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A Relacao Médico-Paciente e o Cuidado Humano: Subsidios para Promo¢do da Educacao Médica The Physician-Patient Relationship and Human Care: a contribution to the promotion of medical education Suely Grossemant Zaleica Mara Patricio PALAVRAS.CHAVE: RESUMO, = Relagdes Médico Paciente; Em um estudo qualitative desenvotvide com 25 médivos, na cidade de Floriandpolis (SC), no ano de ates 2001, 0 tems “interagto médico-paciente” permeou a andiise e discussto dos dados, representando uma importante dimensto na construgio cotidana de “ser médica” e na sotstaga0 com a profissio. O = Suisfagio no Emprego: wor fe asso com a pr objetivo deste artigo & resgatar este tema, esperando gerer reflexdes, individuals coletivas, que cestimulem a revisio de atitudes durante a formagto e a pritica médica, viswndo promover a sstistarto do paciente com 0 médico, a do médico com seu trabalho, bem como a sitisfagso do aluno com o docente ¢ 2 dy docente com sua pritica pedagdgica. Foram utilizados principios da pesquisa qualita tiva, com estudo de casa, a partir da anslise de contetido dos dados emplricos de depoimentos dos participantes desse estudo, bem como dos dados da literatura. Fercebe-se que 0 ensino médico nto tem priorimdo a abordagem de questies relacionadas 3 interagto, seja entre médico e paciente, sejo entre docente e discente, © que poderia ser transformado se fossem incorporados em seu contexto ccomponentes do cuidsdo umono, = Peocagio Medica. KEXWORDS ABSTRACT. In a qualitative study involving 25 physicians in the city of Floniandpolis, Santa Catarina, Braz, in the year 2001, the theme ‘physician-patient interaction” permeated the dala analysis and discussion, reve aling important dimensions in the daily construction of ‘being a doctor” and personal satisfaction with ‘the profession. The objective of this atice is 0 rechaitn this issue in the hope of generating individual ~~ Edueanina, Metlal and collective reflections that foster 3 review of attitudes during medical training and practice, seeking to promote patient satisfaction in the physician patient relationship, physician satisfaction with the medics! practice, and that of faculty and students in relation to the teachingfeorning process. The study uses a qualitative research methodology of the case study type, with content analysis of the empirical deta as well as material gleaned from the literature. Based on analysis of the interviews, ‘medical education has filed to prioritize issues related to physician-pationt and faculty-student inte radtion, a situation that could be changed if components of human care were incorporated into this context = Physiciin-Patient Relations: =Helistic Health: = Joh Sasisfoctions Recehido em: 25/11/2003 Recresrin nen 27/02/2008 Apwosadosens: 19/05/2008 " etc Peitrn, Mase om Side Mater ft, Dato em Engenkne de Produ, Deen do Onuttamerto de Pri ede Mesasoom encase do Unio eter de Sante Claro (UESCI.Prisndpl Bri gofimenmsumuns * ese Destro Fis de Exratg, Decent do Cats de Mods, Unive Feder de Sent Cotarine (ESC Unie oS Geom TEE cla Sh Senta Care (Una, rede, Bras ‘Surly Grossman / Zulia Maria Patrica A KelacSo Médico-Pacienle¢ 0 Cuidado Humane: Subsidios para I smocto da EdueseSo Médica INTRODUGAO. Oconteiido deste artigo teve como fonte de dados a tese de doutorado' Satisfagdo com 0 trabalho: do desejo A realidade de ser médico, cujo objetivo era compreender, junto a profissi nais médicos, os significados do desejo de ser médico e a sa- tisfagdo com a realidade do trabalho. Para alcangar tal objetivo, 0 método da pesquisa foi 0 qualitative", ¢ 0 tipo de estudo 0 Multicasos’, com 25 médicos (pediatras, elfnicos, cirurgibes, ginecologistas/obs- tetras e médicos da Sade Publica), de ambos os sexos, for- mados hi mais de 15 anos, residentes em Santa Catarina (Bra- sil. A pesquisa atendeu os principios de eticidade, preconi- zados na Resolucio 196/96 do Conselho Nacional de Satide: 05 objetivos do estudo e os beneficios que dele poderiam ad- vir foram apresentados, verbalmente e por escrito, aos pes- quisados, que, entio, foram convidados a participar do estu- do. Apés aceitacio, eles receberam, para leitura, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que continha os objetivos e outros detalhes da pesquisa. Nesse Termo, a pes- quisadora se comprometia a garantir 0 anonimato dos pes- quisados ¢ fornecia telefones de contato, caso eles quisessem desistir, a qualquer momento, de participar da pesquisa. En- to, Ihes foi solicitada a assinatura do Termo e a escolha de um codinome, para preservacso do anonimato”. Oo dados fo- ram coletados por entrevista semi-estruturada em profundi- dade (subsidiada por recursos de simbolizacio) e analisados pela técnica “Anélise-Reflexio-Sintese”™™ Com esse processo, foram encontrados sete grandes te- mas: “A poténciae o potencial do desejo de ser médico” (pro- cesso de construgio do desejo de ser médico); “A ‘perda da poesia’ na formacio académica” (processo de formac3o aca- démica);”A satisfacdode ser médico” (fatores que promovem a satisfagio domédico com seu trabalho); “O conflito com os desejos altruistas, no exercicio da profissio” (fatores psicol6- gicos do cotidiano que limitama satisfacio profissional); “En- tre o curar e 0 cuidar” (estratégias elaboradas frente is limita- Bes sentidas no cotidiano); “Desilusio com os desejos de re- conhecimentoe boa qualidade de vida" (outros fatores de in- satisfagio) e “Dos desejos do passado aos desejos para o futu- ro” (expectativas do passado e para o futuro). © componente “interagio médico-paciente” permeou es- ‘es temas, expressando-se como importante dimensiona.cons- trusio cotidiana do “ser médica” e na satisfagio com a profis- sio, tendo como referéncia os significados que originaram 0 desejo profissional e as expectativas para a vida futura, com forte influéncia do processo de formagio académica. Entendendo que é de grande importancia estudar a rela- ‘gio médico-paciente, 0 objetivo deste artigo é trazer dados desse tema, esperando gerar reflexdes que estimulem, ind ivi- tudes aprendidas e ensi- nadas durante a formacio e a pratica médica, na perspectiva de inter-relagdes que promovam maior competéncia técnico- humanistica do profissional, cuja qualidade possa promover dual e coletivamente, a revisio de 2 satisfagio do paciente com 0 médico, a do médico com seu trabalho, a do aluno com o docente ¢ a do docente com sua pritica pedagégica. Partindo dessas consideragdes e seguindo principios da pesquisa qualitativa, o tema proposto é apresentado a partir de dados empiricos, relativos a depoimentos selecionados do conjunto de dados dos participantes do estudo! e analisados com apoio da literatura, AIMPORTANCIA DA FORMACAO ACADEMICA NA INTERACAO MEDICO-PACIENTE Um dos prineipais significados para o emergir do desejo de ser médico, nos profissionais do estudo de Grosseman', foi 0 desejo de curar, ajudar, salvar ou cuidar de outros seres humanos. Muitos deles pensavam que a promogio do bem- estar de outros seres humanos lhes proporcionaria a realiza~ s8o profissional e pessoal, pois, como veiculado por desejos coletivos e transmitido pela sociedade, o exercicio adequado dda medicina acarretaria reconhecimento social e financeito, ¢ boa qualidade de vida. No cotidianodo trabalho, ainteragiomédico-pacientetem importante papel na satisfacio profissional desses médicos, gerando energia e disposicSo, e contribuindo para que eles reflitam sobre a vida do “outro” e a propria vida: A profissio me satsfax bastante pela coisa do auxiliar (..) a ponto de ver que vocé esif cansado, depois de um plantéo, ou ‘do acorda legal, nto eth disposto a atender, mas, a medida que comega a atender, vai mudando. Atua disposigto melhora pela pr6pria interagdo com o individuo que esté na tua frente. Ex to, isto dé wma satisfagto muito grande (.). (Os meus vintee poucos anosde profissdo jt me deram a oportu- nnidade de un monte de pessoas sentarem na minha frente.) Seum por cento daquelas pessoas_...) deixou alguma coisa para ‘mim, eu sou uma pessoa bastante rica, porque (...) ela sempre deixa alguna coisa boa para voce, se voce estiver aberto para receber(..). 56 médico vive isso. (..) também, lu abres @ opor- tunidade de olhar 0 mundo, wocé eresce com isso. Voce olla a outra pessoa ¢ diz: “Puxa, 0 que eu estou fazendo da minha vidal. Vocé df um consetho para uma pessoa: ‘A senhora tent que caminhar’, Aquito volta para mime digo: ‘Puxa, tenho que caminhar’ 100 fear oi PB ‘Suely Grotseman 1 Zuleice Mari Patricio Nessa perspectiva, a formagio académica esses profi competéncia relativa ao relacionamento interpessoal, imitou a expressio de parte de seus desejos, 0 que precipitou, nesta época, reflexdes sobre os ideais da escolha da profissio. /enciada por sionais, por nfo ter valorizado em seu contexto a Entre as limitagSes apontadas na formagio, destacaram- se: 0 aprendizado centrado no diagnéstico e tratamento de doengas, principalmente em sala de aula eno conlexto hospi- talar; oportunidades insuficientes de interagir coma comuni- dade para compreender sua cultura e seus determinantes saii- de-doenca; a néo valorizagio de atitudes voltadas as necessi- dades do ser humano, no proceso de ensinar-aprender ai teragio médico-paciente: (2 0 proprio curriculo, que me distanciow cada vez mais da quelainzagem de médico que eu tina, na adolescéncia(.). Em termosde curriculo, eu acho ima catéstrofe porque ..) curso de medicina é oexerciciode tirar vocé do paciente, de tirar voce da populacto, do ‘desexercicio’ da medicina (.). Voc? tem wm monte de matérins ¢ tem umia aula prética com 15 pessoas. E, at, te jogam 1m paciente enfermo (...) eu vejoleto hospitalar. Ew ndo vejo determinagto da doenca (...-Entdo, hd uma ‘desn- sergio’ do curriculo com a realidade da populagao, para deter rminagio da doenga (.).Porque a nossa prética tem que se dar principalmente dentro da populacao. Porque & ali que se dé 0 processo saide-doena. AA foculdade te ensina o que é um abdémen agudo, que aquela cama 16 tem um paciente com apendicite€ tal. O conhecinento hoje € tanto, que a faculdade nfo tem tempo de colecar 0 alund dignte do ser hunano mesmo. Ela néo ensina isso, Vocé vai aprender na vide... vai lapidando isso (2 a nossa faculdade, do pouto de vista relacional, & muito complicada, Aco 0 caes(..). Eles preparam para o camarada saber er para a vida profssional, sem nentunna base de relagto Iumana, Nenwuna, wade, zero! (..) para traballiar isso, cada semestre que passasse, deveriam colocar pessoas competentes para trabalhar a parte de relagto do alune com a vida dele fora a academia também. Arelagio do aluno com o paciente € wma coisa muita mecénica também; tem que ter uma outra aborda- gem. A relagao médico-meia é muito complicada. Ele (0 aluno) no se prepara nada. Ele jogado feito wm “cachorro no meio da arena’ ele jt sai de armas em punto. Teve sma pessoa que me falou que. estudante entra muito ide alista e sai um cinico porque (...) 0 modelo € muita técnico, es- quece a visto geral, a visio hurmana mesmo. Cinico, no sentido ‘ARelacto Médico Facente 0 Cuidado Humane: Subsidies para Promocto a Educacso Mica de fingir que lida com humanos ...) Entto, no infcio, na aula de ananmese, ele se preocupa até em se apresentar, pede licenca, explica para os pacientes 0 que esté acontecendo, E quando ele sai, j6 chega na maca, j& tira 0 lengol do cara, nem fala com cara, uma coisa muito mecinica, como se ali estivesse um amon- toado de brgios deitados naquela maca. Os professores que ensinaram a gentea tocar no paciente € a chamar 0 paciente pelo nome, ao inués da doenca foram pou- 0s. Tanto & qite cada um de nés tem um professor desses em mente. Eu acho que isso é 0 mais importante no médico. Esté ‘mais que proundo, Se tiver essa parte, a gente consegue curar ‘muito mais do que com medicamento ..). Na verdad, 0 curso de medicina fot, para min, a desmistifica sito da Ete oi icina (..). Daguilo que ent imaginava de ser médico. tirando da minha poesia, Os profissionais do estudo também ressaltaram o senti- mento de negacdo de sua vulnerabilidade no cotidiano do processo ensinar- conte, e como isso repercutia em sua qualidade de vida, render j4 na propria relacio docente-dis- Eu acho wm absurdo 0 que fozem com a gente na faculdade de ‘medicina. Eles criam a genteassim: ‘Médico ndo pode comer, mé- dco nto tem fome, médico nao tem dor, médico néo fica doente’ Quantos pacientes felam: ‘Mas médico também fica doente?” (2. Entdo, eu passei batide a minha vida. Anos que nem int trator ¢ nfo tenho dituidas de que médico & prepotente (...), @ ‘gente € criado para isso. Por conta da “inabilidade” na interagso com 0 paciente, ‘esses médicos, quando em situacdes de dificil manejo, como, por exemplo, de grande sofrimentoe morte iminente, sentem mais dificuldades relacionais, o que gera neles grande sofri mento. Un paciente..) em fase terminal é una crianga ..)ea medi- ina ndo vai dar conta de saluar(...- Isso nfo me frustra do pponto de vista de onipoténcia (..) © que me preceupa é como vow conseguir dar o apoio adequado nessas horas (..) €€ 0 que sme maciuea mais 10 dia-a-dia, (.) do ponto de vista profissio nnal,a gente no & preparado nem na escola, nema vida profi sional. © médico sabe lidar com a morte? Nao sabe. O paciente termi- nal é abandonado, O médico faz oncologia, eu tenho um resi- dente que esté fazendo oncologia no Rio. Eu perguntei: ‘Vocts Uke a mre toate A Relagta Médico-Pacientee 9 Cuidado Human: Substdi Promogio da Educagso Média tam algum apoio psicolégico?’. Nao, nenhium. € paciente que ‘orre, paciente que morre, paciente que morre. O que é que ele vai fazer se ndo tem prepara? Endurece diante da vida (... Esses depoimentos levama considerar que, durante a for- macio académica, os profissionais aprenderam a buscar 0 objeto “doenca” nas pessoas e sentiram falta de abordagens que estimulassem seu potencial de se relacionar com o outro. ‘Além das limitagdes que apontaram no proceso ensino-apren- dizagem no que se refere a subjetividade do outro, também expressaram o aprendizado da negacio da prépria subjetivi- dade, em especial a expressio de seus sentimentos. Atualmente, 0s médicos tém se deparado com criticas da sociedade. Dunning’ pondera que um dos fatores que tém contribuido para isto € que, hoje, uma populagio mais bem informada requisita maior consideragio e transparéncia dos profissionais médicos, além de modelos profissionais segu- ros. Esse autor remete a William Osler, que, em 1903, jé excla- mava, em relagio aos médicos, que “metade de nés esté cega, poucos de nés sentimos e todos nés estamos surdos”. Neste sentido, Zimerman” enfatiza a necessidade de 0 médico se esforgar para compreendero paciente, pois “ndo hi nada pior no ato médico do que 0 ‘didlogo de surdos’ da incomunica- io, razio por que ¢ da méxima importéncia que o médico possa traduzir a linguagem do paciente, quando ela vem tra- 2ida sob signos prit Z vos”. Segundo Ballint", na formagio académica prepara-se 0 médico para “catequizar” o paciente a seguir as ordens médi cas, como se fosse uma religiio, & qual o paciente deveria aderir pela fé no possuidor do saber. Entretanto, 0 autor ressalta que a doenga nao pode ser compreendida como um fendmeno iso- lado, mas sim em relagioa vida do individuo e seu ambiente. Para Crema, “a doenca é um ruido indicativo de nossas contradicdes. Necessitamos escuté-lo e compreendé-lo para, 6 entio, elimind-lo”", Considerando que a doenca é uma forma de 0 individuo explicitar conflitos internos, Ballint", assim como Crema, chama atengéo para 0 valor que esta do- enga representa, tanto para o individuo que adoece como para (0 médico, para langar luz a0 conflito que ela expressa, Aprender a trabalhar com a subjetividade ¢ fundamental para o desenvolvimento de uma relagdo médico-paciente cons- trutiva, 0 que vem a definir a qualidade da prética médica. Ballint" chega a afirmar que “o remédio mais usado em me- dicina 6 0 proprio médico, 0 qual, como os demais medica- mentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reagdes co- laterais e toxicidade”. A relacéo médico-paciente, para Entralgo™", 6 uma for- ‘ma singular de amizade ser humano/ser humano, que deve abranger a benevoléncia (querer o bem do outro); a benedi- céncia (falar bem do outro, na medida em que pode fazé-lo sem mentir); abeneficéncia (aceitarlealmente o que o outro €, ajudando-o delicadamente a que seja o que deve ser); e abe- nefidecéncia, que é efusio — expansio de afeto —em dire- ‘s40a0 outro, para compartilhar com ele algo que Ihe pertence intimamente, que se dé em confidénciae vai permitir aos dois transformar a relagao dual em diddica O tipo de interagio que se estabelece entre o médico e 0 paciente depende de como o médico vé o ser humano que 0 procura. Neste sentido, Guareschi" explana que as relagées entre os seres humanos so influenciadas pels visio predomi- ante do contexto histérico-social em que eles esti inseridos. Quando a visio da sociedade ¢ individualista, muitas vezes, 0 ser humano tende a considerar 0 “outro” como pouco impor- tante para o seu proprio crescimento,e o tipo de relacdo que se estabelece se dé de forma que cada um tenta ver o que pode “tirar” do outro, a0 invés de vé-lo como complementar. Quan- do a visio € totalitéria, o ser humano passa a ser secundério (uma pecana méquina”), havendo perda da individualidade, € a forma de relacionamento que se estabelece também leva pouco em consideragio 0 “outro”, pois a importancia esté cen- trada no sistema, geralmente muito burocratizado. Guareschi’* pondera que, para o estabelecimento de rela- des construtivas de dislogo e uma verdadeira relagio inter- pessoal, é necessério valorizar 0 “outro” em sua identidade, respeitando seus valores e compartilhando suas experiénci- as, considerando-o alguém essencial & propria existéncia. Por meio desta visio, 0 ser humano passa a sentir necessidade de escutar 0 “outro”, pois este, ainda que distinto, contribui para © proprio desenvolvimento pessoal. © autor esclarece que somente neste tipo de relago pode-se considerar a ética e 0 respeito entre os seres humanos. Atualmente,na sociedade ocidental, a visiotem sido mais centrada no individualismo e, como conseqiiéncia, o habito de escutar tem sido pouco enfatizado no cotidiano das intera- c6es entre os seres humanos. Entretanto, este escutar precisa ser resgatado, pois, como afirma Alves: “O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tran- giila. Em siléncio, Sem dar conselhos (..) A gente ama nio éa pessoa que fala bonito. £ a pessoa que escuta bonito” No caso da interacio médico-paciente, Videla” comenta que os pacientes tém fome de solidariedade porque a enfer- midade, muitas vezes, humilha, corr6i o sentido do “eu, tor- nando-0s vulnerdveis a palavra do médico e, portanto, este deve cultivar a flexibilidadee a toleréncia parahonrar 0 pon- tode vista dos pacientes, O autor esclarece queo médico pode saciar a fome de solidariedade do paciente com conversas te- ‘Suely Grsseman Zulica Maria Pari nite « 9 Cuidado Humano: Substdios par rapéuticas ea tentativa de resgate de uma “esperanca ética”, que, inclusive, pode ajudar a instalar no paciente uma busca interna de cura. Fazendo-se uma leitura dialética dos dados empiricos, pode-se observar que o contexto satisfagdo-insatisfacdo, por tergeradocontradigées, estimulou transformacdese fez emer- gir um movimento particular de reflexdo, resultando em no: vas sinteses que incorporaram componentes do.cuidado, como aparece nos depoimentos que se seguem: Eu tive contato com unt professor (...)que me introduziu aque- Ia imagem diferente do que € uma pessoa, do que é a doenga. Pela primeira vez, 18 anos de formada, eu comecei a aprender a atender un ser humano (...) © médico mesmo, ele atende um paciente que esté doente, nem sempre uma doenca que precise de medicamento; muitas vezes, € uma doenga que & da familia ‘ou de uma vida mal vivida. E como é que a gente vai interagir nnisso? O poder de cura élimitado... Vocé pode fazer muita coisa pelo paciente, sem curd-lo. Ajudar, cuidar... E, quando vocé nao ‘cura ecuida, eu acho que 0 sentido tanto do cuidado do doente como 0 do médico se complementam. A gente dé outras coisas. A gente tem wm envolvimento dife- rente (.. além de medicar a dor, conversa cont 0 paciente, pro- cura reabilité-lo dentro daqueta circunstancia: a familia a lee cle a familia, Entdo, a gente consegue conversar até sobre a do- enga coma familia ¢consegue tirar coisas de wna doenga, quea dor dimninui, mesmo sem ser com analgésico. Voc®, inclusive, prepara o caminho para a morte, até.. sem grandes recursos Basta conversar. E, muitas vezes, a gente nio consegue dizer nada e a gente abraga, Analisando-se qualitativamente os dados empiricos e te- 6ricos apresentados, & luz da literatura sobre interagdo hu- ‘mana na assisténcia d saiide e qualidade de vida dos envolvi- dos nesse processo, surgem categorias que representam a qua- lidade da interagto médico-paciente e a qualidade da intera- so docente-aluno de medicina, Essas categorias, por sua vez, expressam componentes do construto do cuidade humano, abordados nos estudos de Leininger™ Leininger desenvolveu a Teoria do Cuidado Transcultu- ral, voltada para 0 cuidado da saiide do ser humano, na érea da antropologia. A autora chama atenco para 0 “cuidado humanizado”, demonstrandoa importancia de considerar,na assisténcia, o serhumano em sua integralidade, diversidade € unicidade, contemplando suas crengas, seus valores, conhe- cimentos e suas priticas de satide, o que se expressa pelos componentes do care-caring (cuidar-cuidando)” Patricio, partindo de dados de experincias de campo na Grea da sade em contextos brasileiros, estudou essa teoria e ampliou esse construto, com base em outros teoristas sobre “cuidado humano™™ e em Gramsci”, tendo em vista a sadde como bem viver individual-coletivo que envolve subjetivida- de, ambiente, participagio, cidadania e educacSo, ao qual de- nominou “processo de cuidar-cuidado sécio-cultural”™. Pos- teriormente, a autora incorporou outras concepgées, que am- pliaram a compreensio do ser humano, na construsdo indivi- dual-coletiva do processo satide-doenga, que evidenciaram ainda mais a qualidade das interagdes como mediadoras da construcdo desse processo e da propria qualidade de vida in- dividual-coletiva, denominando-o “Referencial do Cuidado Holistico-Ecol6gico”*. Nesse contexto, para a autora, 0 “cuidado da vida” — “cultivar a vida” —seja para promover a satide ou para tra- tar problemas que limitam o proceso de viver saudavel — pressupde a integracio entre razdoe sensibilidade como atri- buto da qualidade das interacdes que o ser humano de- senvolve com outros seres humanos e com a natureza no cultural Assim, 0 proceso de cuidar envolve componentes éticos €estéticos de bem viver individual-coletivo num dado ambi- ente, tendo em vista a complexidade e diversidade das multi- plas interconexdes que se constroem na historia de vida, des- de o primeiro ambiente, o utero materno. Nesse processo de cuidar, 0 profissional da satide, além de considerar os compo- nentes culturais, também valoriza as expectativas, sentimen- tos e desejos dos seres humanos envolvidos na situacdo em estudo. £ um didlogo de escuta e troca de universos culturais € afetivos, que resulta em transformagdes no somente na- quele que ¢ cuidado, mas também no cuidador®™ Na expectativa de melhorar a qualidade da interagao médico-paciente eainda promover satisfagdo, a reflexo criti- ca —0 questionamento ético — acerca dos dados empirico- tebricos até aqui apresentados evidencia a importancia da qualidade das interagbes que se desenvolvem no processo ensinar-aprender, nos diversos censrios do cotidiano, na for- macio académica dos cursos de medicina. Até porque nada ensina tio bem quanto o “discurso testemunhado", ¢ isso 0 aluno precisa ver na relacdodocente-paciente, docente-docente edocente-discente, Este processo favorece uma aprendizagem mais tranguila, mais saudével, mais humana, inclusive, uma aprendizagem para o autocuidado. ‘As autoras concebem, nesse momento, que o paciente deseja e tem o direito de ser cuidado no processo de ser assis- tido pelo médico e que 0 aluno também deseja e tem o direito de ser cuidado no processo de ensinar-aprender medici 103 nie nt nave H2ulice Mana Paco, Asnovas Diretrizes Curriculares®, fruto de esforcos con- juntos de diversos setores envolvidos e comprometidos com fo ensino e a pratica médica, jé incorporam essa filosofia, re- presentando um avanco conceitual conquistado. Nessa pers- pectiva, diversas escolas médicas no Pais tém inovado seu curriculo e divulgado suas experiéncias* 5”, CONSIDERAGOES FINAIS ‘Como propiciar que movimentos individuais se tornem, coletivos? Como “sair da teoria para a pritica”? Em outras palavras, como operacionalizar os conceitos e principios das novas Diretrizes? Entendendo que todo projeto coletivo pressupée uma transformagio individual, as autoras acreditam que seja ne- cessério investir em processos pedagogicos que promovam atitudes de reflexdo individual, com foco nos objetivos co- muns, Esse processo cria oportunidades para que cada partici- pante se dé conta de seu proprio referencial e daquele dos demais, ouseja,das crencas, expectativas, priticase sentimen- tos, desejos, valores e conhecimentos envolvidos no processo. Isso significa refletir sobre si mesmo, sobre dimensdes huma- 1nas, incluindo relagdes cotidianas e com o mundo em geral, e © reflexo dessas situagdes na qualidade de vida individual- coletiva™ Nesta oportunidade, as autoras convidam os colegas 2 refletirem sobre a responsabilidade individual e coletiva de melhorar 2 qualidade das interagées educador-educando € médico-paciente, para que se promova, efetivamente, a sai facio miitua nestas relagbes. O contexto atual favorece o de- sencadeamento de reflexdes e mudancas de atitude. £ preciso; para tanto, que os responsiveis pelo ensino médicocomecem a considerar a diversidade e complexidade da subjetividade humana, no proceso do ensinar-aprender € no processo do adoecer-curar, tendo em vista o importante papel que o médico tem como mediador destes processos. Desta forma, pode ser vislumbrada uma medicina que integre ciéncia e arte, incorporando a dimensio estética, para consolidar uma prética profissional guiada por principios de uma “ética do afetivo™®. O maior lucto dessa atitude é, no futuro, ter médicos com mais capacidade de cuidar de sua propria satide e também do paciente e da comunidade & qual pertencem. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 1. Grosseman S, Satisfago com o trabalho: do desejo a reali- dade de ser médico. [Tese]. Florianépolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2001. 10. u 12, 13. 44 15. 16, v7. 18 Bogdan R, Biklen SK. Investigaco qualitativa em educagio: uma introdugdo a teoria e aos métodos. Porto: Porto; 1994. Demo P. Metodologia cientifica em Ciéneias Sociais. S50 Paulo: Atlas; 1989. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa quali- tativa em satide, So Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec- Abrasco; 1993. Patricio ZM. 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