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RESUMO. As análises das obras roseanas frequentemente consideram relevantes fatos ligados à vida do
escritor: sua infância no Sertão de Minas Gerais e suas posteriores andanças pela região, sua carreira médica
e diplomática, seu profundo conhecimento de diversas línguas, seu misticismo. Sua obra refletiria, mais ou
menos fielmente, sua vida pessoal. Neste trabalho, proponho uma análise da novela Campo Geral, de 1956
[1977], que é considerada, por muitos críticos, como autobiográfica. O objetivo foi buscar conciliar a
inevitável influência da vida biográfica do autor sem, no entanto, confundir ou mesclar cena de enunciação
e situação histórica. Para tanto, são levados em consideração, para as análises propostas, conceitos como o
de ‘cenografia’ e o de ‘paratopia criadora’, instituída na confluência das instâncias ‘pessoa’, ‘escritor’ e
‘inscritor’, presentes em Maingueneau (2006).
Palavras-chave: cena de enunciação, Guimarães Rosa, paratopia.
que há entre autor, público e suporte material. do vínculo que há entre o intra e extradiscursivo,
Implica, igualmente, considerar a imbricação entre apresento, neste trabalho, duas questões que me
uma organização social e uma atividade enunciativa. parecem, em um primeiro momento, especialmente
Isso quer dizer que para produzir enunciados relevantes e, em boa medida, problemáticas. Para
reconhecidos como literários, o escritor deve se tanto, proponho uma análise da novela Campo Geral,
constituir como tal. Para tanto, não basta deixar-se de Guimarães Rosa, chamando a atenção para
levar por uma inspiração arrebatadora; é preciso estar aspectos característicos desta obra roseana.
na ordem do discurso, em que tantos outros atores
têm também um papel não menos importante. Há, Uma cena de enunciação
desta maneira, uma rede de aparelhos que garantem
A primeira dessas questões está relacionada a
e estabilizam os contratos genéricos considerados
aspectos que compõem a materialidade textual desta
literários em uma sociedade como a nossa, o que
evidencia, em boa medida, tanto o caráter novela – e que são constitutivos de sua literariedade.
institucionalizado da prática literária quanto a Nesse sentido, o gênero e os elementos que
relação indissociável desta institucionalização com as compõem a materialidade linguística do texto não
possibilidades enunciativas. são um ‘invólucro contingente’ de um conteúdo
Maingueneau (2006) propõe ainda mais dois preexistente, mas essenciais para os efeitos de
planos dos quais toda obra participa: o espaço sentido que emergem da obra. Maingueneau (2004)
literário é também um ‘campo discursivo’, isto é, um propõe que os textos possuem, entre outras coisas,
conjunto de posicionamentos estéticos que se uma classificação pragmática (são religiosos,
encontram, mais ou menos explicitamente, em políticos, literários, científicos...) e também uma
relação de concorrência e que se delimitam classificação genérica (são um sermão, uma
mutuamente. Cada posicionamento constitui uma reportagem, uma novela, um ofício...), que ele
identidade que deriva de certas práticas, que chama, respectivamente, de cena englobante e cena
envolvem tanto características dos textos genérica. Desta perspectiva, para cada texto, há um
propriamente ditos (pressupostos estéticos, gêneros quadro cênico que sustenta, em boa medida, os
e temas privilegiados, uso específico do idioma) processos de significação que dele derivam, pois não
como um modo de os autores estarem no mundo. lemos ciência do mesmo modo como lemos ficção,
Falamos, por exemplo, em escolas e movimentos nem lemos uma bula como lemos um poema, nem
literários: o modernismo remete a um conjunto de uma publicidade como uma ata, e assim por diante.
práticas – estéticas e sociais – bastante distintas do Há uma relação de restrição entre cena englobante
romantismo. A noção de campo implica, ainda, a e cena genérica. Nem todos os tipos de discurso podem
existência de regras que o organiza e o caracteriza as se materializar em todos os gêneros: o discurso
quais seus membros obedecem de maneira mais ou científico, por exemplo, nunca é veiculado na forma de
menos inconsciente e está profundamente associada um poema ou de uma novela. Esses são gêneros
à função social atribuída a um conjunto de discursos, tipicamente literários. Espera-se que as ‘descobertas’
conforme proposta de Bourdieu (1983). sejam comunicadas na forma de um paper que seja
Por fim, a prática literária envolve, também, um publicado em uma revista especializada, ou de um
arquivo. Usado, nesse contexto, com um significado abstract nos anais de um congresso, ou de uma palestra
próximo de posicionamento discursivo, a noção de em um encontro de especialistas...
arquivo designa, Mas além desse quadro cênico, os textos são
[...] a memória interna da literatura, memória que, constituídos de elementos dos quais deriva uma
para além do intertexto no sentido estrito, isto é, cenografia: léxico, estruturas sintáticas típicas, temas,
outras obras, presentes em alguma biblioteca imagens associadas, ethos. Com esses elementos é
imaginária, inclui também, [...] lendas que o leitor se depara primeiramente. No caso de
(MAINGUENEAU, 2006, p. 91). gêneros tipicamente artísticos, a originalidade e
Esses três planos deslocam a atividade literária de maleabilidade da cenografia é um traço bastante
um suposto lugar ‘além’ ou ‘aquém' das relações relevante. De fato, há muitas maneiras de contar
sociais, realocando-a onde as obras apenas podem ter uma história: na forma de um diário escrito por uma
sentido em sua relação (inescapável) com o menina ‘caçadora’ de fadas (como em O livro de fadas
interdiscurso. São, deste modo, nós numa rede prensadas de Lady Cottington) ou na forma de
interdiscursiva e estão necessariamente atreladas a lembranças de infância de um menino que vive no
práticas sociais. sertão mineiro (como em Campo Geral).
Tendo em vista esta proposta de abordagem do Embora narrada em terceira pessoa, Campo Geral
fato literário, que considera impossível a dissolução é uma história filtrada unicamente pelo ponto de
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vista de Miguilim, um menino de oito anos que vive vergonha de nada, quase nunca fechava a boca, até
com sua família – pais, irmãos, um tio e agregados – ria. Logo então, passaram pelo Mutúm uns
num remoto lugarejo do sertão, o Mutúm, ‘lugar tropeiros, dias que demoraram, porque os burros
deles estavam quase todos mancados. Quando
bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e
tornaram a seguir, o pai de Miguilim deu para eles a
muito mato, distante de qualquer parte’. É através do
cachorra, que puxaram amarrada numa corda, o
seu olhar que temos acesso ao mundo duro dos ‘cachorrinho’ foi choramingando dentro do balaio.
adultos, sempre cercado de traições, violências e Iam para onde iam. Miguilim chorou de bruços,
silêncios. Miguilim é um menino inteligente e cumpriu tristeza, soluçou muitas vezes. Alguém
sensível, que insere o leitor em um universo triste e disse que aconteciam casos, de cachorros dados, que
melancólico, ainda que permeado pelas fantasias de levados para longe léguas, e que voltavam sempre em
uma criança. casa. Então ele tomou esperança: a Pingo-de-Ouro ia
Esse universo é construído ao longo de toda a voltar. Esperou, esperou, sensato. Até de noite,
pensava fosse ela, quando um cão repuxava latidos.
narrativa e deriva de uma cenografia que se constitui
Quem ia abrir a porta para ela entrar? Devia de estar
por meio de vários elementos presentes no fio do
cansada, com sede, com fome. – “Essa não sabe
discurso. Essa cenografia institui uma topografia – retornar, ela já estava quase cega...” Então, se ela
um espaço, o Mutúm, lugar distante, encravado no estava quase cega, porque o pai a tinha dado para
sertão mineiro roseano e também a intimidade de estranhos? Não iam judiar da Pingo-de-Ouro?
uma família isolada no sertão – e, igualmente, uma Miguilim era tão pequeno, com poucas semanas se
cronografia – um tempo, o da infância, ou das consolava. Mas um dia contaram a ele a estória do
descobertas e da ‘aproximação da vida adulta’ ou ‘do Menino que achou no mato uma cuca, cuca cuja
afastamento da infância’. depois os outros tomaram dele e mataram.
O Menino Triste cantava, chorando:
Mas, além disso, se trata de um espaço e de um
tempo atravessado constantemente por um lirismo “Minha Cuca, cadê minha Cuca?
agudo, que emerge do uso que Guimarães Rosa faz Minha Cuca, cadê minha Cuca?!
da língua. São deslocamentos de sintaxe, rimas, Ai, minha Cuca
aliterações, um tipo de vocabulário absolutamente Que o mato me deu!...”
peculiar (repleto de neologismos, de derivações não Ele nem sabia, ninguém sabia o que era uma cuca. Mas,
previstas, de arcaísmos) que, em seu conjunto, é então, foi que se lembrou mais de Pingo-de-Ouro: e
tanto condição quanto efeito da obra. Isto é, deste chorou tanto, que de repente pôs na Pingo-de-Ouro
uso da língua deriva uma cenografia que constitui o esse nome também, de Cuca. E desde então dela nunca
texto, que, por sua vez, constitui essa cenografia, em mais se esqueceu (ROSA, 1977, p. 10-11, grifos
nossos).
movimento circular e interdependente.
Vejamos um trecho dessa novela: Esse excerto revela muitos elementos textuais e
(1) Mas, para o sentir de Miguilim, mais primeiro narrativos que estão presentes ao longo de toda a
havia a Pingo-de-Ouro, uma cachorra bondosa e novela. Um deles é como o mundo dos adultos
pertencida de ninguém, mas que gostava mais era dele interfere negativamente num cenário infantil que é
mesmo. Quando ele se escondia no fundo da horta, de pura ternura. O pai dá a cachorra que Miguilim
para brincar sozinho, ela aparecia, sem atrapalhar, sem tanto gosta para forasteiros e esse será um entre os
latir, ficava perto, parece que compreendia. Estava
tantos fatos dolorosos que marcam a infância da
toda sempre magra, doente da saúde, diziam que ia
ficando cega. Mas teve ‘cachorrinhos’. Todos personagem. Esse confronto entre os dois universos
morreram, menos um, que era tão lindo. Brincava – dos adultos e das crianças – é um dos temas
com a mãe, nunca se tinha visto a Pingo-de-Ouro tão tratados nesta obra. Muito frequentemente, as ações
alegre. O ‘cachorrinho’ era com-cor com a Pingo: os dos adultos da história – especialmente as do pai –
dois em amarelo e nhalvo, ‘chovidinhos’. Ele se sempre entristecem o mundo repleto de
esticava, rapava, com as ‘patinhas’ para adiante,
sensibilidade e emoções das crianças. A atitude do
arrancando terra mole preta e jogando longe, para trás,
no pé da roseira, que nem quisesse tirar de dentro do pai, que possivelmente nem se dá conta da relação
chão aquele cheiro bom de chuva, de fundo. Depois afetiva que há entre seu filho e Pingo-de-Ouro e
virava cambalhotas, rolava de costas, sentava-se para menos ainda da debilidade da cachorra, revela a
sacudir, seus ‘dentinhos’ brilhavam para muitas fragilidade das crianças diante das decisões dos
distâncias. Mordia a cara da mãe, e Pingo-de-Ouro adultos. A tristeza que esse excerto desperta resulta
se empinava – o filho ficava pendurado no ar. Daí exatamente da contraposição entre a sensibilidade do
corria, ‘boquinha’ aberta, revinha, pulava na mãe,
vinte vezes. Pingo-de-Ouro abocava um galho, ele
mundo infantil e a brutalidade do mundo dos
corria, para tomar, latia ‘bravinho’, se ela o mordia adultos. A contraposição entre brutalidade e
forte. ‘Alegrinho’ e sem vexames, não tinha sensibilidade dá a toada de toda a narrativa, fazendo
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nasceu em Cordisburgo e foi, assim como Miguilim, caracterizam o tom deste texto, derivam do modo
uma criança sensível. como ele é escrito, isto é, do modo como Rosa usa
Algumas passagens de Campo Geral são os recursos que a língua disponibiliza. Os fatos
especialmente tidas como autobiográficas. O gosto narrados são narrados de maneira tal que uma voz –
de Miguilim por ficar longe de todos, brincando singela, sensível e triste – se faz ouvir no texto. Esta
com os insetos na horta, seu afeto pelos animais de cena de enunciação não é a projeção de uma situação
estimação com quem convivia (o episódio de Pingo- histórica ‘real’, representada na obra de uma maneira
de-Ouro é especialmente representativo dessa mais ou menos oblíqua.
relação), sua estranheza diante do mundo dos O conceito de ‘paratopia’ (MAINGUENEAU,
adultos – todas essas características da personagem 2006) ajuda-nos trabalhar, em termos teóricos, com
seriam as ‘provas cabais’ de que, de fato, a pessoa este lugar que emerge das obras, que pode remeter a
Guimarães Rosa ‘fala’ em muitas dessas cenas. um tempo e a um mundo reais, mas que, simultânea
Possivelmente, a mais emblemática dessas e inevitavelmente, está estreitamente conectado
semelhanças seja a miopia que tanto Rosa quanto tanto à cenografia instituída pela sua enunciação,
Miguilim tinham, e que em ambos foi descoberta quanto ao percurso do autor na cena literária.
tardiamente. A declaração de Rubem Alves (2012), Maingueneau propõe que a existência social da
transcrita abaixo, exemplifica esta leitura que une em literatura se institui em um lugar fronteiriço: está
uma mesma figura enunciador e autor: além vida mundana, mas é esta realidade comum,
cotidiana que alimenta a literatura. A criação
De tudo que João Guimarães Rosa escreveu acho a
estória do Miguilim a mais bonita. Miguilim era um literária, segundo tal proposta, escapa de toda tópica
menininho que vivia num lugar perdido do sertão, social, alimenta-se de lugares, grupos e
precisava andar um dia a cavalo prá se chegar no comportamento que, em um mesmo movimento,
mais próximo. Mas Miguilim via um mundo estão e não estão no mundo. Trata-se de uma
embaçado e pensava que o mundo era assim. Não entidade híbrida, que fala do mundo, mas de um
via o passarinho no galho da árvore e nem os brotos mundo transformado através de um motor
do milho saídos do chão. Pai de Miguilim, bruto, paratópico, que afasta da vida ordinária tudo o que
achava que ele era burro. Desgostava. Batia. E no
diz respeito ao mundo literário (os lugares
coração de Miguilim o ódio crescia. Mas um dia
retratados, as personagens, os autores). É por meio
chegou um doutor montado em cavalo bonito e
tratado. Estranhou que Miguilim fechasse os olhos da paratopia que a literatura representa a vida social.
prá ver melhor. “– Esse nosso rapazinho tem a vista O estatuto paratópico da literatura tem um
curta. Espera aí, Miguilim...”. E o senhor tirava os enlaçamento fundamental com a cenografia e com a
óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. obra como um todo; a paratopia de seu autor, de
“– Olha agora! Miguilim olhou. Nem não podia seus personagens e dos lugares retratados é, ao
acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo mesmo tempo, condição e efeito da obra.
e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. A literatura é paratópica, mas ela tem de encenar sua
Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as
paratopia. Em outras palavras, não há situação
pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no
paratópica exterior a um processo de criação e de
chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu
Deus, tanta coisa, tudo...”. Leiam e comparem, e enunciação. Não é origem, causa ou condição da
vejam se o Miguilim não é o João. Os dois eram obra literária, mas um processo em que cada
míopes sem saber. O espanto do Miguilim deve ter elemento é simultâneo ‘ao’ e indissociável ‘do’
sido o espanto do João quando pôs os óculos pela outro. A noção de paratopia é tomada, a um só
primeira vez. E os dois brincavam com os mesmos tempo, como condição e produto do processo
brinquedos, até os boizinhos de sabugo, brancos, criador.
vermelhos e pretos, esses pretejados no fogo do Nesse sentido, identificar Miguilim com João, o
fogão de lenha... Lendo o Miguilim, aprendo sobre o
Mutúm com Cordisburgo e ver em Campo Geral
João (ALVES, 2012).
uma biografia disfarçada de novela é ignorar a
Neste ponto, proponho a segunda questão que especificidade da literatura e sua relação de não
um material como esse suscita: qual o estatuto do equivalência com o ‘mundo real’. Ainda que tenha
enunciador desta obra? Ou como aliar um lugar havido um pequeno João míope e sensível, ainda
externo a um lugar interno à obra? que haja um Mutúm no sertão de Minas repleto de
Se respondermos que a voz desse narrador- buritis, montanhas e águas, ainda que haja famílias
Miguilim é, em última instância, Rosa nos contando que sobrevivem às intempéries desse lugar
sobre os sentimentos que permearam sua infância, longínquo – tudo isso só toma ‘corpo literário’ na
estaremos inevitavelmente cometendo um grave obra de João Guimarães Rosa. Fala-se em uma
reducionismo. A sensibilidade e a melancolia, que ‘geografia roseana’, tal a indissociabilidade desse
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lugar com a obra. O sertão de Guimarães Rosa é sustinham: como viver se não se vive da maneira que
paratópico. convém para ser um dado escritor que vai ser o
E sua vida, contada em tantas biografias, confirma inscritor de uma dada obra? Como desenvolver
de maneira cabal, a paratopia deste autor: autodidata, estratégias no espaço literário se não se vive de modo
poliglota, médico, diplomata e profundamente ligado a ser o inscritor de uma obra? Como ser o inscritor
de uma obra se não se enuncia através de um certo
‘às coisas do espírito’, morreu precocemente, aos 59
posicionamento no campo literário e um certo modo de
anos, três dias após tomar posse de sua cadeira na presença/ausência na sociedade? (MAINGUENEAU,
Academia Brasileira de Letras. Esse dia teria sido adiado 2006, p. 137).
por quatro anos devido ao medo que Guimarães Rosa
sentia da emoção que o momento lhe causaria. Uma Considerações finais
vida e uma morte que, mesmo ‘reais’, não são parte do
mundo tópico. Uma proposta como esta permite lidar com os
Assumir a noção de paratopia implica um processos de subjetivação de um texto sem retornar
afastamento de uma interpretação literária que vê àquela subjetividade que tanto a AD recusou – e
uma sobreposição entre realidade e ficção. Por outro sem, igualmente, considerar os sujeitos apenas
lado, não considerar os pontos de contato entre a porta-vozes de discursos já ditos anteriormente.
vida da pessoa e a vida da personagem é também Pensar no fato literário nos termos propostos por
negar um fato inegável.
Maingueneau permite também que seja contornada
A proposta de complexificação da instância
a cisão fundadora dos estudos literários entre texto e
autoral, como a proposta por Maingueneau, que
contexto. No entanto, explicitar como se constroem
inclui a noção de paratopia, torna possível analisar
as relações entre cenografia e vida real, e como elas
textos literários mesclando aquilo que deriva da
biografia do autor, com o que deriva do seu percurso também resultam, de certo modo, de o autor estar
na vida literária e da cenografia construída através da no mundo não é uma tarefa simples. Uma proposta
materialidade linguística que compõe sua obra. teórica como a apresentada acima oferece ao analista
Segundo essa proposta, haveria três instâncias um dispositivo teórico que indica, enfim, os
que recobrem essa identidade associada às obras caminhos para unirmos esses dois mundos
literárias: a ‘pessoa’ (dotada de um RG e de uma inegavelmente interdependentes: aquele instituído
biografia), o ‘escritor’ (a figura que define uma pela obra e aquele que faz desse mundo um mundo
trajetória dentro da instituição literária) e o em que o fato literário é possível.
‘inscritor’ (uma subjetividade enunciativa que deriva
da cena de fala e do gênero implicados pelo texto). Referências
As três instâncias não são resultado de uma ALVES, R. Quarto de badulaques (XXXII). Disponível
sequência cronológica na qual, em primeiro lugar, em: <http://www.rubemalves.com.br/quartodebadulaques
haveria a pessoa, seguida pelo escritor e, por fim, XXXII.htm>. Acesso em: 25 fev. 2012.
pelo inscritor. Na verdade, essas três instâncias se BOURDIEU, P. Algumas propriedades dos campos. In:
recobrem mutuamente, sendo que nenhuma delas é BOURDIEU, P. (Ed.). Questões de sociologia. Rio de
o fundamento das outras: Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 89-94.
Pensa-se aqui numa estrutura de nó borromeu; os MAINGUENEAU, D. Análise de textos de
três anéis deste se entrelaçam de modo que, se se comunicação. Tradução Cecília P. de Souza-e-Silva e
rompe um dos três, os dois outros se separam. É-se Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2004.
sempre tentado a reduzir o nó a um de seus anéis: a MAINGUENEAU, D. Discurso literário. Tradução
pessoa, para a história literária, seja ela sociologizante Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.
ou psicologizante; o escritor para as pesquisas sobre ROSA, G. Campo Geral. In: ROSA, G. (Ed.).
as instituições literárias; o inscritor para os adeptos Manuelzão e Miguilim. Rio de Janeiro: José Olympio,
da obra ou do texto em detrimento de tudo mais. 1977. p. 5-103.
Mas não se pode isolar ou reduzir nenhuma dessas
instâncias às outras; sua separação é a condição do
desencadeamento do processo de criação. Através do
Received on February 28, 2012.
inscritor, é também a pessoa e o escritor que
Accepted on July 17, 2012.
enunciam; através da pessoa, é também o escritor e o
inscritor que vivem; através do escritor, é também a
pessoa e o inscritor que traçam uma trajetória no License information: This is an open-access article distributed under the terms of the
espaço literário. Se desfizermos sua junção, cada anel Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution,
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revela ser aquilo por meio do qual os outros se
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