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5 SENHORES E SUBALTERNOS NO OESTE PAULISTA Robert W. Slenes 23d + HISTORA OA VIDA PRIYADA NO BRASIL 2 1. O nov faroeste: no mapa de 1868, inserido no Atlas de Candido Mendes, primera visualizagao completa do terit6rio nacional de que dispuseram os brasileiro, boa parte do territério de Sto Paulo aparece ainda entregue a “indigenas {ferozes: (Atlas do Império do Brazil, 1868) MAE E ESCRAVA DO FILHO © tornar-se maior de idade em 1869, no municipio de Campinas, Sao Paulo, um jovem compoe um do- .cumento extraordindrio, formulado na linguagem da propriedade mas carregado de emogao: “Digo eu Isidoro Gur- gel Mascarenhas, que entre os mais bens que possuo [...] sou. senhor ¢ possuidor, de uma escrava de nome Ana [...] [recebi- da na heranga] de meu Pai, Lucio Gurgel Mascarenhas [...] € como a referida escrava é minha Mae, verificando-se a minha maioridade hoje, pelo casamento de ontem, por isso achando- me com direito, concedo a referida minha Mae plena liberdade, a qual concedo de todo 0 meu coragao”" (grifos meus). Nao era comum no século xix um filho ser proprietério de sua mae. O caso extremo, no entanto, muitas vezes ilumi- na a norma, ao revelar pracessos sociais cotidianos no interior em torno de fatos inusitados. A hist6ria de Isidoro e de seus pais, Lticio e Ana, é exemplar nesse sentido. Contextualizada com outras evidéncias e analisada em detalhe, ela oferece uma janela para desvendar as relagdes de poder entre “senho- res” e seus subordinados — escravos ¢ libertos, trabalhadores nacionais e imigrantes — no “Oeste histérico” paulista.? Os fios desta histéria despontam no inicio do século xix, quando 0 avé de Isidoro, Pedro Gurgel Mascarenhas, chega a Campinas. As experiéncias de Pedro e de seu filho Luicio, a0 construirem seus patriménios, sao elucidativas dos processos de povoamento do Oeste paulista por pessoas li- | SENHORES E SUBALTERNOS NO OFSTE PAUUSTA + 235 236 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 vres e cativas, e dos caminhos de enriquecimento e empo- brecimento que se abrem a partir da década de 1790, quan do a sua regio se transforma em érea de “grande lavoura” (agricultura voltada para a exportacio), primeiro centrada no agiicar, depois no café. Entretanto, é a trama tecida pelos protagonistas da his- toria, na interagao entre eles, que mais nos interessa neste ensaio. A vida de Ana, como também a de outras escravas, suas parceiras, sugere muito a respeito do poder nas relagdes entre homens dominantes e mulheres subalternas. Os dra~ mas de outras personagens também jogam luz sobre 0 (des)governo dos senhores, ¢ ainda sobre as estratégias de sobrevivéncia e autonomia elaboradas, em contrapartida, pe- los escravos. Da anilise dessas vivéncias emerge o retrato de uma classe senhorial prepotente e freqiientemente arbitréria, mas sobretudo ardilosa: uma classe que brande a forga e 0 favor para prender o cativo na armadilha de seus proprios anseios. Dentro de certos limites, os senhores estimulam a formagao de lacos de parentesco entre seus escravos e insti- tuem, junto com a ameaca e a coacdo, um sistema diferen- cial de incentivos — no intuito de tornar os cativos depen- dentes ¢ reféns de suas préprias solidariedades e projetos domésticos.* Essa politica de dominio ¢ relativamente bem-sucedi- da. Por isso mesmo, talvez ela subverta a autoridade dos senhores a0 mesmo tempo que contribui para sua domi- nacao no cotidiano. Rachado por linhas de solidariedade diversas, cujas pontas em geral convergem para a casa- | grande, 0 grupo escravo também desfruta de uma expe- riéncia em comum e de instituigdes, inclusive familiares, que incentivam uma identidade propria. Como resultado, os senhores dormem sobressaltados, pois sabem que os lideres das revoltas nas senzalas com freqiiéncia sao os es- cravos mais “chegados” aos proprietdrios. A prepoténcia dos senhores e seu afa de transformar trabalhadores em dependentes sobrevivem a substituigio de escravos por imigrantes. O contraponto entre proprietirios e “colonos” no final do século xix guarda certas semelhangas com aquele entre senhores ¢ escravos, ainda que expresse tam- bém as novas relagdes de trabalho. ENHORES E SUBALTERNOS NV A FAMILIA GURGEL MASCARENHAS Pedro Gurgel Mascarenhas, natural de Pitangui, Minas Gerais, se estabeleceu na provincia de Sao Paulo por volta de 1813.‘ Foi registrado no recenseamento de Campinas de 1824 como pessoa que “vive de seus negécios”, Eram, sem diivida, negécios présperos, pois jé Ihe permitiram acumular dezes- seis escravos, mais do que dois tercos dos senhores de Cam- pinas possuiam na época. Censos posteriores s40 mais expli- citos quanto a fonte de renda dele: em 1825 ele “vive de jornais [“salarios” ou aluguéis| dos escravos” ¢ em 1829 é dado como “taipeiro”, construtor (no contexto, “empreitei- 10”) de prédios de taipa. Seus escravos provavelmente traba- Thavam na construgao, além de prestar outros servigos. Cinco dos treze cativos presentes em 1825 e em 1829 so descritos, quando recebem a liberdade em 1843 ¢ 1861, como artesios qualificados: trés “carapinas” (carpinteiros), um taipeiro e um alfaiate.* Os censos, contudo, nao mencionam outra atividade de Pedro que certamente Ihe deu muitos lucros. Num processo de 1829, movido por ele contra um devedor, nosso “taipeiro” previne-se contra a possivel acusa¢ao de ganancioso, dizendo que “estando morador ha dezesseis anos e tendo vendido nesta Provincia trezentos negros [ele, Pedro] nunca propos acdo alguma ainda que se Ihe deva muitos anos [...]”. Em suma, além de adquirir alguns escravos para viver de seu servico e aluguel, ele os comprava em maior ntimero para revender. Em dezembro de 1843, aos setenta anos, a beira da mor- te, Pedro redigiu seu testamento. Como nao tinha herdeiros “forcados” — nunca se casara e os pais haviam falecido —, estava livre para distribuir sua propriedade a quem quisesse. Declarou, entao, que “tenho um filho natural, de nome Lui- cio, € mulato, e o instituo por meu herdeiro”. Como Pedro era descrito nos censos sempre como “branco” ¢ Lticio, a tinica vez que aparece nesses documentos, é descrito como “pardo”, a mae de Lticio podia ser negra ou mulata.’ Anos mais tarde, Lticio a identificaria em seu proprio testamento apenas como “Floréncia’, sem atribuir-lhe sobrenome ou 0 titulo de “dona”, 0 que sugere que ela era de origem humilde. Se Hloréncia acompanhara Pedro a Campinas, ela ndo mais ra + 237 238 + Hist VIDA PRIVADA, morava com ele no mesmo “fogo” (domicilio), segundo os censos da época. Licio, sim, chegou a Campinas com Pedro, mas no como filho reconhecido. No censo de 1824, um “Lticio agre- gado” (morador livre), descrito como solteiro e pardo, de 23 anos — justamente a idade que o Licio filho teria —, se encontra no fogo encabegado por Pedro. Seu nome esté no final da lista de escravos, ou seja, 0 mais longe possivel do registro do chefe de domicilio. Nos anos subseqiientes, ne- nhum Liicio esta mais presente nesse fogo. O testamento de Pedro revela, entretanto, o paradeiro do filho. Ao reconhecer a paternidade em 1843, Pedro indicou que Lucio estava m rando em Araraquara. Isto é, entre 1824 e 1825 Lucio teria deixado de viver junto com © pai, mudando-se, entéo ou depois, para o “sertao” do Oeste paulista. Ainda segundo Pe- dro, Lticio era “carapina” de oficio. Se também negociava es- cravos, como seu pai “taipeiro”, ndo o sabemos. A justica € lenta, e Lticio s6 recebeu sua heranga em meados de 1847. Ainda morava em Araraquara, onde tam- bém se encontrava em julho de 1848, quando foi preso pela policia; “por embriagado e andar fazendo desordens, assinou termo de bem viver”’ Logo em seguida, no entanto, Lticio mudou-se para Campinas. Em 1850, seu nome aparecia pela primeira vez na lista de votantes desse municipio, que dava a profissdo dele como a de “administrador”. Dirigia, talvez, um engenho de acticar ou fazenda de café. Ji em 1852, sua ‘ocupacio era a de “agricultor”. Quatro anos mais tarde, de acordo com o registro paroquial de terras dessa época (um “recenseamento” fundidrio), ele tinha uma propriedade na cidade de Campinas, além de um “sitio” na drea rural. Lticio provavelmente residia durante parte considerével do ano na cidade. Em seu inventario, uma casa urbana recebeu boa ava- liagao e foi descrita como melhor aparelhada — contendo varios objetos de prata — do que a casa do sitio, tida como “simples”. Além disso, o inventariante de seu espélio e quatro dos padrinhos dos filhos de seus escravos eram vizinhos pr- ximos de sua propriedade urbana. Quando Lucio faleceu, em 1861, seu patriménio consistia principalmente em 23 escravos, o sitio, e duas casas € um terre- no urbanos. Seu espdlio foi avaliado em 52 contos de réis (52:000$000), ou em torno de US$ 27000 pelo cambio da épo- adil SENHORES & SUBALTERN ca.‘ Ele era, portanto, um homem préspero na sua comunida- de, mesmo entre senhores de escravos, embora estivesse longe de ser um dos mais ricos. (Em 1872, trés em cada quatro senho- res em Campinas tinham menos de vinte cativos; porém, os 4% mais ricos possuiam acima de cem.)* Seus escravos, representan- do quase dois tergos dos bens fundidrios dele — proporgio nada estranha para os senhores da época —, eram predominan- temente homens adultos. Destes, a maioria compunha-se de tra- balhadores de roca, sem dtivida empregados nos 23 hectares, onde Lucio havia plantado milho, feijao e arroz. O patrimédnio que Lucio tinha quando morrew cresce- ra, provavelmente, desde 0 ano em que recebeu a heranca de Pedro. Em 1861, sete de seus escravos haviam nascido na propriedade dele. Dos outros dezesseis, cinco ou seis foram comprados depois do falecimento de seu pai. Entretanto, se Lticio prosperou no final da década de 1840 e na de 1850, é evidente também que a maioria dos escravos adultos de 1861 foi adquirida por ele em Araraquara antes de 1844, ou herda- da do pai. Portanto, quando Liicio atraiu a atengao da policia de Araraquara em 1848, nao foi por ser um homem “pobre” e suspeito de ser “perigoso”. E bem possivel que tenha sido responsavel, de fato, por “desordens” nese ano — o que, como veremos, s6 reforga a imagem de pessoa voluntariosa que emerge dos documentos sobre a relacdo dele com as maes de seus filhos. Até aqui, as histérias de Pedro e Lticio sio bastante ex- pressivas da regiio em que viviam. A partir da década de 1790, a alta dos precos mundiais do acticar apés a revolucao escrava em Sao Domingos (hoje, Haiti) e a derrocada da economia de exportagao dessa ilha somaram-se a queda dos precos de africanos, provocando uma rapida expansio do agticar no “Oeste velho” de Sao Paulo: isto é, no quedriléte- ro compreendido entre os povoados de Sorocaba, Piraci- caba, Mogi-Guagu e Jundiat, ai englobada a regiao de Cam- pinas."” Com isso, abriram-se possibilidades para uma agricultura comercial diversificada ¢ uma vida mercantil ur- bana, também baseadas no trabalho escravo. Assim, a regido passou a atrair uma corrente de migrantes livres das mais variadas procedéncias. 240 + HiSTORA DA VIDA PRIVADA NO BRA + 2a PAUUSTA 5 NO OF ORES E Susi 14 PRIVADA, NO BRASIL 2 Tais migrantes, sobretudo aqueles com relativamente poucos recursos, eram um grupo muito volitil, sempre pres tes a mudar de atividade econdmica ou por de novo o pé na estrada & procura de melhores condigdes. De acordo com um: estudo recente sobre Campinas, 62% dos chefes de domicilio que em 1817 eram “agricultores” (categoria que inclui todos os lavradores da terra, menos senhores de engenho), nao es- tavam mais presentes no municipio em 1825, pelo menos com essa ocupacao.'' Mesmo assim, 0 afluxo liquido de pes- soas livres para 0 Oeste paulista e especialmente para Campi- nas foi grande o bastante para provocar o rapido aumento da populacao. Em Campinas, o mimero de pessoas livres cresceu de cerca de trezentos, em 1776, para 3300, em 1829, ¢ 17700, em 1874.” Entre esses migrantes havia trabalhadores euro- peus; entretanto, seu ntimero na agricultura continuaria sen- do pouco expressive, comparado ao dos escravos, até 0 se- gundo qiiingiiénio da década de 1880. ‘As experiéncias migratérias de Pedro ¢ Lticio nao foram, portanto, atipicas. Tampouco o foi a maneira deles de subir na vida. Campinas era conhecida no Império como regiao de grande lavoura, com o agticar dominando a economia até ser praticamente substituido pelo café em meados do século.'* Além disso, no entanto, era uma regiao de agricultura diver- sificada, orientada para o mercado interno. A producio co- mercial de géneros alimenticios, feita por escravos, ja € evi dente nos censos da primeira metade do século.'* Apés 1850, tal atividade recebeu mais impulso, ao mesmo tempo em que o café se impunha como o principal género de exporta- Gao. Nessa década, os precos dos géneros alimenticios dis- pararam no Sudeste, aumentando mais do que os do café, do agticar, ¢ do escravo.'* Analistas da época atribuiam o fato 4 decisio dos senhores de plantation (em face do aumento do preco dos escravos apés o fim do trafico africano) de concentrar, mais do que antes, a forca de trabalho cativa na grande lavoura. A explicacao pode ser correta, mas ao mes- mo tempo a carestia dos alimentos na década significava que quem quisesse dedicar-se & produgao dos mesmos des- frutava de condigdes particularmente boas para comercia- liza-los. viajante Augusto-Emilio Zaluar observou, em 1860-1, que tanto 0s fazendeiros quanto os pequenos agricultores de Campinas plantavam géneros de primeira necessidade em “grande abundancia” para 0 consumo local e para outros municipios. Além disso, ele indiretamente chamava a atencao para a produgao diversificada de uma vasta drea interiorana, ao caracterizar a parte urbana de Campinas — que concen- trava, segundo ele, entre 5 mil e 6 mil habitantes — como “o entreposto entre Goids, Uberaba, Franca e outras povoagées do interior com a Corte’'* As observagdes de Zaluar foram confirmadas por pesquisas recentes. No inicio da década de 1870, enquanto quase toda a forga de trabalho cativa (93%) do Vale do Paraiba fluminense labutava no café, nos princi- pais munic{pios do Oeste paulista voltadas para esse produto apenas 27% dos escravos se dedicava a seu cultivo. As gran- des fazendas do Oeste paulista, nessa altura, bem podem ter se tornado mais especializadas do que antes na produgio de café; mas, em tal aspecto, provavelmente nao sobrepujaram as grandes propriedades no Vale do Parafba. Em todo caso, seria somente nos anos 1880 que o grau de especializagao mo- nocultora no escravismo do Oeste paulista atingiria o mesmo nivel que o do Vale do Paraiba fluminense.” SENHORES, ESCRAVOS E MOBILIDADE SOCIAL £ dentro desse contexto de economia florescente que Pedro e Liicio elaboram suas estratégias de acumulagao. A de- E SUBAITERNO: NO OESTE PAULSTA * 243 3. Um comboio de escravos conduzido para a fronteira agricola (Thomas Ender, 1817) 244 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA 4. Amtincias de eseravosfugidos eram publicados diariamente nos jornais cecriavam wm clima de inseguranga nas cidades. Em “Pai contra mae’, tum dos textos mais draméticos de Machado de Assis, um paupérrimo cagador de escravos atrds da recompensa para alimentar seu filho, captura nas ruas do Rio de Janeiro uma escrava grévida ‘em fuga. Espancada, a escrava acaba abortando, (Jornal do Commércio, 1851) Ra \{2110, MAY se aunuido aepors a recramay, = Vagio, da rua de 5. Diogo u. 41, araa prota Mina, de nome Victoria, tem alguus P cabellos braces, cara redonda, cor re- tiuta, vendita quitanda pode ter-se det- sade disso; quem a apprebender ou der noticias sera. gratiticade, © protesta | moira quent a iver acoutada, , sabendo salou VENDE-SE nr deg rinha de 45 anno cisio de Pedro de fixar-se na cidade de Campinas — para alugar os servicos de seus escravos ou trabalhar como em- preiteiro de obras de taipa, quando nao estava negociando cativos — testemunha as oportunidades abertas na época para os que dispunham de recursos. Lticio, ao exercer inicial- mente a profissio de carapina, sabia que a escolha de um oficio qualificado podia levar uma pessoa de poucos recursos a certa prosperidade. No censo de 1829, hé varios “carpintei- ros”, “alfaiates” etc. — alguns, inclusive, mulatos — que s40 pequenos proprietérios de escravos. Mais tarde, a volta de Lucio para Campinas, apds receber sua heranga, para empre- gar-se como administrador de uma propriedade alheia no inicio da década de 1850 ¢ logo em seguida engajar-se na produgao de alimentos, também é representativa das expe- rigncias de uma classe proprietdria prospera, embora nao “rica”. Luicio, alids, nao deve ter sido o tinico agricultor de poucos recursos a aproveitar-se do sucesso da conjuntura dos anos 1850, provavelmente mais favordvel do que os anos an- teriores para a produgio comercial de alimentos. Entretanto, se Liicio representa um certo grupo social, sua experiéncia nao deve ter sido exatamente “tipica” da sua época. Segundo estudo de Elizabeth Kuznesof focalizando a vila de Sao Paulo entre 1765 ¢ 1836, as oportunidades de mobilidade social para pessoas de poucos recursos podem ter sido signifi- cativas no inicio do periodo (quando a zona vivia condigées de fronteira agricola), mas haviam se reduzido antes da década de 1830."* Por outro lado, Hebe Mattos de Castro, em estudo so- bre a provincia do Rio, chama a atengo para a crescente difi- culdade de acesso do pequeno agricultor tanto a escravos quanto a terra no decurso do século x1x."” Castro localiza 0 grande ponto de inflexao desse processo em meados do século (com as mudangas associadas ao fim do trafico de escravos africanos). Para 0 caso do Oeste paulista (pelo menos a parte compreendida pelo quadrilétero de acticar), a cronologia de Kuznesof provavelmente é mais relevante. Em todo caso, pare- ce licito concluir que o enriquecimento por meio do escravis- mo era mais freqiente no inicio do século do que nos anos 1850-80, mesmo levando-se em conta a situaco favoravel para 0 produtor de alimentos nos anos 1850. Por outro lado, ao longo de todo o periodo o empobreci- mento de pequenos senhores de escravos deve ter sido bas- tante comum. Sao notérios os altos riscos enfrentados por pequenos agricultores quando decidem orientar a producao sobretudo para 0 mercado. Dados os seus parcos recursos, uma safra ruim ou uma queda nos precos de seus produtos pode facilmente levé-los 4 faléncia. Quando o pequeno pro- dutor do século passado adquiria alguns escravos para apli los na agricultura comercial, é provavel que assumisse riscos especialmente grandes (ainda mais se contraia dividas para isso), pois empatava recursos numa “maquina” produtiva que poderia desaparecer de uma hora para outra, dada a sua gran- de suscetibilidade 4 morbidez e 4 mortalidade, ¢ a sua pos- sibilidade de fuga. Para os senhores médios, e em particular para os grandes, o risco do investimento era mais previsivel — vale dizer, menor —, por ser passivel de calculo mediante principios atuariais. Por exemplo, se a taxa bruta de mortali- dade na populagao escrava era de 5% ao ano, um senhor de 5. Apenas uma cadeira na vastidao da sala: no inicio do Império, 0 conforto era reduzido nas casas paulisas. (Thomas Ender, 1817) 246 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 6.A permissao dos senhores ‘para 0 casamento de seus escravos ppodia funcionar como ‘um instrumento de controle dos cativos: em caso de fuga, 10s familiares do fugitivo sofreriam represilias nas fazendas. No censo de 1872, a Bahia aparece com a maior porcentagem de escravos casados e vitivos, Talvez ‘porque os senhores baianes tena ppreferido vender para o Sul os cescravos solteiros, guardando cs easados, mais suscetiveis de ser controlados. (LED-Cebrap) (Ver Apendice, tabela 9) = stroraocrre EBD nesta |] ES veasaes Leimenan Een Clie comisnnte duzentos cativos podia prever que mais ou menos dez deles iriam desaparecer por esse motivo num determinado ano e planejar os investimentos de acordo com tal estimativa. No outro extremo, a pessoa que comprava seu primeiro escravo jogava roleta-russa, apostando que a morte nao levaria embora todo o seu investimento antes de este amortizar-se. Essas consideragoes sao relevantes para a avaliagao dos dados sobre a posse de escravos no século xix. Em Campi- nas, em 1872 como também em 1829, aproximadamente um terco dos fogos (domicilios) possuia escravos, 0 que pode dar a impressao de que a mobilidade social por meio da aquisigao de cativos era bastante acessivel. Entretanto, 64% dos fogos com escravos em 1829, e provavelmente uma proporgao ainda maior em 1872, tinham menos de dez cati- vos.’ Dentro desse grupo de proprietarios, a faléncia do projeto escravista — ¢ a volta a condicao de agricultor sem escravos (ou mesmo a condicao de homem pobre sem ter~ ra) — deve ter sido um desfecho bastante comum, Um exemplo desse empobrecimento surge na documentagio SENHORES Pereracewel” Ewe Ecce aromas spo nook ipa ie ire Linc Tipe = 2S sobre Pedro Gurgel Mascarenhas. Trata-se de um cliente de Pedro no mercado de escravos, um tal de Joao da Silva, aci nado por Liicio em 1847 por nao saldar a divida ao espélio de seu pai. Silva antes tivera “bens de Pais, Escravos, 0 que tudo Ihe foi tirado por dividas”, Ja, na época do processo, seus “tinicos bens” sdo uma escrava e o filho da mesma, justamente a propriedade requisitada por Lucio para o pa- gamento de parte da divida ao seu falecido pai. caso é apenas ilustrativo, pois histérias de enriqueci- mento de pequenos senhores também podem ser aponta- das Entretanto, dados sobre a “cor” dos proprietirios de escravos em Campinas reforcam a tese de que os canais de mobilidade entre 0s grupos sem e com escravos, e entre as categorias de pequenos ¢ médios senhores, eram restritos. Em 1829, apenas 8,6% dos proprietarios de um a nove cati- vos e 3,6% dos proprietarios de dez a dezenove cativos, nao eram registrados como “brancos’, Entre senhores de mais de vinte escravos, nao havia nenhum que nao fosse “branco”. Do total de vinte proprietarios descritos como de tez escura, de- JALTERNOS NO OESTE PAULISTA + 247 7. Apesar da imigragao portuguesa ocorrida apés 1850, a drea do Rio de Janeiro e do Espirito Santo ainda capresenta a mais forte proporgio de escravos na populagio total no censo de 1872. (LED-Cebrap) (Ver Apéndic, tabela 10.) AB * HISTORIA DA VIDA PRIVADA Ni 8. Os escravos partem para mais um dia de trabalho na roga vigiados pelo seu senhor. (Vietor Frond, 1861) zenove eram “pardos” ¢ apenas um era “negro” (um carpin- teiro, dono de dois ajudantes). Ora, na localidade 0 mesmo censo identifica 31% da populagao livre como “pardo” e “ne- gro” Ha provavelmente sub-registro dos nao-brancos, em particular na classe senhorial, em que questdes de status pe- savam mais, e muitos pardos ¢ negros teriam tido motivo para assumir uma cor mais clara. Mesmo assim, parece licito supor que ndo muitos negros ou mulatos escuros teriam sido identificados como “brancos”, Desse modo, relativamente poucos mulatos conseguiam tornar-se senhores médios grandes, e pouquissimos negros e mulatos escuros entravam no rol dos pequenos donos de escravos.” Ao fim ¢ a0 cabo, Lucio, um “mulato” com 23 escravos no final da vida, era uma excecdo em Campinas. £ possivel que devesse boa parte de sua acumulacao de propriedade & heranga paterna, ou seja, 4 casualidade de seu pai falecer sem cénjuge e filhos legitimos, 0 que nao era a norma entre os senhores de escra~ vos. Os dados sobre cor, portanto, combinam com nossa and ENHORES lise da “Iégica” da situacao dos modestos senhores de catives ¢ impdem uma conclusio. Relativamente poucas pessoas li- vres, nascidas com parcos recursos, teriam conseguido vencer 0s riscos da pequena propriedade em escravos ¢ criar 0 patri- ménio caracteristico dos grandes senhores, ou mesmo dos proprietarios “medianos” como Pedro ¢ Liicio. MIGRANTES CATIVOS Qual foi a experiéncia dos escravos nessa histéria? Em Campinas, como no quadrilitero de agticar de um modo ge- ral, a expansao da agricultura comercial apés 1790 nao trou- xe apenas homens e mulheres livres, mas também, e especial- mente, um grande nimero de migrantes cativos. Entre 1779 © 1829, a populagao escrava do municipio cresceu de 156 para quase 4800. Em 1872, jé com o café como a forga motriz da economia, ela atingira 14 mil. A maior parte do aumento desde 1829 se deu antes do final do trafico africano. Entre- tanto, o comércio interno de escravos, ja bastante ativo nas décadas de 1850 e 1860, recrudesceu nos anos 1870, despe- jando varios milhares de cativos no Oeste paulista, vindos sobretudo do Nordeste e do Rio Grande do Sul. Foi sé a partir de 1881, com a alta tributagdo sobre o tréfico interno para 0 Sudeste e a crise politica da escravidio, que os fazendeiros vol- taram-se para trabalhadores imigrantes. Sua mudanga de a tude coincidiu com uma queda nos precos agricolas na Itélia, que expeliu de li um grande mimero de trabalhadores do campo. Como resultado, uma enorme corrente de “colonos” italianos entrou em Sao Paulo nos tltimos anos de 1880, pos- sibilitando uma transformagao répida na forca de trabalho, sem grandes transtornos para os fazendeiros. A estratégia de inundar o mercado de trabalho de “es- trangeiros” representou, de certa forma, uma volta a solugao encontrada na primeira metade do século. Até 1850, 0 trifico transatlintico de escravos introduziu um enorme contingen- te de africanos no Oeste paulista, como, alids, no Sudeste em geral. Por causa disso, e também das taxas relativamente bai- xas de fecundidade na populacao cativa, o trabalho escravo na grande lavoura do Sudeste, antes de meados do século, era quase literalmente uma escravidao africana. Por exemplo, em treze localidades paulistas de economias variadas em 1829, Te A + 249 250 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 9, Destino do trio interno de escravos, Sao Paulo compra no Norte sua mao-de-obra para © duro trabalho no preparo ‘eno plantio das fazendas de café, «€ por isso aparece como a provincia ‘que tem a maior proporgio de homens escravos. (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 11.) aac artome ce 10 alee fae CAomm Cixwae 65% dos escravos adultos (acima de quinze anos) eram afri- canos." Em Campinas, lugar bastante tipico dos municipios de grande lavoura da época, essa cifra atingia 80%. Nas pro- priedades maiores, a taxa de africanidade era ainda mais alta; em Campinas, no ano de 1829, 89% dos adultos em posses com dez escravos ou mais provinham da Africa. Apos 1850, a mortalidade entre os africanos, ao lado da introdugao cada vez maior de escravos “crioulos” (nascidos no Brasil) via tréfico interno, reduziu rapidamente a presen- ca de “estrangeiros” na populacao cativa. Mesmo assim, ha- via, ainda em 1861, uma proporgao bastante alta de escravos adultos africanos em Campinas — ¢ provavelmente também, na propriedade de Lucio, Alm disso, boa parte dos escravos crioulos acima de quinze anos, tanto no municipio quanto no espélio de Lticio, eram filhos de africanos. Enfim, pouco mais de uma geragao antes da Aboligao, os cativos da regiao, como no resto do Sudeste, ndo estavam muito distantes no tempo de suas raizes culturais na Africa. No trifico de escravos para © Sudeste e sobretudo para 0 Oeste paulista, tanto antes quanto depois de 1850, os homens predominavam largamente sobre as mulheres. Na compra de cativos, os pequenos proprietérios rurais parecem ter tido me- nos preferéncia por escravos masculinos do que os grandes. Os proprietarios urbanos, porém, pelo menos aqueles engajados em atividades que “exigiam” mao-de-obra masculina (tropei- ros, por exemplo, além de taipeiros como Pedro), tinham pos- ses em que o superavit de homens era especialmente grande. Ao morter, Lticio — talvez por ser herdeiro de Pedro — tinha um grande excesso de homens sobre mulheres entre seus es- cravos adultos, mesmo para os padrées de Campinas Isidoro Gurgel Mascarenhas, 0 filho de Lucio, nasceu em Campinas em 1850. Como sua mae, Ana, era escrava, ele teria comegado a vida no cativeiro se 0 pai nao o tivesse libertado na pia batismal. Liicio, na época, ndo assumia a paternidade da crianga, registrada pelo péroco como sendo de “pai incég- nito”. Tampouco se identificava como 0 progenitor de outros dois filhos e de uma filha, nascidos de suas escravas entre 1851 ¢ 1858, e também batizados como livres. Entretanto, no testamento, elaborado pouco antes de sua morte em 1861, Lucio reconheceu Isidoro, essas outras criangas e dois meni- nos mais velhos que nao foram batizados em Campinas. E deixou-lhes toda a sua propriedade: “sou solteiro, nunca con- trai matriménio e meus Pais sio ambos falecidos. Declaro que tenho seis filhos naturais [...] ¢ os instituo por meus herdeiros, os quais estao no meu poder e os criei”. A “generosidade” de Liicio para com os filhos pode ter nascido de reflexdes sobre sua propria experiéncia. Como vi mos, ele mesmo era filho natural mulato, reconhecido pelo pai apenas quando este estava moribundo, e sua mae provavel- mente tinha origens humildes, se nao fosse escrava. Mas, se Laicio se reconhecia nos filhos, ele nao foi magnénimo com as maes deles. Sabemos, por meio de uma declaragdo feita por seu in- ventariante, que havia quatro dessas mulheres. Em prestagdes de contas apresentadas pelos tutores dos filhos e nos assentos de batismo, consta que trés das maes eram escravas chama- das Rufina, Ana ¢ Maria, e que pelo menos esta ultima era + 251 NO OESTE 74 ESCRAVOS. equi doca men ctaree, 10, Antincio de escravoschegados do Norte. O comsércio imerprovincial deslanchou nos anos 1850, apos 0 final do trifico atlantic. Trazendo para 0 Centeo-Sul escravos ladinos do Norte, esse movimento prenuncia 4 influéncia cultural da fala e dos costumes nordestnos no Rio e em 1 Paulo. (Jornal do Commerc, 1854) Ih DA VIDA PRIVADA sd BRASIL 2 “crioula’, As relagdes sexuais de Lticio com Maria e com Ru- fina duraram (ou, se interrompidas, demarcaram) um perio- do substancial; cada uma dessas mulheres lhe deu duas crian= ast Maria no espago de cinco anos, Rufina provavelmente no periodo de um ano a 22 meses.* Isidoro, o filho de Ana, nasceu entre os dois filhos de Rufina e num intervalo de apenas meses, 0 que pode indicar que Liicio tenha mantido relacdes com as duas mulheres simultaneamente. Ja os filhos de Maria nasceram depois, 0 ultimo em 1858, apenas trés anos antes de Lticio redigir o testamento. ‘Apesar de sua intimidade com essas escravas, Liicio mante- ve pelo menos duas no cativeiro. Em 1861, Maria e Ana foram avaliadas como parte de seu espélio. Foram descritas como cos tureiras e cozinheiras. Rufina nao aparece nos documentos do inventario, e é possivel que Lucio a tenha libertado. Se assim procedeu, ele nao Ihe deixou nada no testamento. Aliés, nenhu- ma dessas mulheres foi sequer mencionada no documento. Tal siléncio sugere que ele se interessava em esconder as origens maternas de suas criangas, agora que se identificava como o pai, assim como preocupava-se em nao revelar sua paternidade nos assentos de batismo, onde identificou as maes como escravas. A aparente despreocupacao de Lticio pelas maes de seus filhos contrasta com a solicitude dele para com outros cativos. No testamento, Lticio excluiu quase um quinto de seu espélio da heranga deixada para os filhos, destinando-o a outras fina- lidades (missas para 0 bem de sua alma, “esmolas” para pes- soas pobres), e especialmente para alforrias. Estipulou que sete dos 23 escravos deveriam ser libertados sem condigao apés sua morte. Entre eles estava uma mulher casada e suas cinco crian- ¢as, todos do mesmo pai cativo. Além disso, outra pessoa rece- beu alforria durante o inventario: uma mulher que Licio bertara em 1847, na condigao de que esta lhe prestasse servigos até ele morrer. Em tal contexto, o fato de ter deixado as maes de seus filhos no cativeiro sugere que a relacao de Lucio com essas mulheres nao se caracterizava mais por lacos de afeto ou de reciprocidade de favores. Nao h4 informagées que indiquem © contetido das relagdes entre Liicio e as escravas, e suas mu- dangas a0 longo do tempo. Outras duas histérias, contudo, ajudam a mapear o terreno em que se davam os encontros intimos entre senhores e mulheres cativas. cil SENHORES E SUSALTERNOS Ni ENCONTROS INTIMOS Em junho de 1872, o rabula negro Luis Gama dirigiu um requerimento ao presidente da provincia de Sio Paulo em nome do escravo Serafim, casado, com dois filhos, morador em Jacarei. Na representa¢ao, Serafim reclamava que “mais de uma vez [...] impediu os atentados libidinosos do seu se- nhor” contra sua esposa, Romana, correndo com isso perigo de vida, Finalmente fugira com Romana, seguindo a sugestio da mulher do proprictdrio. Esse “ato de prudéncia’, todavia, “nada garante ao suplicante a sua seguranga de vida, nem & sua esposa 0 pudor”, porque seu senhor “procurou-o tenaz- mente, dizendo que o hé de matar porque precisa da crioula Romana para sua manceba!” (grifos no original)” Na segunda histéria, outra desavenga conjugal leva uma senhora de escravas a denunciar 0 marido, porém sem prote- ger a protagonista cativa. No ano de 1887, em Vassouras, pro- vincia do Rio de Janeiro, a fazendeira Maria José pede na justi- ‘cao embargo de sua propriedade e da de seu segundo marido, Anténio, anunciando que também pretende levantar contra este uma aco de “divorcio ¢ separacdo perpétua de pessoa ¢ bens”. Acusa o marido de ter dissipado a fortuna dela, de ter se apoderado ilegalmente da heranga paterna de suas filhas do primeiro casamento e de haver cometido adultério. Segundo as testemunhas no processo, a “outra mulher” no caso é uma ex-escrava e ex-mucama de d. Maria José, chamada Marcelina, que Anténio libertara e “com quem [ele] gastava, tendo-a na Corte’, até pouco tempo antes. Como prova da acusacdo de infidelidade, d. Maria José apresenta a justi¢a uma carta de Anténio e uma fotografia de Marcelina: documentos que aparentemente lhe foram entregues pelo re- presentante comercial de Anténio na cidade do Rio, por quem passava a correspondencia entre este e a amante."' A carta, sem diivida, é comprometedora: Mareelina, Vocé como tem passado meu bem? Estou com mui- tas saudades de Vocé, e ainda nao fui dar-Ihe um abraco porque estou na roga, feitorando outra vez |...) Adeus, minha negra, recebe um abrago muito e mui- to saudoso, ¢ até breve. O frio ja esta apertando, e faz-me TE FA usta + 253 254 + xis gua, dos cativos e eriados 11. 0 velho acarica que Ihe A coabitaga ddomésticos com seus senhores atera @ quadro da vida privada (A Semana Hlustrada, 1865) lembrar das noites da barraca com uma saudade que me poe fora de mim; esta bom, nao quero dizer mais nada por hoje, se comego a me lembrar de certas coisas, em vez desta carta vou eu mesmo, ¢ hoje eu nao posso sair. Outra vez Adeus, e até I A fotografia de Marcelina, € uma tipica carte de visite, um pequeno retrato feito para ser dado a amigos como lembranga, comum na época. Contudo, é um documento iconografico extraordinério: a imagem de uma “Xica da Sil- va®, que melhorou de condicao social, talvez pela dor e hu- milhagao, talvez pelo célculo ¢ complacéncia. A ex-escrava aparece numa pose tipica da época. Ha retratos de barone- sas usando roupa de estilo semelhante, posicionando-se de maneira idéntica e segurando, também, um leque na mao.” Os acessérios decorativos da fotografia — um pano de fun- do pintado com folhas ¢ 0 tronco de uma drvore — pode- riam dar a impressao de terem sido escolhidos para lembrar as origens ruisticas dessa mulher. No entanto, recursos do tipo sao comuns nos estudios do periodo e ha retratos até de d. Pedro 11 e da imperatriz Teresa Cristina posando em cenarios semelhantes, embora muito mais elaborados e “bonitos”.* Marcelina (ou o fotégrafo) provavelmente teve a inten- do de aproximar sua pessoa a sociedade fina, utilizando acessérios que estavam em moda para ndo lembrar seu pas- sado de ex-escrava. Afinal, a firma de Carneiro e Gaspar, an- tecessora do esttidio de Carneiro e Tavares, onde Marcelina foi retratada, costumava promover seus servicos com anun- cios que diziam: “Hoje em dia, quem nao gostaria de mandar um voto de afeto a seus amigos, na forma de um retrato? [...] Até pessoas ordindrias [parecem] [...] descender de Apolo e ‘Vénus”.* As duas histérias, a primeira vista, parecem bem con- trastantes: de um lado, a imagem crua de uma tentativa de estupro; de outro, o retrato de uma relagao travada com a anuéncia de ambas as partes e, aparentemente, nao desprovi- da de afeto (pelo menos da parte masculina). Entretanto, de- ineia-se aqui, no conjunto dos dois casos, 0 campo perigoso de forca ¢ favor em que a mulher escrava se movia. Marcelina, antes de aproveitar (ou sofrer) “as noites da barraca” com Antonio, tinha decerto alguma idéia dos “pré- mios” que poderia ganhar com isso. Prémios tanto mais atraen- tes quanto mais era precéria sua situagio de escrava. Por ou- tro lado, com certeza sabia algo também sobre o que poderia acontecer se contrariasse os desejos de Antonio. Nao que seu senhor necessariamente partisse, nesse caso, para o estupro. Ele pode nao ter tido a indole para isso. Ou, se tivesse, pode ter sido dissuadido do ato (ao contrario do proprietério de Serafim e Romana) pelo apoio que a mulher escrava eventual- mente mobilizasse na senzala. Em todo caso, é certo que ele tinha a sua disposicao outras represdlias eficazes contra es- cravas “desobedientes”, desde os conhecidos castigos fisicos retragao de favores. Em Mocidade de Trajano (1871), romance do visconde de Taunay ambientado em Campinas, uma escrava doméstica expressa 0 medo de sofrer esse segundo tipo de disciplina se contrariar a vontade de sua proprietéria. Em conversa com © pai, ela afirma a decisao de unir-se a um escravo, seu par- ceiro, mesmo que a senhora dela nao consinta no casamento ES E SUBAITERNOS NO OESTE PAUUSTA + 255 12, A ex-escrava Marcelina, amante do marido de sua ex-senhora. ‘Ao processo civil de anulagao de casamento movido contra seu marido adiltero, a esposa enganada ‘anexou esta fotografia da rival. (Foto de Carneiro & Tavares, ¢. 1880) 256 + His RIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 € tome represilias: “eu nao posso mais resistir, se minha se- nhora nao me der licenga, com certeza tenho de ir trabalhar na roga e de passar por uma grande vergonha’.* Da mesma forma, Marcelina, mucama de sua senhora, deve ter avaliado ndo apenas os favores que poderia ganhar, mediante uma relagdo com Anténio, mas também o perigo de sofrer violén- cias ou a perda de favores j4 conquistados. E, no limite, a condenagdo ao trabalho duro no eito. O perigo existia, dis- sesse ela “sim” ou “nao” a seu senhor. Pois, se nao provocasse © desgosto dele, provocaria 0 de d. Maria José, caso 0 adulté- rio viesse a luz. Nesse mesmo mundo de forca e favor, de perigos e pré- mios nao gratuitos, encontravam-se as escravas de Liicio Gurgel Mascarenhas. Assediadas ou nao pelo senhor delas, Ana, Maria e Rufina “negociaram” seus termos de rendi¢ao ou de convivéncia com ele. Ao contrario de Marcelina, nao. obtiveram, com isso, a alforria (com a possivel excegdo de Rufina). Viram suas criancas, é verdade, transformarem-se em herdeiros de Lticio. O fato em si, contudo, nao Thes ga- rantiu a permanéncia junto aos filhos nem a liberdade. Apos a morte de Lucio, Ana e Maria correram certo risco de ser vendidas. E, mesmo depois de se tornarem escravas dos fi- lhos, continuaram a ser tratadas durante anos pelos tutores destes como cativas de fato, nao apenas na lei. Lucio especificara no testamento que seus filhos nao po- deriam alienar a parte deles na heranga de maneira nenhuma até entrarem no “uso da razao”, e mesmo assim poderiam apenas “ender terra para os outros herdeiros, com a permis- sdo de seus tutores”, Entretanto, o inventariante do esplio — Anténio Joaquim de Sampaio Peixoto, associado de Lticio e de seu pai desde longa data — era da opiniao de que “a legitima [paternal] thes é devida [aos herdeiros] por Direito, uma vez que foram reconhecidos” ¢, portanto, a cliusula de inalienabilidade no testamento nao teria validade. Além dis- so, argumentava que o interesse dos herdeiros era vender a maior parte do espélio e converter sua heranga em dinheiro. “Aos herdeiros nao convém” os bens de raiz do espolio, dizia ele: nem o terreno urbano, que “nao da rendimento’, nem 0 id sitio, “cujo custeio € muito dificil atento a idade dos mesmos [herdeiros]”. Tampouco “Ihes convém os escravos, nao s6 pe- lo petigo da mortalidade, como pela dificuldade do custeio, ¢ porque quando os herdeiros chegarem a idade maior ja os escravas estio velhos”. Depois desse raciocinio frio e calculista, despreocupado do bem-estar ou da sensibilidade dos escravos, Sampaio Pei- xoto propés que Ana e Maria fossem excluidas da venda. Ao explicar por qué, manteve o siléncio de Licio no que diz res- peito a relagio dessas mulheres com os herdeiros: “julgo [...] que a humanidade ea boa razao {grifos meus] exigem que 20 herdeiro Isidoro se dé em quinhao a escrava Ana, de 1:400$, e aos herdeiros Eufrasia e Martiniano se dé a escrava Maria de 1:8008”. Ora, Isidoro era filho de Ana, assim como Eufrésia e Martiniano eram filhos de Maria. Sampaio Peixoto também julgava “conveniente que nao va a praca o escravo Francisco Velho, avaliado por 400$, cuja mulher e cinco filhos ficaram libertos, visto que este escravo trata de arranjar 0 dinheiro para obter sua liberdade, o que me parece muito razoavel”. 13, Enquanto o rapaz rntada 4 criada, aqui re numa atitude brejeira, a donzela se escandaliza, Durante geragaes 0 assédio das escravas e depois das criadas por parte dos rapazes ‘constituiu pratica corrente e banal. (A Semana Ilustrada, 1865) PausTA + 257 258 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS! 2 ‘A justica aceitou todas as recomendagdes do inventa~ riante. Treze escravos foram postos 4 venda, em leilao publi- co. Francisco Velho permaneceu junto a familia para tratar da sua liberdade. E Ana e Maria, por motivos de “humanidade” e de “boa razio”, viraram escravas dos préprios filhos. AMAE Era meado de 1861 e a vida espelhava-se na arte; pouco mais de um ano antes havia estreado no Rio de Janeiro a pega de José de Alencar, Mae.** Alencar contava uma histéria mais melodramatica: 0 senhor mogo, no caso, herda (e vende) a mie cativa sem sabé-lo, descobrindo o parentesco apenas no Ultimo ato, que termina no suicidio da escrava. Entretanto, apesar dessas e de outras diferengas, a trama basica de Alen- car é a mesma que a do drama encenado em Campinas. Um jovem recebe a propria mae na heranga paterna e concede- Ihe carta de alforria quando chega a maioridade.” Na época da heranga em Campinas, Isidoro tinha quase ‘onze anos, Eufrdsia oito, e Martiniano dois. Como eram me- nores, a lei nao Ihes permitia tomar decisdes a respeito de sua propriedade. Mas também restringia o poder dos tutores de- les, nomeados pela justica, e do juiz de érfaos. Incumbidos de proteger 0s interesses econdmicos dos tutelados, esses ho- mens aparentemente nao tinham autoridade de alienar sua propriedade. Nenhum deles sequer sugeriu a possibilidade de libertar Ana ou Maria, pelo menos por escrito. Um dos tuto- res, é verdade, se preocupara com a situagio estranha de sua tutelada Eufrasia. Em novembro de 1865, ele declarou a justi- a que “este [tutor] tem entendido nao dever trazer para sua casa a mae [Maria] como escrava da filha, o que parece um ato contra a natureza”. Todavia, nado propés a justiga que a meia parte que sua tutelada dispunha sobre a propriedade da mae fosse renegada, a favor do principio da liberdade. Sim- plesmente, disse que cabia ao tutor das outras criangas, em cujo poder Maria estava, prestar contas a respeito dela ao juiz. Além disso, quando os tutores responsiveis por Ana € Maria apresentaram suas prestagdes de contas, aquiesceram no fato de que as duas mulheres eram escravas. Insistiram em traté-las no processo como a lei da propriedade exigia. Ana Maria eram semoventes, tinham conhecimentos como ser- Sen ES ESL ventes domésticas e um alto preco de mercado. Para os tuto- res, essas consideragdes parecem ter predominado. A lei exi- gia que a propriedade de seus tutelados fosse administrada para produzir renda. Como conseqiiéncia, o primeiro tutor, 0 proprio inventariante Sampaio Peixoto, alugou Ana e Maria para terceiros durante dezoito meses, entre 1861 ¢ 1863. O tutor que o substituiu em meados desse ano conti- nuou a pritica. Quando nao foi possivel alugar as mulheres, os dois homens sentiram a necessidade de justificar 0 fato ao juiz, Dessa forma, em 1865 0 segundo tutor manteve Ana (na época com trinta anos) durante sete meses “em minha casa, nao s6 por nao poder conserva-la fora visto ter sido fujona, mas também por haver andado incomodada com dores de peito, uma espécie de magreza, tosse com langamento de san- gue, € isto depois que sofreu as bexigas [varfola], de modo que a tenho medicado e conservado com pouca dieta e tem sido melhorado”. O tutor notou ainda que “esta negra nao tem bom comportamento, pois tem sido fujona ¢ bebe nao pouco”, Retrata-se a precaria situagio de satide da populagao « tiva, As taxas de mortalidade escrava em Campinas no perio- do sugerem uma expectativa de vida, ao nascer, de dezenove a 26 anos, ou de mais 34 a 38 anos para quem conseguia chegar aos dez anos de idade." Vislumbram-se, ainda, as pré- ticas médicas da época: um flagelo nao apenas para escravos, mas também para pessoas livres. Nesse caso a receita era de “pouca dieta’, a qual certamente nao curou Ana de sua “ma- greza”. Em outros casos podia ser a sangria — como numa fazenda em que o barbeiro aparecia com alguma freqiiéncia para aplicar “bichas” (sanguessugas) em escravos doentes.\' ‘Acima de tudo, as observagées do tutor sugerem 0 quan- to Ana se ressentia de sua condicao. Nessa altura, ela nao procurava mais, se alguma vez o tivesse feito, moldar sew comportamento para ganhar favores. Entre julho de 1863 dezembro de 1865 ela fugiu duas vezes de um dos locatarios de seus servicos, 0 padrinho de batismo de outra filha dela, nascida em 1852 ¢ nao liberta. Ana ja tinha razes de sobra para néo compactuar com os favores senhoriais. Entretanto, como veremos, nao era a tinica entre os escravos a agir de maneira contestatéria, mesmo porque a resistencia, mantida dentro de certos limites, também podia “amolecer” os man- TERNOS NO OESTE P 260 = HsTERA DA VIDA > RASIL 2 datérios. Quando Ana fugiu pela segunda vez do compadre, “reaparecendo” somente um més depois, conseguiu ser trans- ferida para outro empregador. A partir do final de 1865, nem Ana nem Maria foram mais alugadas. O tutor justificou 0 fato ao juiz, culpando a mé satide das duas. No caso de Ana, o “mau comportamento” talvez tenha contribuido a decisao. E bem possivel, também, que Isidoro e Eufrdsia, j4 adolescentes, tenham comecado a interceder junto aos tutores para suavizar o tratamento dado 4s suas maes. No entanto, nao ha sinal disso no discurso dos tutores. Quando um dos empregadores de Ana ¢ Maria foi a faléncia em 1863, privando Isidoro e os irmaos dos aluguéis devidos, o inventariante declarou que “os interesses dos [...] [menores] foram prejudicados”. Em nenhum momento se sugeri que a propria “locagio” dessas mulheres feria os inte- resses dos filhos. © fato, esdriixulo para as sensibilidades de hoje, prova- velmente tem uma explicagdo simples. Se, nessa histéria, 0 discurso na justica permanece dentro de limites estreitos, a causa esta na longa recusa senhorial de deixar a lei positiva invadir 0 terreno do favor. Manuela Carneiro da Cunha e Sidney Chalhoub ja mostraram 0 quanto os senhores se opu- nham a conceder ao escravo no cédigo escrito o direito de redimir-se do cativeiro mediante a apresentagao de seu valor de mercado. Na ética escravista, qualquer direito desse tipo minaria a base do sistema de dominio, ao restringir a vonta- de senhorial. Era necessério que a alforria pudesse ser repre- sentada pelo senhor sempre como concessio ou dadiva, mes- mo quando a “graca” cruzava com dinheiro na outra mao." Pelas mesmas razdes, recusava-se o direito a liberdade a escra~ va amancebada com o senhor ou ao parente cativo do mesmo. Nao que tivessem faltado propostas nesse sentido. José Bonifacio em 1825, Muniz Barreto e Frederico Burlamaqui na década de 1830, indicaram a necessidade de uma lei que alforriasse a mie escrava ¢ 0 filho tido com o senhor. O ju- rista Caetano Soares faria o mesmo em 1845 e 1851. O Ins- tituto dos Advogados Brasileiros, por iniciativa do jurista Perdigao Malheiro, se manifestou enfaticamente a favor de uma interpretagdo da lei existente que reconhecesse esse di SENHORES £ SUBALTERNOS NO reito. Pelo menos para 0 filho do senhor, ou para qualquer parente cativo do mesmo. Em 1866-7, Perdigao Malheiro reiteraria essa opiniao em seu importante tratado, A escra- viddo no Brasil. Apesar de toda essa fermentagao, expres- sando 0 reptidio dos altos meios juridicos a manutengao da escrava amante do senhor e do préprio filho ou qualquer rente deste no cativeiro, muito pouco foi feito para proibir ou amenizar tais aberragies. Os legisladores nao resolveram © problema com novas leis. Ao mesmo tempo, a jurispru- déncia existente nao se prestava facilmente a interpretacao que Perdigio Malheiro e seus colegas queriam imprimir- Ihe. Em conseqiiéncia, os Tribunais de Apelagdo negaram de modo enfatico a essa “familia escrava” do senhor o direito a liberdade. Primeiro num Acérdao de 1855, e mais uma vez em 1873." Segundo o texto de 1855, “o ajuntamento ilicito do senhor com a escrava nao é raz3o suficiente que importe a liberdade da escrava e dos filhos posteriores ao ajuntamento ilicito, depois da morte do senhor”. Em 1874, o Tribunal da Relagao de Sao Paulo derrubou uma sentenca na comarca de Amparo, baseada no Acérdao de 1855, num caso quase idéntico ao de Ana e Maria e seus filhos menores. Reconheceu © direito da mae escrava a liber- dade, ainda mais porque seu filho-proprietério ¢ 0 tutor do mesmo nao se opunham a agao."* Ao que parece, a decisio nao teve muito impacto na jurisprudencia, pois outro Acér- dao em 1875, do Tribunal da Relagao de Ouro Preto, reitera- 14, Menina negra que, havendo comprado sua liberdade, fora acusada de roubo sob a ameaga do chicote. (Pau! Harro-Harring, 1840) 262 + HISTORIA DA VIDA FRIVADA NO BRASIL 2 15, Agostini satiria a vida doméstica dos paulisas: a moral familiar & ‘ameacada de dentro, pelos escraves, de fora, pelos janotas que se servem do moleque de recados para aproximar-se da sinhazinha. (A. Agostini, Cabriao, 1867) ria as decisdes anteriores de 1855 ¢ 1873. Em 1880, um renomado jurista ainda reafirmaria o argumento de que a lei existente ndo favorecia a liberdade de familiares cativos do senhor, Citaria como base de sua opiniao todos os acérdaos mencionados, menos 0 de Sio Paulo de 1874.” Trés anos depois, 0 Tribunal da Relacao de Pernambuco declararia im- procedente o processo contra um senhor acusado de estuprar uma menina escrava, revelando em seu parecer a dificuldade em mudar a lei ou reinterpreté-la: “se o legislador tivesse em mente punir |...) os estupros praticados pelos senhores em seus escravos menores de dezessete anos, dando nesses casos 0 direito de queixa aos promotores ptiblicos [...] seguir-se-ia que iguais direitos teriam os promotores |...] de se queixarem pelos escravos em referéncia aos senhores todas as vezes que se tra~ tasse de alguma outra acao [...] criminosa [...] do que resulta~ riam milhares de processos em perigo para a sociedade”* Em suma, a pega de Alencar, Mae, provavelmente pressava um consenso bastante amplo de que casos do tipo retratado atentavam “contra a natureza’, como diria tanto 0 tutor de Eufrdsia, quanto Perdigao Malheiro.” Alias, Alencar deve ter se inspirado nas resolugdes sobre 0 assunto do Ins- tituto dos Advogados Brasileiros (118, futura oa8) em 1859, jus~ to 0 ano em que ele escreveu a peca.” Afinal, nao apenas era sécio do Instituto, mas advogara como assistente de Caetano Soares no inicio da década de 1850, e a partir do comego de 1859 ocupava os cargos de chefe de secio ¢ consultor do Ministério da Justica, em que, por obrigagao, teria estado atento aos debates juridicos.*' A confirmacao da natureza po- litica de Mae é que o drama esté ambientado na corte no inicio de fevereiro de 1855. Justamente na cidade, no més e talvez, no que se refere ao ultimo ato, no dia (6 de fevereiro) do Ac6rdao infame desse ano, tao combatido pelo tas quatro anos mais tarde.” suicidio da mae escrava, que receava ser desprezada pelo filho por ter sido cativa, reveste-se, portanto, de um sentido metaférico: é a esperanga de liberdade de todas as escravas na sua situagdo que é assassinada pelo Acérdao. Se com a peca Mae o consenso moral em torno dessa questio saiu dos gabinetes dos juristas e invadiu o espaco da cultura, ele no produziu um avanco legislativo sobre o assunto, nem uma mudanga na aplicagao da lei existente. A forca politica 3 Poomures lies do malo got lon ud filet porter send nat daveisé estar O57 manda chamar um mautre.p gut dua O rhanke cx tacks Jub pests ve colleyis per athe bon Toae © que jae dutty de vin Stem mule travudes,¢ laadoe de aliabe S. maya quad obvcacin lows de lene,| O namavade mais cuca, fax do Gus, Su ore oad. | ond fete Com 6 pumas corte qua? smaite ae gt 26d + HISTORIA DA VIDA PRADA NC BRASIL 2 dos senhores ainda era, e continuaria a ser por bastante tem po, uma barreira forte contra uma reforma na area, que na verdade explodiria as bases do poder privado. Dito de outra maneira, o drama das Maes, Ana e Maria, foi encenado no Férum de Campinas nos anos 1860 como uma pega banal do direito escravista, porque encarnava prin- cipios essenciais ao sistema de dominio senhorial. Principios defendidos tenazmente durante muito tempo e ainda nao abalados no ambito politico, Era importante para os donos de escravos conservar 0 campo de forca e favor que cercava as mulheres cativas como um feudo, reduto da vontade do proprietirio. Mesmo que isso implicasse tolerar fatos moral- mente esdrixulos. A experiéncia das pessoas beneficiadas com a liberdade incondicional no testamento de Liicio Gur- gel Mascarenhas nos conduz a esse terreno mais amplo de punigdes e prémios. PADRINHOS E COMPADRES Lucio nao explicou por que decidiu alforriar a escrava Joana, seus cinco filhos e um adolescente ou jovem adulto chamado Joao da Mata. Nem por que deixou no cativeiro os pais deste, ¢ 0 marido de Joana, Francisco Velho. Alguns fatos sugestivos, no entanto, emergem da documentagao sobre Joana e sua familia, Primeiro, ela e 0 marido haviam sido es- ctavos de Lticio desde muito tempo. Francisco, taipeiro de profissdo em 1861, provavelmente havia pertencido a Pedro Gurgel Mascarenhas.* Ao que parece, fora transferido para Lucio em meados da década de 1820 e teve o primeiro filho com Joana antes da mudanga de Liicio para Campinas por volta de 1849-50. Segundo, Joana e Francisco possivelmente viviam com Liicio na cidade. O mercado para os servigos de um taipeiro era mais urbano do que rural. Além disso, dois dos padrinhos dos filhos desse casal possuiam terrenos que limitavam com a propriedade urbana de seu senhor.* Vivendo préximos de seu proprietdrio durante um lon- go tempo, Joana e Francisco Velho tiveram ampla oportuni dade de cultivar o favor dele, e os favores de outras pessoas 20 seu redor. As relagdes de compadrio que eles formaram nas cerim6nias de batismo dos filhos desde 1851, sao teste- munhas elogiientes de suas estratégias nesse sentido. Os pa- SENHORES & SUBAITERN RUA DA QUITANDA N. 64. drinhos do segundo filho (0 primeiro nao foi batizado em Campinas) eram cativos — “Joao ¢ sua mulher Marcelina’, pertencentes a outro senhor —, como era a norma entre os escravos do municipio. Entretanto, seus compadres no ba- tismo dos trés filhos seguintes eram pessoas livres: “Jodo Teodoro Ferraz e sua mulher Ana Ferraz”; em seguida, 0 proprio Lticio e Hondria Goncalves Mascarenhas, possivel- mente uma parenta sua; e por fim “Tenente Feliciano Cava- Iheiro Leite e sua mulher Dona Maria Gertrudes de Vascon- celos Pinto”. Estes tiltimos, vizinhos de Lucio na cidade, eram pessoas de certa posi¢ao social, a julgar de seus titulos honorificos, “tenente” e “dona”, ¢ do fato de que a mulher tinha um sobrenome composto que prescindia dos sobre- nomes de marido. Com cada filho depois do primeiro, Joana e Francisco Velho formaram lacos de parentesco ritual com pessoas cada vez mais altas na escala social. Os documentos nao explici- tam a trama que essa progressao refletia, nem o que ela signi- ficava para 0 casal escravo. Lticio, contudo, sentia claramente que tais relagdes de compadrio tinham algum contetido, pois ao relacionar os filhos de Joana no testamento ele tomou o cuidado de notar que 0 quarto, Jorge, era seu afilhado. O inventariante do espélio dele, Sampaio Peixoto, também pen- sava que o papel de padrinho nesses casos nao era mera for- malidade. Numa nota dirigida a justi¢a, pouco depois da morte de Lticio, ele observou, a respeito dos filhos de Joana e Selorcm ens nr 265) 16, Utilizando ferro, madeira, couro ‘ou borracha, a indistria produz artigos para o homem moderno das cidades e das fazendas © amincio propoe objets étcos, ‘mas também préteses para 0 corpo. (Os “suspensérios para testiculos” serviam de protegao it hérnia escrotal, as “pessarias para o Anus” cobriam as nddegas e protegiam 0s que sofriam de hemorréidas. Amibas as moléstias causavans grandes incémodos para montar 4 cavalo, meio de transporte quase obrigatério no Império, Sofrendo de hemorrbidas, 0 politico paulisia Leite Moraes, que morava era Araraquara, préximo a Campinas, ao deixar a presidéncia de Goits em 1881, prefer enfrentar indios ferozes ¢ milhares de quilémetros de navegagao fluvial e maritima pelo Norte para evitar as dores causadas pelo percurso a cavalo na estrada dio Sul, muito mais curta € mencs perigosa que a outra, Assim subi de canoa 0s rios Araguaia Tocantins até 0 Pard, ¢ de ld voltow por mar para o Rio de Janeiro Continuou até Sao Paulo, de trem, ce depois foi para Araraquara de trole, (Jornal do Commércio, 1854) ‘ORIA DA VIDA PRIVADA NO BRAS! Francisco Velho, que “se faz mister nomear [...] um tutor a estes menores [...] para zelar de suas pessoas [...] ¢ 0 supli~ cante lembra para isso [..] Feliciano Cavalheiro Leite, que é padrinho da menor Candida”. O proprio Cavalheiro Leite ndo escreveu nada que indicasse como concebia os papéis de padrinho e de compadre. Aceitou, contudo, ser tutor dos filhos de Joana, prometendo, na linguagem da lei, “zela[r] das suas pessoas, trata[r] das suas demandas e neg6cios e re- quere[r] todo o seu direito e justica para que nao sofram prejuizo e lesao alguma”. Pouco tempo depois, Cavalheiro Leite prestou outro fa- vor a essa familia: concordou em representar 0 compadre Francisco Velho perante a justica, quando esse homem veio requerer sua liberdade. Francisco, como vimos, nio foi enca- minhado a venda como quase todos os outros escravos, por- que tratava “de arranjar o dinheiro para obter sua liberdade”, Logo em seguida apresentou os recursos para pagar 0 pre¢o atribuido a ele no inventario: um valor baixo, “em vista do estado de sua satide e de suas doencas’. A maior parte desse dinheiro veio de uma pessoa nao identificada — 0 préprio Cavalheiro Leite? —, ou como dadiva ou como empréstimo. Para completar 0 que faltava, Francisco apresentou um vale que Liicio havia assinado, reconhecendo uma “divida” a Joa~ na. Provavelmente era o “peciilio” (poupanga) que ela depo- sitara com ele.* Com juros simples de 1% ao més, acumula- dos ao longo de mais de um ano, o total que 0 espélio de Liicio devia a Joana era 60 mil-réis (USS 31,00). Francisco, a0 que parece, nao precisava da permissio formal da mulher, agora liberta, para apresentar 0 vale, Seu direito como chefe de familia de dispor livremente do peciilio dela prevalecia sobre o fato de que Joana agora era seu superior em termos sociais. Ele precisava, sim, da anuéncia do inventariante e da propria justica para que sua liberdade pudesse ser efetivada. A aprovagao foi dada por ser “vantajos[a] para os rfios’, como fora a venda de outros cativos. Por que a magnanimidade de Lucio com um grande numero de cativos, representando quase um quarto do valor de sua propriedade em escravos? A resposta comega com a constatagao de que poucos senhores em Campinas abriam mio, como Lticio, de tao grande parte de seus escravos na hora da morte, ou mesmo ao longo da vida. Os que sucum- SENHORES E SUBALTERNOS NO OESTE PAUISTA + 267 biam a esses arroubos de “generosidade”, contudo, normal- mente eram semelhantes a ele, a julgar de estudos sobre tes- tamentos da mesma época em Sorocaba e Campinas. Isto 6, nao possuiiam cénjuge ou herdeiros “forcados” (descendentes legitimos ou ascendentes), que ainda estivessem vivos.* Os testadores com esse perfil manumitiam escravos e deixavam, dinheiro, terra ou casas a cativos e libertos, com muito mais freqiiéncia e prodigalidade (no que diz respeito ao valor des- sas doagées) do que aqueles cuja tiltima vontade ficava cons- trangida pela lei das herangas e por suas “legitimas” obriga- Ges sociais. Lticio, entao, era representativo de um certo tipo social. Quando chegou ao fim da vida e viu, como outros na situagao dele, que “nao tinha para quem deixar’, preferiu dis- tribuir favores a quem estava & sua volta, em vez de entregar a propriedade para o Estado. Lucio, entretanto, nao concedeu prémios de forma alea- toria — como tampouco fizeram seus colegas na mesma si- tuacao. Ele comegou com seus préprios filhos naturais, a quem havia criado, Relutara, é verdade, em reconhecé-los, aparentemente atribuindo-Ihes estigmas de origem ou outros defeitos; reproduziu dessa forma a atitude que o pai tivera com ele. Sentindo a morte chegar e vendo que nunca teria outros herdeiros mais a seu agrado, acabou nomeando-os seus sucessores. Em seguida, alforriou varios escravos, quase todos de uma familia que ao que parece conseguira “aproxi mar-se” dele, ao longo de muitos anos de servico. Novamente parece ter agido como o pai, o qual em 1843 libertou pessoas que 0 acompanharam desde a década de 1820. Na verdade, a distingdo que Licio fazia entre escravos, na hora de dispor sobre o destino de sua propriedade, lem- bra as disposigdes dos outros testadores sem conjuges e her- deiros forcados. O grupo de senhores que “nao tinha para quem deixar” (segundo a lei) era muito criterioso com res- peito a quem “deixava’s e € nisso, justamente, que reside seu interesse para 0 historiador. Sem divida, esses senhores eram atipicos, no que se refere a freqiéncia de doagées de alforria e propriedade a escravos. Suas praticas, contudo, tornam visivel uma politica de dominio largamente baseada na distribuic¢ao de prémios por “mérito” entre “dependen- tes”, difundida no escravismo da época. Abre-se uma janela que nos permite entrever a luta dos escravos pela sobrevi- EGUAS BOAS E BONITAS. ‘a rma Sra Ondo. ea dose Te ao se essa eon agen ere 17, Pagina tipica da segao de aantincios do Jornal do Commércio, 0 maior cotidiano do Império: antincios de venda de animais e de escravos. (Jornal do Commércio, 1853) IA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 véncia: as tramas senhoriais iam ao encontro de certas es- tratégias dos cativos para lidar com um mundo inseguro em extremo. Vejamos em mais detalhe um desses pontos de interse- do de vontades, 0 compadrio. Com base nos compadres es- colhidos por Joana e Francisco Velho, intui uma estratégia sua de aproximacio a pessoas com mais recursos, que pudes- sem garantir 0 bem-estar da familia deles. Ora, alguns anos depois da morte de Liicio, a mesma estratégia seria explicita- da por Lufs Gama, representando uma liberta na cidade de Sao Paulo. Em maio de 1872, Gama dirige um oficio ao chefe de policia da provincia de $40 Paulo, requerendo em nome da “crioula” liberta, Balbina de Sao Bento, que o filho desta, de nome Fortunato, fosse devolvido a custédia da mae. Balbi- na havia sido escrava do Mosteiro de Sao Bento na cidade de Sio Paulo, quando deu & luz seu filho, Este, porém, “nasceu livre, porque a esse tempo ja a ordem beneditina batizava como livres os filhos das suas escravas; como, entretanto, a suplicante nem tivesse meios de criar e educar seu filho, nem a mencionada ordem os prestasse, entregou a suplicante 0 seu dito filho ao padrinho para tal fim. E conquanto o padri nho — Porfirio, escravo do Exmo. Barao de Iguape — fosse, como ainda o é sujeito por [sua] condigao [de escravo], ti- nha, contudo, mais meios do que ela”. Fortunato, com menos de seis anos na época do requerimento, acabara de fugit de seu padrinho ¢ estava recolhido na casa de um terceiro, que 0 havia encontrado “vagando”, Balbina queria o filho de volta, pois “hoje esta liberta, e (...] pelo seu trabalho, tem os preci- sos meios para educar e tratar seu filhi A mesma estratégia de escolher compadres com recursos pode ser documentada num grupo considerével de escravos em Campinas. As ocupacées de pais escravos e de seus com- padres de batismo foram levantadas para os anos de 1869-75 em duas fazendas grandes. Utilizaram-se para isso os regis- tros paroquiais de batismos do periodo e as listas da “matri- cula” (registro) de escravos de 1872, que incluem um bom numero de informacoes sistemiticas sobre cada cativo, inclu- sive a “profissio"** No que diz respeito as relagoes de compa- drio entre escravos do mesmo senhor, fica patente que em ambas as propriedades os pais escolhiam mais compadres qualificados ou empregados no trabalho doméstico (e menos sininislill \ compadres de “roga/lavoura”) do que seria de se esperar em vista da distribuicao dessas ocupagdes entre adultos nas res- pectivas senzalas.” Numa dessas propriedades, é possivel es- tudar a escolha de compadres de acordo com a ocupagio dos pais; verifica-se, entdo, que os pais domésticos/qualificados tinham proporcionalmente mais compadres com essas mes- mas ocupacées do que os pais que trabalhavam no setor agririo. Na mesma propriedade, um nimero substancial de cativos tinha pessoas livres (libertos ou livres de nascenga) como compadres, sendo que proporcionalmente mais pais domésticos/qualificados formavam lagos com pessoas dessa UBALTERNOS NO 0: TE PAUUSTA * 269 18, Uma lista tipica da Matricula Geral dos Escravos, de Campinas, ‘em 1872, Nas observagdes Ise que varias escravas sao casadas. 270+ 19, Antes de ir para a roa, da senzala sem janela e con: portas sgeralmente trancadas por fo durante a noite. (Victor Frond, 1361) PASIL 2 categoria (sobretudo com os que nasceram em liberdade) do que os pais de “roca” Na outra fazenda, observa-se um fe- némeno curioso, mas coerente com o que vimos até agora. Duas familias grandes, cada uma com trés geragées de cativos — com certeza as familias “fundadoras” da senzala —, con- centravam a grande maioria das ocupacées que nao eram de “Javoura’. Ao mesmo tempo forneciam proporcionalmente mais compadres para a senzala do que os outros grupos na fazenda, em especial 0 conjunto de cativos relativamente “re- cém-chegados”, que praticamente nao continha escravos do- mésticos/qualificados ou lagos familiares entre si. Esses padrdes sao coerentes com 0 raciocinio atribuido a escrava/liberta Balbina por Luis Gama. Sugerem que os cativos em tais propriedades tendiam a procurar seus compadres entre pessoas € parentelas com mais recursos fisicos ou humanos. Entretanto, os pais com parcos recur- sos — os escravos de “roga’, fazendo o trabalho mais duro na fazenda e tendo menos possibilidades de acumular pec lios ou influenciar as decisées dos senhores — tinham me- nos sucesso nesse empreendimento do que seus parceiros domésticos ou qualificados. Talvez porque pudessem ofere- cer relativamente pouco em termos de favores reciprocos. Ao mesmo tempo, eles também tinham menos acesso a li- bertos ¢ (sobretudo) a pessoas livres de nascenca. Grupos progressivamente mais “ricos” em recursos do que os escra- vos domésticos/qualificados. SENHORES & SUBAITERNOS NO CESTE PAULISTA Os dados sobre essas fazendas sugerem que os escravos teciam lagos de ajuda mitua dentro da senzala; mas tais la- 08, que incluiam alguns cativos (preferencialmente aqueles com recursos) e nao outros, também constituiam redes de exclusdo. Por outro lado, a formagao dos lacos freqiiente- mente extrapolava os limites do cativeiro. Nao ha nenhum caso nessas fazendas de um escravo que conseguiu criar uma relagao de compadrio com o proprietario. Contudo, o racio- cinio que pauta a escolha de compadres — a necessidade, num mundo hostil, de criar lagos morais com pessoas de recursos, para proteger-se a sie aos filhos — em nada difere da logica intuida a partir da historia de Joana e Francisco Velho. Esse casal parece excepcional apenas por ter sido mui- to bem-sucedido na sua estratégia, formando relagdes desse tipo com seu senhor e com outra pessoa de posses, vizinho do mesmo — o que lhe valeu ganhos substanciais, visiveis nas disposig6es testamentarias de Lucio e nas agdes do outro compadre, Cavalheiro Leite. Neste caso, ¢ em outros menos “bem-sucedidos”, mas também envolvendo cativos ¢ compadres livres, 0 compro- misso de “dependéncia” que foi assumido pelos escravos pode ter tido um custo significativo: ou a rentincia & solida- riedade com os cativos de seu senhor, ou um constante esfor- 0 de dirimir as dtividas dos parceiros a respeito do lado em que estava, de fato, sua lealdade. Em contrapartida, o com- promisso de “protegao” assumido pelas partes livres nessa relagao era relativamente pouco oneroso. E verdade que a promessa de Cavalheiro Leite, quando concordou em ser tu- tor dos filhos de Joana e Francisco Velho, a principio impres- siona. Trata-se, contudo, de uma formula juridica, cujo ver- dadeiro significado € esclarecido por um requerimento apresentado a justiga por um tal de Gabriel, alguns anos de- pois. Aps reconhecer formalmente a filha natural, que vivia subordinada a um tutor, Gabriel solicitou a justi¢a que ela fosse restituida a sua custédia, apesar de ele ser “preto ¢ po- bre’, pois “nem outros tutores irio dar 4 menor grandes rega- lias mas hio de conserva-la na posicao de criada, como sem- pre sucede”. Nas duas fazendas analisadas acima, como também na historia de Joana (provavelmente uma escrava doméstica) € Francisco Velho (um “taipeiro”), 0 acesso a compadres com “m7 272 + HISTORIA DA VIDA FRIVADA NO BRASIL 2 20. Criangas e velho escrave posai: para o fotdgrafo. (Fow de Henschel, ‘meados do séeulo XIX) mais recursos parece ter sido facilitado quando os pais cati~ vos eram de ocupagio doméstica ou qualificada. A verdade, entretanto, € que a prépria distribuigio dessas ocupacbes “melhores” feita pelo senhor jé refletia um compromisso en= tre as partes no campo da representacao da “dependéncia’. ‘Tocamos aqui em outro ponto em que a politica de domi- nio dos senhores vai ao encontro das estratégias dos escravos. Em cinco fazendas de Campinas, todas formadas havia bastan- te tempo, contendo um total de 735 escravos na matricula de 1872, ha evidéncias de uma clara tendéncia entre os senhores de discriminar fortemente contra os africanos na distribuicao. de trabalhos domésticos e qualificados. No caso dos escravos brasileiros, preferiam-se os do Sudeste aos de outras regides em todos os grupos de idade. Entre as mulheres, pelo menos, as campineiras recebiam a preferéncia dentro do grupo do Su- deste. Os dados sugerem que os africanos (a maioria residente nessas fazendas desde longa data) tinham pouco acesso a0 “compromisso paternalisia” oferecido pelo senhor. Ja a distri- | 7

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