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Mario de Andrade MACUNAIMA o herdi sem nenhum carater Edicao Critica Telé Porto Ancona Lopez Coordenadora fe © De esta edigio, 1996: SIGNATARIOS ACORDO ARCHIVOS ALLCA XX, UNIVERSITE PARIS X Ba aT 200, Av. de la République 92001 Nima oaeel France Tel: 40.97 76 61 - Fax: 40.97 7615 co-epirones EDIGOES UNESCO 1, rue Miollis 75732 Paris Cedex 15 (France) - Tel.: 45 68 87 34 - Fax: 42 73 3007 COMISION NACIONAL PROTECTORA DE BIBLIOTECAS POPULARES DE. ARGENTINA (CONABIP) Ayacucho 1578 1112 Buenos Aires (Argentina) - Tel,/F + 803 65 45 EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO (EDUSP) Ay. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374/6.° - Cidade Universit (05508-900 Sio Paulo - SP (Brasil) - Tel. EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL ‘Ay. Pasteur, 250 - 1° (Praia Vermelha) 2295-900 Rio de Janeiro - RJ (Brasil) FONDO DE CULTURA ECONOMICA DE MI Carretera Picacho Ajuseo, 227 - Col. B 14200 México DF (México) - Tel. 2813 88 37 - Fax: 211 69 88 DO RIO DE JANEIRO (ED. 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ENCADERNAGAO Balboa Impresso na Espanha CEP de la Biblioteca Nacional (Es De Andrade, Mério (1893-1945) ‘Macunaima | Mario de Andrade; edicin critica, Telé Porto Ancona Lopez, coordinadora. 2° ed. Madrid; Paris; México: iio Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, ) 1996. (Coleceién Archivos: 2 ed.; 6) D.L.t M-18.705-1996 T.8.B.N.: 84-89666-05-9 |. Porto Ancona Lopez, Tele, coord. Il. ALLGA XX. Il, ‘Titulo, TV, Serie: Goleccién Archivos (2 ed.); 6. MACUNAIMA: APROPRIAGAO E ORIGINALIDADE Rail Antelo “Plagiaire est celui qui a mal digeré la substance des autres: il en rend des morceaux reconnaissables. Loriginalité, affaire d'estomac. I ny a pas d’écrivains originaux, car ceux qui mériteraient ce nom sont incon- nus} et méme inconnaissables.” “ILy a quelque chose de plus précieux que Voriginalité: c'est Vuniversalité.” Paul Valéry - Tel quel Em 1921 Mario de Andrade escreve “Historia com data’, que esta longe de ser apenas isso, uma historia datada do noviciado modernista do escritor, intei- ramente inverossimil em sua gratuidade brincalhona, valida apenas pelo poder de invengao, pela kidica exibicao de cientificismo e erudicao, a par da pulsacao moderna, nela tao ativa. Poder-se-ia aceitar essa avaliagio de Joao Pacheco, se nao fosse ainda esse conto um laboratério ficeional da raps6dia escrita cinco anos mais tarde. ‘A historia 6, de fato, simples. Trata-se da aventura vivida por Alberto de Fi- gueiredo Azoé, jovem piloto de avides, herdeiro de riquissima familia paulista- na, que sofre um transplante de cérebro como iiltima e desesperada tentativa de salvar sua vida, apés um acidente aéreo. O cérebro doado pertence a um ope- rario italiano — José, recém-falecido no hospital. Este ser heterogéneo, misto de corpo de aviador e cabega de operario, se vé na obrigagao de exibir habitos que Ihe so estranhos e, na impossibilidade de incorporé-los, produz novas normas, sim, mas quebra irreversivelmente 0s codigos, 0 que acaba matando-o. Insinua-se, assim, a alegoria da rapsédia. Conseqiientemente, o transformis- mo comanda 0 conto. O cirurgidio que opera as mudangas diz basear-se nas ex- periéncias do dr. Alexis Carrel, aquele médico que pesquisou a sobrevida dos tecidos fora do corpo. De maneira andloga, o narrador decide testar a sobrevida dos textos, retirando-os de sua insercio original. Todo o conto parece (é o nari dor quem assim 0 admite em nota final de rodapé) ser um plagio involuntario 295 296 Ratil Antelo : | Mas esta hipertextualizacdo, operacdo que ¢ transformagao de outros textos, nao se dé apenas com um precedente prestigioso da literatura francesa. Surge também um relato interca- lado, pastiche de folhetim rocambolesco, em que um conde é assassinado; sua filha raptada percorre 0 mundo; vai, mais tarde, a Itélia; enamora-se de um prin- cipe (que ¢ filho do assassino); sendo, finalmente, resgatada, num barco francés, Por piratas tunisinos, enquanto o principe foge para a Riissia etc., ete. Em meio a estas aventuras, a rainha, desmemoriada e em desvario, reconhece sua hist6- ria, vale dizer, recupera a identidade, ao ouvir uma balada que s6 ela e seu fur- tivo enamorado, o estudante proibido, conheciam... Em poucas palavras é preci- samente em funcao do efeito estrutural de mise-en-abyme (conto-folhetim-balada), mediante o qual se encaixam varios relatos, todos unificados pela busca de iden tidade ¢ pela observancia e transgressio da lei, que o narrador aguca o cardter estrutural (redundar, variar), preparando nossa percepgao para mudangas nos materiais literarios. Em sentido mais amplo, essa transformacao aponta a inter- nacionalizagao da cultura, idéia que se exaspera no relato intercalado, com refe- réncias a franceses, italianos, ingleses, tunisinos, russos ¢ na irdnica alusdo ao principe Lotti. Mas, em sentido estrito, a mudanga se define como possibilidade de inversdo dos fluxos culturais e de influéncia nos modelos origina ver Avatara em Sao Paulo, 1921.0 narrador irOnico, alias, sabe disso: geralmente acontece no Brasil’ o pligio é milhor que o original.” Eis o nervo macunaimico: a superagio do cénone naturalista, Como a base textual em primeiro grau é constituida pelo conjunto de relatos do século 19, © narrador de “Histéria com data” apela, pois, a varios recursos para exibir a transmodelizagao do referente a que se propée, ora validando clichés com notas eruditas de rodapé, ora mediante atribuicdes erréneas ou apécrifas de jornais de um tempo futuro, ora simplesmente eriando equivocos onde a linguagem se- melhava transparéneia. Ao potencializar a literatura, 0 conto nao deixa com isso de discutir varias outras questées, tais como: ~ A identidade individual, que ¢ hesitante para o narrador (Alberto ou Jo- sé2). Mas também a identidade coletiva: nacional ou estrangeiro, local ou cos- mopolita? ~ A estratificagao social interna? elites ou opera - 0 cénone literério: literatura de circunstinc ~ A verossimilhanca fiecional: modelo ou c6pii A funcdo do pastiche enxertado é justamente a de renovar a composigao, de- sautomatizando a nossa percepeao e fazendo penetrar o social na escritura. Veja-se que, sintomaticamente, procedimentos como o pastiche ou, mais tarde, a paré- dia introduzem uma causalidade auténoma ¢ discursivamente heterogénea, o que, na verdade, declina qualquer ambigao de causalidade determinista ao modo do naturalismo dominante na época. iado? ou de evasio? 2 ‘0 mesmo fingimento do narrador que alega desconhecer o preeursor, podemos reencontri-lo em Borges, quando, no prologo a Historia da Eternidade, anota: “El acercamiento a Almotisimes de 1935; he leido hace poco The Sacred Fount (1901), cuyo argumento general e le delicada novela de James, indaga si en B influyen Ao C; en’ El acereamiento a Almotisim, presiente © adivina a través de B la remotisima existencia de Z, a quien B no conoce”. Macunatma: Apropriagao e originalidade 297 De tal sorte que, em 1926, quando Mario de Andrade comeca a trabalhar em Macunatma, uma parte da tarefa ja fora iniciada. Leitor oraz, satura-se de textos que lhe permitam agora equacionar o primitivo com uma concepgao mais larga de universalidade. Através de signos especfficos e distintos, 0 narrador da rapsédia nos remete & formacao de um modelo do real transcrito textualmente como multiplicidade de perspectivas ¢ registros. Para tanto, ja que o heréi, tira- do do alemao de Koch-Griinberg, 6 tio ou mais venezuelano do que brasileiro, ndio espanta que seu criador acumulasse nesse signo uma variedade de discursos que cle colhe, quanto a érea do Prata, nas Supersticiones y leyendas de Juan B. Ambrosetti, na Resefia histbrico-descriptiva de antiguas y modernas supers- ticiones del Rio de la Plata de Daniel Granada, no Cancionero popular riopla- tense de Jorge M. Furt e na Lirica popular rioplatense de Ernesto Morales; quanto & zona andina, em Los mitos de la América precolombina de Adolfo Bonilla y San Martin ou em El Cancionero de Antioquia de Antonio José Restrepo ou ain- da, no que diz respeito a regido caribe, no Vocabulario espirituano de Manuel Martinez Moles ou em Madinina, reine des Antilles de Dufougére. Mesmo de- pois da publicagao de Macunaima, esse tipo de preocupagio continua sendo sin- tomético que se avolume em 1937, quando Mario revé 0s originais para a edigio José Olympio. Pertencem a essa fase a leitura das Leyendas de los indios Guara- nies de César Felisberto Oliveira, do Diccionario Etnogréfico Americano de Martin ¢ dos Moeurs et coutumes des Indiens sauvages de UAmérique du Sud do Mar- quis de Wavrin. Em 1930, nas paginas de La Revue Européenne (n° 5-6-1), Mario conhece a “Légende du tresor du lieu flori’, uma das Leyendas de Guatemala de Miguel Angel Astirias, mais tarde lidas na integra e apresentando pontos de contato com 0 projeto de Macunaima, como, pioneiramente, observou Alexandre Eulé- lio, Essa semelhanga nao basta, porém, para afirmar coincidéncias estéticas en- tre o primitivismo da rapsédia e 0 realismo magico das lendas, ainda que Asti- rias as tenha escrito a partir da tradugao francesa do Popul-Vuh. Em muitos ca- 508, 0 parentesco se limita a aspectos técnicos, como a enumeragio em cascata, com um todo final que recolhe ¢ unifica 0 caos acumulado. Cito, a titulo de exem- plo, o final da lenda do lugar florido, onde desfilam “montafias sobre montafias, selvas sobre selvas, rios y rios en cascadas, rocas a puiiados, llamas, cenizas, la- va, arena, torrentes, todo lo que arrojaba el Volcan’. Claro que nio afirmo a precedéncia mas constato a ocorréncia, presente também no jé citado Théophile Cautier, certamente a partir de leituras indianas, * Em todo caso a transgres- 7 Em Albertus ou lame et le peché, Gautier propde uma dessas enumeragdes diabélicas: “Chauves-souris, hiboux, chouettes, vautours chauves, Grands-ducs, oiseaux de nuit aux yeux flambants et fauves, ‘Monstres de toute espéce et qu’on ne connait pas, Stryges au bec crochu, Goules, Larves, Harpies, Vampires, Loupe-Garous, Brucolaques impies, Mammouths, Léviathans, Crocodiles, Boas, Cela grogne, glappit, siffle, pit et habille, Cela grouille, reluit, vole, rampe et sautille...” ‘Sem esquecer que o estilo enumerativo ja aparecia, como mostra Spitzer (“La enumeracién cadtica cen la poesia moderna” in Linguistica e Historia Literaria, 2* ed. Madrid, Gredos, 1961) no Rigveda cho Sumaveda, é bom lembrar que o hinduismo se uni, em Gautier, ao romantisme alemio ao reais: tno balzaquiano. 298 Raiil Antelo so da légica, comum entre os indigenas, nfo caracteriza neste caso, para criti- cos como Noé Jitrik, uma auténtica superacao da verossimilhanga re: ‘ O trabalho de Mario de Andrade parece, no entanto, guardar sintonias evi- dentes com o de outro narrador também inscrito, embora de modo mais matiza- do, nessa mesma corrente. Trata-se do cubano Alejo Carpentier. Nas paginas de Ecué-Yamba-O!, romance lido em 1933, Mario encontra um boi castrado por uma pedra, tiltimo resto da outrora riqueza de Usebio, animal de estimacao que car- rega 0 oprobio de se chamar Pedra Fina. Um boi preguigoso e sonhador: sinal que nos remete ao principio construtivo e unificador da rapsédia. E sabido, a partir da ligdo de Gilda de Mello e Souza, que duas normas de compor estruturam 0 texto de Mario de Andrade: 0 processo acumulativo da suite e a forma estilistica da variagdo. E sabido também dos miituos interesses de Mario e Carpentier. Narradores, misicos, no raro ambos ensaiaram concep- Ges teatrais semelhantes, retirando da crise das matérias, material para a criti- ca (Aziicar de Carpentier, Café de M. de Andrade); nao raro, também, ambos contaram com 0 mesmo parceiro: Villa-Lobos. Ora, é numa crénica do eseritor cubano, a propésito da série de Picasso sobre Las Meninas, que encontramos uma reflexio que bem parece descrever a intencao de seu colega brasileiro, tan- to no esboco narrative de “Historia com data”, como na realizagao superior de Macunaima: “La ‘Variacién’, como género de composicién musical, es de crea- cién genuinamente espafiola. Nos dicen los tratados que fue su inventor el maes- tro Antonio de Cabezn, misico de corte de Felipe II, euyos admirables “Tien- tos’ constituyen auténticos ‘Preludios’ para instrumento de tecla. Pero la verdad es que el ciego prodigioso, al sistematizar el principio de la variacion, no hacia sino inspirarse en algo que ya practicaban corrientemente algunos vihuelistas de su época, cuando, a base de un tema dado — acaso el de ‘Mirame como loro, o el del ‘Conde Claro’ —, se daban a bordar ‘mudanzas’ en las cuerdas de sus instrumentos, o, entreverandolas con otros temas populares, igualmente trans- formados y floreados, les daban amplitud de ‘ensaladas’ — version primeira de Jo que luego Hamariase ‘pot-pourri’, cosa que, a menos de que la erudicion diga lo contrario, no parece ser sino una traduccién de lo que siempre se llamé, en Espafia, ‘olla podrida’. “La ‘Variacién’ se cultivé enormemente durante los siglos XVIII y XIX. Ha- ce cien afios, habia en Europa una gran cantidad de especialistas en escribir “fantasias’ sobre temas de 6peras famosas — siendo Franz Liszt el mas ilustre de todos ellos — que no eram sino ‘variaciones’, menos rigurosas que las clasicas aunque muy bien hechas para poner en valor el virtuosismo de los grandes eje- cutantes... No parecia, por lo demas, que el arte de la ‘variacién’ pudiese ser Hevado a un terreno que no fuese el de la musica. Nadie pensé que la pintura, por ejemplo, fuera un campo propicio al ejercicio de la ‘variacién’, aunque los sucessivos bocetos y estudios, realizados para la ejecucién definitiva de un cua- Cf. El no existente caballero. La idea de personaje y su evolucién en la narrativa latinoamerica- na, Buenos Aires, Megipolis, 1975, p. 49-50. Macunaima: Apropriagao e originalidade 299 dro, pudiesen ser vistos, en cierto modo, como ‘variaciones’ sobre un tema de- terminado.” * ‘Até para definir a variacao, Carpentier se vé obrigado a realiza-la: varia- cién, tientos, preludios, ensaladas, pot-pourri, traduccién, olla podrida, fanta- sias. Em compensagao, ao realizi-la, define 0 trabalho de superposigao de va- riantes que nos permite falar de cultura. Em 1947, fixando sua Visdo da Améri- ca, Carpentier narra as aventuras dos irmaos Richard e Robert Schomburgk, viajantes naturalistas do século 19, com imaginagao postica a la Chamisso. Ten- do, com seus periddicos informes, enriquecido as deserigdes do jardim de inver- no de A ralé de Zola, 0s Schomburgk tornaram a entrar na literatura pela doa- cao de um volume das Sagradas Escrituras. Com efeito, um dos irmaos explora- dores “en sus andanzas por el Roraima, se creyé obligado — como cuadra a gen- te educada que ha sido civilmente recibida — a hacer un presente al cacique del pequefio poblado arekuna de Camaiguaguin. Ese presente consistia en una Biblia, s6lidamente empastada, Ademés, en un baustismo informal pero corree- to, se dio al jefe el nombre de Jeremias.” “Cuando el visitante hubo partido, Jeremias reunié a sus arekunas, y, com el libro bien abierto delante de los ojos, comenz6 a explicarles el texto sagrado. ‘Al principio fue el Verbo’ Pero, no. Jeremias no sabfa leer. Al principio no fue el Verbo. Fue el Hacha. El hacha de Macunaima, cuyo filo silex — golpea que te golpea, taja que te taja — iba desprendiendo trozos de la corteza del Gran Arbol. A medida que caian al rio, esos trozos de corteza se transformaban en animales. Pero Macunaima no los miraba. Seguia trabajando, allé arriba, en la ramazén, golpea que te golpea, taja que te taja. Y el venado eligié por vivienda las barrancas htimedas; y los pajaros, previsores del nido, anduvieron por entre los bejucos. Y cada uno hizo escuchar su lenguaje, segin su clan y segin su ma- nera. Entonces Macunaima, el mas alto ser, dejé descansar el hacha y cred el hombre. El hombre empezé por dormirse profundamente. Cuando despertd, vio que la mujer yacia a su lado, y fue ley, desde entonces, que la mujer yazga al lado del hombre. Pero hete ahi que el Espiritu Malo, el opuesto al Espirutu Bue- no, obtuvo grande ascendiente entre los hombres. Los hombres, desagradecidos, Letra e Solfa: to de data nem Apoiado, em outra oc vagio de meninas’ de Picasso". E! Nacional, Caracas, 18 jan 1959, p.16. Transcrito, oem El adjetivo y sus arrugas. Buenos Aires, Galerna, 1980. p. 103-5. 0, ["Letra ¢ Solfa: Novela y misica”: Ibidem, 8 nov 1955, p. 16] na obser- turice Blanchot de que A Morte de Virgilio de Broch esti estraturado como um quarteto rigor, como uma sinfonia, Carpentier lamenta que o principio construtivo nfo seja mais ide uma pauta disciplinadora para o romancista: “2Por qué la novela habra de sustracrse casi siem- orden de preocupaciones? Se nos dir que la novela — relato ante todo — equivale a lo que el nombre de “libre composicién: El tema escogido dicta sus leyes y sus escalas de tiempo. Pero podria advertirse también que esa ‘libre composicion’ suele llevar a lo chos casos, a practicar briosamente el arte del ‘impromptu's. Sin embargo, hallamos casos, como el de la novela de Hermann Bréch, donde el afin de cuidar la estructura, la forma, el equilibrio entre la partes, ha dado magnificos resultados (..), No seria interesante que en ciertos casos, los novelistas trae bajaran dentro de una forma determinada, como tan naturalmente lo hacen los mésicos, tratando de ‘compactar lo ereado en un bloque sin fisuras?”.. Em 1964, no prefaicio a Bl otro, el mismo. Bo asartes tendem a condigio da misiea. talvex. porque mela” yutores, en mu de Pater, que todas ama ver que nie pode- do mesmo modo que relatamos um conto. Dai que a poesia seja considerada tum sistema hibrido, menor, de simbolos abstratos que perseguem fins musieais. 300 Rail Antelo habian olvidado a Macunaima y no lo invocaban ya con las alabanzas adecua- das. Por esto, Macunaima envié las grandes aguas, y la tierra toda fue cubierta por las grandes aguas, de las que s6lo un hombre pudo escapar en una curiara. Al cabo de mucho tiempo, opinando que Macunaima estuviera cansado ya de tanto diluvio, el hombre de la curiara despaché una rata, para ver si las aguas habian bajado. La rata volvié con una mazorea de maiz entre las patas. Entonces el hombre de la curiara arrojé piedras detras de si y nacieron los arekunas que, como es sabido, son los hombres preferidos por el Creador. Todo el mundo sabe, ademis, que la Gran Sabana es donde tuvo lugar la creacién. Los hombres que en ella viven son los depositarios de las Grandes Verdades. Y, cada vez que un bélido incandescente surca el cielo — pues se vieron algunos bélidos en un tiem- po que transcurria muy lentamente — todos saben que la gran guacamaya Uatei- ma vuela a la morada del hombre que repoblé el mundo, luego del diluvio.” “Proseguia la ensefianza del cacique Jeremias cuando, en 1903, lo encontré el Dr. Elias Toro cantando en arekuna, sobre su vieja Biblia inglesa. Mas de se- senta afios habian pasado, sin aportar grandes calamidades ni hechos muy me- morables, salvo uno que otro vuelo de la Gran Guacamaya en el cielo. Entretan- to, allé por el aiio 1884, Everard Im Thurm habia ascendido.por vez primera a la cima del Roraima. Pero Jeremias conservaba un imborrable recuerdo del sefior Schomburgk, que fuera su huésped — tan correcto, tan discreto — en el ‘deciamos ayer’ de mas de medio siglo. Entre sus manos, la Biblia habia cobrado categoria de talisman, de objeto magico. El diablo se mofaba de la Reforma, y todavia se estaba en los dias romanticos de bautismos de flores con nombres de princesas alemanas. El tiempo estaba detenido ahi, al pie de las rocas inmuta- bles, desposeido de todo sentido ontoldgico para el frenético hombre de Occi- dente, hacedor de generaciones cada vez mas cortas y endebles. No era el tiem- po que miden nuestros relojes ni nuestros calendarios. Era el tiempo de la Gran Sabana. El tiempo de la tierra en los dias del Génesis.” * ‘A pedra, fazendo de machado, transforma o touro em boi e o herdi em ope- rario. O verbo é Machado, palavra original, e o machado de Macunaima é verbo, criagao. As pedras sao a origem dos arekunds e 0 verbo tornou-se pedra, pois a Biblia é talisma recolhido por um Toro. Juntando ao relato do viajante inglés, a leitura de Koch-Griinberg, Carpen- tier pretende resgatar uma dimensao real-maravilhosa: o tempo da génese, o grau zero da Historia. Intercala, assim, sua palavra entre o real e a interpretagao do mundo, definindo o narrador como a voz dos simbolos. Ora, nao é outra a lig&o de Freud. Em Totem e tabu, texto lido por M: antes da realizagéo de Macunaima, aprendemos, na prépria escritura do en- sion de America: IJ. La Biblia y la ojiva en el ambito del Roraima”. El Nacional, Car 9 nov 1947, p. 8. Transcrito por Alexis Marquez Rodriguez.em Letra y Solfa I: Vision de America. nos Aires, Nemont, 1976, p. 117-124. Para a construcdo desse esboco de Los pasos perdidos, Carpentier niio parece ter partido do texto de Mario de Andrade. Dona Lilia Esteban, vidva de Carpentier, nio lembra da rapsédia de Mério entre os livros do escritor cubano. Houve, sim, em ambos os casos, leitura direta de Koch-Griinberg. Alias, um répido exame na biblioteca de Carpentier (conservada na Bibliote- ca Nacional José Marti de Havana) revela um interesse especifico: os clissicos realistas, sejam eles 0 Machado de Dom Casmurro (em traducio argentina de 1943) ou o Eea de Fradique Mendes (também em versio portenha de 1938). Macunaima: Apropriagao e originalidade 301 saio, o principio que esté sendo pesquisado: a bricolagem de discursos. Com efeito, é a hipétese do discurso fantastico da horda primitiva, superposto ao discurso etnografico do repasto totémico e confrontado, ainda, com o discurso psicanali- tico que vé, no pai morto, a fungao do nome, capaz de operar o corte, instituir a obediéncia retrospectiva ¢ fundar 0 simbélico, 0 que permite a Freud ver na rede intertextual uma condigao de possibilidade da hipétese cultural ¢ do pré- prio principio de identidade. ‘Ja nesse esboco que é “Histéria com data’, Mario de Andrade passa a en- saiar a idéia de que ¢ a partir do desconjuntado que se organiza a identidade, idéia que levara adiante em Macunaima, através da figura do Boi, reunido na- cional dos atributos da tribo. A rede intertextual produz, assim, relagbes signifi- cativas entre discursos, relagdes nada aleatérias, pois que fixam um novo hori- zonte de expectativas no criador e no leitor. Cabe, no entanto, ao autor, o papel principal, enquanto agente semidtico da dialogagio textual, na medida em que transforma a simples cacofonia plurienunciativa em verdadeira harmonia inter- textual, mereé de operadores précisos: a fragmentacao ¢ a digressdo discursivas, a fungdo alusiva das citagSes, a metanarragio. ‘A pedra, a escritura; a lex, aleph. O narrador de Macunaima nao é 0 autor onisciente nem uma voz narrativa absoluta, Pode ser que por tras dessa mascara se oculte, como quer W. Kayser, “o criador mitico do universo”. Prefiro pensar que esse narrador alimenta a tensdo dialética que se estabelece entre a forma simbélica ¢ a forma interna, auto-regulada; entre um fato de langue e um fato de parole, enfim, entre a obrigatoriedade cega da lei ¢ a constante variabilidade das normas que pautam a raps6dia. Por esse motivo, precisamente, as homolo- gias da rapsédia nao se esgotam nem se limitam as redefinigdes do velho projeto realista, tais como 0 realismo indigenista, o romance afro-cubano ¢ 0 realismo migico. Pelo contrério, a sintonia se afianca com as novas formas da prosa expe- rimental hispano-americana, embora Sail Yurkievitch reserve um lugar absolu- tamente singular a Macunaima, no espectro da vanguarda continental. ° Ou talver por isso mesmo Macunaima no possa dialogar com 0 romance latino- -americano seu contempordneo, mas com textos marginais, como os dos viajan- tes ¢ etnélogos europeus — Th. W. Panzel, W. Mann, ou W. Schmidt. Com quem dialogar? Astirias? Galvez? Giiiraldes? “Giiraldes so tem de modernista o ser precursor de renovagio com 0 El Cencerro de Cristal. No resto todo da obra dele 6 um escritor sem facgao dos que ficam por cima das épocas, mais respeita- dos de sua personalidade que da veleidade das inovagées. Foram os apreciado- res dele, os que souberam na Argentina perceber milhor a grandeza dele, espe- cialmemte os martinfierristas que 0 atraindo pra eles ou indo a ele, 0 cobriram ‘com 0 manto de modernidade. Mais ou menos o caso de Paul Valéry pra Franca e de Unamuno pra Espanha e de Pirandello pra Italia.” 7 Ja que 0 paradoxo © “Sobre la vanguardia literaria en America Latina” in A través de la trama. Barcelona, Much- nik, 1984, p. 24. 2 ANDRADE, Mario de — Anotagdo marginal em GUIRALDES, Ricardo — Raucho: momentos de una juventud contempordnea, Buenos Aires, Tragant, 1917. (0 exemplar encontra-se no Instituto de Brasileiros da USP). Repete o comentario com variantes no artigo “Literatura moderna argenti- na". Didrio Nacional, Sao Paulo, 28 maio 1928. 302 Rail Antelo do narrador dialoguista é ser condenado ao mondlogo, seu trabalho consiste em corrigir os velhos — Valéry, Pirandello, Unamuno —e reler a tradigao. Borges: “Yo, por ejemplo, me propuse demasiados fines: remedar ciertas fealdades (que me gustaban) de Miguel de Unamuno, ser un escritor espafiol del siglo diecisie- te, ser Macedonio Fernandez, descubrir las metaforas que Lugones ya habia des. cubierto”. " Remedar, renovar. Gadda: “rinnova, qui, significa ‘ripete’, ‘ridice’ in una disciplina espressiva ma necessariamente conservativa(...) Non credo a una storicizzazzione della lingua, intesa come possibile ‘faraonizzazione’ 0 balsamazione della lingua stessa”. ° Renovar significa nivelar e desnivelar, ten- der ao pasticciaccio rapsédico de Gada. Ainda Borges: “un puiiadito de gra- matiquerias claro esté que no basta para engendrar vocablos que alcancen vida de inmortalidad en las mentes. Lo que persigo es despertarle a cada eseritor la conciencia de que el idioma apenas si esté bosquejado y de que es gloria y deber suyo (nuestro y de todos) el multiplicarlo y variarlo”. "Borges repete Valéry. Gadda renova Pirandello. Unamuno moido por Macedonio ¢ Macedonio muda- do em Borges. Llriginalité, affaire d’estomac. Renovar: deslocar. Empurrar as margens ¢ abrigar o marginal." Unamuno: “Y aqui entra lo de la aceién y la TT de a en ee (Si en las siguientes paginas hay algiin verso logrado, perdéneme el lector el atrevimiento de haberlo compuesto yo antes que él. Todos somos un Borges parece corrigir Giiraldes, o poeta que em seu “Prisma” (El Cencerro de Cristal) confess tengo aptitudes de miquina para transformar bellezas en utilidades, y si algo hay de verdad en mis eser tos, culpa mia no es". Borges corrige Gitiraldes, que corrige Macedonio. Em “Literatura modernista argentina” (Didrio Nacional, 8, Paulo, 13 maio 1928) Maio jt pressen- tia que Borges acabaria deslocando Giiraldes: “Sera talvez ele quem vai substituir Ricardo Giiiraldes ¢ consolar com uma presenca de intimidade a meméria do morto”. Anos mais tarde, em O Banquete, parece pensar em Giiiraldes quando condena aqueles que, idiotizados pela vaidade, alimentam “a & tonta de serem considerados pelos modernistas, modernos também”, ° “Processo alla lingua italiana” in Il tempo e le opere. Saggi note e divagazzioni. A cura di Dan- te Isella. Milano, Adelphi, 1982, p. 95-7. Se o estranhamento, para Mario, podia residir no texto europeu ‘ou no cultismo, para Gadda, engenheiro principiante na América, 0 estranhamento pode estar na viven- cia deslocada de europeu derraciné, na vaidade femini “por isso hei de anotar com orgulho que em mim existe € opera uma carga narcisista; sem eu saber: talvez me seja atributda, dda mesma maneira que na Avenida de Maio os homens, as mulheres os cachorros se voltavam para ‘me olhar, por uma gabardine que, por assim dizer, no sabia que levava comigo". O estranhamento do capote: um tépico. Ver GADDA, Carlo Emilio — “Come lavoro” in I viaggi, la morte (1949). Cito pela tradugio espa: nhola Dos relatos y un ensayo. Barcelona, Tusquets, 1970, p. 98. " “EL idioma infinite”. Proa, a.2, n2 12, Buenos Aires, jul 1925, p. 45-6. Mério possuia o texto em sua biblioteca, bem como a primeira edigdo de El idioma de los argentinos. 4 Trata-se de procedimento muito comum na obra de Borges. No prologo a edigéo de 1954 da His- t6ria universal de la infamia, o escritor adverte que “en su texto, que es de entonacién orillera (vale dizer, marginal), se notar& que he intercalado algunas palabras cultas; visceras, conversiones, etc, Lo hice porque el compadre aspira a la finura, o (esta razin excluye la otra pero ¢s quizé la verdadera) porque los compadres son individuos y no hablan siempre como el Compadre, que es una figura plat No seréscimo de 1952 ao “Epilogo” de El Aleph que, como se sabe, representa sua teoria do caréter nacional, confessa ter tirado a idéia de “La espera” de uma eréniea policial, 95 que “el sujeto de la erd- nica era turco; lo hice italiano para intuirlo con mas facilidad”; ao passo que outra histéria, “El hombre en el umbral”, partiu de uma observacio de Borges num cortigo da rua Parand mas foi situada, narrativa- mente, na India “para que su inverosimilitud fuera tolerable”. Em 1970. no prélogo a El informe de Brodie, Borges relembra que alguém teria cobrado a Roberto do homem a fazer: Macunatma: Apropriagdo e originalidade 303 contemplacién, la politica y la novela, La accién es contemplativa, la contempla- cién es activa; la politica es novelesca y la novela es politica’. Se o fim altimo da intertextualidade é 0 deslocamento do horizonte de ex- pectativas do leitor, Macunaima s6 poderia a rigor ter um tinico leitor: Guima- ries Rosa. E essa a politica do romance: a estratégia para a mudanca de formas e valores. Quem narra a historia de Macunaima? “(Quem que podia saber do heréi?” Um papagaio conta ao homem, “falando numa fala mansa, muito nova, muito! que era canto e que era cachiri com mel-de-pau, que era boa e possuia a traigio das frutas desconhecidas do mato (...) E86 0 papagaio no siléncio do Uraricoera preservava do esquecimento 0s casos ea fala desaparecida. Sé 0 papagaio con- servava no siléncio as frases e feitos do heréi. Tudo ele contou pro homem e de- pois abriu asa rumo de Lisboa, Eo homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a histéria”. Um narrador e um narrador aparente. 0 papagaio e o cantador carrapento. ‘Um, sem escritura; outro, sem terra. Ambos posseiros. O papagaio copia; 0 can- tador transforma a matéria em valor. O papagaio é plagiério — literalmente, la- drao de escravos, como Lazarus Morell, aquele contrabandista que morre em Natchez, onde a Europa descobre a América. O papagaio, porém, morre em Lis boa. O cantador, em desafios, é parodista. Um Isidro Parodi do canto. Alids, ar- tista e detetive em muito coincidem: sem familia, sem profissao e sem fortuna, ambos so anti-sociedade e anti-Estado. Dai que o desafio deste cantador possa ser visto como contraponto com o Retrato do Brasil de Paulo Prado. O sem es- critura ¢ o sem terra lutam contra o escritor com posses. Mas quem arquiteta o acordo entre os parceiros — 0 letrado que transcreve 0 texto — fica, a rigor, ‘embutido, mascarado por tras do cantador. O repentista empresta a mascara ao passo que o letrado dubla 0 cantador. 0 objeto da controvérsia é um 86: como interpretar a tristeza e a preguica? Para o cantador, trata-se de valores de écio e contemplagiio. Para o ensaista, de resistencia ao moderno. Confirma-se: a con- templagao é politica e a politica ficefo. ‘Um narrador e um narrador aparente. Se o narrador-cantador disputa a he- gemonia com o escritor elegante, néo abdica por isso de sua condigao global: © cantador representa a raga. Paulo Prado é, como Gitiraldes, um des(g)racado. No interior do conto as fungdes, porém, podem permutar-se. O papagaio conta ahistéria ao cantador. O papagaio, ser décil que s6 copia, “socarrén, perspicaz, sonoro”, usa sua “ladina lengua negra” para construir uma bobagem errada com dados verdadeiros. ® Ora o papagaio, com ser ladino, nao é sincero, nao tra- ‘Arit um total desconhecimento do Iunfardo, da linguagem dialetal do subirbio, Arlt argumentou que, nascido e eriado entre gente pobre, nio lhe sobrou tempo para estudar essas coisas. Por isso Borges ano- ta "He situado mis cuentos un poco lejos, ya en el tiempo, ya en el espacio. La imaginacion puede obrar asi con mis liberdad £Quién en mil novecientos setenta recordar con precisién lo que fueron, a fines del siglo anterior, los arrabales de Palermo o de Lomas? Por increible que parezea, hay escrupulosos “que ejercen la policia de las pequefias distracciones”. A desgeograficagdo (Mario) &0 ato falho da meméria. 1 Cémo se hace una novela. 13% ed. Madrid. Alianza, 1985, p. 185. 8 As expreasdes entre aspas pertencem ao poema “El loro”, de Leopoldo Lugones. Mario comen- ta (“Poesia argentina’, Didrio Nacional, 30 out 1927): “Lagones conseguiu 0 recorde inconcebivel de construir uma bobagem errada unicamente com dados verdadeiros. Me lembrei daquele papagaio ‘so- 304 Ratil Antelo balha. Quem trabalha é 0 cantador. Eu, o narrador, sou o cantador, Em “La forma de la espada” (1942), Borges ativa 0 mesmo principio de permutagao. Um inglés (que na verdade é irlandés) marcado no rosto por uma cicatriz, conta a Borges a histéria de um bando de terroristas. Entre eles havia um traidor, John Vincent Moon. 0 inglés 6 indicado para mati-lo e, wo dar com ele, cruza-the itologias de roubo de bois, que outrora foram heréis e peixes, alter- s linguas de um desterritorializado: um “inglés” que vive na fron- teira do Rio Grande e do Uruguai. No entanto, a fala, que mistura inglés:com espanhol e portugués, se 1é em criollo, em moderno. 0 narrador aparente entre- ga a quem o acolhe: Moon é um traidor. 0 narrador também entrega a quem o acolhe: Borges é um tradutor. A fala nova possui a traigao do desconhecido. © papagaio fala na fala da tribo. O cantador numa fala nova, muito! e dé “un sens plus pur aux mots de la tribu”. Por isso o letrado que o transcreve se torna um escritor dificil. (O que é dificil é sempre novo. A forma é repeticio.) Depois que Macunaima insinua a forma da espada, 0 corte se normaliza. Reaparece, em “Lejana” de Cortizar com a enfastiada Alina Reyes, permutada em mendiga. Reaparece no final de Paradiso, quando Lezama Lima cruza e con- funde José Cemi e Opiano Licario, 0 eritico ¢ 0 soldado. “Era la misma voz pero modulada en otro registro.” Era, a rigor, uma voz antiga, colhida ja na poesi gauchesca. “Desmemoriado e versatil (0 cantador) néo possuia romances tradi- cionais desses que se perpetuam de pais e filhos, sem alterar fundamentalmente o texto, Sua caracteristica era o improviso, geralmente lirico e, as vezes, picares- co. Abandonado a fantasia e & inspiragdo do momento, tanto no poético quanto no econémico, 0 gaticho viveu sempre apertado. Seu habito de quase nao repetir as trovas alheias e de esquecé-las a par de sua aptidio imaginativa para improvi- sar, acompanhado da viola, produziram o arquétipo da raca: 0 cantador! Era profissional da poesia'e da misica, o rapsodo errante que as mocas disputavam € que ia de pago em pago, mostrando sua incomparivel destreza. Por isso nin- guém o igualava em inventar a quadra com que dois cantores se lancavam ao desafio, perante a roda do piblico e animados pelos aplausos.” " Delegar a pa- lavra ao cantador vem, assim, reforcar 0 pacto entre pares (“o homem sou eu, minha gente!”, ou seja, ele = eu) compadres que se enfrentam a um inimigo co- mum: 0 capital, o passado. Luta ambigua porque a fala nova, por ser moderna, pressupde um certo capital acumulado pelo narrador: é ele que sabe do herdi, carrén, perspieaz, sonoro’ do muito, pasticl 1¢ 0 proprio Lagones descreve no Libro de los Paisajes”: O papagaio, quan: Jé-o cantador vislumbra que o artista tem de “fazer melhor”, que toda obra d ipalmente a de combate, exige as “técnicas do inacabado”, como Mario estipulara de O Banquete. ‘arlos O. — “Introduccién” in HERNANDEZ, José — Martin Fierro y la vuelta de Martin Fierro. Buenos Aires, La Cultura Argentina, 1926. O exemplar lido por Mario de Andrade con- serva uma nota marginal, “desafio", e tragos destacando 0s conceitos de payador e payada de contra- punto. Josefina Ludmer resgata, precisamente, duas estratégias fundamentais no géne Tamento, Baseio-me em seus trabalhos “2Quién educa’ logia, Buenos Aires, a.xx, num.1, 1985, p. 103-116; “Tretas del débil”, Tiempo Argentino, Buenos Aires, 14 set 1986, e na com apresentada ao J Seminério Latino-Americano de deral do Rio Grande do Sul, set 1986. Macunaima: Apropriagéo e originalidade 305 é ele que conhece a fala. Luta ambigua, ainda, porque nao demoniza o inimigo, expulsando-o extramuros, Ele esta em nés, 0 que produz 0 estranhamento de espagos e situages sdlitas. No fluxo da enunciagao e do enunciado vai se enxertando um dispositivo po- lissemiético e problematic: moderno e nacional, arcaico e cosmopolita. De fa- to, assim fazendo, Macunatma abre novas perspectivas para a ficgio latino- -americana enquanto valor transmimético capaz de produzir outras estruturas de mediagao entre 0 mundo real e a fala nova. “La littérature, aussi, se meut entre le réalisme et le nominalisme — entre la croyance a la description exacte, 4 la création d’objects par les mots — et le libre jeu de mots. Jamais contact plus étroit que lorsque Zola et Banville vivaient 4 deux quarts d’heure l'un de Tautre. Rue de 'Eperon, rue de Douai.” 1S VALERY, Paul — “Tel quel” in Oeuvres. Ed. établie et annotée par Jean Hytier. Paris, Galli- mard, 1960, vol. 2, p. 639.

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