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Londrina
2011
KEILA FERNANDES BATISTA
Londrina
2011
Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina.
CDU
930.2
KEILA FERNANDES BATISTA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Profª. Drª. Monica Selvatici (Orientadora)
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Prof. Dr. Julio Cssar Magalhães de Oliveira
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Profª. Drª Maria de Fátima da Cunha
Universidade Estadual de Londrina
A minha família: minha mãe Suzana, meu pai João e meu irmão Eliel, pelo
amor, carinho e apoio. Por nunca deixar de acreditar em mim e por serem parte importante
das minhas conquistas.
A Rodrigo Rabelo, pelo amor e compreensão, por estar ao meu lado nos
bons e maus momentos e por confiar na minha capacidade.
RESUMO
ABSTRACT
This work intends to discuss the construction of the idea of sacred prostitution in the Fertile
Crescent, parting from the analysis of historiographical works from the 19th and 20th centuries
and beginnings of the 21st century. We will examine how gender relations and the authors’
historical context influences the reading and interpretation of the sources, as well as the
development of their work, thus contributing to the construction of each author’s idea.
Key words: Sacred prostitution; Fertile Crescent; gender relations; historical context;
scholarship.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 14
E INÍCIO DO XXI..................................................................................................................... 40
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 59
ANEXOS ................................................................................................................................ 61
14
INTRODUÇÃO
91). Uma vez inseridas no espaço acadêmico, as mulheres trouxeram consigo suas dúvidas e
questões, pois elas se buscavam ao longo da história, fazendo assim surgir narrativas e
personagens até então silenciados. Fazia-se então “a história das mulheres”, na qual, para
muitos pensadores, a categoria mulher era análoga às categorias de classe e raça, pois buscava
um redirecionamento e redefinição das pesquisas históricas, incluindo os personagens
oprimidos e analisando a natureza de sua opressão. Mas a “história das mulheres” era
rejeitada por muitos pesquisadores, e estava separada da “história dos homens”. Os
historiadores da política, da economia, das guerras não consideravam a “história das
mulheres” como parte do resto da história, excluindo-a, portanto.
Com o tempo e com as pesquisas essa história foi sofrendo desdobramentos,
trazidos por questões pertinentes à construção do papel das mulheres em diferentes
sociedades, e sobre quem era considerada mulher dentro dessas sociedades, buscando então
incluir as mulheres na história, mas sem vitimá-las ou exaltá-las.
A partir da década de 1980, o termo “história das mulheres” dá lugar à noção
de gênero, categoria de análise mais refinada. Segundo Joan Scott, historiadora feminista
americana, o uso mais recente do termo gênero surgiu com as feministas americanas que
rejeitavam o determinismo biológico existente nos termos “sexo” e “diferenciação sexual”, e
insistiam no caráter social que, para elas, fundamentava as distinções sexuais. Em sua obra
“Gênero: Uma categoria útil para a Análise Histórica”, Scott discute o lugar da categoria
gênero na historiografia e fala sobre as principais abordagens na análise de gênero feitas por
intelectuais feministas.
As teóricas que buscam a origem da legitimação do patriarcado apontam a
reprodução como justificativa para a subordinação das mulheres. Ainda sobre o
patriarcalismo, Scott cita a teórica feminista Catherine Mackinnon que, fazendo uma analogia
com Marx, diz que a subordinação ocorre por conta da própria sexualidade da mulher: “A
sexualidade é para o feminino o que o trabalho é para o marxismo: o que nos pertence mais e,
no entanto, nos é mais alienado” (MACKINNON apud SCOTT, 1990: 5). Sobre a visão das
autoras marxistas, em comparação com as teóricas do patriarcalismo, Scott diz ser uma visão
mais histórica, porém ainda limitada, pois pretende encontrar uma explicação simplesmente
material para o gênero.
Sobre as escolas feministas anglo-americana e francesa, Joan Scott explica
que estas foram influenciadas pela reinterpretação da obre de Freud por Lacan, que introduziu
o estudo da linguagem na teoria psicanalítica. Em termos lingüísticos, a autora afirma que a
teoria das relações objetais de Freud é literalista e reduz a produção da identidade de gênero e
19
seria ainda demasiado amplo e vago; pois dentro da categoria “mulher” existe uma vasta
diversidade de “mulheres”: mulheres livres, escravas, jovens, velhas, sacerdotisas, esposas,
mães, filhas, virgens, prostitutas; e, dentro de cada grupo, outros se desdobram: a ideia de
“mulher” varia de acordo com a cultura, sociedade e crenças de cada comunidade. Assim
sendo, centrarei a análise sobre as chamadas “prostitutas sagradas”, e buscarei formas de
perceber como o papel dessas mulheres foi tratado pela produção historiográfica se, para
os diferentes autores, elas eram prostitutas cultuais ou uma classe de sacerdotisas que
desempenhava deveres sexuais em prol de sua crença, ou ainda, se ao longo do tempo, o papel
religioso desempenhado por essas mulheres se modificou.
Com a produção existente sobre essas mulheres, que demonstra ampla
variedade de interpretações entre os historiadores por conta de seu ofício, e com os
direcionamentos dados pelo estudo de gênero, será possível analisar como essas relações estão
inseridas na construção da visão de uma “prostituta sagrada”, e como o papel dessas mulheres
é pensado de acordo com o contexto no qual estão inseridos os historiadores que sobre elas
escrevem.
discutida, sua presença marcante no cotidiano das sociedades não é comentada, e permanece
ainda marginalizada, criticada e em alguns lugares é até criminalizada.
O sexo pago existe à margem do convívio social e as pessoas que o praticam
são consideradas contrárias ao modelo moral estabelecido pela sociedade dominante, tendo
seus lugares estabelecidos por aqueles que estão integrados a essa sociedade. Porém, é
necessário pensarmos como as prostitutas conduzem suas vidas no limiar entre o meio social e
a marginalidade, como a identidade dessas mulheres é construída por elas mesmas e por
aqueles que as marginalizam. Essa perspectiva a respeito da prostituição aparece em algumas
obras historiográficas do século XIX e início do século XX. Podemos perceber na escrita de
alguns historiadores juízos de valor que são revelados ao longo da obra, que compreendem a
prostituição como prática desviante e proibida.
Sobre a prática da prostituição, o historiador português Pedro Dufour diz que
a prostituição e as prostitutas existem e existiram em todos os tempos e todos os povos do
mundo e que essa prática é “uma das chagas mais vergonhosas da humanidade” (DUFOUR,
1885), mas reconhece a presença da mesma dentro da sociedade, inclusive com a proteção da
lei. Sua obra tem como foco mostrar a degradação que a prostituição proporcionou ao longo
dos séculos, para prevenir aos leitores, ou seja, escreve-se a história da prostituição para
mostrar como a prática prejudica a sociedade e, por isso, deve ser evitada. Assim, o
pensamento de Dufour reflete a mentalidade conservadora da sociedade portuguesa no século
XIX, que vê a prostituição como um mal para a sociedade. Para ele o pensamento cristão, ao
lado da filosofia, poderia ser um corretivo para amenizar os seus danos.
De acordo com o autor, na medida em que as civilizações desenvolvessem os
valores morais a prostituição perderia sua força até sumir completamente e, como ela tenderia
a desaparecer, seria necessário escrever a sua história, assim como foi escrita a história de
tantos outros costumes da humanidade que desapareceram. O texto do autor também traz uma
visão acusadora da mulher, colocando-a como culpada pela disseminação desse
comportamento nocivo, pois, ao argumentar com o discurso de Rabuteaux citado por Dufour,
que trata a prostituição como uma forma de escravidão da mulher, diz: “a prostituição
apresenta-se-nos mais venal do que servil, porque é sempre voluntária e livre” (DUFOUR,
1885). E essa prática é livre porque “em tempo algum a mulher foi escrava a ponto de não ser
dona do seu corpo, já no lar doméstico, já no santuário do templo, já nos prostíbulos das
cidades” (1885). Com isso, podemos pensar que Robert Dufour associa a prostituição somente
às mulheres, e que elas são ou se tornam prostitutas sempre por vontade própria, sem dar
24
atenção à exploração sexual de mulheres pobres e escravas ou aos vários motivos pelos quais
as mulheres decidem se prostituir.
A imagem da prostituta é assim construída à margem da sociedade, por
agentes, em sua maioria, agentes masculinos, que estão inseridos nessa sociedade. A
mentalidade guiada pela moral cristã e pelos valores masculinos responsabiliza a mulher pela
disseminação daquela prática: a mulher que nega o seu papel de esposa e mãe, ou seja, que
não está ligada à reclusão de seu lar e à submissão à autoridade do homem é considerada
responsável por um comportamento contrário àquele que deveria apresentar, e como no
contexto desse autor a castidade da mulher é algo valioso e que deve ser preservado, torna-se
para ele mais compreensível um homem procurar uma prostituta, para preservar as mulheres
ditas de família, do que uma mulher se tornar uma prostituta.
Analisando a fala dos autores das obras sobre a prostituição, é necessário
atentar para a definição que cada um apresenta sobre o que seja prostituição, pois às vezes
podemos ficar sugestionados a pensar que esses pensadores tenham a mesma ideia que nós
sobre o significado dessa prática, e com isso, tornar nossa interpretação anacrônica. É possível
perceber que P. Dufour pensa a prostituição como o ato de trocar favores sexuais por dinheiro
ou bens, e que esse costume das mulheres se iniciou desde os tempos primitivos, quando elas
ofereciam seus corpos em troca de parte da caça ou pesca dos homens. Esse hábito evoluiu,
chegando ao lar, no caso da prostituição hospitaleira que discutiremos mais adiante, e depois
aos templos, para posteriormente tornar-se um exercício legal, mas que já começava a ser
distanciado do convívio social.
Já Lujo Bassermann, em sua obra “História da Prostituição: uma
Interpretação Cultural”, chama a prostituição de “amor venal”, que seria o ato de vender sexo.
Para ele, diferentemente de Dufour, a prostituição hospitaleira e aquela que ocorria nos
templos não possuem nenhum vínculo com o presente, apesar de considerá-las como
constituindo os primórdios da prática da prostituição. Em sua obra, Bassermann não se
preocupa em apontar os desvios cometidos pelos praticantes do “amor venal”, pois no início
do livro deixa claro que o aceita “como parte integrante da vida burguesa da humanidade”
(BASSERMANN, 1968: 4). Assim, ele tenta reconstruir a história da prostituição como
integrante da vida social, mesmo que por vezes excluída do seio da sociedade.
Até então, a produção historiográfica não dava voz às mulheres, muito
menos às mulheres prostitutas; a imagem destas era moldada de acordo com o que pensava
uma parcela (predominantemente masculina) da sociedade, aquela que possuía o poder de
estabelecer os limites entre o lícito e o ilícito e que, ao escrever a história da prostituição e das
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prostitutas, distinguia, segundo sua própria concepção, o moral do imoral. Retomaremos esses
autores mais adiante para discutir a construção da ideia da “prostituição sagrada” em
sociedades do antigo Crescente Fértil (a antiga Mesopotâmia e a região de Canaã), e como
podemos perceber as relações de gênero presentes nas obras de tais autores.
Para o sociólogo Bernardo Coelho, a prostituição é um fenômeno social, e “a
prostituta é uma personagem presente no cotidiano” (COELHO, s/d: 5); mas, ainda assim, é
percebida como pertencente a uma esfera social diferente da dominante. A sociedade exclui a
prostituta pelo seu comportamento considerado imoral e, sendo marginalizada, para a
sociedade a mulher prostituta não tem identidade senão esta: a de prostituta. Ela é, portanto,
definida (e estigmatizada) por sua mal vista atividade. Porém, podemos pensar que também
ela mesma, enquanto mulher constrói-se de alguma forma, constituindo uma identidade (de
gênero). Segundo este autor, as correntes feministas, ao longo dos anos de pesquisas e
reflexões sobre a prostituição, elaboraram teorias sobre a função social desta atividade.
Inicialmente a prostituição era vista como produto das necessidades sexuais dos homens,
fazendo parte do sistema de dominação masculino, e a prostituta seria integrada à sociedade
como dona de um “comportamento desviante” que contribuiria para esse sistema de
dominação. Coelho diz não existir tal comportamento desviante, e afirma que o que existe é o
julgamento que alguns atores sociais, munidos de um poder simbólico que os permite agir
assim, sobre aqueles que não possuem tal poder.
Em um segundo momento, a análise feminista se concentra na dependência
econômica da mulher como uma das grandes causas para a entrada na prostituição, ainda
sendo vítima da opressão masculina. Mas essa ideia não traz uma nova perspectiva para as
pesquisas sobre a prostituição, pois ainda explora os mesmos argumentos da ideia anterior
ou seja, mantém o foco na subordinação feminina. Para Bernardo Coelho, essas teorias
feministas não levam em consideração que o gênero feminino como um todo fora vítima de
violência simbólica durante o processo de socialização (s/d: 17). Ao pensar nas prostitutas
como únicas vítimas da violência de gênero, a perspectiva feminista reafirma a velha
dualidade entre a mulher “de família” e a mulher imoral, ainda mantendo, assim, as prostitutas
à margem da sociedade.
É possível vislumbrar as relações de gênero na prostituição quando pensamos
na hierarquização das mulheres na sociedade como um mecanismo de subordinação, onde
estas são divididas em, por um lado, as mulheres “respeitáveis”, integradas na sociedade por
serem o modelo ideal de subordinação ao sexo masculino, e por outro as “imorais” (as
prostitutas). Segundo Coelho, esta última categoria representa uma ideia de libertação sexual
26
feminina, mas que não deixa de corresponder a um modelo de subordinação, pois essa
disponibilidade sexual implica a dominação e exploração sexual da mulher pelo homem.
Segundo o autor, ao dar atenção à voz das prostitutas, a perspectiva
feminista, embasada no pós-estruturalismo, começa a enxergar a prostituição como trabalho e
forma de emancipação, pois a mulher toma consciência e controle de seu corpo. E tomando
consciência de seus corpos, essas mulheres passam a reconhecer seu papel e sua importância
na sociedade e, mesmo quando a sociedade tenta marginalizá-las, elas, que constroem sua
própria identidade, têm a capacidade de se reconhecer, organizar-se e reivindicar seu lugar
dentro da ordem social. As relações de poder entre prostituta e cliente começam a se
modificar, transformando-se em uma relação de troca.
Por muito tempo houve silêncio e/ou distanciamento quanto a questões
referentes ao lugar dos envolvidos com a prática do amor ilícito. Sempre se falou muito dele,
mas de forma velada. A preocupação em se fazer a história da prostituição sempre existiu;
mas integrar essa história ao cotidiano, à história do resto da sociedade, não era o objetivo, até
meados do século XX. O que se pretendia era apresentar um discurso moralizante, expor os
perigos dessa prática e daqueles que com ela se envolviam. Buscar as relações entre
prostitutas e sociedade e a importância dessas relações, e pensar a construção da identidade da
mulher prostituta, sem ter como base os discursos morais e marginalizantes, é um desafio
recente.
É importante entender como a prostituição está inserida na historiografia e
como os estudos de gênero têm contribuído para a escrita de uma história da prostituição.
Entender as contribuições da categoria gênero, assim como as diversas noções de prostituição
é necessário para pensar como a ideia de “prostituição sagrada” foi sendo construída sobre o
conceito de prostituição que cada autor utiliza e como as relações de gênero estão inseridas
em seus trabalhos. A partir disso é possível refletir sobre como os autores abordam a questão
da existência da “prostituição sagrada” (afirmando-a ou questionando-a), e como eles
classificam as mulheres que desempenhariam a função de “prostitutas sagradas” ou
sacerdotisas.
27
fosse criticado por alguns historiadores gregos, como Tucídides, por narrar fatos que não
presenciou, no caso das Guerras Médicas, e por escrever não somente sobre o povo grego,
mas também sobre os povos estrangeiros. Ser testemunha daquilo que é descrito é a condição
mais importante do historiador grego da antiguidade, por isso Tucídides critica Heródoto
quando este tenta relatar fatos históricos dos quais não foi testemunha ocular.
Para François Hartog, a intenção de Heródoto ao descrever as Guerras
Médicas (as quais não assistiu) e a Guerra do Peloponeso (da qual viu o início) era evitar que
aquilo que os homens fizeram se apagasse com o tempo e cessasse de ser contado. E ao
escrever sobre essas guerras, além de elaborar uma representação do passado próximo grego,
Heródoto, ao falar sobre os gregos e os bárbaros, também constrói uma representação do
mundo baseada na mentalidade imperialista ateniense (HARTOG, 1980: 137).
Embora o historiador grego antigo fosse originário de Halicarnasso, há
também na construção da narrativa de Heródoto a influência do pensamento ateniense. É
importante estar atento a essa influência, pois ela acaba por direcionar a forma como
Heródoto descreve as vitórias e o povo grego e como ele retrata os bárbaros e seus costumes.
Um dos contatos que Heródoto teve com a pólis ateniense, segundo Fábio Adriano Hering, foi
no período do apogeu da Atenas democrática de Péricles, período no qual sua estadia teria se
prolongado nessa cidade. Segundo Hering “Atenas teria dominado a vida de Heródoto como
dominara, com mão imperial, praticamente todo o mundo grego” (HERING, 2000: 158).
Percebemos isso na obra de Heródoto quando ele descreve as grandes vitórias de Atenas e, às
vezes, quando trata com certa estranheza os povos e os costumes bárbaros. Porém, para
Hering, a visão etnocêntrica pressuposta nos relatos de Heródoto é mais presente nas leituras
modernas de sua obra.
Heródoto julga o costume como vergonhoso, pois desenvolve sua narrativa a partir de um
contexto – o ateniense – no qual as mulheres estavam ligadas ao âmbito doméstico e sua
sexualidade sob domínio do pai ou marido. Mesmo assim, Heródoto não se refere à prática
descrita por ele como “prostituição sagrada”. Mas, podemos perceber que autores como Pedro
Dufour vêem neste relato a afirmação da existência da prostituição sagrada, mesmo quando a
mesma não é referida por Heródoto.
Fontes que também são muito utilizadas para dar embasamento à ideia de
“prostituição sagrada” na terra de Canaã são alguns dos fragmentos da Bíblia Hebraica.
Produzidos em períodos e contexto diferentes dos relatos de Heródoto, os textos bíblicos
tiveram papel importante na construção da ideia da “prostituição sagrada”, principalmente
para os autores dos séculos XIX e XX que são influenciados pelos valores morais do
cristianismo. Além disso, assim como o relato de Heródoto, os textos bíblicos eram
considerados portadores de uma verdade incontestável.
Em certos momentos os textos da Bíblia hebraica fazem referência à prática
da “prostituição sagrada”, ou às prostitutas (e em alguns trechos, aos prostitutos) do templo.
Alguns dos livros mais antigos da Bíblia hebraica que fazem referência a esse costume ou aos
seus praticantes são datados em seu formato final entre os séculos VII e VI a.C., sobretudo do
tempo do exílio da Babilônia.
Um relato importante que aparece no livro de Gênesis é o que conta sobre
Tamar e seu sogro Judá. No relato Tamar que havia se casado com o filho mais velho de Judá,
ficou viúva de dois de seus filhos antes de engravidar. Judá então promete a Tamar que a dará
como esposa a seu filho mais novo assim que este tiver idade para casar. Porém Judá não
cumpre a promessa. Então Tamar se disfarça de “prostituta cultual” para atrair o sogro e assim
gerar um filho.
1
A palavra usada pela Bíblia Hebraica para se referir aos prostitutos é “cão” (qedesh).
32
2
Nas notas de rodapé da Harper Collins Study Bible (NRSV) é dito que a palavra para prostituta do templo é
kedesha que significa ‘mulher consagrada’. Os tradutores do texto bíblico para o inglês sabem que kedesha é
mulher consagrada, mas continuam traduzindo-o como ‘prostituta do templo’. Isso parece ser um sinal de que
eles partilham das conclusões da historiografia que afirma a existência da prostituição sagrada e enxerga as
sacerdotisas como prostitutas.
3
Referências aos prostitutos do templo podem ser encontradas em: 1 Reis 15:12, 1 Reis 22:46 e 2 Reis 23:7.
33
Como disse Michel de Certeau: “uma leitura do passado, por mais controlada
que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente”
(Certeau, 1975: 34). A partir desta afirmação, pretendo desenvolver a análise de alguns
trabalhos historiográficos a respeito da “prostituição sagrada” levando em consideração como
o contexto no qual os autores estão inseridos exerce influência sobre sua escrita, visto que o
historiador não pode se desvencilhar do presente quando escreve acerca do passado, pois sua
escrita é guiada por sua interpretação do passado que é construída no presente.
Ao analisar o olhar desses autores sobre a prática especificamente feminina
da “prostituição sagrada” na antiguidade, será possível perceber como as relações de gênero
se colocam nesses trabalhos. Para isso é importante refletir não só sobre os papéis femininos e
masculinos no passado, mas também a ligação entre a história do passado e as práticas
históricas atuais. A visão do papel feminino presente no contexto dos historiadores que
escrevem sobre a “prostituição sagrada”, tem reflexos sobre como eles enxergam o papel
feminino em outros períodos.
Segundo Joan Scott, a história é responsável pela produção das diferenças
sexuais, pois uma narrativa nunca é neutra, e o gênero, que é construção cultural das
diferenças sexuais, pode ser utilizado para analisar a construção e a consolidação de um
poder. Aqui, ele será utilizado para analisar como a ideia de prostituição sagrada foi
construída pela historiografia.
Diferentes autores trazem diferentes interpretações sobre essa prática.
Discute-se a sua própria existência, função religiosa, social e econômica; e são apresentadas
diferentes versões de rituais e costumes religiosos que foram associados à prostituição
sagrada.
Como já foi citado, as fontes mais utilizadas são trechos da Bíblia Hebraica e
os relatos de Heródoto. Estas fontes se tornam a base para a argumentação dos autores que
defendem a existência da prostituição sagrada como instituição presente na sociedade
mesopotâmica e na terra de Canaã. Autores que escrevem mais recentemente e trazem uma
discussão diferente, que tenta desconstruir essa prática, se utilizam dessas mesmas fontes, mas
também analisam fontes cuneiformes, como placas de argila e listas de funcionários de
templos, leis, hinos e poemas da antiga Mesopotâmia, por exemplo.
35
4
Segundo Catherine Salles, Dufour “deforma” o nome da deusa babilônia Belit-Ishtar e o transforma em Milita
(SALLES, 1982: 34).
37
exposição, a veracidade dos fatos e com a condição de testemunha ocular, portanto os autores
gregos, que escreveram sobre aquilo que presenciaram, eram muito valorizados e suas obras
consideradas fontes de relatos históricos verídicos.
O livro de Baruc capítulo 6 (Carta de Jeremias), que também é citado pelo
autor, ganha igualmente o peso de uma fonte inquestionável. Este, ao descrever as costumes e
cultos de povos idólatras e seus “falsos deuses”, aborda um costume similar ao costume
babilônico narrado por Heródoto no século V a.C. Como a obra que está sendo discutida é de
um autor cristão, a fonte bíblica se mostra de grande importância, pois além de confirmar a
verdade histórica, apresenta o ponto de vista religioso, que compõe o contexto no qual o autor
vive e, assim, molda a sua escrita.
Vemos que a leitura que P. Dufour faz das fontes é dirigida pelos valores
morais da sociedade na qual ele vivia. O conservadorismo da sociedade portuguesa e os
valores cristãos condenavam a prática da prostituição, assim como atribuíam a
responsabilidade dessa prática às mulheres. Aqui podemos analisar como as relações de
gênero se colocam em sua obra: a liberdade sexual e a própria sexualidade feminina, no
contexto do autor, eram reprimidas e vistas como algo condenável pela sociedade. Exaltava-se
a castidade e o pudor da mulher e o seu papel social se limitava ao âmbito doméstico como
esposa e mãe.
Ao observar o papel das mulheres e como a prostituição é vista em sua
sociedade, de acordo com os códigos e valores morais fundamentados pelo cristianismo, que
são colocados pela parcela dominante da sociedade, que é masculina, o autor reflete na sua
escrita sobre o passado aquilo que está presente em seu contexto. Isso pode ser percebido ao
destacarmos que Heródoto, em nenhum momento em seu relato, caracteriza o costume das
mulheres babilônicas como prostituição, e nem estas como prostitutas. Ou seja, ao observar
como as mulheres da Babilônia, obrigadas pelo dever religioso, ofereciam seu corpo a um
estranho em nome de uma deusa “pagã”, o autor aponta essa atitude como sendo traço da
imoralidade e ignorância dos povos da antiguidade, pois de acordo com o pensamento vigente
no seu contexto, a mulher deveria ser casta, para isso seu corpo e sua sexualidade eram
controlados pela família e pela Igreja. O fato de que o corpo fosse uma oferenda a uma deusa
pagã também tem um peso muito grande dentro do contexto no qual Dufour escreve, pois em
uma sociedade de tradição cristã, o culto a outros deuses assume um aspecto ilícito e
marginal.
Pedro Dufour tenta, por meio de sua leitura de fontes, explicar o que seria a
prostituição sagrada. Ao analisar sua obra, percebe-se que não há muita distinção entre a
38
5
Esse é o termo em grego para funcionário do templo, porém é associado à imagem da prostituta sagrada,
provavelmente por conta das prostitutas escravas dos templos de Afrodite.
39
Emmet Murphy escreve em 1983 seu livro A História dos grandes Bordéis
do Mundo. Ele se utiliza igualmente do relato de Heródoto para falar da prática da
prostituição sagrada. Ele também cita ligeiramente a personagem bíblica Rahab, apontando-a
como uma prostituta ligada à religião (MURPHY, 1983: 14).
O autor fala da existência do kakun, templo dedicado à deusa suméria da
fertilidade Ishtar/Inanna. Segundo ele, esse templo abrigava três classes de mulheres: a
primeira desempenhava as funções nos ritos sexuais do templo; as mulheres da segunda classe
se movimentavam por toda a área do santuário e recebiam os visitantes interessados e a
terceira classe, que era a mais baixa, segundo Murphy, tinha mais liberdade para buscar
clientes nas ruas e tinha má reputação (1983: 15). Para esse autor “devemos um dos melhores
relatos da prostituição sagrada ao historiador grego Heródoto” (1983: 15) quando o mesmo
descreve o dever que as mulheres babilônicas tinham com a deusa Milita. Porém, mesmo
conferindo à obra de Heródoto o mesmo peso que Dufour, percebe-se que na obra de E.
Murphy não há a intenção moralizante que vemos em Dufour. O que o autor pretende é
apenas traçar um histórico da prostituição desde seus primórdios, a partir das fontes
disponíveis, e pensar sobre seu lugar na sociedade, portanto não se aprofunda na discussão
sobre a “prostituição sagrada”.
Um autor recente que concorda com a existência da prostituição sagrada
baseada nos relatos de Heródoto é Edson Holtz Leme. Porém, em seu livro Noites Ilícitas, o
autor aponta a “prostituição sagrada” como um ofício religioso que dava prestígio às
sacerdotisas que o praticavam, e que decai quando os homens começam a assumir lugares
importantes dentro dos templos.
XX E INÍCIO DO XXI
6
En priestesses. (LERNER, 1986: 239)
41
autora analisa com muito cuidado as fontes mesopotâmicas, e a partir delas ela aponta a
importância do papel feminino na religião, e como este foi sendo, aos poucos, suprimido pelo
patriarcalismo.
Concordando com a não existência da prática da “prostituição sagrada” a
historiadora britânica Stephanie Lynn Budin, em seu livro The Myth of Sacred Prostitution in
Antiquity, afirma que a “prostituição sagrada” nunca existiu, e procura mostrar as evidências
que levam a essa conclusão. Também oferece novas interpretações para o significado desse
mito dentro de seu contexto antigo.
Para a autora “prostituição sagrada” corresponde ao ato de vender o corpo
para propósitos sexuais, e parte (senão o todo) do dinheiro recebido pertence à(s)
divindades(s) (BUDIN, 2008: 3). Ela fala de três tipos separados de prostituição presentes nas
fontes que analisa (Heródoto e a Bíblia hebraica): a prostituição somente uma vez na vida
e/ou venda da virgindade em honra de uma deusa; prostituição de mulheres (e talvez
homens)7 profissionais que eram propriedades do templo e a prostituição temporária antes do
casamento, ou em alguns rituais (2008: 3).
Mesmo existindo referências à “prostituição sagrada” nas fontes clássicas,
Budin afirma que essa prática nunca existiu, pois as definições das fontes são muito abstratas.
Assim em sua obra, ela tenta esboçar como, ao longo dos séculos, a imagem da “prostituição
sagrada”, relacionada com os rituais de fertilidade, foi sendo construída pelas fontes clássicas
e por seus leitores.
Algumas “evidências” arqueológicas, como placas de argila da Mesopotâmia
que apresentam cenas de sexo, contribuíram para a construção da ideia de “prostituição
sagrada” oferecendo a ilusão da confirmação daquilo que diziam as fontes clássicas. Tanto
que a autora diz que a “prostituição sagrada” nada mais é que uma construção literária. Assim
a autora faz uma análise dos termos utilizados nas fontes clássicas e nas fontes orientais, pois
“muitas palavras identificadas como “prostituta sagrada” no antigo idioma do Oriente
Próximo (sumério, acadiano, ugarítico e hebraico) têm uma identificação incerta” (BUDIN,
2008: 5)8. Enquanto existem essas incertezas quanto aos termos utilizados nas fontes
orientais, os termos para prostituição que aparecem nas fontes clássicas redigidas em grego
são bem definidos. Por exemplo: é certo que em grego pornê se refere a uma prostituta e
hetaerae uma cortesã de alta classe.
7
Nas listas de funcionários do templo que a autora utiliza como fonte, são encontrados cargos ocupados por
homens nos cultos de Inanna/Ishtar. Esses homens eram músicos e/ou atores, utilizavam indumentária feminina e
poderiam participar dos rituais que envolviam a prática sexual desempenhando o mesmo papel das sacerdotisas.
8
Tradução da autora.
44
Outro autor que fala das confusões quanto aos termos para “prostituição
sagrada” é o historiador Gonzalo Rubio. Para ele existe uma confusão quanto aos termos
utilizados para designar as “prostitutas sagradas”, causada por equívocos nas traduções. Em
seu artigo ¿Virgenes o Meretices? La Prostituición Sagrada em El Oriente Antiguo ele diz
que a sacerdotisa que foi apontada como prostituta sagrada é a naditu (literalmente “deixada
em pousio”9 - sumério lukur) e a qadistu10 (sagrada ou consagrada. Sumério nu-gig – a que é
tabu, a sagrada) (RUBIO, 1999: 133).
Segundo o autor as naditum, principalmente as do deus Shamash, eram
mulheres de alta classe. Poderiam se casar, mas não poderiam ter filhos (o marido poderia
desposar uma mulher de classe inferior para ter um herdeiro), elas desempenhavam papel
importante em transações comerciais, possuíam escravos e gozavam de independência
financeira. Rubio diz que, ao examinar o Código de Hammurabi, podemos perceber que essas
sacerdotisas tinham grande prestígio e status religioso. Para ele a única evidência que aponta a
naditu como prostituta é oriunda de listas léxicas, que são mais tardias e pouco confiáveis
(1999: 133).
Para o autor, a presença da mulher na esfera pública implica a associação
com a prostituição por parte de alguns estudiosos da prostituição sagrada.
9
Relação entre a terra que é deixada inculta, em pousio, com o fato de que a naditu não poderia ter filhos.
10
Correspondente ao hebraico qedesa ou kedeshah – sagrada.
11
Incrustação em marfim de uma mulher em uma janela, provavelmente feita em Canaã, frequentemente
interpretada com uma prostituta, sagrada ou não, aguardando clientes. Ver imagem 2 (anexo).
12
Tradução da autora.
46
importante ritual hierogâmico realizado como parte das comemorações sumérias no terceiro e
segundo milênio a.C. no qual o rei representava Dummuzi e uma sacerdotisa (provavelmente
uma naditu) representava a deusa Inanna, segundo o autor, é a única evidência aberta da
prática sexual dentro do culto mesopotâmico, e talvez, esse rito tenha sobrevivido em textos
do primeiro milênio a.C. que descrevem rituais reais ou canções de casamento de Nabû e
Tasmetu na Assíria e Nabû e Nana na Babilônia (1999: 135).
Para G. Rubio é normal que os rituais nos quais há a prática ou a
simulação do ato sexual acabassem se tornando uma forma mercenária de liturgia que visasse
lucros em uma determinada época. No caso dos rituais hierogâmicos, isso aconteceu no
primeiro milênio a.C., quando, segundo Rubio, a sexualidade deixa de ser considerada
sagrada e a sociedade se torna mais “masculinizada”. Assim, as naditum tornam-se uma
ameaça pela sua independência sexual e financeira que desafia o status quo de uma sociedade
rígida.
Sobre os relatos gregos e os da Bíblia Hebraica, o autor diz que os mesmos
são pré- concebidos e não levam em consideração os termos usados para indicar as
sacerdotisas que são relacionadas à prostituição sagrada. Por exemplo: as palavras fenícia e
hebraica para moça são entendidas ao mesmo tempo como virgem e prostituta.
A qedesha citada na Bíblia Hebraica é igualada, por muitas vezes, a uma
prostituta (zonah), como no trecho sobre Tamar. Rubio diz que a prostituição da qedesha pode
ser um exemplo de uma má interpretação, ou uma interpretação má intencionada dos cultos
populares por parte da religião patriarcal de Jerusalém. Ou seja, a ideia de relacionar as
sacerdotisas de Inanna/Ishtar ou Shamash com prostitutas sagradas pode vir desde os tempos
bíblicos, pois os seguidores de Iahweh condenavam os cultos sexuais e o culto a outros
deuses.
Seguindo esse pensamento de Gonzalo Rubio, podemos supor que talvez a
ideia de prostituição sagrada não seja fruto do pensamento masculinizado do século XIX, mas
tenha sido construída a partir do pensamento religioso patriarcal dos hebreus.
O autor também menciona a suposta prostituição masculina. Os homens que
estariam envolvidos com essa prática seriam eunucos, de aparência afeminada, ligados ao
culto de Ishtar que realizaram as tarefas femininas. Porém não há nenhuma fonte
mesopotâmica que associe a figura do eunuco com a prostituição dentro ou fora do templo.
Eles aparecem nas listas de funcionários do templo como artistas que apresentam números
musicais e acrobacias com facas.
47
que Dufour, analisam o fenômeno de outra perspectiva. Eles procuram refletir sobre a prática
analisando o contexto religioso no qual ela se encaixa. Catherine Salles e Emmet Murphy
falam sobre a prostituição sagrada como parte de rituais de fertilidade comuns na região do
antigo Crescente Fértil. Ambos analisam o relato de Heródoto, porém enquanto Salles destaca
que a narrativa é fruto do olhar escandalizado do historiador grego, Murphy atribui a
Heródoto o melhor relato sobre a prostituição sagrada.
O autor Edson Holtz Leme defende a importância sacro-mercantil da prática
na Babilônia que teria importância econômica. Também utilizando o relato de Heródoto,
Leme defende que a prostituição sagrada foi marginalizada pela crescente presença masculina
dentro dos templos.
Esses autores analisam as fontes clássicas como o relato de Heródoto e a
Bíblia hebraica. Sendo assim, partem da ideia apresentada por essas fontes, de que a
prostituição sagrada realmente existiu. Porém, ao analisar essas fontes, cada autor busca
refletir sobre a prostituição sagrada como uma prática ligada à religião do antigo Oriente
próximo, que já é estigmatizada como prática escandalosa pelos autores gregos e hebreus, sem
compará-la à prática da prostituição comum, como faz Dufour.
As perspectivas apresentadas por Gerda Lerner, Stephanie Lynn Budin e
Gonzalo Rubio a respeito da prostituição sagrada trazem uma análise diferenciada das fontes,
tantos as clássicas quanto as orientais. O estudo das línguas semíticas aparece como elemento
importante que dá fundamento para alegações como as de Budin e Rubio que afirmam a
existência do equívoco e da confusão referentes aos diferentes termos utilizados nos textos
para indicar prostitutas e sacerdotisas. Assim como a influência e contribuição da História das
Mulheres e dos estudos de gênero, que percebemos no texto de Lerner, que permitem pensar a
construção dos papéis femininos e masculinos em determinado período e como estes são
moldados pela historiografia ao longo do tempo.
49
Porém devemos notar que as fontes citadas por Dufour não falam
diretamente da ocorrência da prostituição dentro de nenhum templo, mas ainda assim, o autor
afirma a existência de tal prática ligada aos cultos que ele chama de pagãos. Nesse caso
podemos perceber que a interpretação de Dufour é feita a partir de conceitos pré-estabelecidos
influenciados pelo seu contexto cultural.
O conceito de prostituição que o autor utiliza é importante para a construção
da ideia de prostituição sagrada. Para ele, como já foi dito, qualquer troca de favores sexuais
por bens materiais se caracteriza como prostituição. Ambas as fontes citadas por Dufour
relatam um costume similar no qual as mulheres da Babilônia (no relato de Heródoto) e de
Canaã (no relato de Baruc) devem se entregar para um estranho, pelo menos uma vez na vida,
em troca de dinheiro. Esse costume seria um dever sagrado que todas as mulheres teriam com
a deusa da fertilidade, chamada de Milita por Heródoto e não nomeada por Baruc. Envolvia
pagamento, porém as moedas eram oferecidas à deusa em questão.
Talvez pelo fato de que esse costume envolvesse pagamento pelo sexo,
aliado à concepção que Dufour tem de prostituição e de sua postura desfavorável aos
costumes dos povos antigos do Oriente próximo (não cristãos), Dufour tenha enxergado em
suas fontes uma forma de prostituição religiosa que, segundo ele, foi a origem da prostituição
comum. Segundo Keith Jenkins as fontes são mudas e são os historiadores que formulam o
que as fontes dizem (JENKINS, 2004: 67), logo, podemos supor que Dufour apresenta uma
“verdade histórica” que ele retirou das fontes sem que essas a afirmassem realmente.
A respeito das relações de gênero, gostaria de esclarecer que utilizo o gênero
como categoria analítica para desenvolver minha discussão sobre a construção da ideia de
“prostituição sagrada” na obras discutidas. Por exemplo, é possível identificar as relações de
gênero na obra de Dufour a partir dos estudos aos quais temos acesso na atualidade, porém tal
conceito não existia no período em que ele escreveu seu livro.
Pois bem, podemos notar na fala do autor que o mesmo discute
primeiramente a questão da prostituição para depois falar da prostituição sagrada. E como a
figura feminina está ligada a essas duas práticas. No início da obra notamos como o autor se
vale dos valores morais de seu contexto para criticar a prática da prostituição dizendo, por
exemplo, que este é um “tráfico que a moral reprova” (DUFOUR, 1885), porém está presente
em sua sociedade, e segundo ele esteve presente em todos os povos.
É possível perceber que, para Dufour, a prostituição esteve ligada desde suas
origens à figura da mulher, que seduzia e oferecia seu corpo em troca de uma parte da caça do
homem, ou então em troca de presentes de um hóspede inesperado, ou então, oferecendo o
51
próprio corpo como oferenda para os antigos deuses, por não ter outro bem que pudesse ser
sacrificado.
Dufour escreve em um contexto em que a sexualidade da mulher deve ser
controlada para que esta se mantenha casta até um possível casamento no qual possa gerar
filhos legítimos para herdar as posses do pai. Assim, a liberdade sexual feminina é controlada
pela família e pela Igreja Católica, para que ela se mantenha casta e, em sua condição de
responsável pelos desvios dos desejos masculinos, não acabe seduzindo e induzindo um
homem a pecar.
E ainda, para o autor, a mulher que se prostitui o faz por livre e espontânea
vontade, pois o mesmo declara que a mulher sempre foi dona de seu corpo e assim, podendo
negar a prostituição como forma de sobrevivência.
Aliada à visão de Dufour sobre o papel da mulher em seu contexto, está a
mentalidade religiosa que aponta o sexo como prática pecaminosa e condena o culto a outras
divindades. Esses pensamentos em conjunto são perceptíveis quando Pedro Dufour se refere à
prostituição sagrada como uma forma primitiva e incivilizada de culto aos deuses que ele
chama de pagãos.
Para o autor, a conduta do povo da Babilônia quanto aos rituais de
fertilidade, nos quais, para ele, havia a presença da prostituição sagrada, acabou por desvirtuar
a cidade.
Heródoto vira por seus próprios olhos, ali pelo ano 440 antes de
Cristo, a prostituição sagrada das mulheres de Babilônia. É provável
até que, na sua qualidade de estrangeiro, o venerando pai da historia
chegasse a deitar algum dinheiro no regaço de uma formosa
babilônia. (DUFOUR, 1885)
Como Dufour também analisa o relato de Baruc a partir de sua visão cristã, é
possível que o seu conceito de prostituição também possa ter sido influenciado pelo conceito
de prostituição que aparece na Bíblia hebraica, que considera o sexo fora do casamento, ou
seja, ilícito, como prostituição.
Em estudos mais recentes, principalmente a partir da década de 1980, alguns
autores, se utilizando das fontes já citadas e mais as fontes originárias do Crescente Fértil,
fazem uma discussão diferente sobre a ideia de “prostituição sagrada”. Gerda Lerner é um
desses autores. A autora analisa o relato de Heródoto e algumas evidências materiais do
Crescente Fértil, como placas de argila com imagens e textos literários, e leis, como o Código
de Hammurabi e as Leis Assírias.
Lerner discute a ideia da “prostituição sagrada” como origem da prostituição
comum, porém a autora, logo no início, diz que tal prática nunca existiu e tampouco deu
origem à segunda.
Quando analisa o relato de Heródoto, Lerner diz que o historiador grego
pode ter confundido o ritual anual que envolvia todas as mulheres assírias com as atividades
das prostitutas, pois estas costumavam circular em volta do templo onde havia grande fluxo
53
de pessoas, portanto, de possíveis clientes. Mesmo com a presença das prostitutas em volta do
templo ele descreve apenas o ritual à deusa Milita. Portanto, é possível que Lerner esteja
justificando a leitura contemporânea de Heródoto, que vê a “prostituição sagrada” em seu
texto, e não a visão do próprio, pois o papel exercido pelas mulheres babilônicas do templo da
deusa da fertilidade é muito diferente do papel exercido pelas sacerdotisas das quais Lerner
fala em seu texto.
O trabalho de Lerner é influenciado pelos estudos da História das Mulheres,
e percebemos em sua escrita a ênfase que a autora confere à importância do papel feminino na
religião de alguns povos do Crescente Fértil.
Lerner discorre sobre a independência sexual e financeira das sacerdotisas en
e das naditum, mulheres de família real que se dedicavam ao culto de Shamash e
Inanna/Ishtar. Essas mulheres estavam em posição de prestígio e poder religioso e foram
colocadas no patamar de prostitutas sagradas por conta das traduções equivocada dos termos e
da leitura das fontes clássicas, que já traziam pré-conceitos acerca dos cultos de fertilidades
realizados na região do Crescente Fértil.
Percebemos a influência dos estudos sobre história das mulheres quando a
autora aponta hierarquização das mulheres nos códigos de lei usados como fonte. Segundo
sua análise das Leis Assírias e do Código de Hammurabi, as mulheres eram divididas entre
“respeitáveis” e “não respeitáveis”. As mulheres livres e as sacerdotisas tinham status muito
superior às prostitutas e escravas. As primeiras, segundo as Leis Assírias, deveriam usar véus,
enquanto as últimas eram proibidas de fazê-lo.
A autora ainda defende uma mudança na mentalidade dos assírios. Segundo
ela, em meados do terceiro milênio a.C. com as crescentes conquistas territoriais, a sociedade
vai se tornando mais militarizada e mais androcêntrica. As mulheres passam a ser vistas como
espólios de guerra tornando-se escravas em haréns e bordéis e as leis que a autora analisa são
redigidas com a intenção de classificar e controlar o comportamento feminino.
Porém é interessante notar que a partir do momento no qual a autora analisa
essas leis, a mesma começa a se referir às kulmashitum e qadishtum13, das quais ela pouco
fala por falta de evidências, como prostitutas do templo, pois essa é a expressão utilizada na
tradução do fragmento da lei que ela analisa. Ela diz que com a hierarquização promovida
pelas leis que pretendiam identificar as mulheres “castas” e as mulheres “públicas”, essas
13
Segundo Gerda Lerner, estas eram funcionárias do templo de menor status se comparadas às naditum. Porém a
autora diz que as evidências sobre elas são confusas, não especificam se elas participavam dos rituais de
fertilidade, mas dizem que elas poderiam ter sido amas de leite.
54
prostitutas do templo foram igualadas às prostitutas comuns. Ou seja, a autora aponta uma
desvalorização do papel das sacerdotisas a partir do período em que o comportamento das
mulheres começa a ser controlado pelos homens.
Esse pensamento de Lerner pode ser um tanto quanto confuso, pois mesmo
afirmando a não existência da “prostituição sagrada” e defendendo uma mudança na
mentalidade assíria que permitiu que o papel religioso das mulheres fosse desvalorizado, ao
analisar o trecho da lei assíria a mesma não atenta para qual termo foi utilizado no idioma
assírio para designar as prostitutas do templo e assim o utiliza no final do texto, entrando em
contradição com a sua afirmação no começo.
No que se refere à influência do contexto do autor em sua obra, o texto de G.
Lerner reflete a influência do pensamento feminista da autora, que trabalha com estudos
voltados para a história das mulheres, ou seja, a influência mais marcante que vemos em sua
obra é de seu contexto acadêmico, visto que a autora produziu trabalhos voltados para as
pesquisas na área de História das Mulheres. É importante destacar que na década de 1980, a
chamada História das Mulheres já sofria mais desdobramentos e passa a ser designada por
Gênero, ou seja, Lerner escreve no período no qual a categoria gênero está se consolidando.
Concordando com Lerner sobre a inexistência da “prostituição sagrada”,
temos o historiador Gonzalo Rubio. O autor traz uma importante discussão em seu artigo, que
aborda as más interpretações das fontes utilizadas para o desenvolvimento de trabalhos sobre
a prostituição sagrada.
Para Rubio, a ideia de “prostituição sagrada” surge do equívoco de traduções
das fontes, e, no caso da Bíblia hebraica, até mesmo interpretações mal intencionadas por
parte de seus autores. Assim as mulheres envolvidas com o sexo ritual acabaram por ser
colocadas no mesmo patamar de prostitutas comuns pelos autores dos relatos bíblicos, e mais
tarde, pelos leitores desses relatos e das fontes gregas.
Rubio destaca a importância do papel das mulheres em cultos que envolviam
a prática sexual como portadoras da bênção da fertilidade, e até mesmo representantes de uma
deusa. Para ele, assim como para Gerda Lerner, a posição de destaque dessas mulheres perdeu
força com a crescente presença dos homens dentro dos templos, embora nenhum dos dois
autores explique o aumento da presença masculina nas posições de poder da religião.
Portanto, mesmo não sendo da área de gênero, é possível perceber que, em seu trabalho,
Rubio acaba por analisar o papel feminino dentro da religião da Babilônia e de Canaã e
inclusive cita a possível presença de homens envolvidos nos cultos de fertilidade que
55
exerciam o papel feminino dentro do templo e o papel masculino fora do templo. Ou seja, é
possível encontrar elementos dos estudos das relações de gênero inseridos em seu texto.
A historiadora Stephanie Lynn Budin também afirma a não existência da
“prostituição sagrada” e trata essa ideia como um mito que surge de construções literárias
baseadas nos relatos de Heródoto e da Bíblia hebraica, e destaca que não há nenhuma
referência a essa prática nas fontes do Crescente Fértil. Budin também analisa fontes orientais,
como listas de funcionários dos templos e leis.
Para ela, a ideia de “prostituição sagrada” foi construída com base em poucos
textos e nas fontes já citadas, pois essas fontes apresentam a visão de elementos que são
exteriores à cultura dos povos da Mesopotâmia e da terra de Canaã, que foram lidas e
interpretadas como evidências da existência da prostituição sagrada. Assim, tanto os autores
das fontes, quanto seus leitores, segundo Budin, enxergaram prostituição onde havia apenas
uma manifestação religiosa na qual a sexualidade era parte importante dos cultos.
Os estudos de gênero possibilitam que os historiadores busquem novas
perspectivas em assuntos já discutidos em outros períodos, podendo levantar novas questões
sobre o mesmo. Budin desconstrói a ideia de prostituição sagrada, e critica a visão tradicional
que relaciona qualquer referência à mulheres que fariam estariam envolvidas com sexo
sagrado com prostituição.
Porém é importante destacar que, mesmo defendendo a ideia da existência de
importantes sacerdotisas ligadas aos cultos de fertilidade Gonzalo Rubio e Stephanie Lynn
Budin ainda questionam a própria existência da prática sexual nos cultos de fertilidade.
Budin quando fala dos autores que relacionam qualquer passagem relativa ao
sexo sagrado com prostituição. A mesma completa: “Exceto que nem mesmo o “sexo
sagrado” tenha realmente existido, e todos nós fomos deixados apenas com uma grande
quantidade de ar quente” (BUDIN, 2008: 8). Portanto ela nos leva a pensar se essa prática
sexual realmente existiu dentro dos templos como parte de um ritual mesmo que existam
algumas evidências materiais representando a relação sexual dentro de um culto, como placas
de argila e incrustações. (Anexo N°...)
Por sua vez, Rubio acrescenta em sua discussão sobre a confusão entre os
rituais de fertilidade e a prostituição sagrada: “Não há nada de estranho em um ritual religioso
no qual se realizava, ou tão somente simulava um ato sexual, que tenha se tornado uma forma
mercenária e degradada de liturgia...” (RUBIO, 1999:135). Quando o autor indica que os
rituais poderiam somente simular a prática sexual, ele também coloca em questão a existência
do ato sexual.
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da premissa trazida por Keith Jenkins de que “não existem interpretações do
passado que dispensem pressupostos, e visto serem as interpretações do passado elaboradas
no presente” (JENKINS, 2004: 70), é possível refletir sobre como o contexto do historiador
direciona o seu olhar sobre o seu objeto e como as influências externas se colocam em sua
obra.
Podemos ver que, ao elaborar as suas respectivas ideias de “prostituição sagrada”, os
autores discutidos trazem em suas falas reflexos do contexto no qual escrevem. Pedro Dufour
olha para as mulheres do templo de Milita com os olhos de um pesquisador europeu cristão do
século XIX e desenvolve a sua obra a partir de concepções vindas de seu presente. Assim
como Gerda Lerner, historiadora feminista do fim do século XX, enxerga na ideia de
prostituição sagrada a dominação masculina sobre o elemento feminino. Essas diferentes
visões são construídas a partir da bagagem que o historiador já possui. Sua concepção do
passado é elaborada a partir de ideias edificadas no presente.
A leitura das fontes se mostra outro fator de extrema importância na construção da
ideia de “prostituição sagrada”. Podemos perceber que alguns autores encontram a prática da
“prostituição sagrada” mesmo onde ela não é mencionada diretamente, e encontram
prostitutas sagradas na figura de mulheres sacerdotisas.
Enquanto isso, outros autores preocupam-se em separar as sacerdotisas das
prostitutas e a prostituição do dever religioso, que são duas coisas distintas, pois a prática
sexual presente nos cultos de fertilidade, é um traço de grande importância nos rituais
dedicados às divindades de fertilidade das quais dependia a continuidade e prosperidade da
vida. Portanto, o sexo sagrado, mesmo que envolvesse pagamento (considerado oferenda),
nada tinha a ver com a prostituição.
As relações de gênero vigentes no contexto dos autores influenciam em como estes
tratam o assunto: apontando a prática, ligada à figura feminina, como imoral e incivilizada, ou
então, buscando compreender a importância do papel que as mulheres possuíam dentro das
religiões de alguns povos do Crescente Fértil.
Sendo assim, buscamos nesse trabalho expor um panorama geral das discussões em
torno da “prostituição sagrada” no Crescente Fértil e podemos pensar essa prática como uma
ideia construída pela historiografia do século XIX até meados do século XX, e que vem sendo
questionada recentemente.
58
Essas pesquisas, que trazem questões e análises importantes, ainda deixam algumas
lacunas que possibilitam o levantamento de questões que podem originar pesquisas
posteriores que ajudem a compreender melhor essa prática religiosa que tem sido objeto de
diversas interpretações.
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REFERÊNCIAS
Textos Antigos:
Bibliografia:
ANEXOS
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ANEXO A
Imagem 1. Senhora entronizada, provavelmente uma alta sacerdotisa, encontrada no templo de Ishtar
em Mari no norte da Mesopotâmia. Estátua de alabastro. Datada de c.2600-2400 a.C. © S. Beaulieu, a
partir de Shepsut 1993: 33, fig. 6 (apud STUCKEY, 2005).
Imagem 2. "Mulher na janela", frequentemente interpretada com uma prostituta, sagrada ou não,
aguardando clientes, mas na verdade, muito provavelmente, a deusa mesopotâmica Kilili, uma
associação ou aspecto de Inanna/Ishtar. Uma das muitas incrustações em marfim do mesmo motivo
encontrada na Mesopotâmia, mas provavelmente feita na Fenícia/Canaã. Datada de cerca de 900 a.C.©
S. Beaulieu, a partir de Shepsut 1993: 115 (apud STUCKEY, 2005).
63
Imagem 4. Dignatária canaaita com um cajado, possivelmente uma sacerdotisa ou rainha. Placa de
marfim esculpida em ambos os lados. Provavelmente um mobiliário de interior. Pupilas dos olhos
incrustadas com vidro. Megiddo, Israel. Datado cerca de 1350-1150 a.C.
© S. Beaulieu, a partir de Pritchard 1969: 38, fig. 125 (apud STUCKEY, 2005).