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ENTENDA
COMO
FUNCIONA O
COMPLEXO
SISTEMA DE
TRANSPLANTE
DE ÓRGÃOS
A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 379 OUTUBRO DE 2023 NO BRASIL

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VOCÊ TEM
TDAH?
EM MEIO A ONDA DE
AUTODIAGNÓSTICOS
NAS REDES SOCIAIS,
ESPECIALISTAS SE PREOCUPAM
COM BANALIZAÇÃO DO
TRANSTORNO
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COMPOSIÇÃO
OUTUBRO DE 2023

FOTOMÉDICOS
03
CAPA

TDAH VIROU
MODA NAS REDES
SOCIAIS: QUAIS OS
PRÓS E CONTRAS
DISSO?

“A gente tem que fazer da matemática


algo acessível para todos”
21 Entrevista com Jaqueline Godoy Mesquita

36
SAÚDE

APESAR DE SER REFERÊNCIA,


BRASIL TEM DESAFIOS EM
TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS 50
QUER QUE EU DESENHE?
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COMPORTAMENTO
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Feu DESIGN Flavia Hashimoto

NAS REDES SOCIAIS, O TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO COM HIPERATIVIDADE


(TDAH) TEM VIRADO SINÔNIMO DE ESQUECIMENTOS PONTUAIS OU DESORGANIZAÇÃO,
LEVANDO A UMA ONDA DE AUTODIAGNÓSTICOS E À BANALIZAÇÃO DE UMA CONDIÇÃO
QUE TRAZ PREJUÍZOS REAIS PARA QUEM (DE FATO) CONVIVE COM ELA

VOCÊ TEM
TDAH?
10.000 Views
E
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Em 2021, a psicóloga Margaret Sibley, pro-


fessora da faculdade de medicina na Univer-
sidade de Washington, nos Estados Unidos, e
especialista em Transtorno do Déficit de Aten-
ção com Hiperatividade (TDAH), começou a
receber uma enxurrada de anúncios convidan-
do-a a buscar ajuda para tratar o transtorno.
De testes que prometiam um diagnóstico em
um minuto a jogos que permitiriam “zerar” o
cérebro, tudo era obra de um mal-entendido
algorítmico diante do histórico de pesquisas
acadêmicas online de Sibley. Curiosamente,
dois anos depois, o mesmo aconteceu comigo
quando a entrevistei para esta reportagem.

Poucas horas depois da nossa conversa, que gra-


vei no celular, passei a receber uma enxurrada
de propagandas de aplicativos que prometiam
me ajudar a lidar com o transtorno. Em menos
de 24 horas, contei 20 anúncios, que iam de li-
vros sobre o assunto a testes de diagnóstico em
menos de um minuto — o mais chocante foi o
que afirmou que tenho problemas de memória,
sintomas de falta de atenção e de hiperexcita-
ção emocional. Tudo porque marquei que “oca-
sionalmente” esqueço onde coloquei o celular,
“ocasionalmente” esqueço o que acabei de ler e
“nem sempre” gosto de receber críticas.
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Mais do que assustar pela confirmação de que somos vigiados por


nossos celulares, os anúncios evidenciam o fortalecimento de uma
tendência observada por Sibley nos últimos anos: o TDAH está na
moda, especialmente nas redes sociais. O transtorno — cujos prin-
cipais sintomas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde
(OMS), são falta de atenção e dificuldade para manter o foco, além
de movimentos excessivos e inapropriados para o ambiente e im-
pulsividade — é tema não só das propagandas, mas de conteúdo
gerado pelos próprios usuários. No Instagram, a hashtag #ADHD
(TDAH na sigla em inglês) acumulou 3,8 milhões de publicações até
o dia 29 de setembro; em português, foram 1,1 milhão. No TikTok,
vídeos com a #ADHD tiveram mais de 30 bilhões de visualizações e,
nos últimos 120 dias, o uso do termo “your ADHD type” (seu tipo de
TDAH) teve um aumento de 1150%.

Para além das hashtags, os diagnósticos também se multiplicam.


“Dados do Centros de Controle e Prevenção de Doenças [CDC, na
sigla em inglês] mostram que, desde o início de 2000, tem havido
um aumento constante nos diagnósticos de TDAH em pessoas de
todas as idades”, explica Margaret Sibley a GALILEU. “E, de repente,
de 2020 para 2021, a tendência acelerou de um jeito que pareceu
anormal.” De acordo com o CDC, o índice de mulheres com idades
entre 15 e 44 anos e de homens de 25 a 44 anos com prescrição para
estimulantes aumentou mais de 10% nesses dois anos. Não à toa, no
ano passado, a Food and Drug Administration (FDA), departamento
de controle de medicamentos e alimentos dos EUA, anunciou a es-
cassez de remédios usados no tratamento — que seguem em falta.
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Publicado no último dia 18 de setembro no periódico Pediatrics,


um estudo realizado por pesquisadores do Centro de Pesquisa e
Política de Lesões e do Centro de Intoxicação do Hospital Infantil
Nationwide, em Ohio, nos Estados Unidos, concluiu que houve um
aumento de 299% nos erros médicos entre 2000 e 2021 envol-
vendo TDAH no país norte-americano. A pesquisa se baseou em
dados sobre a administração extra-hospitalar de remédios entre
pessoas com menos de 20 anos. Os cenários mais comuns foram,
nesta ordem, medicação inadvertidamente administrada duas ve-
zes; administração de remédios de outra pessoa e administração
da medicação errada. Aproximadamente 93% das exposições ao
erro ocorreram em casa, sendo que a faixa etária de 6 a 12 anos
corresponde a 67% dos relatos. No total, foram registrados 87.691
casos envolvendo medicamentos para TDAH como a substância
primária no período e faixa etária analisados.

Mas chama a atenção também o fato de adultos estarem receben-


do diagnósticos. Em abril, a cantora britânica Lily Allen, de 37 anos,
disse em entrevista ao The Times que precisou se desconectar das
redes sociais após ser diagnosticada com o transtorno. Em julho,
foi a vez da atriz e cantora brasileira Cleo revelar que havia des-
coberto o TDAH. Essa percepção é corroborada pela ciência. Uma
pesquisa publicada em 2019 no periódico JAMA Network Open
observou um aumento na incidência de TDAH em adultos nos Es-
tados Unidos: de 9,43 casos a cada 10 mil pessoas em 2007 para
13,49 casos a cada 10 mil em 2016.
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“Esse é um transtorno de neurodesenvolvimento que acompanha


as pessoas ao longo da vida, com melhoras e pioras. Se a pessoa
não o tinha lá atrás [na infância], ela não vai tê-lo depois; ou talvez
tinha e não recebeu o diagnóstico”, aponta a psiquiatra Danielle
H. Admoni, especialista em infância e adolescência e preceptora
na residência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Se-
gundo a OMS, o transtorno afeta entre 5% e 8% das crianças, e
frequentemente perdura até a vida adulta.

Dados divulgados em março pelo Google Trends, ferramenta que


mostra a evolução das buscas no Google ao longo do tempo, mos-
tram que as pesquisas relacionadas ao TDAH dobraram no Brasil
nos últimos dois anos. A alta nacional foi acima 100% — no resto
do mundo, o aumento nas pesquisas foi de 60%. Nos 12 meses an-
teriores analisados, as perguntas que os brasileiros mais fizeram
sobre o transtorno foram, em primeiro lugar, “O que é TDAH?” e,
em segundo, “como saber se tenho TDAH?”.

Todo esse “hype” tem preocupado especialistas. Se por um lado é


positivo o fato de ter contribuído para a redução do estigma, por
outro pode estar levando a uma banalização da condição. “Me preo-
cupo que a gente esteja com dificuldade de equilibrar o que é infor-
mação baseada em evidência, e essa ideia criada por colaboração
coletiva do que seria o TDAH”, pondera Sibley. “Ambos deveriam
dialogar e chegar a algo que ajude a definir a experiência moderna
de uma pessoa com o transtorno, mas temo que estejam entrando
em conflito. E isso pode gerar muita confusão sobre o que é TDAH.”
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DESAFIO DO DIAGNÓSTICO
Descrito em 1968 na segunda edição do Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), or-
ganizado pela Associação Americana de Psiquiatria e considerado
a principal referência de saúde mental, o TDAH é conhecido desde
pelo menos 1798. Naquele ano, o médico escocês Sir Alexander
Crichton publicou um livro no qual descreveu uma condição em
que algumas pessoas facilmente se distraíam e perdiam o foco,
com sintomas que começariam na infância. Em 1844, o médico ale-
mão Heinrich Hoffmann criou a história infantil Fidgety Phil (“Phil
Inquieto”, em tradução livre), em que ilustra um conflito familiar
durante um jantar causado pelo comportamento agitado de uma
criança — imagem até hoje usada para representar o transtorno.

Mas foi só a partir de 1902 que o estudo científico sobre o TDAH


começou a se consolidar. Em uma série de três palestras realizadas
naquele ano no Royal College of Physicians de Londres, o médico Sir
George Frederic Still descreveu o que chamou de “defeito de con-
trole moral” observado em 20 crianças saudáveis e com inteligência
normal. Entre os sintomas estavam impulsividade, falta de controle
das emoções e incapacidade de sustentar a atenção. Trinta e qua-
tro anos depois, a FDA aprovou a benzedrina, primeira anfetamina
(medicamento estimulante) usado para tratar os sintomas do TDAH.

Publicado em 2013 e revisado em 2022, o DSM-5 descreve o TDAH


como um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por
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FOTOMÉDICOS

um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade que in-


terfere com o funcionamento e desenvolvimento do indivíduo. Es-
ses sintomas devem estar presentes por pelo menos seis meses,
em ao menos dois ambientes diferentes (por exemplo, na escola e
em casa) e causarem prejuízos significativos na vida social, acadê-
mica ou laboral. O guia classifica ainda o transtorno em três sub-
tipos: com predominância de desatenção, com predominância de
hiperatividade e impulsividade e com ambas as características.

O problema é que não se sabe ao certo as causas do distúrbio, o que


poderia contribuir para a prevenção ou, pelo menos, um diagnóstico
mais assertivo. Isso porque, apesar de bem classificados, os sinto-
mas de TDAH são parecidos com os de muitos outros transtornos
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TRABALHO DE DETETIVE
Não existem exames para diagnosticar TDAH, que exige uma investigação
clínica longa e detalhada, com diversas etapas de avaliação

PERCEPÇÃO DOS SINTOMAS 1. Entrevista clínica: pode envolver não


O primeiro passo do diagnóstico é a só a anamnese com o paciente, mas
percepção dos sintomas do TDAH. Em entrevistas estruturadas com pais e
crianças, os sinais começam a refletir cuidadores.
no desempenho escolar ou social, e 2. Análise de histórico médico: revisar
são notados por professores e pais. o histórico médico do paciente
Adultos que não tiveram um diagnóstico é essencial, uma vez que outras
precoce acabam se “acostumando” com condições podem mimetizar ou
a condição e, em geral, só percebem a mascarar os sintomas de TDAH,
existência dela anos mais tarde. como autismo, ansiedade, depressão
e transtorno bipolar.

CONSULTA MÉDICA 3. Teste psicológico: sozinhos, testes


psicológicos não diagnosticam
O diagnóstico correto do TDAH só
o TDAH, tampouco existe um
pode ser realizado por um profissional
procedimento de atenção para medir
da saúde habilitado e especializado:
o nível de transtorno. Mas médicos
neurologista ou psiquiatra. No caso
podem aplicar exames como forma
de crianças, os pediatras podem
de complementar o diagnóstico.
contribuir com um diagnóstico prévio
e encaminhar o paciente para um
especialista. Um teste comum aplicado DIAGNÓSTICO DE EXCLUSÃO
nesta etapa é o SNAP IV, voltado para
O profissional de saúde pode solicitar
crianças e adolescentes e baseado nos
ainda exames complementares ou
critérios do DSM-5.
encaminhar o paciente a outros
especialistas para checar se há outros
AVALIAÇÃO CLÍNICA problemas de saúde ou transtornos
Não existem exames para diagnosticar que podem estar simulando os
TDAH. Assim como outras condições sintomas do TDAH.
psiquiátricas, o diagnóstico é clínico. Se os sinais ocorrem apenas durante
Pela complexidade do transtorno, essa o curso de outra doença, ou se são
etapa costuma ser longa e detalhada, e explicados por outro quadro, o
envolve avaliações em diversos passos: diagnóstico de TDAH é descartado.
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— e o distúrbio é também um fator de risco para


comorbidades (saiba mais na página 20). “Então,
só porque alguém também está deprimido, não
significa que não tenha TDAH. Mas, às vezes, a
depressão sozinha pode parecer TDAH para um
olho destreinado”, observa Sibley. “É trabalho de
detetive conseguir informações o suficiente so-
bre uma pessoa para tomar a decisão correta.”

A assistente administrativa paulistana Marina


Martins Costa, de 31 anos, viveu isso recente-
mente. Durante a pandemia, ela passou a ter
problemas de memória. Inicialmente, pensou
ser sintoma de Covid-19, mas um ano depois,
sem melhorar, decidiu buscar ajuda. “Fui na
psiquiatra, ela disse que eu tinha transtorno de
ansiedade generalizada, passou uma medica-
ção e fui melhorando”, conta. Vieram então os

“EU GOSTARIA QUE AS PESSOAS SOUBESSEM QUE


NÃO É FRESCURA, NÃO É DESCULPA, QUE A PESSOA
TEM FORÇA DE VONTADE PARA FAZER AS COISAS, MAS
SIMPLESMENTE NÃO CONSEGUE”
Marina Martins Costa, de 31 anos, diagnosticada com TDAH já adulta
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problemas de concentração — e a desconfiança de TDAH. “Quan-


do eu era pequena, sempre percebi que era um pouco desatenta,
cheguei a repetir o segundo ano do ensino médio, mas fui levan-
do, porque na época [o TDAH] não era algo tão falado”, continua.
“Como essa avaliação é muito cara e nenhum convênio cobre, a
psiquiatra ficou adiando para ver se a medicação ajudava.” Um
ano depois, resolveu fazer a avaliação.

Foram dez sessões com uma neuropsicóloga, cada uma de 50 mi-


nutos, em que ela fazia testes de vários formatos: de desenho a
conhecimentos gerais, e até questionários sobre a infância e vida
adulta. O custo total para obter o laudo ultrapassou R$ 2 mil. “Não
é legal saber que tenho um transtorno, mas é como se eu me sen-
tisse um pouco aliviada em saber que muitos dos meus problemas
eram mais mentais do que características minhas”, afirma.

Com o tratamento, Costa identificou mudanças em seu próprio


comportamento, além de melhora na atenção. “Eu gostaria que as
pessoas soubessem que não é frescura, não é desculpa, que a pes-
soa tem força de vontade para fazer as coisas, mas simplesmente
não consegue. Isso acaba gerando muito sofrimento”, conclui.

TRATAMENTO MULTIDISCIPLINAR
Segundo a psicóloga Fernanda Gonçalves, que trabalha com ava-
liação psicológica há 24 anos, hoje o diagnóstico de TDAH “não apa-
vora”, pois já existem diferentes recursos para tratá-lo. Mas ainda
há algumas barreiras. “O senso comum é de que o tratamento é
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simples, mas não é tão preto no branco”, reclama o administrador


Yuri Maia, criador do canal TDAH descomplicado, com 214 mil ins-
critos no YouTube e 216 mil seguidores no Instagram. Isso porque o
cuidado envolve uma abordagem multidisciplinar que vai além da
medicação — essa, aliás, pode ter efeitos colaterais desagradáveis,
como insônia e alterações de humor, além do risco de gerar depen-
dência. “Precisamos de um tratamento completo, com adaptações
na escola ou no trabalho, terapia semanal, mudanças de hábitos
de vida e medicação”, explica Maia que, aos 40 anos e diagnostica-
do com o transtorno desde os 7, se transformou em uma espécie
de “ativista do TDAH”, a ponto de concluir uma pós-graduação em
Neuropsicologia e Problemas de Aprendizagem.

O custo disso tudo é alto. Só para a medicação, que não está


disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), uma pessoa pode
gastar entre R$ 50 (preço médio da caixa com 30 comprimidos
de metilfenidato, mais conhecido como Ritalina) e R$ 400 (valor
da caixa de lisdexanfetamina, vendida com o nome de Venvanse,
cujos efeitos são mais duradouros). Em julho, a Agência Nacio-
nal de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou no Brasil o primeiro
medicamento à base de atomoxetina, que não é considerado es-
timulante e promete reduzir o risco de dependência. Ainda não
há informações sobre o preço do remédio, que deve começar a
ser comercializado em outubro. Nos Estados Unidos, ele custa em
média US$ 120 (aproximadamente R$ 600).
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A questão demanda uma abordagem que tam-


bém passa pela política. Embora o TDAH pre-
judique o desenvolvimento e dificulte a re-
alização de determinadas tarefas, ele não é
considerado uma deficiência — no Brasil, a Lei
nº 13.146/2015, mais conhecida como Estatuto
da Pessoa com Deficiência, considera pessoa
com deficiência aquela que “tem impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, inte-
lectual ou sensorial, o qual, em interação com
uma ou mais barreiras, pode obstruir sua parti-
cipação plena e efetiva na sociedade em igual-
dade de condições com as demais pessoas”.
Isso coloca os indivíduos com TDAH em uma
espécie de “limbo” jurídico.

“ME PREOCUPO QUE A GENTE ESTEJA COM DIFICULDADE


DE EQUILIBRAR O QUE É INFORMAÇÃO BASEADA EM
EVIDÊNCIA E ESSA IDEIA CRIADA POR COLABORAÇÃO
COLETIVA DO QUE SERIA O TDAH”
Margaret Sibley, psicóloga e professora da Universidade de Washington, nos EUA
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Há dois anos, uma nova lei especificamente voltada para o trans-


torno do déficit de atenção e hiperatividade foi sancionada. A Lei
nº 14.254/2021 dispõe sobre o acompanhamento integral para
estudantes com TDAH ou outros transtornos de aprendizagem
e estabelece que o poder público deve manter programas de
acompanhamento para os alunos. Isso deve incluir diagnóstico e
tratamento para os jovens e até apoio aos familiares.

No mesmo ano, foi criado o Projeto de Lei 2630/21, com o objetivo


de criar uma Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com TDAH, o que incluiria também adultos. “Hoje não existe nada
que proteja o TDAH adulto no mercado de trabalho”, aponta Maia,
que destaca a dificuldade dos pacientes de conseguirem permane-
cer na função por longos períodos. Entre as adaptações sugeridas
estão locais silenciosos para trabalhar e mudança de setor antes da
demissão por baixa produtividade. “As coisas têm que ser feitas em
paralelo, com projetos de lei para pessoas que foram corretamente
diagnosticadas, e um trabalho no Ministério da Saúde para garantir
acesso ao diagnóstico e à medicação”, opina.

O DILEMA DAS REDES


Essa não parece ser a realidade nas redes sociais, onde o trans-
torno é visto mais como justificativa para determinados compor-
tamentos do que uma condição complexa que exige cuidados es-
pecíficos. “As pessoas têm falado bastante sobre TDAH. Verifico
que boa parte delas, mais da metade, fala de maneira tranquila,
mas em outras vejo bastante inconsequência”, reclama Yuri Maia.
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FOTOMÉDICOS
FOTOMÉDICOS

FOTOMÉDICOS

“Muitas pessoas têm comportamentos humanos que podem levá-


-las a crer que têm TDAH, mas é um problema assimilar comporta-
mentos humanos a traços do transtorno, é quase um capacitismo.
Ninguém tem ‘um pouco’ de TDAH.”

Na opinião da especialista da Universidade de Washington, existe


um certo conforto psicológico em poder dizer “não estou tão bem
quanto o meu vizinho, mas não é culpa minha, porque eu tenho
essa condição.” “É uma mensagem muito empoderadora, mas tam-
bém é um incentivo a se identificar com algo só porque ajuda você
a fazer as pazes com sentimentos ruins que talvez tenha em rela-
ção a si mesmo”, explica Sibley.
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A psiquiatra da Unifesp engrossa o coro, e completa destacando


que o nível de exigência da sociedade atualmente pode levar mui-
ta gente a crer que tem TDAH. “Existe essa exigência de atenção,
de manter o foco em um milhão de coisas, de saber o tempo todo
tudo o que está acontecendo. Não tem como dar conta disso, você
começa a deixar outras coisas de lado”, analisa Danielle H. Admoni.
“A gente criou um padrão de exigência, de perfeição, de funciona-
mento e de metas que é inatingível”, pontua.

Na visão da psicóloga Fernanda Gonçalves, o que vemos hoje nas


redes sociais seria uma espécie de fenômeno atualizado do que an-
tes ocorria com a TV — sempre que personalidades públicas ou per-
sonagens em novelas falavam sobre algum tema de saúde mental,
mais pessoas se reconheciam nos sintomas e buscavam avaliação.
“Mas como não havia tanta informação pelo Google, as pessoas che-
gavam [ao consultório] dizendo ‘sou desatenta’. Hoje, ao invés de
buscar um diagnóstico, a pessoa já chega com o nome do transtor-
no”, explica Gonçalves, que é autora de uma adaptação da Cyber-
chondria Severity Scale (Escala de Severidade de Cibercondria) para
o contexto brasileiro. Desenvolvida em 2014, a escala traz critérios
como compulsão, aflição e confiança/desconfiança nos profissionais
de saúde para diferenciar o comportamento saudável do não sau-
dável em pesquisas na internet sobre informações de saúde.

A internet, é claro, está longe de substituir o aval profissional. Dian-


te da explosão de conteúdo sobre o transtorno no TikTok, um gru-
po de pesquisadores canadenses decidiu averiguar a qualidade das
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informações publicadas nos vídeos. Eles classi-


FOTOMÉDICOS

ficaram os top 100 vídeos mais populares so-


bre TDAH na plataforma como “desinformação”,
“útil” ou “experiência pessoal”. E identificaram
que somente 21% eram de fato úteis. “Médicos
devem estar atentos à ampla disseminação de
desinformação sobre saúde nas redes sociais e
o impacto em potencial no atendimento clínico”,
concluem os pesquisadores no artigo, publica-
FOTOMÉDICOS
do em 2022 no Canadian Journal of Psychiatry.

O risco mais evidente dessa onda de autodiag-


nósticos é as pessoas acabarem acreditando
que têm uma patologia que, na verdade, não
têm e tomarem medidas mais extremas, como
a automedicação, ou assumirem comportamen-
tos que não teriam. Um caso curioso ocorreu du-
rante a pandemia, no que ficou conhecido como

“[É PERIGOSO] QUANDO AS PESSOAS TRATAM UM


COMPORTAMENTO DESADAPTADO COMO TRANSTORNO,
OU NARRAM AQUILO COMO ALGO BANAL, COMO SE
ENTENDESSEM QUE NÃO PRECISAM DE CUIDADO”
Fernanda Gonçalves, psicóloga
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surto de “tiques do TikTok”: depois de vídeos sobre a síndrome de


Tourette viralizarem, adolescentes no mundo todo começaram a
apresentar os sintomas de movimentos repetitivos incontroláveis
ou sons indesejáveis característicos do distúrbio neurológico. O
caso foi investigado por pesquisadores do Canadá e da Inglaterra
e, para alívio dos médicos — e dos pais —, os tiques desaparece-
ram com a trend e à medida que os adolescentes voltaram à rotina
normal de aulas presenciais.

Outro risco — mais sutil e preocupante — é acontecer exatamente


o oposto. “[É perigoso] quando as pessoas tratam um comporta-
mento desadaptado como transtorno, ou narram aquilo como algo
banal, como se entendessem que não precisam de cuidado para
modelar ou extinguir aquele comportamento”, explica Gonçalves.
“Os transtornos são como pessoas carentes. Quando você não cui-
da de um, ele puxa outro, e a chance de ter remissão sem cuidados
é pequena. Ele não some, vai buscando um canal [para aparecer].”
É mais ou menos o que aconteceu com Marina Costa: após anos
sem tratamento para o TDAH, ele deu as caras como transtorno de
ansiedade generalizada.

Para Sibley, não há nada de errado em buscar autoconhecimento e


se perguntar se você tem TDAH ou outro problema de saúde men-
tal. Mas é importante buscar a avaliação de um especialista, em vez
de confiar somente nas redes sociais. “Se você está se questionando
se tem TDAH, a primeira pergunta que deve fazer a si mesmo não é
‘eu tenho esses sintomas?’. E sim, ‘eu tenho grandes problemas na
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vida que exigem a ajuda de um médi-


co?’”, orienta. A resposta dificilmente
estará em vídeos do TikTok — ou em
uma enxurrada de produtos sugeri-
dos pelo Instagram.

UM TRANSTORNO PUXA O OUTRO


O TDAH nem sempre aparece sozinho — conheça
as principais comorbidades que vêm com ele

TRANSTORNO OPOSITIVO DESAFIADOR causar ou agravar quadros


Também conhecido como TOD, ele é de ansiedade e depressão.
caracterizado por comportamentos
desafiadores, argumentativos e hostis
DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM
contra figuras de autoridade, como pais
e professores. Costuma resultar em Muitas pessoas com TDAH também têm
indisciplina, agitação e irritação. distúrbios de aprendizado específicos,
como dislexia (dificuldade de leitura),
disgrafia (dificuldade nas habilidades
DISTÚRBIO DE CONDUTA gráficas de escrita) ou discalculia
Envolve comportamentos antissociais (dificuldade em matemática).
graves, como agressão, vandalismo
e violação de regras ou leis. Entre ABUSO DE SUBSTÂNCIAS
os sintomas estão falta de empatia, Adolescentes e adultos com TDAH
irritabilidade, rebeldia e manipulação. têm um risco maior de desenvolver
Costuma estar associado com o TDAH transtornos do uso de substâncias como
especialmente em adolescentes. álcool, drogas e medicamentos.
A justificativa principal é a tentativa de
ANSIEDADE E DEPRESSÃO tratar os sintomas, além da propensão
As consequências do TDAH para a vida a agir com impulsividade. Ao mesmo
pessoal, como baixo rendimento escolar tempo, o abuso dessas substâncias pode
ou dificuldades no trabalho, podem piorar os sintomas do distúrbio.
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ENTREVISTA

“A gente tem
que fazer da
matemática
algo acessível
para todos”

COM Jaqueline Godoy Mesquita POR Marília Marasciulo


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Terceira mulher e pessoa mais


jovem a ocupar a presidência da
Sociedade Brasileira de Matemática,
roraimense fala da importância da
representatividade na área e sobre
seus planos para o mandato

E
Em seu segundo mês como presidente da Socie-
dade Brasileira de Matemática (SBM), a rorai-
mense Jaqueline Godoy Mesquita já sabe qual
será a marca de sua gestão: promover a diversidade. Na-
tural de Boa Vista e formada pela Universidade de Brasília
(UnB), ela é a terceira mulher a ocupar o cargo na histó-
ria da instituição. E, aos 37 anos, a pessoa mais jovem a
assumir o posto. “A gente tem que fazer da matemática
algo acessível para todos e todas. E isso se faz apostando
na diversidade, porque a gente vai poder trazer diferen-
tes olhares e incluir a matemática dentro da realidade das
pessoas de uma forma mais atuante”, diz Mesquita, em en-
trevista a GALILEU.

Em sua visão, essa diversidade é uma das chaves para


proporcionar uma melhor introdução da matemática nas
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escolas e na sociedade — algo que ela julga ser problemá-


tico no Brasil de hoje. “Quando penso que às vezes estou
mudando a vida das pessoas, que elas se sentem inspira-
das pela minha carreira, isso me dá forças para ir além.
Quando penso em desistir, ou me questiono se estou no
caminho certo, lembro desses relatos. A representativida-
de é muito importante”, afirma.

Na conversa a seguir, ela conta como contrariou o desejo dos


pais para estudar essa ciência exata e sua trajetória em uma
área formada majoritariamente por homens brancos. Tam-
bém fala do simbolismo de seu cargo, não só por ser uma
mulher num posto de liderança, mas por representar a região
Norte do Brasil — “muito rica, mas muito esquecida” — e os jo-
vens, que “têm uma energia de mudança, de transformação.”

VOCÊ ENTROU NA MATEMÁTICA HÁ MAIS DE DUAS DÉCADAS. O QUE


LHE ATRAIU PARA A ÁREA, AFINAL?

Sempre gostei muito de matemática e física, eram


as duas matérias que eu adorava na época da es-
cola. Mas meus pais queriam muito que eu fizesse
medicina. Acho que o sonho da vida deles era ter
uma filha médica. Minha irmã mais velha era mui-
to boa em artes, então ela foi para a arquitetura,
desenhava muito bem. Já para mim, sobrou aquela
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carga muito forte de fazer medicina. Mas confesso


que não me via médica, não tinha a menor vontade
de seguir nessa área. E tenho uma tia que é forma-
da em matemática, apesar de não trabalhar com
JAQUELINE
isso. Conversei com ela sobre como era fazer mate-
GODOY
mática e ela super me apoiou e me deu forças para MESQUITA
enfrentar meus pais. Foi bem difícil no começo, É PhD em
matemática pela
eles questionavam o que eu faria, se só daria aula, Universidade de
como se dar aula não fosse um grande trabalho. São Paulo (USP)
e especialista
em equações
O que eu mais gostava na matemática era que eu a diferenciais
via como um jogo. Uma coisa meio enigmática, que e equações
diferenciais
você ia juntando as peças até conseguir chegar ao funcionais.
resultado. Eu passava horas resolvendo exercícios Atualmente,
é professora de
e até hoje gosto muito disso.
matemática na
Universidade de
POR MAIS QUE A ÁREA ESTEJA MUDANDO AOS POUCOS E AS MU- Brasília (UnB)
e presidente
LHERES COMECEM A GANHAR DESTAQUE, SABEMOS QUE AINDA da Sociedade
HÁ UM LONGO CAMINHO A PERCORRER. QUAIS OS MAIORES DESA- Brasileira de
Matemática,
FIOS QUE VOCÊ ENFRENTOU NA CARREIRA?
com mandato
até julho de 2025.
Foram vários. Na época da graduação, levei um
susto porque éramos 35 estudantes e só havia
sete mulheres na minha turma. E demorei mui-
to para ter professoras. Basicamente, acho que
tive duas ou três durante toda minha gradua-
ção. Então, eu não me via muito representada.
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25

Várias vezes me questionava se estava na área


certa. E à medida que fui crescendo na carreira,
as mulheres foram desaparecendo mais ainda:
no mestrado, diminuiu a quantidade; no douto-
rado, basicamente não tinha. Isso foi realmente
mexendo muito comigo. Só depois que começou
uma discussão maior dentro da comunidade so-
bre as questões de gênero e a importância da di-
versidade. Até por isso também tento promover
bastante essa temática, porque às vezes a gente
pensa que já se falou tanto, mas tem gente que
nunca teve contato com a discussão.

Atualmente, estou como presidente da SBM e só


houve duas mulheres antes de mim nesse posto, a
última há 18 anos. Portanto, a gente vê uma falta
de representatividade e, ao mesmo tempo, uma
grande responsabilidade. Porque eu, como mu-
lher, me sinto mais responsável por estar à fren-
te da Sociedade no sentido de dar uma resposta
e mostrar que as mulheres conseguem fazer um
excelente trabalho.

Tem sido muito duro em alguns momentos. Já re-


cebi vários comentários machistas, várias situações
em que não conseguia falar em reuniões. Uma vez,
quando eu era coordenadora do comitê organizador
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26

de um evento, tentava falar na reunião e os colegas


não deixavam. Aí um colega homem falou: “Gente, a
Jaqueline quer falar”. Só então todo mundo me dei-
xou falar. Isso acontece corriqueiramente. A gente
acaba ficando um pouco mais dura e tendo que se
meter mesmo para conseguir ter voz. Mas, às vezes,
é muito cansativo e desgastante.

VOCÊ É UMA MULHER JOVEM, DE FORA DO EIXO SUDESTINO. COMO


ESSES FATORES INFLUENCIARAM SUA CARREIRA?

Vou confessar que várias vezes pensei em desistir.


Desde o começo da carreira até recentemente, me
questiono se estou no local certo. Mas o que me
motiva é pensar justamente que estou aqui não só
como Jaqueline, mas representando as mulheres
da área da matemática, que são poucas. Quando

“À medida que crescia


na carreira, as mulheres
foram desaparecendo.
Isso mexeu muito comigo”
Mesquita fala sobre a falta de profissionais do gênero feminino no meio
acadêmico da matemática
CLUBE DE REVISTAS

27

elas me veem, vejo que enxergam que se uma mu-


lher chegou até aqui, então elas também podem.
Sinto que preciso continuar para mostrar isso.

Mesma coisa com relação à região Norte. A gente


vê que ainda há pouquíssimos representantes des-
sa parte do país ocupando cargos de destaque. En-
tão, o fato de eu ter nascido lá é muito importante
para toda a população, que por muitos anos não se
viu representada. Sempre que recebo um convite
de lá, tento aceitar. Às vezes, minha agenda está
uma loucura, mas busco ajustá-la para ir. Espero
que durante a gestão eu consiga trazer esse olhar.

Já estou inclusive pensando em trazer coisas que


antes não existiam. Por exemplo, um comitê de
mentorias voltadas para mulheres na área de mate-
mática. Também estou construindo uma comissão
de Conduta e Ética dentro da SBM, para que a gente
possa pensar em formas de impedir certos compor-
tamentos dentro da nossa comunidade: sobretudo
os machistas, misóginos, homofóbicos e racistas.

E há também a questão dos jovens. Acho que


muito se pensa dentro da academia que o jovem
ainda está numa fase de construção e que não
tem como assumir certas responsabilidades. Ao
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28

mesmo tempo, vemos que o sênior está nessa po-


sição de assumir essas responsabilidades — e é
claro que ele tem uma bagagem incrível e a gen-
te tem muito a aprender com eles. Mas os jovens
têm uma energia de mudança, de transformação,
de trazer ideias novas, ideias fora daquela caixa.
Eles têm muita energia, muitas ideias que promo-
vem inovação, por isso me preocupo em trazê-los.

E POR QUE VOCÊ CONSIDERA TÃO IMPORTANTE TER MAIOR RE-


PRESENTATIVIDADE NA MATEMÁTICA?

A matemática é uma área que por anos era forma-


da majoritariamente por homens brancos. Até hoje,
na verdade, a gente tem uma grande porcentagem.
Quando olhamos para os membros das academias
de ciências, a maior parte é formada por esse gru-
po. Isso é péssimo em termos da diversidade. Já
existem pesquisas que mostram a importância de
incluirmos mulheres, minorias e grupos sub-repre-
sentados justamente porque traz diversidade de
olhares. E na matemática, que é uma área em que
você, por exemplo, vai provar um resultado, um
teorema, é importante trazer outras visões, poder
dialogar com outras pessoas que pensem de for-
mas completamente diferentes.
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29

O Brasil é um país muito rico, temos a diversidade


de que precisamos sem ter que buscar em outros
lugares. E a gente não usa isso. A matemática sem-
pre é vista como a vilã nas escolas e todo mundo
tem dificuldade. Saber matemática é sempre visto
como um diferencial. Mas eu acho que não. A gente
tem que fazer da matemática algo acessível para
todos e todas, e isso se faz apostando na diversi-
dade, porque a gente vai poder trazer diferentes
olhares e incluir a matemática dentro da realidade
das pessoas de uma forma mais atuante.

COMO VOCÊ ENXERGA O PAPEL DA MATEMÁTICA NO PAÍS HOJE?

Essa é uma pergunta importantíssima porque,


além da SBM, eu faço parte da Academia Mun-
dial de Ciências como membro do Comitê Execu-
tivo dos Jovens. E lá a gente fala muito sobre os
desafios globais, justamente esses que estão em
alta, como as mudanças climáticas. Uma coisa que
a gente tem percebido é que não vai ser alguém
da física sozinho, estudando no seu laboratório,
que vai conseguir trazer uma solução para esses
desafios. É preciso haver diálogo entre as diferen-
tes áreas, e é importantíssimo que a matemáti-
ca esteja participando, porque ela é responsável
por basicamente tudo — das coisas mais simples
CLUBE DE REVISTAS

30

às mais sofisticadas, como a inteligência artificial.


Por isso é importante que a gente tenha uma ma-
temática mais robusta para lidar cada vez mais
com essas demandas. Mas, às vezes, percebo que
o pessoal da área tem um pouco de dificuldade de
dialogar. Inclusive, eu criei agora um grupo de tra-
balho para estabelecermos relações com outras
sociedades científicas.

OS ESTUDANTES BRASILEIROS TÊM UM DESEMPENHO MUITO


ABAIXO DA MÉDIA MUNDIAL NA DISCIPLINA. NA SUA OPINIÃO, DE
ONDE VEM TAMANHA DIFICULDADE?

Acho que tem vários pontos. Um deles é a formação


em matemática. Ela ainda precisa melhorar, inclu-
sive para os professores, de modo que eles apre-
sentem a matemática de uma forma melhor nas
escolas. A SBM tem se preocupado muito com isso,
tanto que a gente coordena o Mestrado Profissio-
nal em Matemática em rede nacional, o Profmat,
voltado para o professor de escola pública. Quando
trazemos esse professor para estudar a matemáti-
ca, vemos que, mesmo vindo de uma licenciatura,
ainda mais em regiões afastadas, ele traz uma ba-
gagem fraca. Temos 106 polos no país inteiro, é o
maior programa de mestrado profissional em ma-
temática do país.
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31

Outro ponto em que estamos tentando focar — e


que inclusive iremos mandar uma proposta para a
Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior] — é um doutorado profis-
sional em matemática em rede nacional, em que
uma das linhas vai ser a divulgação científica. No
Brasil, acho que são três ou quatro pós-gradua-
ções nessa linha, e nenhuma especificamente na
matemática. Porque é uma área muito abstrata, é
difícil conseguir comunicar a matemática, trazê-la
de forma mais divertida, mais criativa e fazer a po-
pulação perceber que, no fundo, está usando ma-
temática o tempo inteiro.

“É preciso haver diálogo


entre diferentes áreas, e
é importantíssimo que
a matemática participe,
porque ela é responsável
por basicamente tudo”
Jaqueline reflete sobre a cooperação entre diferentes disciplinas
frente a desafios globais, como as mudanças climáticas
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32

Enfim, são vários planos que a gente tem de apri-


moramento, e que precisamos muito, porque
quando olhamos para a parte de pesquisa no Bra-
sil, a matemática está no topo. A gente tem hoje
um medalhista Fields [o matemático carioca Ar-
tur Ávila, laureado em 2014], que é o equivalen-
te ao Prêmio Nobel. Mas, na base, ainda estamos
muito deficitários.

E QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DESSE “MEDO DA MATEMÁTI-


CA”, DIGAMOS ASSIM?

Às vezes, pessoas com muito potencial acham que


não gostam de matemática porque pegaram um
professor que não as estimulou, e aí acabam ten-
do esse bloqueio. Com isso, a gente vai perdendo
potenciais pessoas que poderiam ter um grande
sucesso. Daí porque é muito importante conse-
guirmos apresentar a matemática de uma forma
criativa e curiosa desde a base, para que essas pes-
soas realmente consigam compreendê-la melhor.

E digo mais: a gente perde economicamente com


isso. Teve uma pesquisa recente na França que
mostrou que quanto mais a população sabe ma-
temática, mais isso influencia no aumento do PIB.
Ou seja, saber matemática faz a economia de um
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33

país melhorar. A gente deve pensar na matemática


como uma grande potencializadora não só para o
indivíduo, mas para a economia como um todo.

E COMO É POSSÍVEL TORNAR A MATEMÁTICA MAIS ACESSÍVEL


PARA A POPULAÇÃO EM GERAL?

Tentando promover mais a comunicação sobre ela,


de uma maneira ampla. Um exemplo interessante
é o Pint of Science, evento em que cientistas no
mundo inteiro vão aos bares para comunicar a ci-
ência, durante uma semana no ano. A gente trouxe
a matemática neste ano para participar da edição
em Brasília, foi uma experiência incrível. Levamos
números de mágica que envolviam matemática e o
pessoal ficou muito interessado.

Tem muita coisa que a gente pode fazer para le-


var a matemática ao público, não só dentro da
academia. Fazer mais projetos de extensão para
dialogar fora da universidade também. Estamos
com um projeto que começou na Universidade de
Brasília, que eu estou coordenando e espero que
se estenda para todo o país, que é trazer na Re-
vista do Professor de Matemática [uma publica-
ção da SBM] formas criativas e interessantes de
ensinar usando jogos.
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“A gente hoje tem um


medalhista Fields. Mas,
na base, ainda estamos
muito deficitários”
Mesquita avalia os problemas no ensino básico da matemática no
país, apesar das conquistas de profissionais brasileiros da área

Nesse projeto, vemos estudantes que falam que


não gostam de matemática, mas quando eles jo-
gam, interagem e começam a entendê-la, ficam in-
teressados. Às vezes, é só mudar um pouco essa
forma de ver a matemática, tentar dialogar mais
com nossa comunidade.

A GENTE ESTÁ NO MEIO DE UM DEBATE SOBRE O NOVO ENSINO MÉ-


DIO E A BASE CURRICULAR. COMO VOCÊ AVALIA O CURRÍCULO DO
ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL?

Essa é uma discussão bem forte na nossa comu-


nidade. Sem dúvida, acho que tem coisas que pre-
cisam ser melhoradas. Mas é muito difícil saber
exatamente em quais pontos. É um debate mui-
to complexo, mas é importante que a matemática
participe dessa construção ativamente. Até porque
ela vai dar uma base para quando o aluno come-
çar a estudar, por exemplo, física e química. Se ele
não tiver uma base matemática muito boa, pode
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35

até se desmotivar. É muito importante a gente ter


um olhar mais crítico para a matemática, especial-
mente nas séries iniciais.

O QUE SEU CARGO COMO PRESIDENTE DA SBM REPRESENTA NÃO


SÓ PARA A INSTITUIÇÃO, MAS PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA?

Mostra a importância de valorizarmos as mulhe-


res nesses postos, de haver mais mulheres na li-
derança. E pessoas do Norte, que é uma região
extremamente rica, mas que o Brasil não conhe-
ce. Às vezes, o pessoal do Norte não se vê repre-
sentado, pensa que tudo acontece no eixo Rio-
-São Paulo. É importante tentar trazer mais essa
diversidade cultural que existe não só no Norte,
mas no Nordeste, no Sudeste, para dentro da ci-
ência e da academia.

E traz uma mensagem importante para a nossa


comunidade de que mulheres podem assumir es-
ses postos dentro da matemática, porque a gente
vê que ainda existe pouco estímulo para que elas
sigam na área. Eu mesma tive muitas dificuldades.
Se pensasse em fazer matemática hoje e visse uma
mulher na presidência da SBM, teria certeza de es-
tar na direção certa.
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SAÚDE
TEXTO Sibele Oliveira EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

CONTAGEM REGRESSIVA
PARA VIVER
O BRASIL É REFERÊNCIA MUNDIAL EM TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS.
MAS AINDA HÁ MUITOS DESAFIOS QUE PRECISAM SER SUPERADOS
PARA REDUZIR AS MORTES NAS FILAS DE ESPERA
(Ilustrações: Getty Images)
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A
A notícia de que o apresentador Fausto Silva
tinha insuficiência cardíaca e precisaria de um
transplante de coração comoveu o Brasil em
agosto. Faustão ficou internado durante mais de
20 dias no Hospital Israelita Albert Einstein, em
São Paulo, até conseguir o órgão de que precisa-
va. A gravidade de seu caso permitiu que ele ti-
vesse prioridade para o transplante, cuja rapidez
surpreendeu muita gente. Foi o final feliz de um
drama vivido por milhares de brasileiros. Longe
dos holofotes, eles esperam por um órgão com
urgência, sem saber quando ele vai aparecer.

Carla Cristina Martins dos Santos sabe bem o


que é essa ansiedade. Em abril de 2018, ela es-
tava fazendo uma viagem de carro no Paraná,
onde vive, quando notou um inchaço na perna
esquerda. Achou que era cansaço pelo trajeto de
250 quilômetros entre as cidades de Reserva e
Campina Grande do Sul; por precaução, pediu ao
primo que assumisse o volante. No dia seguinte,
enquanto trabalhava na padaria onde era bal-
conista, o olho esquerdo também começou a
inchar. Foi ao pronto-socorro e fez exames. Re-
tornou ao hospital três dias depois, preocupada
com os sintomas, que haviam reaparecido.
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Levou um susto ao ouvir do nefrologista que apenas 5% de seus


rins estavam funcionando. Ficou duas semanas hospitalizada. A bi-
ópsia revelou que Carla tinha nefropatia por IgA, também conhe-
cida como doença de Berger, já em estágio avançado. Voltou para
casa, onde teve princípio de derrame dias depois. Os rins haviam
parado de vez — e ela foi levada às pressas ao hospital novamen-
te. “Tive muita hemorragia, apagava muito. Uma hora eu voltei e
vi minha mãe, meu irmão e meu filho. Desconfiei que tinha algu-
ma coisa errada, porque criança não podia entrar [na UTI]. Eles
estavam chorando. Depois me contaram que os médicos tinham
me desenganado e que, provavelmente, eu não ia passar daquela
noite”, recorda. Mas ela sobreviveu.

Santos não foi a primeira pessoa da família a ter um problema re-


nal. Anos antes, um tio dela havia perdido os rins, e a esposa doou
um para ele. Mas a balconista não teve a mesma sorte com seus
familiares. Ficou mais de três meses internada; passou o aniversá-
rio de 28 anos no hospital e se manteve viva com as sessões de he-
modiálise. Nesse tempo, fez amizade com outras pacientes. Sentia
o coração apertado cada vez que uma delas morria. Além do medo
de não conseguir esperar sua vez de receber um transplante, so-
fria por não participar da rotina do filho de 4 anos, e por imaginar
que poderia faltar para ele.

A paranaense concorreu a um rim três vezes, mas era incompa-


tível com os órgãos. Em outubro de 2020, o telefone tocou pela
quarta vez. Desanimada, Carla não atendeu a ligação. Na segunda
CLUBE DE REVISTAS

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chamada, ouviu que tinha 15 minutos para estar no hospital; caso


contrário, o rim passaria para outra pessoa. Como morava perto,
chegou a tempo. “Chorei de medo e de felicidade. Esse rim signifi-
ca ter minha vida de novo.” Em 2023, ela realizou o sonho antigo
de ser mãe de uma menina.

O nefrologista Rodrigo Belila, que acompanha Carla, convive com


histórias com a dela todos os dias. A equipe do Hospital Angelina
Caron, em Campina Grande do Sul, realiza cerca de 170 transplan-
tes renais por ano. O número é alto em comparação aos demais ór-
gãos, inclusive em centros de outras partes do país. Tem explicação:
como são dois rins, os doadores falecidos beneficiam duas pessoas
da lista, e ainda há a possibilidade da doação em vida. Além disso,
em muitos casos, o suporte dialítico permite manter os pacientes
vivos até o órgão chegar. “A diálise ajuda o paciente a sobreviver,
mas o transplante o ajuda a viver de novo”, compara Belila.

O Brasil é o segundo país que


mais faz transplantes no mundo,
atrás apenas dos EUA. Até
agosto de 2023, foram feitos
18.461 procedimentos por aqui
— em todo o ano passado, o total
registrado foi de 16.848 cirurgias
Fonte: Ministério da Saúde
CLUBE DE REVISTAS

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UM SISTEMA COMPLEXO
Mais de 65 mil brasileiros estão à espera de órgãos e tecidos, se-
gundo o Ministério da Saúde. E muitos não conseguem esperar
o suficiente. Entre janeiro e junho deste ano, 1.313 pessoas que
aguardavam um transplante morreram, conforme o Registro Bra-
sileiro de Transplantes (RBT), feito pela Associação Brasileira de
Transplante de Órgãos (ABTO).

O Brasil é o segundo país que mais faz transplantes no mundo,


atrás apenas dos Estados Unidos. Até agosto de 2023, foram feitos
18.461 procedimentos por aqui — em todo o ano passado, o total
registrado foi de 16.848 cirurgias. Os números foram divulgados
pelo Ministério da Saúde no fim de setembro. O país também ba-
teu recorde no número de doadores efetivos no primeiro semes-
tre deste ano: foram contabilizados 1,9 mil, o que possibilitou a
realização de 4.377 transplantes no período, número 16,2% maior
do que em 2022. De acordo com a pasta, com essa tendência, a
expectativa é fechar este ano com um recorde inédito.

A regulamentação, o controle e o monitoramento do processo de


doação e transplante de órgãos por aqui são feitos pelo Sistema Na-
cional de Transplantes (STN), gerenciado pelo Ministério da Saúde.
A lista é única para os pacientes tanto de hospitais públicos quan-
to dos privados, de todas as regiões do país. “O SUS faz todo esse
processo. E todas as etapas de doação e captação estão previstas
nas normativas do Ministério da Saúde e são financiadas por ele”,
explica a médica Daniela Salomão, coordenadora-geral do SNT.
CLUBE DE REVISTAS

41

Tudo começa quando uma lesão neurológica grave, como acidente


vascular cerebral ou trauma cranioencefálico, é identificada. Caso o
indivíduo não responda mais a nenhum recurso terapêutico, é aber-
to o protocolo de morte encefálica, que envolve dois ou três médi-
cos que realizam todos os testes e exames. Determinada a morte,
uma equipe de assistência hospitalar aborda a família sobre a pos-
sibilidade de doação. Se concordar, ela assina o consentimento.

Os próximos passos precisam ser rápidos. O potencial doador con-


tinua sendo cuidado na terapia intensiva, para que os órgãos se-
jam mantidos em boas condições, enquanto o hospital notifica a
Central Estadual de Transplantes e começam a ser realizados tes-
tes de compatibilidade com potenciais receptores. Um sistema
informatizado gera uma lista de onde são atendidos os possíveis
receptores e, com isso, acontece o contato com os hospitais. Ao
mesmo tempo, a equipe de transplante, junto com a central, toma
as providências para a retirada dos órgãos.

Quando o hospital em que o doador está internado não tem auto-


rização para fazer a cirurgia, são acionados médicos de fora. Ter-
minada essa etapa, os órgãos entram em suas respectivas listas,
mas não ficam necessariamente com quem chega primeiro. Além
da ordem cronológica de cadastro, a compatibilidade é analisada
a partir de critérios técnicos, como o tipo sanguíneo. Os casos de
maior gravidade têm prioridade e o órgão só sai do estado quando
não há receptores compatíveis. O mesmo acontece quando o esta-
do não realiza aquele transplante.
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Mas, antes de tudo — inclusive da autorização familiar — as condi-


ções clínicas do potencial doador são avaliadas. Uma delas é a idade,
que varia de acordo com o órgão (saiba mais na página 49). Deter-
minadas lesões e alterações morfológicas, comorbidades, infecções
e outros problemas de saúde também são levados em considera-
ção. Só que não necessariamente descartam o doador. “Os órgãos
têm suas peculiaridades de aproveitamento, mesmo em pacientes
com alguma comorbidade”, pontua o médico José Huygens Garcia,
membro do conselho consultivo da ABTO. O fato de certos órgãos
estarem em bom estado e poderem ser transplantados, porém, não
é garantia de sucesso. Há outros empecilhos no caminho.

O DESAFIO DA DISTÂNCIA
Nessa corrida contra o relógio, cada segundo conta. Isso porque os
órgãos têm o chamado tempo de isquemia, em que podem ficar fora
do corpo sem circulação sanguínea. Coração e pulmão são os mais
sensíveis e devem ser transplantados em até quatro horas depois
de retirados do doador. No caso dos rins, o ideal é que a cirurgia
seja feita em, no máximo, 24 horas. Para salvar vidas, no entanto,
às vezes os médicos realizam transplantes num tempo maior.

Há casos, por exemplo, em que o coração é transplantado após as


recomendáveis quatro horas. Segundo o cirurgião vascular Ronal-
do Honorato, do Núcleo de Transplantes do Instituto do Coração
(InCor) do Hospital das Clínicas de São Paulo, entre 2013 e 2023, o
Incor realizou 509 transplantes cardíacos. Desses, 103 foram com
mais de quatro horas de isquemia e o resultado foi satisfatório:
62% dos pacientes sobreviveram e 40% deles ficaram vivos por
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mais de cinco anos. “É um desempenho muito bom, levando em


conta que o órgão foi removido e ficou mais de quatro horas fora
do organismo”, avalia Honorato.

Os órgãos não têm hora para aparecer e tudo precisa estar pron-
to para levá-los de um destino a outro. O Ministério da Saúde tem
parceria com companhias aéreas para fazer o transporte. “Mas nem
todas as cidades têm aeroportos, uma logística comercial que aten-
da no tempo oportuno”, pondera Daniela Salomão. Por isso, a pasta
também atua junto à Força Aérea Brasileira (FAB), que atende o Mi-
nistério sob demanda. Ainda assim, não há margem para atrasos.
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Para evitá-los, há outras iniciativas em vista. O InCor se uniu à Es-


cola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) a fim de
desenvolver um algoritmo matemático que aplica técnicas de en-
genharia à medicina. O aplicativo, que ainda não tem data para
ser lançado, irá calcular a melhor rota e o meio de transporte mais
rápido em cada etapa da viagem de um órgão. A ideia é usar a ex-
pertise da logística, que está acostumada a cumprir prazos e lidar
com produtos sensíveis, na área da saúde.

O algoritmo do roteirizador multimodal não seguirá uma logísti-


ca óbvia. “Por que não, em algumas regiões, passar também pelo
transporte fluvial? Onde vale a pena trocar de rodoviário para fer-
roviário, aéreo ou marítimo? A ideia é trazer esse conhecimento
para os transplantes”, explica o engenheiro Daniel Mota, professor
de engenharia de produção da Poli que está desenvolvendo o pro-
jeto com Ronaldo Honorato. “O arranjo logístico tem que ser mais
eficiente, mas não podemos deixar de considerar os custos. Se a
gente for econômico, salva mais vidas.”

TECNOLOGIA AVANÇADA
Os custos dos transplantes, principalmente em regiões remotas,
não causam preocupação só no Brasil. Ao levar programas de ci-
rurgia para cidades rurais nos Estados Unidos, o cirurgião car-
díaco Paul Robison ficava impressionado com o montante gasto.
Ele, que já foi cirurgião-chefe do laboratório de coração artificial
da Universidade de Utah, via o quão caro era enviar uma equipe
CLUBE DE REVISTAS

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cirúrgica inteira para hospitais pequenos de cidades afastadas,


lidar com o despreparo dos profissionais locais e os imprevistos
das viagens. Hoje, Robinson trabalha com captação de órgãos na
empresa XVIVO, que conta com uma equipe de explante e outra
de implante, ambas compostas por cirurgiões experientes que,
como ele, tiram de letra desafios e contratempos.

Mas a tecnologia também é utilizada em outras frentes. A XVIVO


criou um ambiente de inteligência artificial chamado XPS Sys-
tem, no qual pulmões que não estejam 100% bons podem ser
tratados fora do corpo. “Eles estarão, na verdade, em um venti-
lador e serão perfundidos por uma máquina. Podem ser trata-
dos, melhorados e implantados depois de apenas algumas horas,
para garantir que possam ser usados”, explica Robison a GALI-
LEU. Trata-se de um dispositivo que faz o órgão funcionar como
se estivesse no organismo do doador vivo. Assim, seu “prazo de
validade” aumenta.

Para o coração, uma técnica semelhante fez crescer o número de


transplantes cardíacos no St. Vincent’s Hospital Sydney, na Aus-
trália. Conhecida como Donation After Cardiac Death, ou DCD He-
arts, ela reanima órgãos que já pararam de bater. Isso é possível
graças a uma máquina de perfusão chamada Heart in a Box (“Co-
ração em uma Caixa”), que “reinicia” o órgão. O sistema fornece
oxigênio, nutrientes e um fluido que o mantém aquecido e oxige-
nado até a cirurgia.
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Outra realidade são os chamados xenotransplantes, que envolvem


órgãos de espécies diferentes. “Já usamos, por exemplo, válvulas
cardíacas de porcos para fazer cirurgias de válvulas cardíacas em
humanos”, informa Paul. E há cada vez mais novidades nesse sen-
tido. Um coração suíno geneticamente modificado em humano
foi colocado em Lawrence Faucette, um veterano da Marinha dos
EUA de 58 anos, por médicos da Universidade de Maryland. Por
ter uma doença cardíaca em estágio terminal, ele foi considerado
inelegível para um transplante de coração tradicional. Essa foi a
segunda cirurgia do tipo; na primeira, o paciente sobreviveu por
cerca de dois meses.

No Brasil, centros de pesquisa também buscam soluções para re-


duzir a perda dos órgãos e fazê-los durar mais. Uma delas está em
desenvolvimento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp):
um recipiente para substituir as caixas térmicas de EPS, um tipo

“Os órgãos vão para debaixo


da terra, não vão servir para
nada. Que isso traga uma
ressignificação até do próprio
processo da vida”
Ronaldo Honorato, cirurgião vascular do Núcleo de Transplantes do Instituto do
Coração (InCor) do Hospital das Clínicas de São Paulo
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comum de isopor, usadas no transporte. “A embalagem atual é


aquela que compramos no supermercado, que a gente coloca gelo
e leva. Agora estamos produzindo uma específica para o transpor-
te de material biológico, junto com a indústria. Não vai usar gelo
e é rastreável”, conta Bartira de Aguiar Roza, professora de enfer-
magem na Unifesp. Financiado pelo Ministério da Ciência e Tecno-
logia, o projeto ainda está em processo de patente.

CAPACITAR É PRECISO
Não são apenas os órgãos que têm de chegar ao hospital o mais
rápido possível. A pressa é a mesma para pessoas que moram
em regiões onde não há transplantes. “O que temos feito é esti-
mular os estados que ainda não têm serviços de transplantes a
começarem a desenvolver essa habilidade, porque dessa forma
a gente evita ficar tão dependente de logística em determinadas
regiões”, detalha a coordenadora-geral do SNT.

Bartira, que atualmente presta assessoria na área de doação e


transplantes para a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS),
diz que, na América Latina e no Caribe, o Brasil é destaque, ao lado
de países como Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia. Mas, apesar
das vantagens do SUS, como sua boa capilaridade, os resultados
ainda podem melhorar. A solução, para a especialista, é investir
em capacitações nacionais, para que diminuam as recusas de ór-
gãos em razão da distância.
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48

Uma iniciativa de destaque é o projeto Transplantes Sem Frontei-


ras. A equipe faz transplantes de fígado, pâncreas e rins em ci-
dades com menos recursos para esses procedimentos, como as
capitais Rio Branco, Goiânia e Manaus, e municípios do interior.
“A gente sempre via profissionais muito interessados, inclinados
a fazer transplantes, mas que muitas vezes não podem ficar um
tempo fora para fazer a capacitação”, explica o médico cirurgião
Marcelo Perosa, coordenador do projeto. Em 20 anos de trabalho,
foram feitos mais de 770 procedimentos.

NAS MÃOS DAS FAMÍLIAS


Uma das causas de mortes na lista de espera é a gravidade dos pa-
cientes que entram nela. Mesmo tendo prioridade, alguns não con-
seguem aguardar. Por isso, não adianta haver equipes que atendam
em todas as regiões do país e o transporte funcionar da maneira
mais eficiente possível se não houver órgãos. “Temos mais pacien-
tes do que doações, uma realidade no mundo inteiro. A demanda é
maior do que a oferta”, resume Daniela Salomão.

Uma das causas é a recusa dos familiares. Segundo a ABTO, no pri-


meiro semestre de 2023, 49% dos parentes não autorizaram a do-
ação. Por trás dessas recusas podem estar questões culturais, re-
ligiosas, dúvidas quanto à lisura do processo e preocupações com
a imagem do corpo após a retirada dos órgãos. As campanhas de
informação não são suficientes para acabar com esses receios.
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49

“É preciso investir em educação. Isso a gente faz na escola, ao se


aproximar das crianças, mostrando que é um processo seguro”, su-
gere Roza. Para os adultos, Ronaldo Honorato propõe outra refle-
xão. “Os órgãos vão para debaixo da terra, não vão servir para nada.
Que isso traga uma ressignificação até do próprio processo da vida.”

REGRAS PARA A DOAÇÃO


Entenda alguns dos requisitos para que órgãos sejam doados no Brasil

» Rins podem ser doados até 75 anos; » Doadores vivos podem doar um
» Fígado pode ser doado até dos rins, parte da medula óssea,
os 70 anos; parte do fígado ou parte do pulmão.
» Válvulas cardíacas, pele e ossos Eles devem ter pelo menos 21 anos
podem ser doados até 65 anos; ou a autorização do responsável.
» Coração e pulmão podem ser Precisam ser da mesma família
doados até 55 anos; do receptor;
» Pâncreas pode ser doado até » Não aparentados só podem ser
os 50 anos; doadores com autorização judicial
» Não há limite de idade para prévia. Isso evita, por exemplo,
doar córneas; a comercialização de órgãos.

Fonte: Ministério da Saúde


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QUER QUE EU DESENHE?


POR BERNARDO FRANÇA

A MARCHA SOBRE
WASHINGTON ENTROU
PARA A HISTÓRIA GRAÇAS
AO DISCURSO DE MARTIN
LUTHER KING JR. E À
CONQUISTA DE DIREITOS
CIVIS NOS ESTADOS UNIDOS
TEXTO
Maria Clara Vaiano
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Em 28 de abril de 1963, a capital federal dos


Estados Unidos era palco de um momento
histórico: a Marcha sobre Washington por
Emprego e Liberdade. Foi nesse evento que
Martin Luther King Jr. proferiu seu icônico
discurso “Eu tenho um sonho”.
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No Lincoln Memorial, a manifestação popular


pacífica reuniu mais de 200 mil pessoas de
todo o país, entre negros, brancos e outros
grupos. A ideia era pressionar o governo de
John F. Kennedy por um projeto de lei federal
de direitos civis.
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53

O evento durou três horas e contou com


a participação de diversos líderes e até
celebridades. Entre eles, o ator Marlon
Brando, o diplomata Sidney Poitier e a
cantora Mahalia Jackson.
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Mas foram as palavras do pastor e ativista


que ressoaram ao longo da história. “Eu tenho
um sonho de que meus quatro filhos um dia
viverão numa nação onde não serão julgados
pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu
caráter”, proclamou Martin Luther King Jr..
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55

O movimento cumpriu sua missão: em


1964, foi criada a Lei dos Direitos Civis,
que colocou fim na política de segregação
racial vigente até então; e, no ano seguinte,
a Lei dos Direitos de Voto permitiu que
minorias sociais pudessem votar.
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