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Coxmania Das LETRAS f abe eatths apanwnaude, sera ucpwsze artet information Nurs texte que é, rita a tlumz paging, vibrante ¢ afetivo, a: MICHEL FOUCAULT ‘st Bgura do-demolider de certezas , + iv etelt (1926-1984), somamriese tanabén "+ vatagem que deve possuir o bom oe pesquisador do contemporanes. :. conomade amticulista do Now ver :Lé moscras de sobra, na condiggo de 1 snfo-mnilitante eadical rantas vezes cece ético ert telagio & possibilidade . fia, que soube conduzir seu + yaidade eo despojamento que v luacauleenige, ecm a precisio ui cren de que dispie seu offcio, equilibrada dosagem entre oprafado, entre a teajerdcia il. persanagem ¢ 9 pensanento ie cle for construinds, entte a trama jc sua vasta ptoduda € 0 contexto util ortespoadente, napetiode crucial ~ Js aduded0 ede 80 canto na Franga + sdrias paises em que ataou, Beasil fr ndoconvettet Foucault em mito, | vs titos o@ pensamentas em dogma, v-restitud. de moda simples ou = potspectiva mais abrangente ¢ plural recdtios, totalmente avessa, pats, ad racortesde ceo “fouraultismo” wy to em ropa. suplitude ¢ clateza nada presungosas, “exro Uti] e@portuno, que servird, a seu 1,t:nicigntes ¢ especialistas. Os leitores i - sem ditvida, rm razdes adicionais ac neste Michel Foxcault: alm de - vivia, Uppsala, Tiinis, Nova York ¢ ~ua redicalidade cosmopolita o trouxe vts.ag Basil, Em 1975, quando da iieteog e da missa na praca da S€, Vaulo, um dos marcos oa resistencia & Healdiee iniats carbene sah: DIDIER ERIRON MICHEL FOUCAULT 1926-1984 radupdn: HILDEGARD FEIST URLs Dk ETRE Para Olivier Séguret vibon, oiaier. ‘Machel Foucnubt, 18 4. foucantt, wienel, s926-1086 1, Titulo. Ineives para eataloge sistemaiicn: Copyright© by Flammarion, 1989 ‘Titulo original: Michel Foucault (1926-1968) Capa: Moema Cavalcanti Proparagdo de originals: Nair Almeida Salles Revisio: Vera Liicia de Freitas * 1990 Editora Schwarez Lda. Run Tupi, 522 01233 — Sao Paulo -~ SP Fones: (011) 825-5286 ¢ 66-4667 Perdura-me o fulgor. René Char + L 2, 3 4 5 6 YOaneene . Odindiea reforma . . Abrir os corpos ... . As muralhas da burguesia . . Omar a frente SUMARIO PrefhciO cs oovecccee cece tveeeeceeeteeeeeeeeeeeeteeeseestentes "1 A PSICOLOGIA NOS INFERNOS "ht Gdadeondewanct™ cms sare ems meena saRneerd mee memEMEe 8 19 . A voz de Hegel .... 31 Rued'UIm . 39 O carnaval dos loucos 55 O sapateiro de Stalin . 64 . As dissondncias do amor .. 74 . Uppsala, Varsévia, Hamburgo 85 I A ORDEM DAS COISAS . O talento de um poeta lit Olivroe seus duplos . 124 149 159 175, 1, 2, a 4. 5. orn ML “MILITANTE E PROFESSOR NO COLLEGE DE FRANCE. O interlidio de Vincennes . A solidiio do acrobata . A ligho das trevas ... A justiga popular e a meméria operaria Somos todos uns governados A revolta com as mos nuas . ‘Os encontros frustrados . . . O enc aCalifornia A vida como uma obra de arte Notas .. Bibliografia Fontes voce... Agradecimentos .. Indice remissivo . . 261 * SB » 297 » 187 . 197 » 208 » 22 ~ 3 MS + oar » 339 . 341 PREFACIO A morte ndo encerra nenhum mistério. Nao abre nenhuma porta, Eo fim de um ser humano. O que sobrevive é 0 que ele deu aos outros seres humanos, 0 que permanece em sua lembranca. Nobert Elias Pode parecer paradoxal escrever uma biografia de Michel Foucault. Nao recusou ele varias vezes a nogdo de autor, afastando por conseguinte a possibi- lidade de um estudo biografico? Quando comecei a eserever este livro diversas pessoas, amigos, intimos de Foucault me fizeram tal observagiio. Mas, apesar de sua aparente pertinéneia, a meu ver essa objecdo se desfaz por si mesma. Foucault questionou a nogfo de autor? Sim. O que isso significa? Ele mostrou que em nossas sociedades a circulagaio dos discursos devia se submeter as for- mas restritivas das nogdes de autor, obra e comentirio. Entretanto ele mesmo no podia se abstrair da sociedade em que vivia: como todo mundo, estava sujeito a essas “fungdes” que descreveu. Portanto, assinou seus livros, relacio- nou-os uns com os outros através de um conjunto de prefacios, artigos, palestras que se empenhavam em reconstituir a coeréncia ou a dinfmica de sua pes- guisa, de uma etapa a outra; aceitou o jogo do comentario, patticipando de coléquios dedicados a seu trabalho, respondendo a objecdes, criticas, leituras errOneas ou corretas. Em suma, Michel Foucault 6 um autor, criou uma obra sujeita ao comentirio. Ainda hoje, na Franca ou em outros paises, otganizam-se seminarios, encontros, debates; reinem-se os textos publicados em todos os paises para compor volumes completos de “ditos e escritos”; discute-se para saber se convém ou nao publicar este ou aquele trabalho inédito, editar os cursos registrados no Collége de France, ete. Por que sé 0 bidgrafo nao poderia se manifestar? Porque Foucault sempre se recusou a fornecer dados sobre sua vida, como as vezes se alega? Esta errado, Além de ter dado numerosas indi- il cagtes em varias entrevistas, permitiu que se publicasse na [tdlia Collogui con Foucault (Coloquios com Foucault), uma série de didloges que em boa parte se dispdem a reconstituir sew itinerdrio intelectual. E em 1983 ele me propés orgqnizarmos juntos outro livro de conversagdes, mais completo ¢ “claborado”, no fimbito de uma colegao em que pesquisadores lembrariam sua formagtio e a génese de seu trabalho. Sem diivida é outra a verdadeira razio da objegdo antibingrdfica. Consiste ho esefindalo que ainda hoje o homossexualismo provoca, Durante minhas pes- quisas ouvi invariavelmente a mesma pergunta: “Esse livro vai tratar da questao do homossexualismo?". Uns temiam que isso fosse mal compreendido. Outros se surpreendiam ao ver que em 1989 ainda se podia hesitar em falar livremente sobre oassunto. E evidente que este livro estd fadado asuscitar reagdes contradi- 16rias, coloeanda de um lado os que acharao que falei demais sobre a questia, de outro os que lamentarae a falta de detalhes oui de deserigées pitorescas sobre a vida americana, por exemplo. © que posso responder? Tendo mais a assumir a segunda postura, Nao gostaria de chocar os que adotam a primeira atitude. Eu nfo pretendia mascarar os fatos, nem fazer um livro sensacionalista. N3o era facil achar o meio-termo, Eu queria resistir As formas suaves da repressio eda censura, sempre prontas para entrar em agtio, e resistir a elas, ainda mais tvatando-se de um livre sobre Foucault, cuja obra inteira pode ser lida como urreigo contra os poderes da “normalizagio"’. Mas a exibigdo ¢ 0 exibi- uma in cionismo no sie uma forma de reconhecer a forga desses poderes e do voyeu- rismo que compertam? Para contornar esse duplo cbstéculo decidi apresentar os fatos em sua realidade sempre que era preciso relaté-los para eompreender esie ou aquele acontecimenta, este ou aquele aspecto da carreira, da obra, do pensamento, da vida — da morte — de Foucault. E os omiti quando se teferiam apenas ao territério seereto que todo mundo reserva em sua existéncia. Convém, entretanto, eselatecer um ponto: o préprio Foucault se expressou longamente em entrevistas concedidas a revistas de homossexuais, tanto na Franga como em outros paises, Saibam aqueles que se preparam para se indig- nar com minhas “‘revelagdes" que elas muitas vezes sio meras tradugdes e citagoes, Foucault gostava de utilizar esta frase de René Char: “Desenvolvam sua ostranheza legitima”. Que ela sirva de lema para o presente trabalho que the (-dedicado e que se inspirou unicamente na admiragio por um homem e uma obra cuja luz continua iluminando a atividade intelectual na Franga e no ex- terior hi quase trinta anos. Faltava vencer as dificuldades inerentes a investigagao. Primeiro havia os obstéculos que sempre surgem nesse tipo de pesquisa: a meméria as vezes falha das testemunhas € 0 lento aflorar de suas lembrangas ao longo de varios encon tros e discussbes, Para de vez em quando chegar a relatos contraditérios cujos pontas em comum eu precisava achar. Havia ainda o problema dos documentos inencontraveis ou enfiados em arquivos cujo acesso sé era possivel mediante mil autorizagées oficiais ou mil cumplicidades oficiosas. Para reunir todos esses documentos, para falar com todas esas testemunhas tive de viajar: o presente esiudo me levou de Ténis a Poitiers, de Lille a Sao Francisco, de Clermont- Ferrand a Uppsala ou Varsdvia. Também precisei me deslocar num espaco cultural bastante heterogéneo: do historiador de cigneias, professor emérito de Sorbonne, ao diretor do Libération; do diplomata sueco ao escritor de van- guarda; de um ex-secretirio geral de I'Elysée aos lideres esquerdistas da univer- sidade de Vincennes, etc. Depois tive de comparar e confrontar as fontes es- critas com todes os depoimentos colhides junto a parentes, amigos, colegas, alunos, adversazios, Mas, em se tratando de Foucault, havia difieuldades especificas. Ble era uma pessoa complexa ¢ miltipla, “Tinka mascaras e sempre as trocava”, disse Dumézil, que o conhecia melhor que ninguém. Nao procurei revelar “a” ver- dade de Foucault: sob a maseara sempre ha outra mascara, € a meu rer nao existe uma verdade da personalidade que se possa encontrar sob sucessivos farces. Ha varies Foucault? Mit Foucault, como dizia Dumézil? Sim, sem di- vida. Eu os apresentel como me apareceram. Muitas vezes bem diferéntes da- quele com quem conyivi entre 1979 ¢ 1984, Porém me abstive de julgar ou de estabelecer uma ordem de preferéneia. principal obstaculo era mais dissimulado, mais insidioso. Para simples- mente estabelecer os fatos eu precisava antes me livrar das mitologias que cer- cam Foucault e de tal modo aderem a sua figura que as vezes encobrem evidén- cias eontidas em documentos e relatos. Foucault passou para o primeira plano da cena ptiblica em 1966, depois de Les mots er fes choses (As palayras ¢ as coisas), mas sua notoriedade logo coincidiu com sua atividade politica nos anos 70, E com muita freqiiéneia o que se escreveu sobre ele a partir desse momento tem a marca da imagem constituida tardiamente do “fildsofo enga- jado” que parece ter modificado em retrospectiva tudo que Foucault havia sido antes. Que ninguém se engane a respeito de minhas intengdes: se este livro se esforea para restabelecer 0s fatos histérices em contraposigao a lendas sedimen. tadas, no ¢ para tirar da obra de Foucault sua forga inovadora, sua riqueza, sua fecundidade. Ao contrario, € para apresenta-las em todo o seu brilho Houve muitas leituras de trabalho realizado por Foucault ao longo de quarenta anos. Foram publicadas, rejeitadas, desprezadas. Desapareceram, Livrara obra 13 de Foucault de uma versio inica ¢ mutilante no 6 desservi-la, Apresentar sua hist6ria para restituir-Ihe seus multiples poderes é, ao contririo, reforgé-la, Contar a histéria de ums vida 6 uma tarefa praticamente interminavel. Vinte anos se passariam e sempre haveria alguma coisa para se descobrir. Dez volumes seriam eseritos ¢ sempre haveria necessidade de um suplemento. Por ‘exemplo, ndo era possivel apresentar aqui o catélogo de todes os abaixo~ hados que Foucault firmou entre 1970 ¢ 1984, Era inimaginavel relatar cada uma de suas ages militantes. A isso Claude Mauriac dedicou varias centenas de paginas de seu didrio, Le temps immabile (O tempo imével), e ainda assim ele sO estava presente em algumas. Também nao cogitei de recensear todas as onferéncias pronunciadas por Foucault nos campi do mundo inteiro ou de istar as entrevistas que ele coneedeu aos jornais, revistas, ete. Tampouce po- deria mencionar o nome de tados que conheceram Michel Foucault, Sia muito humerosos. E freqientemente se trata de relagdes pessoais sem especial reper- cussiio. A amizade pode ser intensa ¢ nao se prestar ao comentario. E depois Gevidente que para muitas pessoas a relagio com Michel Foucault teve enorme importincia, Entretanto, uma ver que claborava uma biografia de Foucault, eu devia me interessar mais por aqueles que importavam para Michel Foucault do que por aqueles para os quais ele importav: ‘Também selecionei os fates, os textos, os periodos de que fale. Dei mais expagoa um fato que a outro porque me pareceu mais significativo, citei deter- minaclo texto mais que outro porque achei que expressava melhor o pensamento de Foucault na ¢poca em que o esereven ou porgue o acesso 2 ele se tornow dificil ou simplesmente porque nao existia em edigao francesa, Em cada periodo abordade tentei reconstituir a paisagem intelectual ei. que Foucault evoluia. Evidentemente uma filosofia nao nasce com todos os seus conceites ¢ invengdes num espirito solitario entregue ao exercicia do pensa- mento, $6 podemos compreender um projeto intelectual e seu desenvolvimento eM relagdo a um espaco tedrico, institucional e politico... O que Pierre Bour- dieu chamaria de um “campo”. Assim, procurei reunir e fundir num mesmo lito os depoimentos dos filésofos que acompanharam ow eruzaram a carreira de Foucault, que presenciaram a elaboragdo de sua obra, que seguiram sua evo- lugflo: durante horas e muitas vezes em repetidas ocasides entrevistei Georges Canguilhem, Louis Althusser, Gérard Lebrun, Jean-Claude Pariente, Jean: ‘Toussaint Desanti, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jules Vuillemin, Michel Serres. Outros me confiaram depoimentos, relatos, informagdes ou documen fos esseniciais: Georges Dumézil em primeirissimo lugar, Paul Veyne, eviden: femente, Cliude Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Paul Rabinow, Robert Castel, Jean-Claude Passeron, Mathieu Lindon, Maurice Pinguet... Nio seria possivel ie 14 contra no'final wencionar todos que me prestaram sua colaboragdo. A lista se deste volume. $0 muito numerosos: pois este livro pretendia, acima de tudo, ser umm histéria coletiva, Nao o retrato de uma época, como costumam dizer os bidgrafos, mas os quadros esbogados de varias épocas, de varios registros culturais: a Ecole Normale Supérieure da rue d'Ulm no pés-guerra, a literatura francesa nos anos 60, a querela do estruturalismo, os meios da extrema es- querda depois de 1968, 0 Collége de France como instituigao particular na vida universitéria francesa, ete. Varias vezes estou presente ou envolvido nas acontecimentos que relate, Sistematicamente evitei falar ma primeira pessoa. Exceto em rarissimas ocasides — duas, creio — em que era dificil me expressar de outra forma, substitui meu depoimento pelo de pessoas que assistiam & cena ou também possviam a informagao. Este livro € uma biografia, Nao se trata, pois, de um estude sobre a obra de Foucault. E no entanto se elabora uma biografia de Foucault justamente porque ele esereveu livros. Procurei apresentar as obras mais impartantes e inseri-las nos perfodos em que surgiram, Fui fiel aos textos ¢ evitei coment4-los, Em contrapartida dei muito espago para a acolhida que teve cada um deles, A acolhida dos livros faz parte de sua histéria, As vezes as sucessivas acolhidas compdem essa histéria, como € 0 caso de Folie et déraison (Loucura e des- rarao). Fazer a historia dessas historias: talvez © projeto estivesse mais perto da mente de Foucault do que pareee. Sobre Binswanger ele esereveu: “As formas ofiginais de pensamento se introduzem a si mesmas: sua historia & @ Gnica forma de exegese que suportam ¢ seu destino, a iniea forma de cr 1s f A PSICOLOGIA NOS INFERNOS i “A CIDADE ONDE NASCI”’ O cenaria € quase tidiculo. E um teatro, situado no rond-point des Champs-Elysées. Numa sala anexa uma pequena multidao se reuniu bem cedo nessa manha de 9 de janeiro de 1988. Mais de wma centena de pessoas, apesar do carater voluntariamente discreto, até quase sigiloso da reunido, para evitar uma afluéncia muito grande. Pesquisadores vindos de todos os eantos do mundo estiio sentades comportadamente © um homenzinho se levanta. Tem 84 anos, mas a vor € firme ¢ seguta, Ele comega a ler sua declaragio: © niimero dos presentes, a diversidade das parti antes, a pertingncia das per- guntas formuladas fazem deste encontro um acontecimento importante na em- preitada coletiva de avaliar e questionar os trabathos de Michel Foucault. Georges Canguilhem mal respira no final da frase ¢ jd continua: Como todas os filésofos que deivam airis de si uma obra interrompida, vitiva de seu autor, Michel Foucault torncu-se objeto suscetive! de exame, de comparagio, até de suspeita. Jé o era em vida. Mas suas réplicas mordazes @ objecdes freqien- temente rotineiras nfo constituiam apenas uma defesa; eram também, na maior parte de tempo, a iluminagdo fulgurante de suas incursies no inconseiente do saber, de suas questbes ¢ de suas respostas,! Quase quatro anos se passaram entre a morte de Foucault, em 25 de junho de 1984, ¢ esse eoléquio, aberto e presidido pelo eminente professor que foi o relator da tese sobre Histoire de ta folie ( Historia da loucura). Quatro anos durante os quais nome de Foucault nao deixou as luzes ga ribalta. ( AiG Quantos comentarios saudaram no outona de 1986 0 livro de Gilles De- leuze, sobriamente intitulado Foucault? que teve uma acolhida incomum, No mesmo Momento em que varias reyistas publicavam edigées especiais’ e, leva- dos por essa atualidade, todos os jornais consagravam paginas e paginas A obra ig de Foucault: Le Monde uma, Libération oito, Nouvel Observareur seis, etc. Numa entrevista coneedida dias antes da publicago do livro Gilles Deleuze declarou sem redeios: “O pensamento de Foucault parece-me uma das maiores filosofias modernas"’ “Um dia o séeulo sera deleuziano’’, eserevera Foucault em 1970, Deleuze procurava modificar a formula para dizer, ao contrario: foucaultiano era 0 sé- culo, foucaultiano contimuaria sendo. © século: quer dizer, nosso mundo, em que © rosto de Foucault parece gravado por muito tempo e se recusa a desapa- recer, como essas figuras tragadas na areia que ele evoca no final de Les mors ot fes choses ¢ que desaparecem quando sobe a maré. Ou quando chega a morte. “Assim 6 a cidade em que nasci: santos decapitados, o livra na mao, culdam para que a justiga seja justa, os castelos sejam fortes .,. Bis 0 bergo dle minha sabedoria’.? Era assim que Michel Foucault gostava de falar de Poi tiers, onde vivera a infneia ea adoleseencia, Uma cidade provineiana voltada para suas igrejas romanicas e seu paldcio de justiga do séeulo XV, eujas estatuas realmente perderam a cabega. Uma cidade que poderia sair de um texto de Balzac. A cidade & bonita, Sufocante, sem diivida, mas bonita. Toda a parte antiga se empoleira sobre um promantério ¢ parece desafiar o tempo. que passa © os transtornos que ele avarreta, - Conjurar o tempo que passa: para isso, talvez, a familia Foucault dé aos meninos o mesmo nome, de pai para filho: Paul, Paul Foucault, 0 av6; Paul Foucault, o pai; Paul Foucault, o filho, Porém madame Foucault mio quer coder totalmente as tradigdes impostas pela familia do marido. Seu filho deve se chamar Paul, Acrescenta, no entaato, um hifen ¢ um segundo nome: Michel. Nos documentos oficiais ¢ nos registros escolares ele se chama Paul, $6, Para © proprio interessado logo seré o contririo: apenas Michel, Para madame Fou- iIt sera sempre Paul-Michel e com esse nome ela evocava a lembranga do filho pouce antes de expirar. Toda a familia ainda hoje fala de “Paul-Michel” Por que ele mudou o nome? “Porque suas iniciais era P.-M F., como Pierre Mendés France", explicava madame Foucault, E a explicagtio que 0 filho lhe dera, Aos amigos ele apresentou as caisas de outro modo: nao queria mais levar nome do pai, ao qual odiava quando era adolescente. Paul Foucault, © nome do pai, Ele é cirurgiio em Poitiers e professor de anatomia na Escola de Medicina, E filho de um cirurgiao de Fontainebleau, Casa-se com Anne Malapert. Filha de um cirurgiao de Poitiers, professor da Escola de Medicina, Vao morar ne casaréo branco, sem nada de especial, mas perto do centro, que o dr. Malapert construi em 1903, A casa se situa ao mesmo 20 oo tempo na rue Arthur-Ranc e no boulevard de Verdun, que desce da cidade alta em diregiio ae vale do Clain, O dr. Paul Foucault e sua esposa tém trés filhos: Francine, a mais velha; Paul, quinze meses depois. Exatamente em 15 de outu- bro de 1926, Anos mais tarde nasee o tereeiro: Denys, Trés criangas que levam a vida dos filhos da boa burguesia provinciana, A familia é rica. Madame Fou- cault tem uma casa a vinte quildmetros da cidade, em Vendeuvre-du-Poitou Uma espléndida construgiio, no meio de um parque, que os habitantes do local chamam de “o eastelo"’. Também possui terras, fazendas ¢ campos. O dr. Fou- cault é um cirurgitio prestigiado, que apera o dia inteiro nas duas clinicas de Poitiers. F um notavel da cidade, Em suma: nao falta dinheiro aos Foucault, Uma baba se ocupa das criangas, uma cozinheira se ocupa da familia, que tem até motorista particular. A édueagao € rigorosa, embora madame Foucault tenha adotado o lema de seu pai, o dr. Malapert: “O importante é governar a si mesmo", Ela evita dirigir ou orientar as leituras dos filhos. Quanto 4 religiao, parece que n&o preocupa a familia, Claro, todo mundo vai & missa de domingo, na igreja Saint-Porchaire, no centro da cidade, Mas madame Foucault de vez em quando falta, e sua me, a avo de Francine, Paul-Michel ¢ Denys, leva as criangas 4 igreja. Durante algum tempo Paul-Michel atua come coroinha. A iradigdo assim exige. Mais tarde, bem mais tarde, Michel Foucault diré numa entrevista que sua familia era anticlerical, Sem clivida os dois aspectos coexis- tiam; respeito As convengdes e alastamento da crenga. Paul-Michel inicia seus estudas & sombra dos jesuitas, puro fruto do acaso, Ou da Histéria, o que muitas vezes vem a ser & mesma coisa. Pois 0 liceu Henri-IV, que inclui pré-escola e primdrio ¢ por conseguinte recebe eriangas muito pequenas, esti instalads na rue Louis-Renard, num edificio antigo que havia pertencido & Congregagio. Liceu piblico: mas contigue a uma capela que mais parece uma abadia, pelo tamanho e pelo aspecto imponente. O filha do dr. Foucault tem menos de quatro anos quando entra pela primeira vez no patio quadrado do estabelecimento. Acima do portal interno séculos de historia con- templam as criangas que passam: um retrato de Henrique IV, “fundador”, outro de Luis XV, “benfeitor™, esto gravados na pedra. Reis em efigie que mesmo assim devem impressionar os alunes menores. Aliés, Paul-Michel ainda nie tem idade legal para freqitentar a escola, Mas nao quer que o separem de sua irma. Madame Foucault falow com a professora, que respondeu gentil- mente: “Pode trazé-lo; vamos coloca-lo no funds da sala e dar-Ihe alguns lipis de cor”. E em 27 de maio de 1930 ele realmente se encontra no fundo da classe com os Lipis de cor. “Mas aproveitou para aprender a ler’, comentava madame Foucault, Até 1932 faz dois anos de “classes infantis". 1936, cursando o primario, Nessa data ingressa no liceu propriamente dito: nas classes do secundario, Deixa Henri-IV no inicio de 1940, Depois de um ano de notas baixas. E vai para o colégio Saint-Stanislas a nessa escola até 2 Até al niio hd problemas, Paul-Michel Foucault ndo ¢ muito brilhante em matemitica, Mas suas notas em francés, histOria, grego e latim eompensam a deficiéneia ¢ lhe permitem abocanhar regularmente o priv excellence. O que acontece na troiviéme* para suas notas eairem tanto? Madame Foucault arrisca uma explicagio: © diretor do liceu sofreu um derrame cerebral e nao péde mais culdar do estabelecimento, na nova situagao criada pela guerra. E verdade que us condigoes mudaram muito, A populagio aumentou com as sucessivas levas de refugiados ¢ as escolas e liceus da cidade devem admitir alunos e profes- sores vindos de Paris. O Henti-IV abriga parte do liceu Janson-de-Sailly, trans- ferido para Poitiers. Assim a tranqiilidade dos estudos locais se encontra seria- inente perturbada. Bem como as hierarquias instituidas: um dia Michel Fou- cault falara a um amigo sobre a confusio em que se encontrou ao se ver suplan- tudo pelos recém-ehegados, ele, que sempre fora um dos primeiros, sendo © primeiro da classe, Um de seus colegas na época dé outra explicagéio: o profes- sor de francés antipatizava com ele. Monsieur Guyot nao gosta muito das crian- gas da burguesia. Radical e voltairiano, esse professor muito “Terceira Repi- blica’” nem procura esconder seu desprezo pelos filhos dos notaveis. Tudo 0 lova a detestar as criangas dos belos bairros parisienses que desembarcam em sua elasse. E seu odio redobrado atinge também alguns representantes dessa raga maldita que ele julga descobrir entre as rebentos de sua boa cidade de Poitiers. Perturbade, desorientado, Paul-Michel Foucault sente o chao da noto- rigdade escolar fugir sob seus pés. Suas notas ressentem-se com isso, Em todas as matérias, menos em versio latina, No fim do ano a decisio do chefe do estabelecimento parece a madame Foucault um veredicto inaceitavel; “Novo exame a realizar-se em outubro", Madame Foucault prefere tomar a iniciativa: matricula o filho num colégio religioso, Saint-Stanislas, na época situada na esquina da rue Jean-Iaurés com a de Il Ancienne-Comédie. Nao € 0 estabeleci- mento teligioso mais prestigiado da cidade. O colégio Saint-Joseph tem uma reputagio muito melhor: dirigido pelos jesuftas, prefere alunos provenientes da alta burguesia eda nebreza proprietiria de terras da regio. O eolégio Saint- Stanislas esti um grau abaixo: ali estudam mais os filhos dos grandes comer- clantes e dos pequenos industriais. E a qualidade do ensino esta longe do nivel do Saint-Joseph, recouhecidamente elevado. Desde 1869 o colégio Saint-Stanis- Jas esta nas mios dos Irmios das Escolas Cristas, também chamados Irmaos ighorantinhos. Paul-Michel Foucault ali ingressa em setembro de 1940, Hi al- gumas semanas os alemaes ecupam a cidade, A zona livre se encontra a vinte quilémetros de Poitiers. Do outre lado ¢a linha de demarcagao ha. praticamente outro mundo: é preciso ter um salvo-condute para 14 entrar. Jovens demais (4 Na deny decreseente; a rrofsiéme &, portan Hnga, 0 ensino prinéirio ¢ secundirio compreende doze séries, numeradas em ar- uma das ditimas, (N.T.) 22 a ay para os trabalhos forgados na Alemankha, os alunos da seconde podem cont nuar seus estudos, Quando muito sto requisitados para o “'servigo rural”: seis semanas de agricultura nas férias de veriio, com a tarefa de eliminar os crise melideos. Um dos professores mais mareantes, que ficard na lembranga dos alunos, é0 estranho professor de historia, © padre De Montsabert, Monge bene- ditino da abadia de Ligugé e cura de Crowtelle, um vilarejo dos arredores. Faz todos os seus trajetos a pé e ne é raro encontra-lo na estrada que liga Poitiers a Ligugé, cajado de peregrine na méo, batina de 14 grossa, larga e ensebada. As pessoas param para Ihe dar carona, apesar de sua repugnante imundicie: “Uma ver the dei carona”, conta madame Foucault, “e o carro ficoy cheio de pulgas”. Esse homem excéntrico também é um erudito, que sempre anda com um alforje cheio de livros a tiracolo, Sua aula é um aeontecimento na vida do colégio, Num livro de memérias publicada em 1981 um de seus ex-alunos declara: Suas aulas cram inesqueciveis, Partindo de um impressionante conkecimenta dos fatos ¢ dos homens, ele fazia julgamentes claros @ precisos, que nao deixavam de serousados. Deixando-se levar pelo assunto ¢ pelo ardor de seu pensamente coma pelo pitoresco de suas imagens, ele inevitavelmente provocava uma explosio de risos que degeneravam numa verdadeira baderna. Sentindo-se derrotado, incapaz de restabelecer a ordem, ele saia da sala, debulhadoem lagrimas como uma criamy ¢&, edeclarava: “Meus pobres meninos, nfo posse mais, nfio posso mais". Entre tanto, mediante a promessa de que havia terminado, nao recomecariamos. ele voltava, retomava a aula no mais perfeite silencio, Deixando-se levar novamente polo assunte ¢ por sua verve, @ tom subja poweo a poves e, por alguma formula extraordindria, ele deseneadeava novo ataque de riso.® Segundo madame Foucault, esse foi o unico professer que marcou um pouco Paul-Michel, que desce a mais tenra idade se interessava por Historia. Tinha ) a Histoire de France (Histéria da Franga), de Jacques Bain- stragdes. Uma personagem o fascinava contou madame lio com pai ville, ¢ ficara impressionado com as particularmente: Carlos Magno. Desde os doze anos de idade, Foucault, ele fazia cursos de histéria,.. para uso des irmaos. Em suma, as aulas do padre De Montsabert Ihe davam muito prazer. Alids, esse aprendizado da historia, enteemeado de historietas e ditos espirituosos, entusiasmaya todos os alunos. A testemunha ja mencionada conelui seu relato com esta apreciagao: “A histéria ensinada de tal maneira nao podia deixar de nes prender a atencao’ Paul-Michel faz, portanto, a seconde, a premiére e a terminale® no col gio da rue Jean-Jaurés, Suas notas sAo mais que satisfatorias. Ele sempre obtém hoa classificagdo na distribuigao des prémios ao final do anc: na seconde, por (@) Curso preparatério para a obtengio do titulo de bacitefier, indispensivel ao ingress na esccla superior. ¢ ay exemplo, recebe a terceiro prémio de redagio, o segundo de histéria da lite- ratura francesa, o segundo de grego, o segundo de inglés, o segundo de versio latina, o primeiro de literatura latina, meng&o honrosa em histéria. Mas em quase todas as matérias supera-o um colega ¢ amigo chamado — é dificil acre- ditar — Pierre Rivitre. © filésofo se divertirA 35 anos depois ao exumar dos arquives onde jazia o fabuloso relato de um “parricida do século XIX" e pu- blicé-lo acompanhado de um comentario na obra que hoje é célebre, Moi, Pierre Riviére, ayant égorgé ma mere, ma soeur et mon frére (Eu, Piette Ri- vidre, tendo assassinado minha m&e, minha irm& e meu irmao)? Quem diria? De qualquer modo, apesar de rivais na classe, os dois meninos so muita fi- jados, Partilham uma grande sede de conhecimentoe de leituras, Abastecem-se com uma figura original da cidade, o abade Aigrain, apelidado de o Pico della Mirandola de Poitiers. Ele é professor na universidade catélica de Angers, cola- bora em varias revistas como ctitico musical ¢ possui uma netavel biblioteca. Recebe estudantes, alunos do liceu, aos quais recomenda e empresta livros, principalmente sobre hist6ria e filosofia. Hoje diz Pierre Riviere Como eu, Foucault freqiientara com muita assiduidade a casa do abade Aigrain, © sust biblioteca era muito importante para nés, porque nes proporeionava Ieituras desvinculadas do programa escolar. Leituras que nao faziam parte do programa e muito atraentes. E talvez o que ofereceré também a Paul-Michel Foucault um amigo da familia, René Beau- champ: um freudiano de primeira hora que fee muito pela introdugao da psica~ nilise na Franga Na premiére, Paul-Michel Poucault obtém resultados excelentes. E em 1942 ingressa na rerminale e se prepara para conhecer a filosofia. Deve lecionar ® matéria uma figura eminente que os professores da faculdade nao hesitam em consultar. Todos os alunos esperam muito do ano que passardo com ele Entretanto o cénego Duret. que pertencia a uma rede da Resisténcia, é preso pela Gestapo na manha em que as aulas recomegam. Nunca mais o verio. Outro professor o substitui, parém cai doente dias depois. Assim, é um monge da abadia de Ligugé que vai exercer a fungao de professor de filosofia, O dr, Foucault conhece bem varios monges da abadia, com os quais servi nas fergas do Oriente durante a Primeira Guerra Mundial, E madame Foucault nao hesita om procura-los para que enviem a Saint-Stanislas alguém eapaz de garantir © ensino de filosofia. O padre superior encarrega dessa missio Dom Pierrot. Paste se limita a comentar o manual, a fim de nao se afastar do programa: deve preparar a turma para 9 beccalauréae* e nig pretende fazer outra coisa. (*) Exame aplieado pele governe francés em estudantes com o curso secundirie complete & que confere aosaprovados o titulo de drckedfer.(N.T. a4 EC ESS ee Mas gosta de conversar com os alunos fora da elasse. Ao terminar sua “substi- tuigto'’, Dom Pierrot ainda recebe a visita do “jovem Foucault", como diz, que vai de bicicleta até Ligugé para visité-lo. Falam de Platao, Descartes, Pas- cal, Bergson. Dom Pierrot se lembra bem desse aluno: Eu classificava em duas categorias os jovens estudantes de filosofia que conheci: agueles para quem a filosofia sempre seria um objeto de curiosidade e que gos- tariam de se orientar para o conhecimento dos grandes sistemas, das grandes io de inquietude pes- soal, de inquietude vital. Os primeiros sao mareadas por Descartes, os segundos por Paseal, Foucault pertencia 4 primeira categoria, Sentia-se nele uma form: davel curiesidade inteleerusl, obras, ete. E aqueles para quem ela seria antes uma que: Como o ensino da filosofia € muito confuso no colégio Saint-Stanislas, madame Foucault pede a um professor da faculdade de letras que Ihe mande um estudante para dar aulas particulares a seu filho. Louis Girard est4 cur- sando o segundo ano de filosofia e um belo dia bate na porta dos Foucault, fa casa de miimero 10 da rue Arthur-Ranc, Ele conta: Eu in 1a trés vezes por semana, A filosofia que aprendia na faculdade era uma espéciv de kantismo bastante vago, arranjado moda do sécuto XIX, & Boutroux, cera esse kantismo que eu Ihe transmitia. Eu lhe ensinava com certa animagao, porque tinha 22 anos, mas no tinha um grande conhecimento de filosotia Que recordagio guardou de seu aluno? Ele era muito exigente. Depois tive alunos que me pareceram mais dotados, porém ineapazes de apreender tao rapidamente o essencial ¢ de organizar seu pensa- mento com esse rigor No fim do ano letiva — o padre Lucien, professor no seminario maior, incum- bira-se do ensino da filosofia, antes de seguir o cfimego Duret em seu destino tragico —, Paul-Michel Foucault recebe o segundo prémio em filosofia. 0 pri- meiro vai para Pierre Riviére, que hoje € membro do Conselho de Estado. Fou- caultabtém o primeire prémio em geografia, histéria, inglés, ciéncias naturais, Nao se deve imaginar que, tendo sido dois de seus professores deportados pelos alemaes, 0 colégio Saint-Stanislas fosse um “bastifie da Resisténcia”. Ali estava pendurado o retrato do marechal Pétain, camo se exigia de todos os estabelecimentos de ensino. Além disso, os alunos deviam se reunir no patio para cantar ““Maréchal, nous voila” (Marechal, aqui estamos) e eram repreen- didos quando nao cantavam com o ardor suficiente. Alguns falam de um “ chismo ambiente” que reinava no colégio, apesar de as vezes algumas redes da Resisténcia o terem utilizada como ponto de encontro, onde se trecavam cartées de identidade ou certificades de desmobilizagao, Varios alunos seriam presos. 25 Um dia Mi om que fer confidéneias autobiografi: chel Foucault falon dessa époea dificil, numa das entrevistas abre seus anos de juventude: O que me espan a quando procure me lembrar de minhas impresses, é que quase todas as minhas lembrangas emocionajs esto Tigadas & situago politica, Lembro- me de que senti um de meus primeiros grandes medos quande o chanceler Dellfus foi pssassinado pelos nazistas em 1934, ereio distante de nés, Mas eu me lembro muito bem de que me tocou muito. Creio que {oi meu primeiro pavor auténtico com relagde A morte, Lembro-me também dos refugiados que chegavam da Espanha. Acho que a infaincia de minha geragio foi moldada por esses grandes acontecimentos historieos, A ameaga da guerra era nosso horizonte, nosso quadro de vida. Depois velo a guerra. Muito miais que a ume coisa que hoje esté muito vida familiar, so os acontecimentos referentes 20 mundo que constituem a subs- tincia de nossa lembranga. Digo “nossa” porque tenho eerteza de que a maioria dos rapazes © mogas naquele momento passavam pela mesma experigncia, Nossa vida privada estava realmente ameagada. Talvez seja essa a raro de meu faseinio peli histéria e pela relagdo entre a experiéneia pessoal ¢ os eventos mos quais nos vemos envolvides, Acho que é o ponto de partida de meu desejo tedrico.” Em junhe de 1943 realizam-se as provas do baccalauréat, que na época compreende duas ctapas. No fim da premiére os alunos fazem as provas de francés, latim e grego, No ano seguinte, as de filosofia, linguas, histéria e geo- grafia, Em junho de 1942 Foucault vence @ primeira etapa com a mengiio “bas- iunte bom’. Passa pela segunda com a mesma menedio. Obtém 8/10 em histé- ria, 7/10 em ciéneias naturais, mas apenas 10/20 em filosofia.* O que fazer apés os estudos secundarios? O dr. Foucault escolhew 0 ca- minho que quer yer o filho trithar: « mesmo que ele pereorre. Paul-Michel deve ser médieo. O problema € que Paul-Michel ndo quer ser médico. Ha muito tempo resolven decepcionar o pai. Apaixonado por historia e Titeratura, horro- se com a idéia de cursar medicina, No dia em que anuncia sua decisto a custo é tempestuesa, O doutor nae esconde sua contrariedade e procura chamé-lo a razio, Madame Foucault, sempre fiel ao lema de seu pai — "gover- nar-se a si mesmo” — intercede junto ao marido: “Por favor, no insista. O menino € esforgado, deve fazer o que deseja””. O dr. Foucault nia insiste por muito tempo. Consola-se quando o segundo filho inicia seus estudos de medi- cina, Hoje ele € cirurgifio na regio parisiense. Entio Paul-Michel pode seguir © caminho que escolheu: preparar-se para 0 coneurso de ingressa & Ecole Nor- male Supérieure da rue 4'Ulm, em Paris, E para tanto fazer 0s cursos prepara- (*) Nesse sistema de avaliagao o primeira nimero indica a neta obtida eo segundo 0 ma- Nimo que Galunio poderia conseguir. (N. 26 trios: Aypokhdgne ¢ khagne. Evidentemente o ideal seria fazé-lo nos grandes licens parisienses, renomados por seus altos indices de aprovag’o no concurso, Mas ¢ época de guerra, e € muito diffell para madame Foucault mandar seu filho de dezessete anos para a capital. Ele se insereve no liceu de Poitiers, a0 qual retorna depois desse interliidio religioso de trés anes que Ihe deixaria uma lamentavel lembranga. Ele detestou a atmosfera que ali reinava, detestou o ensinamento que reeebeu. Detestou a religido e os religiosos. "Falava sobre isso com revolta ¢ antipatia’’, conta um de seus intimes na época. No inicio de 1943 Paul-Michel Foucault reencontra, portanto, o liceu da cidade. Comega o hypokhagne, preparando-se para 0 concurso de ingresso na tue d’Ulm, Nas duas classes em que se misturam khdgne © hypokhdgne hi uns trinta alunes, ¢ durante dois anos Foucault vai seguir com grande interesse as aulas de Gaston Dez, o professor de hist6ria, e de Jean Moreau-Reibel, 0 pro- fessor de filosofia, Moreau-Reibel foi aluno da rue d'Uim, professor no licen de Clermont-Ferrand ¢ ao mesmo tempo lecionou na faeuldade de letras de Strasbourg, transferida para a capital do Auvergne. Seu discurso deixa os alu- nos um tanto desorientados: falta-lhe organizag%io, nao tem um plano definido, parece prolixo e descosido, Lucette Rabaté se lembra de ter ficado desconcer tada nas primeiras aulas, em setembro de 1943, Poueo pouco, no entanto, ‘os alunos comegam a acompanhar melhor o professor @ a compreender melhor seu ensinamento, Esse aspecto desordenade evidentemente nao eseapa ao ins- petor geral que vai assistir as aulas de Moreau-Reibel. Em seu relat6rio de 2de margode 1944 ele se refere ao professor de Foucault em termos bem severc A aula a que assisti faz parte de uma série sobre “a vontady social ¢ os valores”, titulo um pouco obscura ao qual corresponde uma certa confusto no desenvalvi- mento. Monsicur Mereau-Reibel tem a palayra facil e talvez se deixe levar por essa facilidade. A construgdo devia ser mais vigorosa, mais rigida; as idéias diretrizes parecem se perder no desenvolvimento, Insuficiente clareza dos detalhes, Dema- siadas alusdes a teorias insuficientemente caracterizadas. Monsieur Moreau Reibel ganbaria sendo mais severo consigo mesmo e improvisando um pouco menos. De qualquer modo Foucault comega a gostar do jogo, cada vez mais se inte- ressa pela matéria que esse professor um pouco confuso leciona e se pie a ler os autores de que ele fala: Bergson, que monsicur Moreau-Reibel particular mente aprecia, Platio, Descartes, Kant, Spinoza... E como gosta de lecionar dialagando, conta Lucette Rabaté, Moreau-Reibel escolhe para seu interlocutor aquele que Ihe apresenta as melhores réplicas: Paul-Michel Foucault, "Os ou- tros estavam meio perdidos", acrescenta ela. © outro professor muito importante para Fouca it € Gaston Dez, Ele a7 colaborou no manual Mattet-Isauc para as classes de sixiéme, regularmente oscreve artigos para o boletim da Société des Antiquaires de l'Ouest e em 1942 purticlpou dé uma obra coletiva intitulada Visages du Paitow (Rostos do Poi: tou), Seu método de ensino é radicalmente diverso do de seu colega de filosofia: cle dita as qulas. Dita bem devagar. E como nao ha programa, o resultado é que ele aborda apenas uma pequena parte do grande todo sobre o qual os oundidatos poderie ser argiidos. Assim, os alunos recorrem as anotagSes dos ‘nos anteriores, Foucault nao s6 a3 consegue como as copia e empresta aos colegas. Evidentemente o periodo de 1943 a 1945 é dificil e conturbado. No in- yerno 0s problemas de aquecimento tornam a vida muito dura nas classes do liceu, Aiguns internos se arriscam a ir roubar Jenha, & noite, no prédio da milicia contiguo ao liceu. Para os proteger das suspeitas que pesam sobre cles, Lucette Rabaté e Paul-Michel Foucault proeuram o diretor e assinam um papel declarando que forneceram a lenha. O assunto morre ai, “Felizmente ninguém ado a lenha”, diz Lucette Rabaté 0 sei nos perguntou onde haviamos a © que poderiamos responder.” Apesar das condigdes penosas, reina na classe uma certa “alegria estudantil”, Os alunos vio as “matings cldssicas” apresen- tadas mensalmente no teatro da cidade, As pegas séo mal representadas eu os alunos tém vontade de se divertir? As tragédias sempre provocam gargalhadas. “Durante a represemtaciio de Andromaque", lembra-se Lucette Rabaté, "Fou- ault nfo parava de fazer brincadeiras ¢ rir, Uma alegria um pouco ficticia, tulvez, mas de qualquer forma, aereseenta ela, evitévamos falar de assuntes importantes, evitévamos abordar questBes politicas, pois os alunes vinham de meios muito diferentes; ctitre nossos colegas de classe havia, por exemplo, uma menita eujo pai e cujo irmaa haviam sida departados Mortos ¢ outre aluno cujo pai foi fuzilado na Liberag&o, Assim, todo mundo des- confiava um pouee de todo mundo, E depois Foucault era muito solitario: estudava 0 tempo todo © nao se ligava a ninguém. Um dia, pouce antes do concurs, fomos procurar informagdes na faculdade, Ca- minhamos durante quinze minutos ¢ele me disse: “Este ¢ 0 primeiro reereio que me permito este ano”. Um reereio de um guarta de hora! © mais grave, o mais perigoso, o mais assustador sin os bombardeics, que no poupam a cidade de Poitiers. As tropas inglesas miram a estagio e a fer- rovin, Durante os alarmes os alunos correm a se refugiar nos abrigas. Em jutho de 1944 varies bairros proximos A estagao deverao ser evacuados por medida 28 de precaugio. A rue Arthur-Rane fax parte das Greas de risco, Assim, toda a familia Foucault se instala em Vendeuvre, onde passa o verao, Alias nesse ano as aulas acabam cedo no liceu: em 6 de junho de 1944 0 bedel sai gritando pelos corredores: “Eles desembarcaram, eles desembarcaram”, As tropas alia- das acabavam de chegar as praias da Normandia. Os alunos saem das classes numa explosdo de alegria. Evidentemente ninguém pensa em estudar. Alguns dias depois a guerra se acirra em toda a regido e as aulas so suspensas em tedos 08 estabelecimentos de ensino, O ane seguinte é quase to conturbado, De qualquer modo os alunos se preparam para 0 coneurso ¢ catorze candidatos da Académie de Poitiers se apresentam no hotel Fomé, rue de la Chatne nas dependéncias da Faculdade de Direito para fazer os exames, que se estendem de 24 de maio a 5 de junho de 1945. A prova de francés ¢ anulada duas vezes em virtude de diversas itregularidades. A primeira vez porque um professor da Sorbonne teria revelado o assunto a seus alunos alguns dias antes do coneurso. A segunda porque as folhas off nao chegam a todos as locais ao mesmo tempo. Todos os candidatos devem refazer a prova: no total, trés veves seis horas. Os resultados dos exames escritos sio divulgados em 16 de julho. Deis alunos de Poitiers paderao ser admitides. Mas niio Michel Foucault. Ele se classifica em centésimo primeiro Ingar. E apenas cam candidatos podem se apresentar para as provas orais. Paul-Michel nao ingressaré na Ecole Nor- male da rue d’Ulm, Estudou como um condenado, mas nao foi suficiente. Ele esta terrivelmente decepcionado. Porém nao desanimado. Pretende tentar de novo no atlo seguinte, Mas aqui termina sua escolaridade em Poitiers. O ano de 1945 marca uma mudanga muito importante em sua vida: ele se instala em Paris. Poitiers: uma cidade sufocante. E 0 termo que aparece em todos os depoi- mentas sobre essa épeca, Um amigo de Foucault que chegou a Poitiers em 1944 diz © seguinte: “Ache que deve ter sido horrivel passar toda a infancia naquela atmosfera”, “Uma cidade ecanhada, pequena”, dizem outros que queriam fu- gir dali, No outono de 1945 Foucalt deixa Poitiers. Mas nunca romperd total- mente com sua cidade natal. Apenas porque nunea romperé totalmente com sua familia. Jé vimos que cle nao gosta do pai. Alias, parece que o dr, Foucault dedicou bem pouco tempo aos filhos. Trabalhava o dia inteiro e boa parte da noite ¢ sua presenga em casa era bastante rara. Se ha ruptura, é, portanto, com opai. Michel Foucault falara disso um dia, evocando a lembranga de “relagbes conflituosas sobre pontos precisos, mas que representavam um foco de interesse do qual a gente n&o conseguia se desligar”, mesm6 depois de deixar a fami- 2 lin." Em, contrapartida a vida toda ele se manterd ligado & mae, Durante seus anos de estudo vai a Poitiers em todos os feriados escolares ¢ depois continuarh visitando a familia regularmente. Apés a morte do dr. Foucault, em 1959, a fie vai morar no Piroir, em sua casa de Vendcuvre, e ele a visita anualmente © me dedicava seu més de agosto", dizia madame Fou- muitas vezes mais: no Natal ou na primavera passava alguns dias com “mile. Tinka seu quarto no andar iérreo. Uma espécie de pequeno apartamento isolado onde gostava de trabalhar, Em geral ia sozinho, em raras ocasites le- vavi um amiga, Madame Foucault se lembrava de ter recebido Roland Barthes, Fm 1982 Michel Foucault resolve comprar uma casa nos arvedores. Percorre os cmpos de bicicleta com o irmao, parando nas aldeias, visitando todas as Gavas que poderiam estar "4 venda"'. Sua escolha reeai sobre uma bonita cons: (rugio situada em Verrue, a alguns quilémetros de Vendeuvre. E a ex-residén- cla do cura. “A cura de Verrue",* come dizia Foucault, rindo. Esse nome 0 divertia muito. Ele a compra ¢ faz as reformas necessirias. Mas nao tera tempo de habi (*) Verrue também significa "serruga", donde o divertimente de Fouca 1 30 2 A VOZ DE HEGEL Atrs de Pantedo, ao lado da igreja Saint-Etienne-du-Mont, outro liceu Henri-IV, um des mais prestigiados da Franga, reeebe ao longo dos anos a elite dos Ahdgneux. Madame Foucault conheceu um professor da universidade de Poitiers que lhe disse sem rodeios: “Id se viu alguém que saiu de uma escola desta cidade entrar na Normale Sup?”’, A decisio é tomada rapidamente: Paul- Michel tentara mais uma vez, porém usar todes os trunfos possiveis No outono de 1945 ele chega a Paris para procurar esse santudrio que domina o Quartier Latin com toda a altura de sua torte ¢ de seus reiterados sucessos nos concurses de ingresso & rue d’Ulm. O jovem “provinciano” — 6 come o véem seus colegas de classe — veste-se horrivelmente mal e usa umas galochas incriveis: desembarca na Paris do imediato pés-guerra, onde a vida esta longe de ser facil e os problemas materiais — a alimentag&o — so terriveis, Alids, n&o é transbordando de entusiasmo que o jovem Foucault se instala na capital. As condigiies de vida sie muito diffeeis para que sua nova existéncia possa Ihe parecer sedutora, Madame Foucault no conseguiu comprar, nem sequer alugar um apartamento. Depois de se hospedar por alguns dias na casa de Maurice Rat, um amigo da familia origindrio de Vendeuvre e professor de literatura no liceu Janson-de-Sailly, Paul-Michel Foucault se instala num quarto que Ihe aluga a diretora de uma escala no boulevard Raspail. O que the da uma posicao bizarra aos alhas dos outros alunos. Na época, como lembra Le Roy Ladurie, os alunos dos cursos preparatérios em Paris se dividem em duas “eategorias fundamentais": os externos, filhos da burguesia parisiense, que toda noite voltam para sua propria casa, e os internos, vindos da provincia, que nem pensam em alugar um quarto na eidade,! Mas Paul-Michel goza de um privilégio: seus pais 18m recursos e querem evitar que o adolescente frégil e instével sofra o impacto de uta vida em comum que ele declara detestar acima de tudo, Claro, as vezes tem dificuidade para aquecer corretamente os 3L poucos metros quadrados onde vive. Mas pelo menos esti sozinho, O que re- forga essa imagem, presente em todos os depoimentos, de um rapuz arisco, enigmitico, fechado sobre si mesmo. Alids, deve-se dizer que suas atividades parisienses ao longo desse ano sto bem limitadas: quando muite ele vai algumas yeres ao cinema com a irma, que também acaba de se instalar em Paris. Eles adoram os filmes americanos dos quais a guerra os privara, No resto do tempo estuda como louco para passar no concurso. Cingitenta alunes da “KL” do Henri-I¥ se preparam para os exames Cingilenta. Mais que as vagas disponiveis: a rue d’'Ulm admitiré apenas 38 alunos de letras ¢ deve-se considerar também os alunos da “K2", a segunda classe de khdgne do liceu, também numerosa. A disputa ser acirrada, ainda mais que o outro grande liceu parisiense, o vizinho ¢ rival Louis-le-Grand, pre- tende colocar seu tradicional contingente na Ecole Normale. Quantos desses 49 sapazes que se encontram com Michel Foucault diante das portas do esta- belecimento da pequena rue Clovis poderao figurar na lista definitiva dos admi- tidos no préximo verao? Uma pléiade de excelentes professores se empenha em preparé-los eficazmente. Emmanuel Le Roy Laduric, que ingressou no hypokhdgne nesse mesmo ana, descreve o professor de histéria, o mesmo de Foucault: André Alba, que alardeava seu “republicanismo s6lido, burguesa- mente anticlerical", ¢ seduzia os alunos de esquerda e de extrema esquerda, quer dizer, uma vasta maioria. O homem parecia um “ferido de 1914-18; uma cicatriz profunda, impressionante, cortava-Ihe a frente", Na verdade “essa marca resultava de um traumatismo da juventude’.? Quase podiamos “ver seu eGrebro palpitar’’, contam seus ex-alunos. Foucault também tem aulas com monsicur Dieny, o professor de histéria antiga, Através dele os jovens estudantes pela primeira vez ouvem falar de um certo Dumézil, cuja fama comega a se estender além dos circulos de especia- listas, Ha também Jean Boudout, o professor de literatura, que apresenta a suas ovelhas uma considerivel erudigao, evocando tao bem a Idade Média quanto ‘© séeulo XX, de qualquer modo até os poemas de Apollinaire, pois na época ninguém se refere aos autores comtemporaneos. Porém o professor que mareara mais profundamente esse grupo é aquele encarregado de preparar a classe para a prova de filosofia, Chama-se Jean Hyppolite ¢ seu nome reaparece mais de uma vex ao longo do caminko que Michel Foucault acaba de escolher. Jean d’Ormesson, que freqiientow 0 Ticeu dois anos antes, descreve esse homem “redondo atras da mesa", a palayra "'sor~ ridente, farta, sonhadora, timida, dlongando o final das frases com patéticas aspiragdes, reluzindo de elogiiéncia & forga de recusd-la",’ desse mestre presti- pind que sé dedica a explicar Hegel “através de La jeune Perque (A jovem 32 Parca) ¢ Un coup de dés jamais n‘abolira te kasard (Um lance de dados nunca climinaré o acaso).! E D'Ormesson comenta; “Eu nao compreendia nada divida muitos outros também niio compreendiam. Mas Hyppolite fascina os alunos ¢ depois das aulas insipidas que Foucault teve de agientar em Poitiers essa retérica um pouco grandilogiiente, esotérica ¢ inspirada, que jorra dos labios do professor como uma cascata, parece-Ihe fulgurante e genial. A filo- sofia fascina, assim quer a época, Estamos em 1945 e nfo podemos esquecer, come esereve Jean d’Ormesson, que logo apos a guerra, ¢ durante vérios anos. o prestigio da filosofia foi iIncompardvel. Nao sei se é possivel dizer de fora ¢ friamente o que ela representava para nds, O século XIX foi, talvez, oséculo da hist6ria, os meados do século XX surgiam des cados a filosofia... A literatura, a pintura, os estudos histéricos, a politica, o tear tro, o cinema estavar nas Indios da filosofia.® Hyppolite comenta para os alunos a Fenomenologia do espirito de Hegel e a Geometria de Descartes. Mas é 0 curso sobre Hegel que impressiona os estu- dantes e se grava em sua meméria. Foucault nao fica imune a essa atragio, ao contrario: apaixonado por histéria, encontra-se aturdido pela tentagao filo- s6fica. O professor lhe expde justamente uma filosofia que faz © relate da his- téria e conta o paciente caminho da Razio rumo a sua elevagdo. Aborda toda a hist6ria. E. uma hist6ria que teria sentido, Sem divida Jean Hyppolite foi o ini- ciador de Foucault naquilo que se tornaria seu destinc. O préprio Foucault nfio deixou de proclamar sua divida para com esse homem que alguns anos depois reencontraria no quadro.docente da Ecole Normale ¢ a quem sucederia no Collége de France. Quando Jean Hyppolite faleceu, em 1968, Foucault declarou: Os que estavam ne kidine apés & guerra se lembram das aulas de monsieur Hyp polite sobre a Fenomenologia do espiriro: naquela vor que nao parava de se re- comport come sc meditasse no interior de seu proprio movimento néio ooviamas apenas a vor de uth professor: ouviamos algo da voz de Hegel e talvez até da voz da propria filosofia, Nao creio que seja possivel esquecer a forga daquela presenca, hem a proximidade (de Hegel) que ele pacientemente invocava. A vor de Hegel, a voz da filosofia! E facil imaginar esse professor inspirado ¢ brilhante provecando a exaltagao de seus jovens alunos, Nisso, aliés, ele se insereve na grande tradicio do khdgne, cuja enearna 9s © mais célebre € Alain: “despertadores”, como diz Jean-Frangois Sirinelli em seu estudo sobre os “khagnewx @ normaliens no periodo entre as duas guerras”, insistindo a justo titulo sobre o papel muito importante que desempenham esses professores de um tipo muito especifico nessa instituigdio bem francesa que ¢ 0 “curso prepa ratério para as grandes escolas”. Porém a divida que Foucault proclamaré com relago a seu ex-professor 33

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