada por análises de gênero mais recentes, onde os papeis masculinos
e femininos são discutidos em sua pluralidade sem a exaltação ou opressão de nenhum deles.
45

Outro autor que fala das confusões quanto aos termos para “prostituição
sagrada” é o historiador Gonzalo Rubio. Para ele existe uma confusão quanto aos termos
utilizados para designar as “prostitutas sagradas”, causada por equívocos nas traduções. Em
seu artigo ¿Virgenes o Meretices? La Prostituición Sagrada em El Oriente Antiguo ele diz
que a sacerdotisa que foi apontada como prostituta sagrada é a naditu (literalmente “deixada
em pousio”9 - sumério lukur) e a qadistu10 (sagrada ou consagrada. Sumério nu-gig – a que é
tabu, a sagrada) (RUBIO, 1999: 133).
Segundo o autor as naditum, principalmente as do deus Shamash, eram
mulheres de alta classe. Poderiam se casar, mas não poderiam ter filhos (o marido poderia
desposar uma mulher de classe inferior para ter um herdeiro), elas desempenhavam papel
importante em transações comerciais, possuíam escravos e gozavam de independência
financeira. Rubio diz que, ao examinar o Código de Hammurabi, podemos perceber que essas
sacerdotisas tinham grande prestígio e status religioso. Para ele a única evidência que aponta a
naditu como prostituta é oriunda de listas léxicas, que são mais tardias e pouco confiáveis
(1999: 133).
Para o autor, a presença da mulher na esfera pública implica a associação
com a prostituição por parte de alguns estudiosos da prostituição sagrada.

O aparente paralelo entre kar-kid (prostituta - sumério) e qadistu/nu-


gig é assumido por Lambert como prova da sua equivalência, junto
com a menção da rua em ambos os casos. A identificação entre a
presença autônoma da mulher na esfera pública e o exercício da
prostituição tem mais a ver com a desconstrução masculina da
sexualidade feminina do que com um topos antropológico. Expressão
dessa leitura masculina da sexualidade da mulher dentro das barreiras
do socialmente admissível é o motivo11 da mulher na janela na
iconografia do Oriente antigo no primeiro milênio a.C. que tem sido
profundamente estudado por Claudia Suter. (RUBIO, 1999: 134)12

As interpretações equivocadas das fontes sobre os rituais hierogâmicos


deram origem às histórias sobre a prostituição sagrada. O Sagrado Matrimônio, o mais

9
Relação entre a terra que é deixada inculta, em pousio, com o fato de que a naditu não poderia ter filhos.
10
Correspondente ao hebraico qedesa ou kedeshah – sagrada.
11
Incrustação em marfim de uma mulher em uma janela, provavelmente feita em Canaã, frequentemente
interpretada com uma prostituta, sagrada ou não, aguardando clientes. Ver imagem 2 (anexo).
12
Tradução da autora.
46

importante ritual hierogâmico realizado como parte das comemorações sumérias no terceiro e
segundo milênio a.C. no qual o rei representava Dummuzi e uma sacerdotisa (provavelmente
uma naditu) representava a deusa Inanna, segundo o autor, é a única evidência aberta da
prática sexual dentro do culto mesopotâmico, e talvez, esse rito tenha sobrevivido em textos
do primeiro milênio a.C. que descrevem rituais reais ou canções de casamento de Nabû e
Tasmetu na Assíria e Nabû e Nana na Babilônia (1999: 135).
Para G. Rubio é normal que os rituais nos quais há a prática ou a
simulação do ato sexual acabassem se tornando uma forma mercenária de liturgia que visasse
lucros em uma determinada época. No caso dos rituais hierogâmicos, isso aconteceu no
primeiro milênio a.C., quando, segundo Rubio, a sexualidade deixa de ser considerada
sagrada e a sociedade se torna mais “masculinizada”. Assim, as naditum tornam-se uma
ameaça pela sua independência sexual e financeira que desafia o status quo de uma sociedade
rígida.
Sobre os relatos gregos e os da Bíblia Hebraica, o autor diz que os mesmos
são pré- concebidos e não levam em consideração os termos usados para indicar as
sacerdotisas que são relacionadas à prostituição sagrada. Por exemplo: as palavras fenícia e
hebraica para moça são entendidas ao mesmo tempo como virgem e prostituta.
A qedesha citada na Bíblia Hebraica é igualada, por muitas vezes, a uma
prostituta (zonah), como no trecho sobre Tamar. Rubio diz que a prostituição da qedesha pode
ser um exemplo de uma má interpretação, ou uma interpretação má intencionada dos cultos
populares por parte da religião patriarcal de Jerusalém. Ou seja, a ideia de relacionar as
sacerdotisas de Inanna/Ishtar ou Shamash com prostitutas sagradas pode vir desde os tempos
bíblicos, pois os seguidores de Iahweh condenavam os cultos sexuais e o culto a outros
deuses.
Seguindo esse pensamento de Gonzalo Rubio, podemos supor que talvez a
ideia de prostituição sagrada não seja fruto do pensamento masculinizado do século XIX, mas
tenha sido construída a partir do pensamento religioso patriarcal dos hebreus.
O autor também menciona a suposta prostituição masculina. Os homens que
estariam envolvidos com essa prática seriam eunucos, de aparência afeminada, ligados ao
culto de Ishtar que realizaram as tarefas femininas. Porém não há nenhuma fonte
mesopotâmica que associe a figura do eunuco com a prostituição dentro ou fora do templo.
Eles aparecem nas listas de funcionários do templo como artistas que apresentam números
musicais e acrobacias com facas.
47

Em suma, Rubio também concorda com a inexistência da “prostituição


sagrada”. Para ele o que ocorreu foi uma perversão dos cultos sexuais por parte dos profetas
hebreus e dos documentos gregos do final do primeiro milênio a.C. Como nesse período a
sexualidade já não era mais considerada algo sagrado e a independência sexual e financeira
feminina era considerada uma ameaça, talvez por conta de o pensamento ter se tornado mais
androcêntrico no Oriente próximo, como já citado por Gerda Lerner, as mulheres envolvidas
nos cultos de fertilidade tornaram-se estigmatizadas como prostitutas sagradas.
O autor desenvolve sua análise a partir dos diferentes termos associados com
“prostituição sagrada" baseado nos valores e conceitos vigentes em seu contexto. As
perspectivas acadêmicas das pesquisas históricas e as relações de gênero presentes no
momento no qual o historiador escreve, são de grande importância e tem muita influência
sobre sua produção. Percebemos as relações de gênero nas obras analisadas quando seus
autores esboçam a construção do papel feminino e masculino na antiga Mesopotâmia e
também na terra de Canaã, e como o papel feminino foi sendo moldado ao longo dos estudos
sobre a prostituição sagrada, a partir da leitura das fontes que os autores fazem influenciados
pelo olhar que sua sociedade tem sobre as mulheres. Essa leitura das fontes também é guiada
pela perspectiva teórica que os autores seguem.
No caso de Pedro Dufour, que analisa o relato de Heródoto e um trecho do
livro de Baruc, essas fontes são consideradas incontestáveis. Pois, para os historiadores do
século XIX, os autores gregos se preocupavam com a veracidade dos fatos e escreviam sobre
o que haviam presenciado, portanto, as fontes gregas são de grande importância para a
pesquisa histórica por apresentarem verdades históricas. Assim como o livro de Baruc, ao
qual é atribuído o status de documento histórico incontestável por se tratar de um livro da
Bíblia que é analisado por um autor cristão, sendo assim, um documento confiável.
A visão que Dufour tem da prostituição e do papel das mulheres também
auxilia na construção de sua obra. Para ele a prostituição é a troca de bens materiais por
favores sexuais e existe e existiu em todas as civilizações e é ligada à figura feminina. Em
seu contexto o papel feminino aceito pela sociedade era aquele ligado ao âmbito doméstico,
de filha casta ou então de mãe e esposa. Logo, a presença de mulheres na esfera pública era
algo reprovável. Vemos que isso se reflete na sua obra quando o mesmo condena as práticas
sexuais femininas presentes no culto das divindades orientais, nos quais as mulheres tinham
grande importância, e sua liberdade sexual não era mal vista.
Percebemos que os autores do século XX e início do XXI citados que
concordam com a existência da prostituição sagrada, mesmo se utilizando da mesma fonte
48

que Dufour, analisam o fenômeno de outra perspectiva. Eles procuram refletir sobre a prática
analisando o contexto religioso no qual ela se encaixa. Catherine Salles e Emmet Murphy
falam sobre a prostituição sagrada como parte de rituais de fertilidade comuns na região do
antigo Crescente Fértil. Ambos analisam o relato de Heródoto, porém enquanto Salles destaca
que a narrativa é fruto do olhar escandalizado do historiador grego, Murphy atribui a
Heródoto o melhor relato sobre a prostituição sagrada.
O autor Edson Holtz Leme defende a importância sacro-mercantil da prática
na Babilônia que teria importância econômica. Também utilizando o relato de Heródoto,
Leme defende que a prostituição sagrada foi marginalizada pela crescente presença masculina
dentro dos templos.
Esses autores analisam as fontes clássicas como o relato de Heródoto e a
Bíblia hebraica. Sendo assim, partem da ideia apresentada por essas fontes, de que a
prostituição sagrada realmente existiu. Porém, ao analisar essas fontes, cada autor busca
refletir sobre a prostituição sagrada como uma prática ligada à religião do antigo Oriente
próximo, que já é estigmatizada como prática escandalosa pelos autores gregos e hebreus, sem
compará-la à prática da prostituição comum, como faz Dufour.
As perspectivas apresentadas por Gerda Lerner, Stephanie Lynn Budin e
Gonzalo Rubio a respeito da prostituição sagrada trazem uma análise diferenciada das fontes,
tantos as clássicas quanto as orientais. O estudo das línguas semíticas aparece como elemento
importante que dá fundamento para alegações como as de Budin e Rubio que afirmam a
existência do equívoco e da confusão referentes aos diferentes termos utilizados nos textos
para indicar prostitutas e sacerdotisas. Assim como a influência e contribuição da História das
Mulheres e dos estudos de gênero, que percebemos no texto de Lerner, que permitem pensar a
construção dos papéis femininos e masculinos em determinado período e como estes são
moldados pela historiografia ao longo do tempo.
49

4. UMA VISÃO DE CONJUNTO DO DEBATE HISTORIOGRÁFICO

O debate a respeito da existência da “prostituição sagrada” no antigo


Crescente Fértil tem sido tema de pesquisas sobre a antiguidade com hipóteses e
interpretações diversificadas. Como vimos existem autores que afirmam a existência da
prática, e aqueles que questionam sua existência como prostituição, pois para eles a prática do
sexo ritualístico não pode ser encarada com os valores morais da sociedade ocidental
contemporânea.
A historiografia também pode ser utilizada como objeto de análise para a
pesquisa histórica. Ela é obra dos historiadores, portanto fruto das diferentes interpretações
que os mesmos têm sobre o passado. No caso da prostituição sagrada, os pesquisadores do
assunto têm acesso a essa prática através de fontes produzidas na antiguidade (como os relatos
de Heródoto, a Bíblia hebraica e as fontes orientais), e cada um fará uma leitura diferente
destas.
Cada autor constrói a sua ideia a partir de ideias já pré-concebidas pelas
fontes as quais tem acesso. Porém é a partir de seu olhar sobre o passado e sua interpretação
das fontes que o historiador desenvolve sua escrita de acordo com aquilo que lhe faz mais
sentido.

É o historiador que diante dos diversos materiais deixados pelo passado, de


testemunhos que procuram guardar o sentido de cada momento e de cada
experiência vivenciada pelos sujeitos históricos, escolhe aqueles que terão
direito de aparecer, é ele quem seleciona, recorta e faz aparecer os discursos
que terão a oportunidade de apresentar enquanto conhecimento histórico de
uma época e lugar. (SIQUEIRA, 2008: 111)

Assim, vejamos como os autores discutidos no capítulo anterior constroem e


defendem a sua ideia sobre a “prostituição sagrada” no antigo Crescente Fértil.
O assunto começa a ser debatido no século XIX, e talvez a obra mais
significativa desse período sobre o assunto é o livro de Pedro Dufour. É uma obra extensa, de
caráter moralizante e que condena as práticas “idólatras” dos povos antigos que faziam do
sexo parte dos rituais dirigidos aos seus deuses. Para esse autor a prostituição sagrada é um
fato que é comprovado historicamente pelo grego Heródoto e pelo livro de Baruc, que como
vimos anteriormente, falam de costumes parecidos em seus relatos.
50

Porém devemos notar que as fontes citadas por Dufour não falam
diretamente da ocorrência da prostituição dentro de nenhum templo, mas ainda assim, o autor
afirma a existência de tal prática ligada aos cultos que ele chama de pagãos. Nesse caso
podemos perceber que a interpretação de Dufour é feita a partir de conceitos pré-estabelecidos
influenciados pelo seu contexto cultural.
O conceito de prostituição que o autor utiliza é importante para a construção
da ideia de prostituição sagrada. Para ele, como já foi dito, qualquer troca de favores sexuais
por bens materiais se caracteriza como prostituição. Ambas as fontes citadas por Dufour
relatam um costume similar no qual as mulheres da Babilônia (no relato de Heródoto) e de
Canaã (no relato de Baruc) devem se entregar para um estranho, pelo menos uma vez na vida,
em troca de dinheiro. Esse costume seria um dever sagrado que todas as mulheres teriam com
a deusa da fertilidade, chamada de Milita por Heródoto e não nomeada por Baruc. Envolvia
pagamento, porém as moedas eram oferecidas à deusa em questão.
Talvez pelo fato de que esse costume envolvesse pagamento pelo sexo,
aliado à concepção que Dufour tem de prostituição e de sua postura desfavorável aos
costumes dos povos antigos do Oriente próximo (não cristãos), Dufour tenha enxergado em
suas fontes uma forma de prostituição religiosa que, segundo ele, foi a origem da prostituição
comum. Segundo Keith Jenkins as fontes são mudas e são os historiadores que formulam o
que as fontes dizem (JENKINS, 2004: 67), logo, podemos supor que Dufour apresenta uma
“verdade histórica” que ele retirou das fontes sem que essas a afirmassem realmente.
A respeito das relações de gênero, gostaria de esclarecer que utilizo o gênero
como categoria analítica para desenvolver minha discussão sobre a construção da ideia de
“prostituição sagrada” na obras discutidas. Por exemplo, é possível identificar as relações de
gênero na obra de Dufour a partir dos estudos aos quais temos acesso na atualidade, porém tal
conceito não existia no período em que ele escreveu seu livro.
Pois bem, podemos notar na fala do autor que o mesmo discute
primeiramente a questão da prostituição para depois falar da prostituição sagrada. E como a
figura feminina está ligada a essas duas práticas. No início da obra notamos como o autor se
vale dos valores morais de seu contexto para criticar a prática da prostituição dizendo, por
exemplo, que este é um “tráfico que a moral reprova” (DUFOUR, 1885), porém está presente
em sua sociedade, e segundo ele esteve presente em todos os povos.
É possível perceber que, para Dufour, a prostituição esteve ligada desde suas
origens à figura da mulher, que seduzia e oferecia seu corpo em troca de uma parte da caça do
homem, ou então em troca de presentes de um hóspede inesperado, ou então, oferecendo o
51

próprio corpo como oferenda para os antigos deuses, por não ter outro bem que pudesse ser
sacrificado.
Dufour escreve em um contexto em que a sexualidade da mulher deve ser
controlada para que esta se mantenha casta até um possível casamento no qual possa gerar
filhos legítimos para herdar as posses do pai. Assim, a liberdade sexual feminina é controlada
pela família e pela Igreja Católica, para que ela se mantenha casta e, em sua condição de
responsável pelos desvios dos desejos masculinos, não acabe seduzindo e induzindo um
homem a pecar.
E ainda, para o autor, a mulher que se prostitui o faz por livre e espontânea
vontade, pois o mesmo declara que a mulher sempre foi dona de seu corpo e assim, podendo
negar a prostituição como forma de sobrevivência.
Aliada à visão de Dufour sobre o papel da mulher em seu contexto, está a
mentalidade religiosa que aponta o sexo como prática pecaminosa e condena o culto a outras
divindades. Esses pensamentos em conjunto são perceptíveis quando Pedro Dufour se refere à
prostituição sagrada como uma forma primitiva e incivilizada de culto aos deuses que ele
chama de pagãos.
Para o autor, a conduta do povo da Babilônia quanto aos rituais de
fertilidade, nos quais, para ele, havia a presença da prostituição sagrada, acabou por desvirtuar
a cidade.

Compreende-se perfeitamente como este espetáculo permanente da


prostituição religiosa devia corromper os costumes de Babilônia.
Efetivamente aquela cidade imensa, povoada de milhões de habitantes
espalhados numa área de cinco léguas, veio a ser em breve um
espantoso foco de impudicícia. (DUFOUR, 1885)

Sabemos que a sexualidade, em alguns pontos do Crescente Fértil, tais como


Babilônia, Suméria, Fenícia e Egito e Canaã, era considerada sagrada e ligada a divindades às
quais eram realizados cultos, que para a população, representavam a garantia de suas
colheitas, a reprodução de seus animais e de suas famílias. Sobre isso é interessante nos
atentarmos para a visão do autor que diz que “a promiscuidade do sexo é resultado inevitável
da barbárie, que não tem outra norma de conduta além do instinto” (1885).
Além da degeneração dos costumes, Dufour ainda discorre sobre a falta de
pudor das mulheres que participavam desses cultos e a falta de preocupação que os homens
(pais e maridos) tinham com a honra destas. Assim notamos que, o que para Dufour é
52

essencial no comportamento feminino em seu contexto (a castidade, a sexualidade controlada


e o pudor), é aquilo que ele busca nos povos analisados. E quando não encontra esses
elementos, frutos de sua época, ele faz uma crítica atribuindo conceitos de seu contexto a
costumes antigos.
Porém, pode ser que Dufour assuma essa postura apresentada no livro mais
inspirado pela sua leitura das fontes do que pelos valores morais e relações de gênero vigentes
em seu contexto. Ao dizer que a prostituição sagrada é um fato que pode parecer inverossímil
e monstruosa, Dufour deixa claro que concorda com Heródoto quando o mesmo diz que este
seria o costume mais vergonhoso dos babilônicos (mesmo que não caracterize a prática como
prostituição sagrada) e ainda confere a Heródoto a posição de testemunha ocular de tal
costume, o que confere ainda mais legitimidade à fonte e, consequentemente, à ideia de
Dufour sobre prostituição sagrada.

Heródoto vira por seus próprios olhos, ali pelo ano 440 antes de
Cristo, a prostituição sagrada das mulheres de Babilônia. É provável
até que, na sua qualidade de estrangeiro, o venerando pai da historia
chegasse a deitar algum dinheiro no regaço de uma formosa
babilônia. (DUFOUR, 1885)

Como Dufour também analisa o relato de Baruc a partir de sua visão cristã, é
possível que o seu conceito de prostituição também possa ter sido influenciado pelo conceito
de prostituição que aparece na Bíblia hebraica, que considera o sexo fora do casamento, ou
seja, ilícito, como prostituição.
Em estudos mais recentes, principalmente a partir da década de 1980, alguns
autores, se utilizando das fontes já citadas e mais as fontes originárias do Crescente Fértil,
fazem uma discussão diferente sobre a ideia de “prostituição sagrada”. Gerda Lerner é um
desses autores. A autora analisa o relato de Heródoto e algumas evidências materiais do
Crescente Fértil, como placas de argila com imagens e textos literários, e leis, como o Código
de Hammurabi e as Leis Assírias.
Lerner discute a ideia da “prostituição sagrada” como origem da prostituição
comum, porém a autora, logo no início, diz que tal prática nunca existiu e tampouco deu
origem à segunda.
Quando analisa o relato de Heródoto, Lerner diz que o historiador grego
pode ter confundido o ritual anual que envolvia todas as mulheres assírias com as atividades
das prostitutas, pois estas costumavam circular em volta do templo onde havia grande fluxo
53

de pessoas, portanto, de possíveis clientes. Mesmo com a presença das prostitutas em volta do
templo ele descreve apenas o ritual à deusa Milita. Portanto, é possível que Lerner esteja
justificando a leitura contemporânea de Heródoto, que vê a “prostituição sagrada” em seu
texto, e não a visão do próprio, pois o papel exercido pelas mulheres babilônicas do templo da
deusa da fertilidade é muito diferente do papel exercido pelas sacerdotisas das quais Lerner
fala em seu texto.
O trabalho de Lerner é influenciado pelos estudos da História das Mulheres,
e percebemos em sua escrita a ênfase que a autora confere à importância do papel feminino na
religião de alguns povos do Crescente Fértil.
Lerner discorre sobre a independência sexual e financeira das sacerdotisas en
e das naditum, mulheres de família real que se dedicavam ao culto de Shamash e
Inanna/Ishtar. Essas mulheres estavam em posição de prestígio e poder religioso e foram
colocadas no patamar de prostitutas sagradas por conta das traduções equivocada dos termos e
da leitura das fontes clássicas, que já traziam pré-conceitos acerca dos cultos de fertilidades
realizados na região do Crescente Fértil.
Percebemos a influência dos estudos sobre história das mulheres quando a
autora aponta hierarquização das mulheres nos códigos de lei usados como fonte. Segundo
sua análise das Leis Assírias e do Código de Hammurabi, as mulheres eram divididas entre
“respeitáveis” e “não respeitáveis”. As mulheres livres e as sacerdotisas tinham status muito
superior às prostitutas e escravas. As primeiras, segundo as Leis Assírias, deveriam usar véus,
enquanto as últimas eram proibidas de fazê-lo.
A autora ainda defende uma mudança na mentalidade dos assírios. Segundo
ela, em meados do terceiro milênio a.C. com as crescentes conquistas territoriais, a sociedade
vai se tornando mais militarizada e mais androcêntrica. As mulheres passam a ser vistas como
espólios de guerra tornando-se escravas em haréns e bordéis e as leis que a autora analisa são
redigidas com a intenção de classificar e controlar o comportamento feminino.
Porém é interessante notar que a partir do momento no qual a autora analisa
essas leis, a mesma começa a se referir às kulmashitum e qadishtum13, das quais ela pouco
fala por falta de evidências, como prostitutas do templo, pois essa é a expressão utilizada na
tradução do fragmento da lei que ela analisa. Ela diz que com a hierarquização promovida
pelas leis que pretendiam identificar as mulheres “castas” e as mulheres “públicas”, essas

13
Segundo Gerda Lerner, estas eram funcionárias do templo de menor status se comparadas às naditum. Porém a
autora diz que as evidências sobre elas são confusas, não especificam se elas participavam dos rituais de
fertilidade, mas dizem que elas poderiam ter sido amas de leite.
54

prostitutas do templo foram igualadas às prostitutas comuns. Ou seja, a autora aponta uma
desvalorização do papel das sacerdotisas a partir do período em que o comportamento das
mulheres começa a ser controlado pelos homens.
Esse pensamento de Lerner pode ser um tanto quanto confuso, pois mesmo
afirmando a não existência da “prostituição sagrada” e defendendo uma mudança na
mentalidade assíria que permitiu que o papel religioso das mulheres fosse desvalorizado, ao
analisar o trecho da lei assíria a mesma não atenta para qual termo foi utilizado no idioma
assírio para designar as prostitutas do templo e assim o utiliza no final do texto, entrando em
contradição com a sua afirmação no começo.
No que se refere à influência do contexto do autor em sua obra, o texto de G.
Lerner reflete a influência do pensamento feminista da autora, que trabalha com estudos
voltados para a história das mulheres, ou seja, a influência mais marcante que vemos em sua
obra é de seu contexto acadêmico, visto que a autora produziu trabalhos voltados para as
pesquisas na área de História das Mulheres. É importante destacar que na década de 1980, a
chamada História das Mulheres já sofria mais desdobramentos e passa a ser designada por
Gênero, ou seja, Lerner escreve no período no qual a categoria gênero está se consolidando.
Concordando com Lerner sobre a inexistência da “prostituição sagrada”,
temos o historiador Gonzalo Rubio. O autor traz uma importante discussão em seu artigo, que
aborda as más interpretações das fontes utilizadas para o desenvolvimento de trabalhos sobre
a prostituição sagrada.
Para Rubio, a ideia de “prostituição sagrada” surge do equívoco de traduções
das fontes, e, no caso da Bíblia hebraica, até mesmo interpretações mal intencionadas por
parte de seus autores. Assim as mulheres envolvidas com o sexo ritual acabaram por ser
colocadas no mesmo patamar de prostitutas comuns pelos autores dos relatos bíblicos, e mais
tarde, pelos leitores desses relatos e das fontes gregas.
Rubio destaca a importância do papel das mulheres em cultos que envolviam
a prática sexual como portadoras da bênção da fertilidade, e até mesmo representantes de uma
deusa. Para ele, assim como para Gerda Lerner, a posição de destaque dessas mulheres perdeu
força com a crescente presença dos homens dentro dos templos, embora nenhum dos dois
autores explique o aumento da presença masculina nas posições de poder da religião.
Portanto, mesmo não sendo da área de gênero, é possível perceber que, em seu trabalho,
Rubio acaba por analisar o papel feminino dentro da religião da Babilônia e de Canaã e
inclusive cita a possível presença de homens envolvidos nos cultos de fertilidade que
55

exerciam o papel feminino dentro do templo e o papel masculino fora do templo. Ou seja, é
possível encontrar elementos dos estudos das relações de gênero inseridos em seu texto.
A historiadora Stephanie Lynn Budin também afirma a não existência da
“prostituição sagrada” e trata essa ideia como um mito que surge de construções literárias
baseadas nos relatos de Heródoto e da Bíblia hebraica, e destaca que não há nenhuma
referência a essa prática nas fontes do Crescente Fértil. Budin também analisa fontes orientais,
como listas de funcionários dos templos e leis.
Para ela, a ideia de “prostituição sagrada” foi construída com base em poucos
textos e nas fontes já citadas, pois essas fontes apresentam a visão de elementos que são
exteriores à cultura dos povos da Mesopotâmia e da terra de Canaã, que foram lidas e
interpretadas como evidências da existência da prostituição sagrada. Assim, tanto os autores
das fontes, quanto seus leitores, segundo Budin, enxergaram prostituição onde havia apenas
uma manifestação religiosa na qual a sexualidade era parte importante dos cultos.
Os estudos de gênero possibilitam que os historiadores busquem novas
perspectivas em assuntos já discutidos em outros períodos, podendo levantar novas questões
sobre o mesmo. Budin desconstrói a ideia de prostituição sagrada, e critica a visão tradicional
que relaciona qualquer referência à mulheres que fariam estariam envolvidas com sexo
sagrado com prostituição.
Porém é importante destacar que, mesmo defendendo a ideia da existência de
importantes sacerdotisas ligadas aos cultos de fertilidade Gonzalo Rubio e Stephanie Lynn
Budin ainda questionam a própria existência da prática sexual nos cultos de fertilidade.
Budin quando fala dos autores que relacionam qualquer passagem relativa ao
sexo sagrado com prostituição. A mesma completa: “Exceto que nem mesmo o “sexo
sagrado” tenha realmente existido, e todos nós fomos deixados apenas com uma grande
quantidade de ar quente” (BUDIN, 2008: 8). Portanto ela nos leva a pensar se essa prática
sexual realmente existiu dentro dos templos como parte de um ritual mesmo que existam
algumas evidências materiais representando a relação sexual dentro de um culto, como placas
de argila e incrustações. (Anexo N°...)
Por sua vez, Rubio acrescenta em sua discussão sobre a confusão entre os
rituais de fertilidade e a prostituição sagrada: “Não há nada de estranho em um ritual religioso
no qual se realizava, ou tão somente simulava um ato sexual, que tenha se tornado uma forma
mercenária e degradada de liturgia...” (RUBIO, 1999:135). Quando o autor indica que os
rituais poderiam somente simular a prática sexual, ele também coloca em questão a existência
do ato sexual.
56

Podemos perceber que esse tema gera muitos questionamentos e divergência


entre os autores. Os autores mais recentes trazem discussões interessantes, porém, em alguns
aspectos as pesquisas ainda deixam várias lacunas, talvez por que se trata de um tema do qual
existam muitas referências e poucas evidências diretas. Existem muitos autores que
concordam com a existência da prostituição sagrada, e essa ideia só foi questionada
recentemente, portanto ainda há muitas questões a serem discutidas. Por exemplo: Se a
posição das sacerdotisas na Babilônia era privilegiada, porque houve essa mudança de
mentalidade citada por Lerner que fez com que esse importante papel das mulheres entrasse
em declínio e acabasse comparado à prostituição comum? E ainda, se existem algumas
evidências materiais, porque Budin e Rubio questionam a existência do sexo sagrado? Além
disso, devemos frisar que esses autores que questionam a existência da “prostituição sagrada”,
apontam que Heródoto, ao falar das mulheres do templo de Milita, estaria enxergando a
“prostituição sagrada” no costume, porém o próprio Heródoto não se refere a essa prática
anual como “prostituição sagrada”. O mesmo ainda afirma em seu relato que esse ritual é
obrigação de todas as mulheres da Babilônia, e não apenas sacerdotisas, mas foram essas
últimas que foram estigmatizadas como prostitutas sagradas segundo Lerner, Budin e Rubio.
Questões como essa são complexas e exigem uma análise profunda das
fontes orientais escritas e materiais. Porém, os autores que desconstroem essa visão
tradicional da “prostituição sagrada” trouxeram uma nova perspectiva de um fenômeno da
antiguidade que até então não havia sido questionado. Eles introduzem novas fontes e
analisam as já utilizadas. Assim sendo, há a possibilidade para que outras interpretações sejam
feitas a fim de iluminar as questões que ficam em aberto em seus próprios trabalhos.
57

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da premissa trazida por Keith Jenkins de que “não existem interpretações do
passado que dispensem pressupostos, e visto serem as interpretações do passado elaboradas
no presente” (JENKINS, 2004: 70), é possível refletir sobre como o contexto do historiador
direciona o seu olhar sobre o seu objeto e como as influências externas se colocam em sua
obra.
Podemos ver que, ao elaborar as suas respectivas ideias de “prostituição sagrada”, os
autores discutidos trazem em suas falas reflexos do contexto no qual escrevem. Pedro Dufour
olha para as mulheres do templo de Milita com os olhos de um pesquisador europeu cristão do
século XIX e desenvolve a sua obra a partir de concepções vindas de seu presente. Assim
como Gerda Lerner, historiadora feminista do fim do século XX, enxerga na ideia de
prostituição sagrada a dominação masculina sobre o elemento feminino. Essas diferentes
visões são construídas a partir da bagagem que o historiador já possui. Sua concepção do
passado é elaborada a partir de ideias edificadas no presente.
A leitura das fontes se mostra outro fator de extrema importância na construção da
ideia de “prostituição sagrada”. Podemos perceber que alguns autores encontram a prática da
“prostituição sagrada” mesmo onde ela não é mencionada diretamente, e encontram
prostitutas sagradas na figura de mulheres sacerdotisas.
Enquanto isso, outros autores preocupam-se em separar as sacerdotisas das
prostitutas e a prostituição do dever religioso, que são duas coisas distintas, pois a prática
sexual presente nos cultos de fertilidade, é um traço de grande importância nos rituais
dedicados às divindades de fertilidade das quais dependia a continuidade e prosperidade da
vida. Portanto, o sexo sagrado, mesmo que envolvesse pagamento (considerado oferenda),
nada tinha a ver com a prostituição.
As relações de gênero vigentes no contexto dos autores influenciam em como estes
tratam o assunto: apontando a prática, ligada à figura feminina, como imoral e incivilizada, ou
então, buscando compreender a importância do papel que as mulheres possuíam dentro das
religiões de alguns povos do Crescente Fértil.
Sendo assim, buscamos nesse trabalho expor um panorama geral das discussões em
torno da “prostituição sagrada” no Crescente Fértil e podemos pensar essa prática como uma
ideia construída pela historiografia do século XIX até meados do século XX, e que vem sendo
questionada recentemente.
58

Essas pesquisas, que trazem questões e análises importantes, ainda deixam algumas
lacunas que possibilitam o levantamento de questões que podem originar pesquisas
posteriores que ajudem a compreender melhor essa prática religiosa que tem sido objeto de
diversas interpretações.
59

REFERÊNCIAS

Textos Antigos:

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1994.


HERÓDOTO. História. Tradução do Grego, Introdução e Notas de Mário da Gama Kury.
Brasília/DF: Universidade de Brasília, 1985.
MEEKS, Wayne A. (gen. ed.) The HarperCollins Study Bible: New Revised Standard
Version, with the Apocraphal / Deuterocanonical books. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1993.

Bibliografia:

BASSERMAN, Lujo. História da Prostituição: Uma Interpretação Cultural. Rio De


Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 1968.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2ª. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
BRASIL Jaime. A Questão Sexual. 2.ª edição, Lisboa: Casa Editora Nunes de Carvalho, s/d.
BUDIN, Stephanie Lynn. The Myth of Sacred Prostitution in Antiquity. Cambridge
University Press, 2008.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo:
Contexto, 1990.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro/RJ: Forense Universitária
2002.
COELHO, Bernardo. Olhar os quadros que nos enquadram a visão: Perspectivas teóricas
sobre a prostituição e as prostitutas. CIES e-WORKING PAPER N.º 66/2009.
DUFOUR, Pedro. História da Prostituição Em Todos Os Povos Do Mundo Desde A Mais
Remota Antiguidade Até Aos Nossos Dias. Lisboa: Lisboa Empreza Litteraria Luso-
Brazileira, 1885.
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto. Belo Horizonte/MG: Editora UFMG, 1999.
HERING, Fabio Adriano. Heródoto e o Interesse no Contexto da Polis Ateniense. Phoînix,
Rio de Janeiro/RJ, ano 6, 2000. p. 156-164.
__________. Atenas e Némesis: Acerca da Lógica Investigativa e da Unidade Discursiva das
Histórias de Heródoto. Varia História, Belo Horizonte/MG, n 31, 2004. p. 209-219.
60

JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo/SP: Contexto, 2004.


LAMBERT, W. G. Ancient Near Eastern Studies: Mesopotâmia, in: ROGERSON, J. W.,
LIEU, Judith M. (eds.) The Oxford Handbook of Biblical Studies. Oxford: Oxford
University Press, 2006. p. 74-88.
LEME, Edson Holtz. Noites Ilícitas. 2ª edição, Londrina/PR: EDUEL, 2009.
LERNER, Gerda. The Origin of Prostitution in Ancient Mesopotamia. The University of
Chicago Press: Signs, Vol. 11, No. 2, 1986.
MEAD, Margaret. Male and female: a study of the sexes in a changing world. New York:
Morrow, 1949.
MURPHY, Emmett. A História dos Grandes Bordéis do Mundo. Proto Alegre, RS: Artes e
Ofícios Editora Ltda, 1983.
PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o Debate: O Uso da Categoria Gênero na pesquisa
Histórica. Revista História, vol. 24, São Paulo/SP, 2005.
RAGO, Margareth. Descobrindo Historicamente o Gênero. Cadernos Pagu, n°11,
Campinas/SP, 1998.
RUBIO, Gonzalo. ¿Vírgenes o Meretrices? La prostitución sagrada en el Oriente antiguo.
Gerión, Madrid, n°17. 1999. Disponível em:
http://www.ucm.es/BUCM/revistas/ghi/02130181/articulos/GERI9999110129A.PDF
Data de acesso: 02/11/2010.
SALLES, Catherine. Nos Submundos da Antiguidade. São Paulo: Brasiliense, 1982.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS:
Corpo e Cidadania, Recife, 1990.
SIQUEIRA, Tatiana Lima. Joan Scott e o papel da história na construção das relações de
gênero. Revista Artemis, vol. 8, 2008.
STUCKEY, Johanna H. Sacred Prostitutes. Matrifocus. Cross-Quarterly for the Goddess
Woman. Samhain v.5-1, 2005. Disponível em:
http://www.matrifocus.com/SAM05/spotlight.htm Data de acesso: 02/11/2010.
61

ANEXOS
62

ANEXO A

Imagem 1. Senhora entronizada, provavelmente uma alta sacerdotisa, encontrada no templo de Ishtar
em Mari no norte da Mesopotâmia. Estátua de alabastro. Datada de c.2600-2400 a.C. © S. Beaulieu, a
partir de Shepsut 1993: 33, fig. 6 (apud STUCKEY, 2005).

Imagem 2. "Mulher na janela", frequentemente interpretada com uma prostituta, sagrada ou não,
aguardando clientes, mas na verdade, muito provavelmente, a deusa mesopotâmica Kilili, uma
associação ou aspecto de Inanna/Ishtar. Uma das muitas incrustações em marfim do mesmo motivo
encontrada na Mesopotâmia, mas provavelmente feita na Fenícia/Canaã. Datada de cerca de 900 a.C.©
S. Beaulieu, a partir de Shepsut 1993: 115 (apud STUCKEY, 2005).
63

Imagem 3. Um grande número de imagens em terracota de amantes em camas encontrado na


Mesopotâmia. Frequentemente ligados ao ritual do "Sagrado Matrimônio", onde a mulher é vista como
uma "prostituta sagrada". Datado do terceiro milênio a.C. © S. Beaulieu, a partir de Teubel 1984: 117,
Placa 19 (apud STUCKEY, 2005).

Imagem 4. Dignatária canaaita com um cajado, possivelmente uma sacerdotisa ou rainha. Placa de
marfim esculpida em ambos os lados. Provavelmente um mobiliário de interior. Pupilas dos olhos
incrustadas com vidro. Megiddo, Israel. Datado cerca de 1350-1150 a.C.
© S. Beaulieu, a partir de Pritchard 1969: 38, fig. 125 (apud STUCKEY, 2005).

Você também pode gostar