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Ética na pós-Modernidade

Introdução

Toda sociedade humana está sujeita às constantes transformações. Onde


está presente o homem, o contexto à sua volta se configura a partir de sua ação. Não
apenas no âmbito físico, estrutural, mas principalmente naquilo que diz respeito ao
que lhe é próprio, as relações. Novas formas de se relacionar despontam com o
progresso, em cada descoberta, com o raiar de novos conhecimentos. No
relacionamento com a natureza, com o outro, com o transcendente e consigo mesmo,
o ser humano constantemente descobre e assume novos valores e novos princípios.
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Assim, outros são deixados de lado, superados, esquecidos. Se o que caracteriza o


homem são as relações que ele estabelece, os valores que ele assume, os ideais que
ele alimenta e as realizações que ele concretiza, então podemos dizer que a cada novo
tempo, o ser humano se refaz, se transforma, se “atualiza”. E assim é em nosso
tempo, a pós-modernidade.
Partindo da pertinente reflexão de Gilles Lipovetsky, abordaremos neste
primeiro capítulo a sociedade atual com sua configuração própria, conseqüência das
buscas e concretizações humanas que sempre visam satisfazer os anseios do
indivíduo, oferecendo-lhe meios de realização pessoal. No entanto, como veremos,
esse tempo traz em si profundas lacunas, gerando um doloroso vazio existencial.
Usando um termo próprio, o autor fala deste tempo como “hipermodernidade”,
reconhecendo aí características marcantes que denotam a saturação e conseqüente
superação da pós-modernidade. Uma saturação por excesso e por ausência ao mesmo
tempo. Embora cada vez mais recheado de ofertas, o indivíduo não é capaz de
realizar-se plenamente.
Em suas reflexões, Lipovetsky constata que as inovações técnico-
científicas, pleiteadas pelo sujeito moderno, imprimiram um ritmo acelerado nas
transformações humano-sociais, evidenciando uma nova cultura, alicerçada no
“processo de personalização”, que torna absoluto o sujeito humano. Paralelo a isso,
14

muitas práticas e atitudes próprias da modernidade sofrem substanciais


transformações e os direitos subjetivos ganham mais visibilidade que os deveres
diante da sociedade. Dessa forma, surge a sociedade do pós-dever, onde a liberdade
de escolha ganha plena autonomia. A ética, antes fortemente marcada pelo imperativo
categórico e pelo caráter religioso, aparece livre de imposições exteriores. A religião,
por sua vez, historicamente fomentadora da ética, perde espaço, enquanto ganha vigor
a secularização da sociedade.
Em nossa reflexão, é perceptível como a ética, já desvencilhada da cultura
religiosa e de todo caráter de sacrifício, não deixa de existir, mas assume uma
configuração nova, centrada no “eu”. Tendo como horizonte a realização pessoal, a
sociedade pós-moderna e pós-moralista vai trilhando novos caminhos, fomentando
novos valores e suscitando novas relações. As inquietantes injustiças, que marcam
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nossa sociedade dão impressão de que a ética foi esquecida. Veremos, no entanto, que
a ética continua presente, embora tenha assumido características novas. São
flagrantes as manifestações e iniciativas de caráter ético por parte dos mais distintos
segmentos sociais. Naturalmente, não podemos ver nisso uma autêntica renovação
ética. De acordo com Lipovetsky, ganha espaço uma ética “indolor”,
descomprometida e fortemente individualista. A ética torna-se um negócio
interessante, principalmente em relação às iniciativas de empresas e setores do
mercado obstinados pelo lucro. Abordaremos, também, outros aspectos da vida
humana, onde é fomentado um minimalismo ético que não exige sacrifício, mas
tranqüiliza o sujeito e alivia sua consciência. Assim são os novos tempos.

1.1. Pós-modernidade: a Era do Vazio

Nosso tempo é resultado das significativas e profundas mudanças a que se


submeteu a sociedade humana. Muitos estudiosos reconhecem a atual sociedade
como uma época vazia de sentido, onde o ser humano perambula indeciso e inquieto
por veredas sempre novas, sem saber para onde o conduzem. Esse vazio reflete a
ausência de certezas, tão comuns em tempos anteriores. É, portanto, um vazio daquilo
que o sujeito moderno estava saturado. Para Gilles Lipovetsky, esse vazio representa
15

“a derrocada da moral rigorista e o surgimento de uma elaboração ética a la carte”.1


É o fim de uma época de valorização do sacrifício e condenação do prazer. A era do
vazio é ausência, mas também novidade.

“Mais do que uma ausência, um vácuo, o vazio representa um novo conteúdo. A


modernidade estruturou-se como imaginário do dever e do homogêneo. Cada
indivíduo precisava corresponder ao imperativo moral dominante, mesmo
naquilo que só dizia respeito ao seu espaço privado. A idéia de imperativo serviu
de cobertura para a imposição de visões de mundo e para a exclusão de todos os
que ousaram postular modos alternativos de vida. A corrosão do imperativo
moral, vista por muitos como sinal de decadência da estrutura social, pode ser, na
verdade, considerada uma marca de libertação”.2

Sem ignorar os aspectos negativos da era do vazio, o autor percebe que ela
está relacionada a uma situação de libertação e abertura, onde o sujeito humano
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rejeita os esquemas impositivos, e almeja gozar sua autonomia. Nessa realidade, onde
tudo se move, tudo se transforma, tudo é fluxo, surgem novas liberdades,
acompanhados de novos problemas, novas angústias e novas expectativas.

“Na era do vazio, estamos menos carregados e mais livres, mais lúcidos e menos
dependentes, mais exigentes e menos submissos, mais flexíveis e menos
engessados por engrenagens de poder em nome de verdades que se apresentavam
como transcendentais ou universais, embora não passassem de formas locais de
controle. Em termos de moral, menos é mais. O moralismo caracteriza-se pelo
excesso de valores que não podem ser discutidos. A ética numa sociedade
liberada do sacrifício faz-se do mínimo indispensável à coesão social e ao
respeito ao outro. O vazio salva do excessivo”.3

A superação da modernidade, com sua sobrecarga moral, identifica-se


com a busca de novos caminhos, novas liberdades, novos parâmetros éticos e
comportamentais. Se junta a isso uma descrença generalizada nos mecanismos
orientadores da vida pessoal e social. A Igreja, a família, o partido, o trabalho, o
saber, o poder, antes absolutos e inquestionáveis, perdem sua credibilidade e cresce,
assim, o deserto de referenciais absolutos.

1
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo, São Paulo,
Manole, 2005, x (a introdução da obra é em numeração romana).
2
Ibid, XI.
3
Ibid., X.
16

“Quem continua acreditando no trabalho, quando o frenesi das férias, dos fins de
semana, dos lazeres, não cessa de se desenvolver, quando a aposentadoria se
torna uma aspiração de massa, um ideal? Quem continua acreditando na família
quando os índices de divórcio não param de subir, quando os velhos são exilados
para casas de repouso, quando os casais se tornam ‘livres’, quando o aborto, a
contracepção, a esterilização se tornam legais? Quem continua acreditando no
exército quando escapar do serviço militar não é uma desonra? Quem continua
acreditando nas virtudes do esforço, da economia, da consciência profissional, na
autoridade, nas sanções? A onda de desafeição se propaga por todo lado,
despindo as instituições de sua grandiosidade e do seu poder de mobilização
emocional”.4

Embora esse retrato social possa parecer desesperador, as instituições


ainda insistem na tentativa de injetar sentido e valor onde já reina um deserto apático.
Com essa desmontagem dos mecanismos de legitimação pela moral, é flagrante uma
considerável perda de poder pelos “donos” das sociedades e um re-arranjo das formas
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de controle. A desordem de pensamentos é, na realidade, uma desordem de


referências, que atinge, até mesmo, a referência cardeal: o valor da pessoa humana.5
Onde deveriam reinar princípios e valores reguladores, orientadores, inspiradores do
agir humano, revela-se um vazio. Sem esses parâmetros, a esfera privada se torna
determinante, e viver sem finalidades transcendentais parece algo perfeitamente
possível.6 Os grandes alcances da sociedade pós-moderna não trazem uma satisfação
plena ao indivíduo de nosso tempo, mas apresentam um inevitável paradoxo: por um
lado saturação de caminhos, por outro lado cada vez mais indecisão e dúvidas.

“Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais os


indivíduos se sentem sós; quanto mais as relações se tornam livres, emancipadas
das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade de conhecer uma relação
intensa. Por todo lado há solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado
para fora de si mesmo”.7

Ante a vasta gama de possibilidades de satisfação, ganha espaço uma


estratégia característica deste tempo, a sedução. Em vez de manipular e impor, é

4
Ibid., pp. 18-19.
5
VALADIER, P., Moral em Desordem: um discurso em defesa do ser humano, São Paulo, Loyola,
2003, p. 158.
6
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 33.
7
Ibid., pp. 57-58.
17

preciso seduzir e conquistar. Como veremos, a partir do processo de personalização,


até mesmo os valores, antes impostos, agora são escolhidos.

1.1.1. Da modernidade à cultura pós-moderna

A liberdade e a democracia sempre foram características marcantes da


modernidade, época em que a cultura humana sofreu profundas transformações.
Como frutos de um árduo processo fundado na soberania do indivíduo e do povo,
surgiram as sociedades democráticas e descortinaram-se, assim, novos caminhos para
a humanidade. Amparado no valor precioso da liberdade, o homem moderno passou a
rejeitar todo tipo de submissão, de hierarquias e domínio das tradições. A
modernidade é uma sociedade sem fundamento divino, pura expressão da vontade
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dos homens, então reconhecidos como iguais.8 Uma sociedade que acredita
profundamente na ciência, e se re-inventa constantemente, de acordo com a razão
humana. Segundo Lipovetsky, o endeusamento/absolutização da liberdade na
modernidade não elimina por completo as marcas do rigorismo moral, do sacrifício e
do determinismo que, muitas vezes, impedem a escolha pessoal.

“A moral rigorista ocidental fazia do homem o chefe da família, a autoridade


paterna, a voz incontestável, o esteio da sociedade do microcosmo do lar. A
mulher vivia em situação secundária, praticamente sem direito ao prazer, ao
orgasmo, à liberdade sexual e à vida profissional. Não se estava numa sociedade
de escolha, mas numa teia coercitiva. Família, Igreja, Pátria, Partido e Ideologia
dominavam a cena social e serviam de pastores e de sentido para a existência,
obrigando a conformar-se, a tomar a forma de um mundo moralmente
determinado, sexista e produtivista”.9

De certa forma, na modernidade, a felicidade pessoal ainda está


condicionada ao bom cumprimento daquilo que é estabelecido. Austeridade e
dedicação são atitudes muito valorizadas no homem moderno, e o espírito sacrificial
alimenta o anseio pela felicidade pessoal. No entanto, é no seio da própria
modernidade que ganham voz inquietações e novas buscas que terão papel importante

8
Ibid., p. 66.
9
Ibid., p. XI.
18

na superação dessa época da história humana. É no contexto do mundo moderno que


o progresso torna-se uma obstinação e o Iluminismo passa a ditar seu ritmo frenético.

“Embora suas raízes se estendam até épocas bem anteriores ao Iluminismo, o


mundo moderno está marcado por seu dinamismo sem precedentes, por sua
rejeição da tradição, ou sua marginalização, e por suas conseqüências globais. O
ponto central da visão de futuro da modernidade se relaciona fortemente com a
crença no progresso e com o poder da razão humana de produzir liberdade. Mas
suas insatisfações procedem da mesma fonte: otimismo não realizado e dúvida
inerente acalentada pelo pensamento pós-tradicional”.10

Por ser uma época muito dinâmica e de mudanças profundas, incessantes


conflitos marcam a modernidade, que rejeita a tradição e, cheia de confiança no
futuro, aposta na ciência e na técnica. O progresso não sai de cena e a liberdade se
torna valor absoluto. São questionados os modos convencionais de ser e fazer as
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coisas. Diferentemente da sociedade tradicional, na modernidade a identidade pessoal


não é transmitida, mas construída.11 Essas grandes mudanças atingiram as relações
humanas, principalmente na esfera familiar e do trabalho. O sujeito moderno assume
um posto diferenciado e autônomo.

“Com os modernos, a idéia de um mundo real impondo suas leis torna-se


incompatível com o valor da mônada individual ontologicamente livre. A
liberdade dos modernos não poderia admitir limites para a sua ação, pois se
manifesta por um processo hiperbólico de negação das regras heterônomas e,
correlativamente, por uma criação autônoma que decreta suas próprias leis. Tudo
aquilo que se apóia em uma independência intangível, tudo aquilo que implica
submissão, a priori não pode resistir à autonomia individual. A liberdade exige
ruptura e insubmissão, destruição das leis e significados recebidos para chegar a
uma criação soberana”.12

A liberdade é uma conquista moderna que se torna parte do sujeito, para


quem quase não há mais limites, e sim desafios sempre novos, alimentados pelo ideal
de autonomia pessoal. A religião vai sendo relegada, pois se mostra incapaz de
fornecer respostas e soluções aos complexos questionamentos do homem moderno.
Dessa forma, a vida pública passa a ser cada vez mais dominada por princípios

10
LYON, D., Pós-Modernidade, São Paulo, Paulus, 1998, p. 35.
11
Ibid., p. 37.
12
LIPOVETSKY, G., op.cit., p. 73.
19

estranhos à religião.13 Essa nova organização social enfraquece, ou faz desaparecer,


certos princípios religiosos, deslocando as pessoas de seus contextos antigos e
comunais. No entanto, segundo Durkheim, as formas essenciais da vida religiosa
persistiriam de maneiras apropriadas à era moderna.14 É certo que a crença no
progresso não apagou por completo a crença na providência, pois no seio da própria
modernidade surgiam novas formas e místicas religiosas.
Proclamando a autonomia humana, a modernidade permitiu à razão
instrumental ser a regra da vida, dando início a uma mudança que terminaria
melancolicamente. A promessa do progresso, que enchia os olhos da modernidade,
azedou.15 Se por um lado as maravilhosas descobertas fizeram o homem moderno
sonhar mais alto, por outro lado esse mesmo homem sofreu profundas desilusões. A
falta de regulação convencional gerava uma sensação de incerteza, de perda de
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direção. Como chave da modernidade, a racionalização produziu o “desencanto do


mundo”. A aparente sensação de liberdade e autonomia não eliminava as angústias
geradas pela ausência de uma base normativa.

“A modernidade vive com dúvidas e contradições internas desde o começo. Não


somente magia e mistério, mas também autoridade e identidade se dissipam ou
difundem com o advento da modernidade. É a desilusão do mundo. A autoridade
supostamente passa das bases religiosas para as científicas. O eu autônomo
assume o centro da cena, reivindicando novas liberdades que seriam convertidas
em direitos civis, políticos e sociais”.16

Os valores individualistas ganham força e apontam para uma superação de


toda subordinação. Assim como a revolução democrática emancipa a sociedade das
forças do invisível e do universo hierárquico, o modernismo artístico liberta a arte e a
literatura do culto à tradição. A arte é um aspecto de grande visibilidade na
modernidade. E, embora não se dê uma ruptura absoluta, as fronteiras da cultura
artística se deslocam, na lógica dos novos valores, como a liberdade, a igualdade e a
revolução.17 A arte assume uma expressão livre e desconexa de qualquer

13
LYON, D., op. cit., p. 57.
14
Ibid., p. 46.
15
Ibid., p. 57.
16
Ibid., p. 56.
17
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 75.
20

enquadramento. O modernismo18 destrói as regras e convenções estilísticas,


fomentando obras personalizadas, despidas de padrão. A expressão se elabora sem
código preestabelecido, sem linguagem comum, de acordo com a lógica de um tempo
individualista e livre.19 Na arte moderna, tem papel importante a intervenção
manipuladora do utilizador, as ressonâncias mentais do leitor ou do espectador. É
preciso evitar uma interpretação unívoca.
Como vemos, a modernidade não se limita às questões políticas,
econômicas e tecnológicas, mas abrange os mais diversos aspectos da vida humana.
Embora tenha sido o primeiro modo de organização social a alcançar uma
predominância global, a modernidade suscitou preocupações desde o começo.20
Regrada pelos mais distintos valores, e em permanentes conflitos, a modernidade
começava a gerir sua própria mudança.
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“Na modernidade, a Revolução e a luta de classes são suas peças mestras; os


valores consagram a poupança, o trabalho, o esforço; a educação é autoritária e
regularizadora. Contudo, a partir do final do século XIX e da era do consumismo,
estabeleceram-se sistemas regidos por outro processo, maleável, plural,
personalizado. Neste sentido, pode-se dizer que a fase moderna das nossas
sociedades caracterizou-se pela coexistência de duas lógicas adversas com a
evidente preeminência, até as décadas de 1950 e 1960, da ordem disciplinar e
autoritária”.21

À força da personalização hedonista, da preeminência de valores


subjetivistas, os grandes eixos modernos foram sendo modificados e o otimismo
tecnológico e científico foi perdendo força. A degradação humana e ambiental foi se

18
David Lyon estabelece uma distinção entre pós-modernismo e pós-modernidade. No pós-
modernismo, a ênfase recai sobre o cultural, e se refere aos fenômenos culturais e intelectuais. Aí, um
dos fenômenos é o abandono do ‘fundacionalismo’, onde o pós-modernismo questiona todas as
premissas básicas do Iluminismo. Outro fenômeno é o colapso das hierarquias de conhecimento, de
gosto e opinião e o interesse pelo local em lugar do universal. Aparece também a substituição do livro
pela TV, a migração da palavra para a imagem, do discurso para a representação. Na pós-modernidade,
por sua vez, a ênfase recai sobre o social, e se concentra no esgotamento da modernidade, relacionada
com mudanças putativas. Significa que uma nova sociedade está surgindo, com a proeminência das
novas tecnologias de informação e comunicação, bem como do consumismo. LYON, D., op. cit. pp.
16-17.
19
LIPOVETSKY, G., op.cit. p. 79-80.
20
LYON, D., op. cit., p. 48. No mundo da produção, Marx encontrou capitalistas exploradores e
trabalhadores alienados. Durkheim detectou uma profunda sensação de ansiedade, de incerteza com
relação ao andamento das coisas. Weber temia que a racionalização talvez abatesse o espírito humano.
Simmel sentiu que a sociedade de estranhos produziria novo isolamento e fragmentação social.
21
LIPOVETSKY, G., op. cit. p. 90.
21

tornando uma preocupação cada vez maior. As ideologias políticas perderam a


capacidade de inflamar as multidões. Quebraram-se os tabus e um vazio passou a
reinar.22 Um vazio, no entanto, sem tragédia e sem apocalipse. Assim criam raízes as
sociedades pós-modernas.

“É a anexação cada vez mais ostensiva das esferas da vida social pelo processo
de personalização e o recuo concomitante do processo disciplinar que nos leva a
falar de sociedade pós-moderna, ou seja, de uma sociedade que generaliza uma
das tendências da modernidade inicialmente minoritária. Sociedade pós-moderna,
maneira de significar a virada histórica dos objetivos e das modalidades de
socialização, no momento sob a égide de dispositivos abertos e plurais; maneira
de dizer que o individualismo hedonista e personalizado tornou-se legítimo e já
não encontra oposição; maneira de dizer que a era da revolução, do escândalo, da
esperança futurista, inseparável do modernismo, está acabada”.23

A disciplina, que na modernidade tinha a finalidade de controlar os


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indivíduos, otimizando-lhes as faculdades produtivas, e produzindo uma conduta


padronizada,24 se dissolve, assim como também as crenças nos amanhãs radiosos da
revolução e do progresso. O que se busca, na pós-modernidade, é usufruir o momento
presente. Porque ninguém mais defende a ordem e a tradição25, está superada a
grande fase do modernismo que viu o desenrolar dos escândalos da vanguarda. Não
há mais tensão entre os artistas inovadores e o público. O enfraquecimento da
vanguarda coincide com a eclosão de uma expressão cultural de massa. Não significa
dizer que a arte morreu, ou que os artistas não têm mais imaginação, mas que a arte se
torna uma expressão subjetiva e eclética, e não mais um vetor revolucionário.

“Não se trata mais de criar um novo estilo, mas, sim, de integrar todos os estilos.
A tradição se torna uma fonte viva de inspiração, do mesmo modo que o novo.
Os valores até então proibidos de permanecer são tocados à frente, no contrapé
do radicalismo modernista: tornam-se preeminentes o ecletismo, a
heterogeneidade dos estilos no seio de uma mesma obra, o decorativo, o
metafórico, o lúdico, o vernacular, a memória histórica”.26

22
Ibid., XIX.
23
Ibid., XVII
24
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, São Paulo, Editora Barcarolla, 2004, p. 16.
25
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 83.
26
Ibid., 98.
22

Nesse sentido, o pós-modernismo não pretende a destruição das formas


modernas, mas a coexistência pacífica dos estilos, paralelamente a uma sociedade
onde as ideologias rígidas são rejeitadas e as instituições caminham para a opção e a
participação. O indivíduo se torna flutuante e tolerante. Não há mais divórcio entre os
valores da esfera artística e do cotidiano. As obrigações pré-traçadas são substituídas
pela livre escolha, a rigidez da “linha certa” pelo coquetel fantasioso.27 A cultura pós-
moderna legitima a afirmação da identidade pessoal de acordo com os valores de uma
sociedade personalizada, na qual o importante é ser a própria pessoa. Imbuído do
espírito das sociedades abertas, o pós-modernismo aumenta as possibilidades
individuais de escolhas e combinações.28 Assim, o modelo geral da vida nas
sociedades contemporâneas é marcado por uma espécie de self-service e pelo
atendimento a la carte. A “era do vazio”, segundo Lipovetsky, é a consagração da
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possibilidade de viver sem sentido, de não crer na existência de um único e categórico


sentido, mas de apostar na construção permanente de sentidos múltiplos, provisórios,
individuais, grupais ou fictícios.29 A pós-modernidade é uma sociedade do presente,
sem amarras, livre e constantemente renovada, sujeita à moda da eterna juventude. A
partir de um eficaz processo de personalização, o indivíduo não é mais meio para uma
finalidade exterior, mas é considerado, e se considera, como finalidade última.

1.1.2. O processo de personalização

O homem é sempre expressão do contexto e do tempo em que vive. E a


sociedade, por sua vez, é expressão do homem de seu tempo. Com base na
democracia e na liberdade, a modernidade fomentou a industrialização e o crescente
consumismo. Embora novas questões entrem em cena, com o advento da pós-
modernidade, os fundamentos de liberdade e democracia são preservados e
fortalecidos ainda mais. Em muitos aspectos há continuidade e aprofundamento, em
outros, uma certa ruptura, como é o caso do modelo de socialização disciplinar.
Alimentado por um constante progresso tecnológico, o consumismo cresce e assume

27
Ibid., 99.
28
Ibidem.
29
Ibid., XII.
23

um papel de grande importância na sociedade pós-moderna. Segundo Lipovetsky,


tudo isso a partir de uma lógica que remodela continuamente, e em profundidade, o
conjunto dos setores da vida social, o “processo de personalização”.

“O processo de personalização procede de uma perspectiva comparativa e


histórica, determina a linha diretiva, o senso do novo, o tipo de organização e de
controle social que nos liberta da ordem disciplinar-revolucionária-convencional
que prevaleceu até o decorrer da década de 1950. Ruptura com a fase inaugural
das sociedades modernas, democráticas-disciplinares, universalistas-rigoristas,
ideológicas-coercitivas, este é o sentido do processo de personalização”.30

Esse processo assume, em certo sentido, um papel libertário em relação à


modernidade. O individualismo ganha asas e se torna soberano, expressão de um
sujeito voltado para a escolha permanente, alérgico ao autoritarismo e à violência,
tolerante e ávido de mudanças freqüentes. Essa mutação histórica revela a emergência
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de um modo de socialização e de individualização inéditos. Como expressão de uma


sociedade flexível, baseada na informação e no estímulo das necessidades, inaugura-
se uma nova fase do individualismo.

“O universo dos objetos, das imagens e da informação, bem como os valores


hedonistas, permissivos e psicológicos que estão ligados a ele, geram,
simultaneamente uma nova forma de controle dos comportamentos, uma
diversificação incomparável nos modos de vida, uma flutuação sistemática da
esfera privada, das crenças e dos modos de agir; em outras palavras, uma nova
fase na história do individualismo ocidental”.31

Com o processo de personalização se dá uma revolução permanente do


cotidiano e do próprio indivíduo. Instaura-se um novo modo de a sociedade se
organizar e se orientar, bem como um novo modo de gerenciar os comportamentos. O
imaginário rigorista vai desaparecendo, e novos valores aparecem, visando o livre
desenvolvimento e a realização das aspirações subjetivas do homem contemporâneo.
A esfera privada ganha soberania e o ideal moderno de subordinação do indivíduo a
regras racionais coletivas é pulverizado. Ganha valor absoluto a realização pessoal, e
o “eu” se torna parâmetro para todo agir humano. É o reinado do indivíduo! O direito
de ser absolutamente si mesmo, aproveitando a vida ao máximo é uma manifestação

30
Ibid., XVI.
31
Ibid., XV.
24

definitiva da ideologia individualista pós-moderna.32 Os costumes são afetados e a


“regra” é ser diferente, único, autêntico e espontâneo, fugindo de toda padronização.

“Os costumes também se voltaram para a lógica da personalização. A tônica do


tempo reside na diferença, na fantasia, na descontração; o padronizado e o
afetado não têm mais tanta aceitação. O culto à espontaneidade e à cultura psi
estimulam as pessoas a serem ‘mais’ elas mesmas. A emancipação individual se
estende a todas as categorias de idade e sexo”.33

No viés da ideologia individualista, e impulsionados pela aceleração técnica e o


conseqüente consumismo de massa, as mudanças são cada vez mais freqüentes e
avassaladoras. A cultura personalizada, sob medida, permite ao indivíduo viajar no
próprio ritmo, de acordo com os próprios desejos. As aspirações pessoais ganham
asas e a vida pode ser modulada em função das motivações pessoais.
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Flexível, aberta e plural, a sociedade pós-moderna representa o momento


histórico preciso em que os freios institucionais, que se opunham à emancipação
individual, desaparecem, dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da
realização individual, do amor-próprio.34 Com o processo de personalização, o âmbito
social não é mais que o prolongamento do privado, liberando os indivíduos das
amarras institucionais. No embalo da lógica personalista, a pós-modernidade
possibilita ao indivíduo realizar os ideais das Luzes, que a modernidade anunciara em
termos legalísticos, mas sem ter-lhes dado força real.35 Diferentemente da
modernidade, agora a figura do “indivíduo autônomo” não é apenas teórica, mas real.
O dinamismo do Estado moderno teve papel importante nessa mudança, como
reconhece Lipovetsky:

“De fato, foi a ação conjugada do Estado moderno e do mercado que permitiu a
grande fratura, que hoje nos separa para sempre das sociedades tradicionais, e o
aparecimento de um tipo de sociedade na qual o indivíduo se considera
finalidade última e não existe a não ser para si mesmo. Pela centralização efetiva
e simbólica que operou, o Estado moderno desempenhou um papel determinante
na dissolução, na desvalorização dos laços anteriores de dependência pessoal e

32
Ibid., XVII.
33
Ibid., p. 05.
34
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 23.
35
Ibid., p. 20.
25

influiu no surgimento do indivíduo autônomo, livre de todas as cargas


tradicionais”.36

Existindo unicamente para si mesmo e conduzido pela lógica do mercado,


o indivíduo se aprofunda cada vez mais na busca de seus interesses particulares, uma
busca que parece legítima e justa. O “é preciso ser absolutamente moderno” foi
substituído pela palavra de ordem pós-moderna e narcísica “é preciso ser
absolutamente si mesmo”.37 A moda assume uma face visivelmente pós-moderna,
subjetivando os gostos e costumes, e afirmando a supremacia do individual sobre o
coletivo. Sua difusão dá impulso à pós-modernidade.

“Afora o desenvolvimento da autonomia que ela alicerça, a moda desempenhou


igualmente papel fundamental no momento da inflexão da modernidade num
sentido pós-moderno. Isso porque é com a extensão da lógica da moda ao
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conjunto do corpo social (quando a sociedade inteira se reestrutura segundo a


lógica da sedução, da renovação permanente e da diferenciação marginal) que
emerge o mundo pós-moderno. É a era da moda extrema, em que a sociedade
burocrática e democrática se submete aos três componentes essenciais (efêmero,
sedução, diferenciação marginal) da forma-moda e se apresenta como sociedade
superficial e frívola, que impõe a normatividade não mais pela disciplina, mas
pela escolha e pela espetacularidade”.38

A moda se destaca como vetor fundamental na superação da modernidade,


visto que a sociedade se submete à sua força sedutora. As diferenças individuais se
multiplicam, a esfera da autonomia subjetiva se amplia e efetiva-se uma sociedade
centralizada no pessoal, enquanto os princípios sociais reguladores se esvaziam e os
modos de vida tradicionais se dissolvem. A liberdade de ação é uma prioridade
absoluta, um direito de todos.39 Como nos lembra Lipovetsky, o homem pós-moderno
tolera mais as desigualdades sociais do que as ações que ferem a liberdade individual.

“O processo de personalização engendrou uma explosão de reivindicações de


liberdade que se manifesta em todos os domínios: na vida sexual e na familiar, no
vestuário, na dança, nas atividades corporais e artísticas, na comunicação e no

36
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.162.
37
Ibid., p.101.
38
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p.19.
39
TOCQUEVILLE, de A., De la démocratie en Amérique, Oeuvres completes. Paris, Gallimard, t. I,
vol. II, p. 101-104. Apud LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.92: “Face à afirmação de Tocqueville
de que os povos democráticos demonstravam ‘um amor mais ardente e mais durável pela igualdade do
que pela liberdade’”.
26

ensino, na paixão pelo lazer e pelo aumento do tempo livre, nas terapias novas
que têm por finalidade a libertação do eu”.40

Há também outros valores que são de importância fundamental para a


sociedade pós-moderna. Muitos grupos e segmentos sociais lutam por justiça,
igualdade e reconhecimento social. No entanto, segundo ele, essas reivindicações
ganham força e adesão em razão do desejo de viver com mais liberdade. O ideal da
autonomia individual é o grande protagonista da pós-modernidade. Tem aceitação
crescente, por exemplo, a livre utilização do corpo. 41 É deslocado par ao indivíduo o
direito de gerir e administrar a si mesmo.

“A cultura da obrigação moral foi suplantada pela da gestão integral de si


mesmo; o reino do pragmatismo individualista ocupou o lugar do idealismo
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categórico; os critérios do respeito por si mesmo diluíram-se no ciclo estável e


indefinido da personalização, do psicologismo, da operacionalização. O processo
pós-moralista transformou os deveres em relação a si mesmo em direitos
subjetivos, e as máximas obrigatórias da virtude em livres opções e conselhos
operacionais, a fim de obter o máximo de bem-estar das pessoas”.42

Pela busca do bem-estar e da realização pessoal vale qualquer esforço. O


sacrifício, que na modernidade estava voltado para fora (família, estado, religião,
partido), na pós-modernidade volta-se para o próprio sujeito. Centrado em si mesmo,
o indivíduo evita o confronto e assume uma atitude de indiferença e desinteresse pelo
outro. O homem pós-moderno tem repulsa à violência. Se a educação disciplinar não
conseguiu realizar a pacificação dos comportamentos, a lógica da personalização
conseguiu.43 Essa pacificação, no entanto, se dá mais pela valorização de si mesmo
do que pela eliminação do outro.

“Cada vez mais voltados para as preocupações particulares, os indivíduos se


pacificam não por ética, mas, sim, por hiperabsorção individualista: nas
sociedades que impulsionam o bem-estar e a realização de si mesmo, os
indivíduos têm mais desejo de encontrar a si mesmos, de se auscultar, de se

40
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 92.
41
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos, São Paulo, Manole, 2005, p. 70.
42
Ibid., 61.
43
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.169.
27

‘drogar’ com viagens, músicas, esportes, espetáculos, em vez de se defrontar


fisicamente”.44

O processo de personalização foi, suavemente, destruindo as normas de


uma sociabilidade viril, responsável por um nível elevado de criminalidade. Para
Lipovetsky, é a redução do relacionamento humano, acompanhada pelo
hiperinvestimento individualista ou narcísico, que se encontra no princípio do
declínio dos atos de violência.45 Não significa, com isso, que cessam as relações
interindividuais, mas elas são reestruturadas a partir dos valores subjetivos. As
“regras” pós-modernas visam produzir uma pessoa pacificada, satisfeita.
Os átrios religiosos também são perpassados pela força do processo de
personalização. Caracterizada pela ausência de determinismos e imposições, e
respeitando a liberdade pessoal e a autonomia individual, a pós-modernidade rejeita
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46
todo fenômeno religioso instituído de forma coercitiva. O “trânsito religioso” é
próprio deste tempo em que, movido pelas buscas subjetivas, o indivíduo procura
beber das mais distintas fontes, sempre na intenção de auto-satisfação. A religião
entra na onda do self-service.

“O processo de personalização tem como efeito uma deserção sem precedentes


da esfera sagrada, o individualismo contemporâneo não cessa de solapar os
fundamentos do divino. O mais interessante é que a própria religião se deixou
levar pelo processo de personalização: a gente acredita, mas de certa maneira,
aceitando tal dogma e eliminando outro, misturando o Evangelho com o Corão, o
zen ou o budismo. A espiritualidade se coloca na era caleidoscópica do
supermercado e do sirva-se-você-mesmo. Por algum tempo o indivíduo é cristão,
por alguns meses, budista e, por alguns anos, discípulo de Krishna ou do Maharaj
Ji”.47

Mais do que uma simples “válvula de escape” diante de um vazio de


sentido, a espiritualidade pós-moderna assume os contornos do individualismo
narcísico, que condiciona todo agir do homem contemporâneo. Segundo Lipovetsky,
a atração religiosa não é diferente dos entusiasmos efêmeros, próprios da pós-

44
Ibidem.
45
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 170.
46
FERNANDES, Sílvia Regina Alves (org.), Mudança de Religião no Brasil – desvendando
sentidos e motivações, Coleção CERIS, Salesiana e Palavra e Prece, 2004.
47
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p.95.
28

modernidade, que caracterizam o indivíduo flexível em busca de si mesmo. O


ressurgimento das espiritualidades e esoterismos aumenta o leque de escolhas e
possibilidades da vida privada.48 A expressão religiosa faz parte do coquetel
individualista oferecido pelo processo de personalização.
Em outra importante dimensão da sociedade humana, a arte, se dá o que
Lipovetsky denomina “personalização da cultura”. Sem parâmetros definidos, e
expressando-se à sua maneira, todos podem ser artistas. É a ordem personalizada da
cultura, a eclosão de uma expressão artística de massa, em que povo se torna artista.

“Enquanto a arte oficial é levada pelo processo de personalização e de


democratização, a aspiração dos indivíduos à criação artística não cessa de
crescer: o pós-modernismo não significa apenas o declínio vanguardista, como
também, e ao mesmo tempo, a disseminação e multiplicação dos centros e das
vontades artísticas. Proliferação dos grupos de teatro amador, dos grupos de
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música rock ou pop, paixão pela fotografia e pelo vídeo, entusiasmo pela dança,
pelas profissões artísticas e artesanais, pelo estudo de um instrumento, pela
escrita; essa bulimia só se iguala à do esporte e das viagens.”49

No embalo das significativas transformações no campo artístico, a criação


revolucionária, do modernismo, dá lugar a uma fase de expressão livre, do pós-
modernismo. A personalidade narcísica, ávida de expressão de si mesma, de
criatividade, colabora para a democratização espontânea e real das práticas
artísticas.50 Parece-nos evidente, assim, que a cultura de massa é também expressão
do processo de personalização.
No âmbito sócio-político, por sua vez, a lógica da personalização reforça a
demanda de liberdade, de escolha e de pluralidade, e gerencia um indivíduo aberto às
diferenças. Em paralelo com o crescimento do narcisismo, predomina a legitimidade
democrática. Pelo fato de os indivíduos se absorverem na esfera privada não significa
que eles se desinteressem pelo sistema político.51 Sua indiferença não é pela
democracia, mas é desafeição emocional dos grandes referenciais ideológicos, é
rejeição de um Estado distante e burocrático.

48
Ibid., pp. 95-96.
49
Ibid., p. 101.
50
Ibid., p. 102.
51
Ibid., p. 105.
29

“A crise do Estado-Providência é um meio de disseminar e multiplicar as


responsabilidades sociais, meio de reforçar o papel das associações, das
cooperativas, das coletividades locais, meio de reduzir a altura hierárquica que
separa o Estado da sociedade. Um meio de adaptar o Estado à sociedade pós-
moderna norteada pelo culto à liberdade individual, à proximidade, à diversidade.
O caminho se abre para que o Estado entre no ciclo da personalização, coloque-
se em harmonia com uma sociedade móbil e aberta, recusando as inflexibilidades
burocráticas e o distanciamento político”.52

O crescimento dessas forças sociais fortalece a tendência pós-moderna de


privilegiar a liberdade em relação ao igualitarismo uniforme. Quer-se menos relação
vertical e paternalismo entre Estado e sociedade, menos regime único, e mais
iniciativas, diversidade e responsabilidade na sociedade e nos indivíduos.
Não podemos negar que o processo de personalização é responsável por
muitas das contradições da sociedade pós-moderna, dinamizando a coexistência
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suave das antinomias: por um lado rejeita regras e imposições modernas e por outro
lado impõem “regras” que assumem caráter social determinista; por um lado suaviza
os costumes da maioria e por outro endurece as condutas criminosas, favorecendo o
surgimento de ações bárbaras e estimulando a escalada aos extremos no uso da
violência. Em muitos aspectos, o processo de personalização redefine a sociedade,
dando uma importante contribuição para a efetivação da sociedade pós-moderna. Seu
desenvolvimento, elevado ao extremo, configura aquilo que Lipovetsky denomina
“hipermodernidade”.

1.1.3. A hipermodernidade

Neste item abordaremos alguns aspectos relevantes da hipermodernidade,


como definição própria de Lipovetsky a respeito da sociedade atual, onde tudo se
passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. As principais
características da pós-modernidade, que suscitaram uma profunda reorganização no
funcionamento das sociedades democráticas, agora se acentuam mais ainda. Dentre
os aspectos que o autor aponta, destacam-se a expansão em larga escala do
consumismo e da comunicação de massa, o enfraquecimento das normas autoritárias

52
Ibid., p. 110.
30

e disciplinares, a perda dos ideais revolucionários, o surto da individualização.53 Com


transformações vertiginosas, movidas pelas tecnologias da última hora e de grande
velocidade, o eficaz e sedutor processo de personalização continua a gerir a
sociedade, determinando um novo tempo, a hipermodernidade.

“Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hipermercado, hiperterrorismo,


hiperindividualismo, hipertexto – o que mais não é hiper? O que mais não expõe
uma modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de epílogo segue-se
uma sensação de fuga para adiante, de modernização desenfreada, de
desregulamentação econômica, de ímpeto técnico-científico, cujos efeitos são tão
carregados de perigos quanto de promessas. Tudo foi muito rápido: a coruja de
Minerva anunciava o nascimento do pós-moderno no momento mesmo em que
se esboçava a hipermodernização do mundo”.54

Nesse sentido, é breve a ‘existência’ do pós-moderno, que fenece ao


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germinar o mundo “hiper”. Com o triunfo da tecnologia genética, da globalização


liberal e dos direitos humanos, o rótulo pós-moderno ganha rugas e não serve mais,
tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia.55 Naturalmente,
algumas marcas da pós-modernidade, como a eficiência técnica, a lógica consumista
e a centralidade do indivíduo não apenas permanecem, mas se fortalecem e passam a
ditar os caminhos deste novo tempo. Nesse contexto, o Estado recua, as instituições
perdem espaço e confiança, a religião e a família se privatizam, e tudo se
individualiza. Embora a liberdade de escolha ainda seja um “direito fundamental”,
não há mais escolha, só resta evoluir. As transformações técnicas se dão em
velocidade espantosa e é preciso acelerar para não ser ultrapassado pela “evolução”.56
Enquanto as operações e intercâmbios se aceleram, o tempo se torna escasso, e o
homem hipermoderno “não tem mais tempo”.

a) A temporalização

Esta é uma das grandes marcas da hipermodernidade, onde se definem as


temporalidades divergentes: admiração ao passado, preocupação com o futuro e
consagração do presente.

53
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 52.
54
Ibid, p. 53.
55
Ibid., p. 52.
56
Ibid., p. 57.
31

“Instalaram-se sociedades reestruturadas pela lógica e pela própria temporalidade


da moda; em outras palavras, um presente que substitui a ação coletiva pelas
felicidades privadas, a tradição pelo movimento, as esperanças do futuro pelo
êxtase do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista
que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos
prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-
estar, do conforto e do lazer”.57

Essa consagração social do presente não se instaura pela falta de


perspectiva de futuro ou pelo enfraquecimento da esperança, mas pelo excesso, pela
saturação de ofertas e opções. Em busca de satisfação a todo momento, o sujeito
assume a cultura do “tudo já”, sacralizando o gozo sem proibições. As religiões
portadoras de esperanças futuristas perderam muito de seu vigor, e a obsessão com o
tempo não se restringe à esfera do trabalho, agora submetido aos critérios de
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produtividade, mas abrange todos os aspectos da vida. O ritmo frenético predomina


nas empresas, movidas pela concorrência globalizada e pelas exigências de curto
prazo. É o reinado da urgência e da competição, que enlouquece o homem
hipermoderno e o faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à
custa da reflexão, o acessório à custa do essencial.58 Essa corrida contra o tempo
atinge a todos, criando uma atmosfera de dramatização, de estresse permanente, bem
como um conjunto de novas doenças e distúrbios psicossomáticos.
Numa época de “agenda lotada”, a falta de dinheiro motiva menos queixa
do que a falta de tempo. Os horários de trabalho, de estudo, férias, lazer, antes
rígidos, se tornam flexíveis e podem ser negociados e ajustados aos interesses e
necessidades individuais. Naturalmente, apesar dessa consagração do presente, nossa
época não se restringe a um presente trancado em si mesmo, mas alimenta certa
preocupação com o que está por vir.

“Nenhuma ‘destemporalização’ do homem: o indivíduo hipermoderno continua


sendo um indivíduo para o futuro, um futuro conjugado na primeira pessoa.
Outros fenômenos revelam os limites da cultura presentista. Ao mesmo tempo
que a cultura liberacionista está fora de moda, manifestam-se numerosas formas
de valorização do duradouro. Ainda que as uniões sejam mais frágeis e mais
precárias, nossa época, apesar de tudo, testemunha a persistência da instituição

57
Ibid., pp. 60-61.
58
Ibid., p.77.
32

do matrimônio, a revalorização da fidelidade, a vontade de contar com relações


estáveis na vida amorosa. (...) A sociedade hipermoderna dá nova vida à
exigência de permanência como contrapeso ao reinado do efêmero, tão causador
de ansiedades”.59

O homem hipermoderno não deixa de se preocupar com o futuro, e a fé no


progresso não foi substituída pela desesperança ou pelo niilismo, mas por uma
confiança instável e oscilante, em função das circunstâncias.60 Embora tenha
diminuído, o otimismo face ao futuro não está morto. Educação e saúde são aspectos
que estão sempre em pauta. Muito cedo os jovens se mostram apreensivos com a
escolha de instrução e profissão. Os pais, por sua vez, assimilaram as ameaças ligadas
às desregulamentações hipermodernas e reconhecem que o prioritário é a formação
com vistas ao futuro.61 O que todos querem com a educação é “ser alguém na vida”,
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garantindo uma velhice tranqüila.


Nesse intuito de viver mais e melhor, a saúde se torna uma preocupação
onipresente para um número crescente de indivíduos de todas as idades. Assim, os
ideais hedonistas foram suplantados pela ideologia da saúde e da longevidade. Em
nome destas, os indivíduos renunciam maciçamente às satisfações imediatas,
corrigindo e reorientando seus comportamentos cotidianos.62 Sacrifícios, dietas,
mudanças de atitudes e hábitos não visam satisfações imediatas, mas garantir uma
vida mais saudável e longa. A própria medicina, na hipermodernidade, reorienta seu
campo de ação, estimulando o monitoramento, os exames, a vigilância higienista, a
modificação de estilos de vida. No entanto, essa obsessão narcísica com a saúde e a
longevidade, embora esteja voltada ao futuro, visa estender ao máximo o presente.
Se podemos dizer que nossa cultura não abriu mão do futuro, também
devemos reconhecer uma latente valorização do passado, fenômeno mais
hipermoderno que pós-moderno. Na onda do retrô, o antigo é venerado e o passado
adquire dignidade. Ganha força um frenesi histórico-patrimonial com a proliferação
de museus, restaurações, turismo cultural, obsessão comemorativa.

59
Ibid., p. 74.
60
Ibid., p. 70.
61
Ibid., p. 72.
62
Ibid., pp. 72-73.
33

“Os modernos queriam fazer tábula rasa do passado, mas nós o reabilitamos; o
ideal era ver-se livre das tradições, mas elas readquiriram dignidade social.
Celebrando até o menor objeto do passado, invocando as obrigações da memória,
remobilizando as tradições religiosas, a hipermodernidade não é estruturada por
um presente absoluto; ela o é por um presente paradoxal, um presente que não
pára de ‘redescobrir’ o passado”.63

Esse olhar para o passado é alimentado por interesses mercadológicos, que


agregam ao valor comercial um valor emotivo ligado aos sentimentos nostálgicos.
Diferente de outras épocas, hoje o passado não é para ser imitado, mas admirado.
Como um adorno, o passado nos seduz, ao passo que o presente e suas normas
cambiantes nos governam. Conforme Lipovetsky, “celebramos aquilo que não
desejamos tomar como exemplo”.64 É por isso que podemos dizer: o sujeito
hipermoderno admira o passado, se preocupa com o futuro, mas consagra o tempo
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presente.

b) O Narcisismo

A sociedade hipermoderna, como vimos, não é uma ilha fechada em si,


pois mantém um “laço afetivo” com o passado e uma estreita vinculação com o
futuro. Se a modernidade visava superar a minoridade, tornando o sujeito adulto
(Kant), a hipermodernidade assume uma nova prioridade: ficar eternamente jovem.65
Nessa obstinação pela juventude se revela um marcante narcisismo, conseqüência do
individualismo pós-moderno fomentado pelo processo de personalização.

“Instala-se um novo estágio de individualismo: o narcisismo designa o


surgimento de um perfil inédito do individuo nas suas relações consigo mesmo e
com o seu corpo, com os outros, com o mundo e com o tempo no momento em
que o capitalismo autoritário cede lugar a um capitalismo hedonista e permissivo.
A idade de ouro do individualismo, concorrente no nível econômico, sentimental
no nível doméstico, revolucionário nos níveis político e artístico, chega ao fim e
um individualismo puro se desenvolve, desembaraçado dos últimos valores
sociais e morais que ainda coexistiam. Emancipada de qualquer enquadramento
transcendental, a própria esfera privada muda de sentido, uma vez entregue aos
desejos variáveis dos indivíduos”.66

63
Ibid., p. 85.
64
Ibid., p. 90.
65
Ibid., p. 80.
66
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 32.
34

O narcisismo não se identifica com um indivíduo inteiramente


desconectado da dimensão social e política, mas suaviza a carga emocional investida
no espaço público, em vista de um maior investimento na dimensão subjetiva, que lhe
é prioritária. Com a deserção generalizada dos valores e finalidades sociais,
ocasionada pelo processo de personalização, tudo concorre para a promoção de um
individualismo puro, desembaraçado dos enquadramentos de massa e projetado para a
valorização do indivíduo.67 Assim como as instituições sociais e os valores
transcendentais, o sentido histórico foi abandonado, e só serve como objeto de
veneração distante. Sem força exterior, ganha vigor no indivíduo um entusiasmo sem
precedentes pelo conhecimento e realização de si mesmo. Segundo Lipovetsky, a
sensibilidade política da década de 1960 é substituída pela “sensibilidade
terapêutica”.
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“No momento em que o crescimento econômico perde fôlego, o desenvolvimento


psíquico toma impulso e o consumo de consciência se torna uma nova bulimia:
ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo,
meditação transcendental; à inflação econômica respondem a inflação psi e o
formidável impulso narcísico que ela produz. Canalizando as paixões para o Eu,
que assim se promove a umbigo do mundo, a terapia psi gera uma figura inédita
de Narciso, obcecado por si mesmo”.68

O narcisismo hipermoderno representa o desprendimento do domínio do


Outro, a ruptura com a padronização de massa. Todo empenho externo (nação,
trabalho, família, religião) agora assume uma nova direção: o próprio Eu, centro das
preocupações. Embalado pelo espírito da “eterna juventude”, o corpo é promovido a
um verdadeiro objeto de culto, rodeado de cuidados e investimentos constantes
(saúde, higiene, rituais de controle, cuidados médicos e farmacêuticos, etc). Impõe-se
um novo imaginário social do corpo. Ele perde seu status de alteridade e
materialidade muda, e ganha dignidade e respeito, o que torna intolerável toda
perspectiva de envelhecimento.69 Essa tendência se comprova no crescimento
desenfreado de meios para cuidar do corpo, de práticas esportivas individuais, onde

67
Ibid., p. 34.
68
Ibid., pp. 35-36.
69
Ibid., p. 42.
35

se busca mais a forma física e a saúde do que a proeza e a força.70 Já não é o conceito
de virtude que orienta o esporte, mas a emoção, o êxtase corporal. Esse narcisismo,
no entanto, revela uma clara ambigüidade: por um lado o corpo se torna sujeito, mas
por outro lado se impõem novos e severos padrões.

“Ao mesmo tempo em que exerce uma função de personalização, o narcisismo


realiza também uma missão de normalização do corpo: o interesse febril que
temos pelo corpo não é, de modo algum, espontâneo e ‘livre’, pois obedece a
imperativos sociais, tais como a ‘linha’, a ‘forma’, o orgasmo, etc. O narcisismo
joga e ganha em todas as tabelas funcionando concomitantemente como operador
de despadronização e de padronização. A normalização pós-moderna se
apresenta sempre como o único meio de o indivíduo ser realmente ele mesmo,
jovem, esbelto, dinâmico”.71

Objeto de atenção, preocupação e cuidados como nunca, o corpo é ele


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mesmo fonte de prazer para o sujeito narcisista. O investimento nele não visa
necessariamente ser melhor, mas sentir-se melhor. Além de produtos de higiene e
bem-estar, surge uma grande variedade de ornamentos e artes que personalizam o
corpo: piercings, tatuagens e acessórios diversos. A idade não é mais limite para o
narcisismo, como aponta Lipovetsky: “Narciso envelheceu e, se ainda vê o seu
reflexo no espelho, não é mais para enxergar os rastros de sua legendária beleza, mas
para angustiar-se com as rugas que começam a aparecer, com o excesso de peso, com
a aproximação da morte”.72 Aí se justificam os temores e angústias que assolam
tantas pessoas ante o inevitável envelhecimento.

c) A indiferença

Embora as grandes aspirações se extinguem, a alegre notícia é que


ninguém se angustia com isso. No rastro do narcisismo, a hiper-modernidade revela
uma certa “apatia de massa”. Quando o Eu se torna a celebridade, até os ídolos se
tornam “estrelas de um só verão”. Segundo Lipovetsky, o vazio dos sentimentos, o
desmoronamento dos ideais, enfim, o “deserto” criado pela pós-modernidade, é todo
feito de indiferença.
70
Ibid., p. 142.
71
Ibid., p. 44.
72
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal: ética, mídia e empresa, Porto Alegre,
Sulina, 2004, p. 11.
36

“As figuras imponentes do saber e do poder se apagam, pulverizadas por um


processo de personalização que não pode tolerar por muito tempo a manifestação
ostentatória de uma tal desigualdade, de uma tal distância. Tudo aquilo que
designa o absoluto, uma altura exagerada, desaparece e as celebridades perdem
sua aura enquanto sua capacidade de galvanizar as massas enfraquece. As
vedetes não duram muito mais tempo do que os cartazes, as novas ‘revelações’
anulam as de ontem de acordo com a lógica da personalização”.73

A inflação galopante da moda contribui com o processo de personalização,


imprimindo um ritmo acelerado no aparecimento e esquecimento de ídolos,
impedindo que as figuras que estão nas primeiras páginas dos jornais se sacralizem.
Se, por um lado o excesso de imagens suscita sempre mais “vedetes”, por outro lado,
há cada vez menos investimento emocional em relação a elas. Num tempo onde tudo
é movimento e há constante circulação, a identificação com os ídolos é expressão de
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entusiasmo passageiro e desafeição instantânea.


Mas nem só de indiferença vive a hipermodernidade. Embora o EU seja o
centro das preocupações, o individualismo produz também um efeito inverso, a
sensibilidade em relação ao outro.

“Paradoxalmente, é à força de levar a si próprio em consideração de maneira


isolada, de viver para si mesmo, que o indivíduo se abre às infelicidades do
outro. Quanto mais existimos como pessoa particular, mais é sentida a aflição ou
a dor do outro; o sangue, os atentados à integridade corporal se transformam em
espetáculos insuportáveis, a dor aparece como uma aberração caótica e
escandalosa, a sensibilidade se torna uma característica permanente do homo
clausus”.74

Nesse sentido, enquanto a indiferença exterior aparece como reflexo da


prioridade que o indivíduo dá a si mesmo, a sensibilidade é uma confirmação de que
o homem hipermoderno é ainda capaz de se indignar com situações que vão contra a
dignidade humana. O crescimento acentuado da indiferença ou desinteresse se
confirma, por exemplo, no ambiente de ensino. O prestígio e a autoridade dos
professores desaparecem quase completamente, e seu ensinamento se torna mais um
dentre tantos meios de propagação do saber.

73
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, pp. 53-54.
74
TOCQUEVILLE, A., apud LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 167: “nos séculos democráticos
raramente os homens se devotam uns aos outros, mas demonstram uma compaixão geral por todos os
membros da espécie humana”.
37

“Hoje em dia, a palavra do Mestre deixou de ser sagrada, tornou-se banal e situa-
se em pé de igualdade com a palavra da mídia e o ensino se transformou em
máquina neutralizada pela apatia escolar feita de atenção dispersa e de ceticismo
desenvolto em relação ao saber. Grande confusão dos Mestres. A escola, onde os
jovens vegetam sem grande motivação ou interesse, é um corpo mumificado e os
professores compõem um corpo fatigado e incapaz de lhe insuflar vida”.75

Essa situação nos mostra que o saber não é mais uma busca vital que
engrandece a pessoa, e sim uma necessidade profissionalizante. Além do pouco
comprometimento por parte de estudantes, embora se busquem sempre novas
metodologias de ensino, há investimento público relativamente baixo na educação.
A indiferença ou apatia atinge também o campo político, onde é evidente
um desencanto generalizado. Levando em consideração os elevados níveis de
abstenções, podemos dizer que o interesse dos cidadãos pelos partidos políticos e
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pelas eleições se comparam ao interesse pela loteria, pela previsão do tempo no final
de semana ou pelos resultados esportivos.76 Seguindo a lógica midiática, onde a
qualidade do divertimento determina a audiência, a política é obrigada a adotar um
estilo de animação na tentativa de mobilizar a população.77
Vários outros aspectos sociais poderiam ser abordados para confirmar que
a indiferença de nossa época é fruto do excesso, da saturação. Condicionado à
velocidade das transformações, o homem hodierno se apega e desapega facilmente.
Assim, o paradoxo hipermoderno assume nova fisionomia, onde co-existem gostos e
comportamentos mais diversos.

“Quanto mais os políticos se explicam e se exibem na televisão, mais todo


mundo se aborrece; quanto mais os sindicatos distribuem panfletos, menos eles
são lidos; quanto mais os professores querem fazer ler, menos os alunos lêem.
Indiferença por saturação, informação e isolamento. Como agentes diretos da
indiferença, compreendemos porque o sistema reproduz de modo ampliado os
sistemas de sentido e de responsabilização, cuja finalidade consiste em produzir
um engajamento vazio: pense o que quiser da TV, mas assista a ela, vote em nós,
pague suas cotas, siga a palavra de ordem da greve... partidos e sindicatos não
têm outra exigência a não ser essa ‘responsabilidade’ indiferente”.78

75
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, pp. 21-22.
76
Ibid., p. 22.
77
Ibidem.
78
Ibid., p. 26.
38

Claro está que a indiferença não se identifica com a ausência de


motivação, mas com uma “anemia emocional”, com a desestabilização dos
comportamentos. O sujeito indiferente não se apega a nada, não tem certeza absoluta,
adapta-se a tudo, suas opiniões são suscetíveis de modificações rápidas. Assim, aos
poucos, nos instalamos na crise e nos habituamos, pois aparentemente ela não
interfere no bem-estar pessoal. É preocupante reconhecer que nem as constantes
ameaças econômicas e ecológicas conseguiram transformar a consciência indiferente
do sujeito hipermoderno que se submete à lógica da sedução, tornando-se um árduo
consumista.79

d) A estratégia da sedução e o consumo de massa


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Seria um erro anunciar o fim da sociedade de consumo, quando está claro


que o processo de personalização não cessa de ampliar suas fronteiras. A recessão
atual, a crise energética, a consciência ecológica não fazem dobrar os sinos de finados
da era do consumismo.80 Quer dizer, apesar das constantes crises, há sempre um novo
foco, um deslocamento de interesses, que nos faz consumir cada vez mais objetos e
informações, esportes e viagens, formações e relações, música e cuidados médicos.
A multiplicidade de opções é uma poderosa arma do consumismo pós-
moderno. Abundante oferta e direito de escolha andam de mãos dadas. O consumidor,
então, precisa ser seduzido. Aparece, assim, como mola propulsora do consumismo
pós-moderno, a estratégia da sedução. Reduzindo eficazmente os quadros rígidos e
coercitivos, o processo de personalização age com suavidade, respeitando as
inclinações individuais, o bem-estar, a liberdade, os interesses de cada pessoa. A
coerção dá lugar à comunicação, e todo discurso consumista é moldado por elementos
atrativos e sedutores, visando “conquistar” o consumidor.

“A sedução nada tem a ver com a representação falsa e a alienação das


consciências; é ela que dirige o nosso mundo e o remodela de acordo com um
processo sistemático de personalização cuja finalidade consiste essencialmente
em multiplicar e diversificar a oferta, em oferecer mais para que você possa
escolher melhor, em substituir a indução uniforme pela livre escolha, a

79
Ibid., p. 34.
80
Ibid, XIX.
39

homogeneidade pela pluralidade, a austeridade pela satisfação dos desejos. A


sedução remete ao nosso universo de gamas opcionais, das nuanças exóticas, da
ambiência psicológica, musical e informativa, no qual cada um tem o prazer de
compor à vontade os elementos da sua existência81”.

Como vimos anteriormente, as antigas disposições disciplinares foram


pulverizadas pela onda do self-service, ao passo que se multiplicam desregradamente
as possibilidades de escolha, conseqüência do crescimento desenfreado das novas
tecnologias e inovações. Os imperativos determinantes das sociedades modernas
foram substituídos por novas estratégias sociais, com especial ênfase à lógica da
sedução, que passa a regrar o consumo, as organizações, a informação, a educação, os
costumes. Vivemos hoje uma apoteose das relações de sedução,82 que estão a serviço
de uma sociedade cada vez mais consumista, não pelo simples acúmulo, mas pela
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constante necessidade de novas experiências satisfatórias.

“Com sua profusão luxuriante de produtos, imagens e serviços, com o hedonismo


ao qual induz, com seu ambiente eufórico de tentação e proximidade, a sociedade
de consumo revela claramente a amplidão da estratégia da sedução. No entanto,
ela não se limita ao espetáculo do acúmulo; mais exatamente, identifica-se com a
repetida multiplicação das escolhas que torna possível a abundância, levando a
maioria das pessoas a permanecerem mergulhadas num universo transparente e
aberto, ao oferecer-lhes cada vez mais opções e combinações sob medida,
permitindo, assim, circulação e escolha livres”.83

Em ritmo acelerado, as novas tecnologias e o mercado colocam à


disposição do indivíduo uma diversificação cada vez maior de bens e serviços,
absolutizando a lógica da sedução. Toda novidade tende a seduzir e suscitar
experiências novas, embora passageiras. Sintonizada com o processo de
personalização, a lógica da sedução assume o indivíduo como finalidade e investe em
todos os pólos: na medicina, no esporte, nos costumes, etc. Para atingir o indivíduo, a
sedução conta com uma linguagem emancipadora, criando uma socialização suave e
tolerante. Até os partidos políticos, na lógica da sedução, se tornam mais “suaves” e
assumem novos valores, abolindo discursos radicais e finalidades históricas.84 Tudo o

81
Ibid., p. 03.
82
Ibid., p. 01.
83
Ibid., p. 02.
84
Ibid., p. 09.
40

que se parece com imobilidade e estabilidade tende a desaparecer em proveito da


novidade. A própria natureza não é mais um tesouro a ser explorado, mas um
interlocutor a ser ouvido e respeitado.
A lógica consumista, veiculada pelos meios de comunicação, produz
necessidades e desejos, estimulando permanentemente os critérios de bem-estar
individual. Quanto mais o indivíduo está isolado ou frustrado, mais busca consolos
nas felicidades imediatas da mercadoria, fazendo do consumismo uma válvula de
escape diante das inquietações da vida. Cada compra se torna uma experiência nova,
e o consumidor hipermoderno se torna um “colecionador de experiências”.

“É preciso interpretar o apetite consumista como uma maneira de conjurar a


fossilização do cotidiano, de escapar à perpetuação do mesmo pela busca de
pequenas novidades vividas. Através do ato de consumo, é a rejeição de uma
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certa rotina e da coisificação do eu que se exprime. O hiperconsumo é a


mobilização da banalidade mercantil, com vista à intensidade vivida e à vibração
emocional”.85

O consumismo assume, assim, uma forte conotação emocional, recriando


sempre um universo de satisfação e de prazer. Na concepção de Lipovetsky, a
sociedade do hiperconsumo designa a terceira etapa histórica do capitalismo de
consumo, que ganha força paralelamente à produção em larga escala. A primeira fase
do consumismo caracterizava-se pela fabricação padronizada dos produtos. A
segunda fase, que surge por volta de 1950, se caracteriza pela disseminação do
consumo de massa. Assiste-se aí a extensão a todas as camadas sociais do gosto pelas
novidades, da promoção do fútil e do frívolo.86 Chegamos, assim, a um momento em
que a comercialização dos modos de vida não mais encontra resistências estruturais,
culturais, nem ideológicas. As esferas da vida social e individual se reorganizam em
função da lógica do consumo. Se a primeira e a segunda fase do consumo haviam tido
como conseqüência a criação do consumidor moderno, arrancando-o às tradições e
arruinando o ideal de poupança, a última fase, do hiperconsumo, estendeu ao infinito
o domínio do consumo.

85
LIPOVETSKY, G., Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, São Paulo
Companhia das Letras, 2007, p. 69.
86
LIPOVETSKY, G, Os Tempos Hipermodernos, p.24.
41

Com novas tecnologias e estratégias de segmentação e individualização, a


sociedade hiperconsumista amplia sem parar a gama das escolhas e opções, e as
empresas procuram se esforçar para responder o mais precisamente possível às
necessidades de um consumidor sempre mais exigente. Ao marketing de massa, em
vigor desde o século XIX, segue-se um marketing de segmentação, visando faixas
etárias e grupos cada vez mais subdivididos, promovendo necessidades e
comportamentos cada vez mais diferenciados, oferecendo produtos e serviços cada
vez mais dirigidos a um público diferenciado.87 No hiperconsumismo a preeminência
é a inovação, então crescem mais os setores em que as inovações são mais aceleradas.
Para estimular o consumo, os atores da oferta renovam com mais rapidez os modelos,
seduzindo pela novidade. A concorrência, no entanto, se dá também na qualidade dos
produtos: “Longe de ser considerada como um custo, a qualidade aparece como um
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investimento”.88 Não basta consumir, o prazer está em consumir qualidade.


Na fase III da economia de massa, o consumo atinge seu ponto de
saturação, e é remodelado sob o signo do indivíduo, que se torna um
“turboconsumidor”. Não há mais limites para o consumismo.

“O que está em ação é um processo de organização de um universo


hiperconsumista em fluxo estendido, funcionando ininterruptamente dia e noite,
365 dias por ano. Da mesma maneira que o capitalismo desregulamentado e
globalizado se tornou ‘turbocapitalismo’, somos testemunhas da emergência de
um ‘turboconsumismo’ estruturalmente liberto dos enquadramentos espaço-
temporais tradicionais”.89

O consumismo contínuo se identifica com um consumidor apressado, para


quem o fator tempo é determinante. O mercado naturalmente precisa se adequar às
necessidades desse “turboconsumidor” e ficar atento à individualização das escolhas.
Os critérios sócio-profissionais para o consumo perdem sua força e todos têm direito
e acesso ao consumo, ao supérfluo, ao bem-estar. Fica para traz o consumismo
piramidal, de classes, e ganha força uma nova fragmentação do consumo, estruturada
em subgrupos ou redes. As diferenciações se efetuam a partir da multiplicidade de
critérios, sejam eles de idade, de música, de esportes, de projetos de vida, de

87
LIPOVETSKY, G., Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, pp. 81-82.
88
Ibid., p. 92.
89
Ibid., p. 109.
42

etnicidade, de orientação sexual.90 Embora a juventude seja o estereótipo específico


da sociedade hiperconsumista, surgem alvos comerciais específicos em todas as
faixas etárias. A criança ou o pré-adolescente, por exemplo, passam a exercer uma
influência cada vez maior nas compras. Foi-se o tempo, também, em que os idosos
eram sistematicamente negligenciados, descartados pelas políticas comerciais. Livre
do imperativo do trabalho, absorvido apenas pelas preocupações com o corpo e a
saúde, viagens e saídas, prazeres privados e familiares, o aposentado representa uma
figura perfeita do indivíduo hiperconsumidor.91 A bulimia consumista já não é
interrompida pela idade.
Esse desenfreado processo de consumo não está isento de um paradoxo
que suscita preocupações constantes. Se, por um lado, se amplia o princípio de pleno
poder sobre a direção da própria vida, por outro lado, as manifestações de
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dependência e de impotência subjetivas se desenvolvem num ritmo crescente.92


Somos livres e ao mesmo tempo acorrentados.

“O estágio III pôs em órbita um consumidor amplamente emancipado das


imposições e ritos coletivos. Mas essa autonomia pessoal traz consigo novas
formas de servidão. Se ele está menos submetido aos valores conformistas, está
mais subordinado ao reino monetizado do consumo. Se o indivíduo é socialmente
autônomo, ei-lo mais do que nunca dependente da forma mercantil para a
satisfação de suas necessidades. Considerados um a um, os atos de consumo são
menos dirigidos socialmente, mas, juntos, o poder de enquadramento da
existência pelo mercado aumenta. A influência geral do consumo sobre os modos
de vida e os prazeres amplia-se tanto mais quanto impõe menos regras sociais
coercitivas”.93

Glorifica-se a autonomia subjetiva, a libertação de toda imposição ou


determinação de classe, onde o indivíduo tinha “seu lugar”. No entanto, não passam
despercebidas as implicâncias desse processo libertador. Embora teoricamente
liberto, o indivíduo hipermoderno torna-se escravo de suas próprias buscas e
necessidades, geralmente suscitadas a partir de fora. Nesse sentido, a mídia tem um
papel determinante, como meio de suavização das “imposições” consumistas, bem
como de propagação de novas “necessidades”, constantemente renovadas.

90
Ibid., p. 118.
91
Ibid., p. 122.
92
Ibid., p. 127.
93
Ibidem.
43

e) O papel propagador da mídia

Ao abordar a atuação dos meios de comunicação na sociedade


hipermoderna, Lipovetsky evita fazer aquelas duras e inúteis críticas que muitos
outros fazem. Primeiramente, ele nos lembra que a mídia não surgiu com uma missão
altruísta, mas sempre seguiu a lógica do mercado, o que naturalmente condiciona sua
atividade comunicativa, criando prioridades e relevando aquilo que menos lhe
interessa.

“A imprensa não é orientada somente por um ideal de objetividade e de


transparência. Na verdade, desde suas origens segue uma lógica comercial e
competitiva. Como o objetivo é vender a informação para o maior número de
pessoas, a mídia, com toda naturalidade, dá destaque aos títulos chamativos, ao
impacto de choque, ao jamais visto, à dramatização emotiva. O ideal de
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integridade e de responsabilidade moral é algo positivo, mas muito impotente


para constituir um obstáculo às forças do mercado e à dinâmica da informação,
que leva a privilegiar o que é novo e insólito”.94

Nessa lógica, a mídia busca estar sintonizada com aquilo que atrai e
encanta o sujeito em cada tempo histórico. Atenta aos índices de audiência, ela
procura ser atraente, chamativa, impactante, não necessariamente com a má intenção
de enganar, iludir ou explorar, mas com o intuito de manter ligado aquele que não é
apenas um sujeito a ser informado, mas um potencial cliente. A informação, então, é
veiculada sempre de uma maneira atraente e inovadora. E, embora seja perceptível
um esforço em busca de uma atuação mais comprometida com a ética, engana-se
quem pensa que a imprensa sensacionalista está em vias de se refrear. Segundo
Lipovetsky, a corrente ética poderá seccionar ainda mais a galáxia midiática.95
Mesmo que se atribua à mídia uma grande responsabilidade pelo fracasso da
informação, ela irá sempre justificar seus erros, buscando resguardar o supremo
direito da informação.
Pela sua poderosa influência popular, a mídia é reconhecida como o
“quarto poder”. Mesmo sem impor claramente, ela pode favorecer no público
comportamentos bons ou maus, responsáveis ou irresponsáveis. Também é

94
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 215.
95
Ibid., p. 216.
44

perceptível na mídia a “febre ética” presente nos mais diversos recantos da sociedade
atual. “A demanda de uma informação responsável caminha paralelamente à falência
de todas as religiões seculares”.96 O anseio por uma mídia mais imbuída de valores
éticos e responsabilidade social revela o reconhecimento do poderio midiático, que
não pára de crescer. Numa época onde tudo é “hiper”, nos deparamos com a
“hipertrofia midiática”, onde o essencial é “ver tudo” o mais rapidamente possível,
como se fosse possível abolir a distância entre os fatos e sua representação na tela. No
império do presente, como vimos anteriormente, tudo é instantâneo, “ao vivo”.
Reconhecidamente, a mídia influencia comportamentos, nem sempre
edificantes e humanizantes, ajudando, assim, a configurar uma sociedade
problemática. No entanto, temos que reconhecer também sua positiva contribuição
para a sociedade humana. Aos olhos de Lipovetsky, na história do individualismo
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moderno, a mídia desempenhou um papel emancipador fundamental, ao difundir pelo


conjunto do corpo social os valores hedonistas e libertários.

“Ao sacralizar o direito à autonomia individual, promover uma cultura relacional,


celebrar o amor ao corpo, os prazeres e a felicidade privada, a mídia tem sido
agente de dissolução da força das tradições e das antigas divisões estanques de
classe, das morais rigoristas e das grandes ideologias políticas”.97

A moda, como inovação constante, e a lógica midiática, com


entretenimento constante, se relacionam e caminham juntas em nossas sociedades.
Com seu poder sedutor, a mídia tem grande influência no surgimento de novos
valores, sintonizados com a lógica das sociedades hipermodernas.
Além destes aspectos que apontamos, vários outros poderiam ser
apresentados para descrever essa nova configuração social, à qual Lipovetsky
denomina “hipermodernidade”. A religiosidade, por exemplo, assume uma
caracterização própria, sintonizada com a lógica consumista e sedutora, onde o fiel é
um “consumidor”, que em sua liberdade de escolha busca aquilo que mais o satisfaz.
Compreende-se, assim, porque a espiritualidade dos tempos atuais é
fundamentalmente emocional, pouco comprometida e exageradamente intimista.

96
Ibid., pp. 211-212.
97
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p.42.
45

Assim como a Religião, também o Estado, a educação, as estruturas e instituições


acabam por serem lapidadas segundo a lógica hipermoderna, onde o indivíduo tem a
centralidade, conseqüência do marcante processo de personalização. A arte, a moda, o
humor, e tantos outros aspectos, contribuem significativamente para a nova
fisionomia social hipermoderna.

1.2. Da soberania do dever à autonomia ética

Propomos aqui uma breve reflexão acerca das significativas mudanças


sociais no âmbito ético. Primeiramente é importante enfatizar que a configuração
sagrada da moral, de caráter essencialmente religioso, marcou fortemente a cultura
pré-moderna e moderna. Ainda hoje são perceptíveis sinais que revelam a incidência
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de uma ética religiosa sujeita ao imperativo do dever. Com as sucessíveis


transformações no âmbito das relações humanas, mudaram significativamente os
comportamentos. A moral do dever, como imposição externa, perdeu espaço para
uma moral mais personalista, onde o critério determinante é o próprio sujeito e seus
“direitos subjetivos”.
O segundo aspecto que abordaremos é exatamente essa mudança: o
crepúsculo do dever de um lado e a aurora da liberdade de escolha de outro lado.
Concomitante à chegada da modernidade e o estabelecimento de uma sociedade
democrática, os condicionamentos morais religiosos perderam grande parte de sua
influência. No entanto, embora a predominância do valor da escolha pessoal, o caráter
de “dever” continua a fazer parte da moral na modernidade, só que a partir do próprio
indivíduo. Por fim, o passo definitivo é a instauração da sociedade do pós-dever,
configuração própria de uma época em que o sujeito humano se reserva o direito de
rejeitar tudo o que não o realiza ou que vai contra sua liberdade. É improvável
sacrificar-se, a não ser por si mesmo, em vista de algo mais realizador.

1.2.1. A moral do dever e seu caráter originalmente religioso

O ser humano é vocacionado a viver em sociedade. No entanto, sempre foi


um grande desafio superar os conflitos inerentes a essa vocação, buscando conviver
46

em harmonia. Desde muito cedo, faz parte da história humana a disseminação de


valores morais e princípios éticos, no intuito de normatizar os relacionamentos
humanos. Além das relações interpessoais, o indivíduo também cultiva,
historicamente, um relacionamento com o transcendente, que extrapola sua realidade
terrena. A dimensão religiosa é, assim, uma característica marcante do ser humano.
Nas épocas pré-modernas, religião e moral eram intrinsecamente unidas e não se
podia concebê-las separadamente. A moral era essencialmente teológica, isto é, Deus
era a fonte determinante de todo agir humano, o alfa e o ômega da moral. Sem o
temor a Deus só poderia haver vícios e extravios.98 O divino era o poder supremo, ao
qual todo ser humano estava submetido. É inegável que, dessa forma, a religião
detinha em suas mãos um inquestionável controle social.
Essa marcante incidência do fenômeno religioso na vida do ser humano
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colaborou para que, historicamente, as sociedades se organizassem teocentricamente,


concebendo a Deus como fonte suprema da moral.

“No período anterior ao século das Luzes, irradiava-se a idéia de que, sem o
Evangelho e a crença em um Deus que pune as faltas e recompensa as virtudes,
nada seria capaz de frear o homem na senda dos crimes. Despojadas da religião,
as virtudes são algo ilusório: somente a revelação e a fé num Deus justiceiro são
capazes de assegurar eficazmente a moralidade”.99

Reinava uma moral de caráter estritamente religioso, onde a fé se revelava


como virtude necessária para o bem-viver. O homem não encontrava em si mesmo,
mas em Deus, as luzes necessárias para conhecer e praticar aquilo que é moralmente
certo e justo. A moral extrapolava o âmbito dos relacionamentos humanos, fazendo-
se presente também no culto que o homem devia prestar a Deus. Era prioridade
absoluta consagrar-se ao serviço de Deus, enquanto os relacionamentos humanos e os
deveres para com o próximo eram secundários. Diante da concepção de que não há
virtude possível sem conhecer e amar ao verdadeiro Deus, o que deve levar à prática
da virtude não é o respeito moral ao homem, mas o desejo e a glória do Altíssimo.100

98
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 01.
99
Ibid, p. 08.
100
Ibid, p. 01.
47

Deus, então, regra a própria vida do homem, por ter em mãos o poder de premiar ou
castigar, de acordo com as obras humanas.
Do pensar ao agir, o dinamismo religioso perpassava todas as dimensões
da vida humana, e a maneira de viver melhor e mais autenticamente a própria vida era
adequando-a aos desígnios de Deus. Todas as regras morais deviam estar baseadas no
ensinamento revelado e só tinham eficácia mediante a fé, sem a qual nenhuma virtude
tinha valor.101 Fomentada nos átrios religiosos, a moral se torna uma obrigação para
com Deus, assumindo os moldes de “dever”. O homem se torna capaz de praticar o
bem e promover a justiça na medida em que é impelido por Deus. Sem esse
“impulso” divino, o relacionamento humano bom e moralmente certo não seria
possível. Nessas circunstâncias, de submissão aos preceitos divinos, se condenava
veementemente toda moral dissociada da religião.
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Essa configuração primitiva da moral tem aspectos positivos também. Não


se pode negar que essa influência religiosa tenha sido importante no processo de
desenvolvimento histórico das sociedades humanas.

“Os processo civilizatórios precisaram domar o homem. Repressão e religião


foram instrumentos de domesticação dos instintos humanos ao longo dos séculos.
Fazer do animal homem um ser sociável e capaz de respeitar o outro exigiu uma
trajetória disciplinar de milênios. O homem é uma invenção da disciplina, do
imaginário e do controle que conseguiu impor-se a si mesmo como cultura. A
cultura é uma disciplina acumulada, mas é também a acumulação dos processos
de indisciplina e de renovação dos valores. Sem os mecanismos disciplinares,
quase sempre legitimados por uma idéia de transcendência – Deus quer, Deus
exige, Deus assim estabeleceu -, certamente não teríamos atingido o grau de
elaboração civilizatória e de autocontrole que alcançamos”.102

Essa “configuração sagrada” da moral prevaleceu ao longo de séculos,


mas não resistiu à modernidade. O processo de secularização da ética, desencadeado
a partir do século XVII, foi uma das mais significativas manifestações da cultura
democrática moderna. À irrupção da modernidade corresponde a elaboração de uma
ciência emancipada do ensinamento bíblico e a afirmação de uma moral emancipada
da autoridade da Igreja e da crença religiosa.103 A sociedade moderna pretendeu

101
Ibidem.
102
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, xv.
103
Ibid., p. 02.
48

“emancipar-se de Deus” em todas as esferas: social, política, cultural, jurídica. A


idéia da cultura cristã tradicional, de que sem Deus o homem é incapaz de ser
moralmente bom, é arduamente atacada pela ofensiva moderna, que propõem valores
estritamente laicos. Essa tentativa de organizar uma estrutura social e política com
base em princípios éticos não vinculados a confissões religiosas vinha sendo traçada
há mais de século.

“Desde o Iluminismo, os modernos tiveram em mente estabelecer os


fundamentos de uma moral que fosse independente dos dogmas religiosos, sem
recorrer a uma verdade revelada e sem os conceitos de castigo e prêmio em uma
vida após a morte. Essa ofensiva anti-religiosa estabeleceu a primeira vaga
moderna da ética laica que, a título de referência temporal, poderia ser situada
entre 1700 e 1950. Primeiro ciclo da secularização ética que, embora emancipada
de espírito religioso, compartilhava de um dos elementos-chave dessa visão: a
noção de dívida infinita, de dever absoluto”.104
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A pretensão moderna de libertar a ética dos preceitos religiosos não


significou ainda uma libertação do preceito do dever. O que se alcançou foi uma
independência da dimensão transcendente, até então ponto de referência para todo
agir humano. As democracias individualistas, em sua origem, reiteraram a obrigação
moral, os deveres do homem e do cidadão, e criaram normas disciplinares rigorosas e
repressivas no tocante à vida privada. A emergente modernidade democrática se
caracterizou como uma sociedade organizada segundo princípios de uma ética laica,
de base estritamente humano-racional. A paixão pelo dever inculcava nos indivíduos
o espírito de disciplina e de autocontrole. O esquema era o mesmo, mas a fé deu lugar
ao culto das virtudes laicas.

“Promovendo a máxima depuração do ideal ético, professando o culto das


virtudes laicas, enaltecendo o dever da imolação pessoal no altar da família, da
pátria ou da história, os modernos praticamente não romperam com a tradição
moral da renúncia a si mesmo, mas na verdade retomaram o esquema religioso
do caráter imperioso e ilimitado dos deveres. De fato, as obrigações maiores em
relação a Deus foram apenas orientadas numa outra direção, transferidas para a
esfera profana, e se metamorfosearam em deveres incondicionais para consigo
mesmo, para com os outros e para com a coletividade. Assim, o primeiro ciclo da
moral moderna funcionou como uma religião do dever laico”.105

104
Ibid., XXVIII.
105
Ibid., XXVIII.
49

Se antes toda moral era “preceito divino”, com a investida moderna a


obrigação moral não é mais uma prescrição que vem de fora, mas algo que provém
exclusivamente do solo profano da vida humana e social. E já que o exercício dessa
obrigatoriedade não exige um auxílio transcendente, Deus é dispensado. A renúncia
de si continua valendo, mas são outras as razões e os meios. O sacrifício religioso
toma outra direção: a família, o trabalho, a nação, o sindicato, o partido, etc. A
sociedade moderna afirma a virtude sem Deus, reconhecendo que “não é de modo
algum impossível que um ateu possa ter consciência moral”.106 Acreditando-se que,
mesmo sem a inspiração de uma crença religiosa, uma autêntica e eficaz vida moral é
um ideal plenamente atingível. Embora nem todos os elos entre moralidade e teologia
tenham sido rompidos, a conexão da ética com as verdades teológicas ficará cada vez
mais comprometida no século XX, com o desenvolvimento do positivismo, do
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neoceticismo, do ateísmo e do anticlericalismo.107 Para muitos pensadores modernos,


a moral se basta a si mesma, e Deus já não é o sustentáculo da moral, que pode ter
vida própria sem incutir temor dos castigos eternos.

“A dinâmica de reconhecimento social da moral auto-suficiente prosseguirá,


legitimando sempre mais amplamente o princípio laico-moderno da separação
entre o dever terreno e a vida eterna, mediante a rejeição de uma idéia de
moralidade que seja tributária de uma concepção religiosa de vida após a
morte”.108

A dinâmica pré-moderna da moral, submetida à esfera religiosa, tinha


como trunfo a crença na vida eterna. O viver era condicionado pela esperança de uma
recompensa justa após a morte. Boas obras seriam premiadas e más obras receberiam
castigo. Dessa forma, o medo tinha grande influência no “discernimento” humano.
Não foi sem resistências que se firmou uma moral autônoma, dissociada da
dependência a um Deus justiceiro e aos dogmas religiosos. Muitos pensadores se
viram às voltas com esse intento.109 Embora as idéias de inferno e punição eterna

106
Bayle apud LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista, p. 08.
107
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-Moralista, p. 09.
108
Ibid., p. 09.
109
Segundo Lipovetsky, na concepção de Locke, por exemplo, a tolerância não abarca os ateus; por
estes negarem a existência de Deus, no caso ficariam demolidos os próprios fundamentos da vida
moral e da vida civil. As obras de Bayle, por sua vez, semearam dúvidas acerca dos princípios da
moral e da religião, e foram atacadas por isso. Wolff escandaliza e é destituído de sua cátedra por
50

sejam criticadas por alguns autores, como Voltaire e Rousseau, a linha de pensamento
deísta permanecerá fiel ao imperativo de um “Deus que premia e castiga”, conceito
indispensável para obrigar os homens a honrar seus deveres, como nos relata
Lipovetsky.

“Em todo o decurso do século XVIII, os apologistas da religião cristã, em


oposição aos filósofos iluministas, afirmarão que, se a moral não se apoiar no
temor divino e na recompensa post-mortem, os homens perderão todos os freios,
e nada mais os impedirá de resvalar para o caminho dos vícios e dos crimes”.110

A rejeição da auto-suficiência da moral adentrou ao século XX. Entre


ataques e contra-ataques, o dogma da fundamentação teológica da moral foi
solenemente reafirmado, reconhecendo que a moral sem Deus não passa de “uma
fórmula sem conteúdo, incapaz de formar pessoas de bem, pois deixa os homens
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entregues a si mesmos, gerando revoltados, ladrões, assassinos e bandidos de toda


espécie”.111 Com excomunhões, julgamentos e críticas acirradas, essa posição
eclesiástica perdura até mais tarde112, quando se reforça a busca por um entendimento
entre os setores laico e católico da sociedade. A “moral sem Deus” deixa de ser
tachada de escola do crime para se tornar um caminho possível para a modernidade.
A prática da virtude não é mais vista unicamente como um privilégio dos crentes. O
mérito moral é reconhecido como fruto da responsabilidade pessoal humana. O ser
humano pode, sim, praticar o bem, sem que isso seja um “dever religioso”. No
próprio ambiente religioso ganhou força a concepção de que não são os jejuns, as
penitências e as orações que legitimam uma fé autêntica e verdadeira, mas a prática
da virtude.113 Embora se reconheça a importância das práticas religiosas para o sujeito

haver sustentado que os chineses haviam conseguido descobrir os princípios da verdadeira moral sem
o concurso da Revelação. Ibid., p. 10.
110
Ibidem.
111
Ibidem.
112
Em 1925, numa declaração da assembléia dos arcebispos e cardeais da França sobre ‘as chamadas
leis de laicidade’, consta a afirmação de que ‘o laicismo em todas as esferas da vida social é um erro
fatal para o bem público e privado’. Ibid., p. 10.
113
Na própria Sagrada Escritura encontram-se passagens que levam os pensadores deístas e muitos
cristãos a reconhecerem essa concepção. Podemos citar: Os 6,6: “Porque é amor que eu quero e não
sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”; Mt 9,13: “Ide, pois, e aprendei o que
significa: Misericórdia quero, e não o sacrifício”; Mt 12,7: “Se soubésseis o que significa:
Misericórdia é que eu quero e não sacrifício, não condenaríeis os que não têm culpa”. Fonte: BÍBLIA
DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus, 2002.
51

de fé, o esquema da “moral independente” obtém um triunfo histórico quando se


reconhece que a prática do bem, e de tantos outros valores cristãos, podem estar
presentes em qualquer pessoa, independente da fé.
A era moderna conseguiu fazer vingar a idéia de uma vida moral distinta
da fé, a igualdade de princípio.114 Assim, o caminho da vida ética está aberto a todos,
crentes e incrédulos, e a virtude não é privilégio único de quem tem fé, visto que ela
não provém unicamente do transcendente, mas é intrínseca à dimensão humana. Caiu
por terra, assim, o princípio de desigualdade que estabelecia uma diferenciação
hierárquica entre os crentes e os não-crentes. A obrigação do “dever extrínseco” é
superada na medida em que o núcleo do agir moral humano encontra sua
fundamentação no próprio sujeito e em suas circunstâncias. O homem moderno terá,
sim, deveres, que provém dele próprio, de seu ambiente, de sua realidade. E o
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exercício dessa obrigatoriedade já não irá exigir um auxílio transcendente nem uma
coerção do Céu.115 Suprimida, assim, a desigualdade, socialmente institucionalizada,
entre crentes e não-crentes, a responsabilidade humana se libertou da tutela religiosa.

“Libertada da roupagem religiosa, a responsabilidade moral do homem deixou de


ser formulada em termos de acepção perfeita e acabada, e foi idealizada no
contexto de uma nova economia da dependência profana, do determinismo social
e da descaracterização subjetiva”.116

A dependência continua, não mais em relação ao transcendente, mas em


relação à própria realidade profana, laica. Nesse processo de secularização da moral
não se afirma simplesmente uma “moral independente”, mas se configura a
preponderância das obrigações éticas sobre as obrigações religiosas. Tal constatação
revela que, para os modernos, a ética enunciou-se como uma escala de valores
superior à própria religião, embora não contrária a essa. Segundo Lipovetsky, “a
exigência ética suplantou a adoração mística, os deveres para com os homens
passaram à frente dos deveres para com Deus”.117 Assim, o advento da modernidade

114
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 11.
115
Ibid., p. 08.
116
Ibidem.
117
Segundo observação de Lipovetsky, uma coisa é verificar a existência de um movimento de
emancipação da moral em face das crenças religiosas; outra, bem diversa, seria admitir, a exemplo de
seus promotores, que a moral possa encontrar sustento unicamente na razão, universal e invariável,
52

traz no bojo essa inversão histórica de prioridades: o dever humano, antes submetido
à religião, fica submetido à lei da razão moral, segundo a qual, as leis naturais estão
acima de qualquer outra lei exterior à realidade humana. Para os modernos, então, a
procura da felicidade, por exemplo, é a primeira e mais fundamental das leis naturais,
o que não o isenta de uma moral do dever, embora esse dever seja para consigo
mesmo.
Rejeitada a subordinação da moral à religião, a democracia foi tomando o
espaço de outras formas de poder e o homem moderno foi assumindo para si
responsabilidades fundamentais no decurso da história, reconhecendo-se como
condutor da sua própria vida. Sustentadas pela idéia de soberania individual e
igualdade civil, as sociedades modernas deixaram de lado os deveres provenientes de
Deus para abraçar os direitos emergentes dos homens. Se antes era Deus, agora o
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próprio indivíduo, com seus direitos subjetivos, é parâmetro para todo agir humano.

“A imemorial preeminência das obrigações para com Deus cede lugar à


preeminência das prerrogativas do indivíduo soberano. (...) Enquanto o indivíduo
se torna o mais importante referencial da cultura democrática, o fato moral
primeiro se identifica com a defesa e o reconhecimento dos direitos
subjetivos”.118

A centralidade moral deslocou-se do céu para a terra. O indivíduo é


soberano e são estritamente laicos os valores que conduzem a história humana,
embora não se pode negar que tenham uma raiz religiosa. No encalço da liberdade e
da igualdade, consagram-se os direitos subjetivos, e a felicidade, como direito natural
do homem, se torna a diretriz central da marcante cultura individualista dos tempos
modernos. Os modernos passaram a encarar a procura da felicidade terrestre como
“uma reivindicação legítima do homem perante Deus, um direito de cada
indivíduo”.119 Dessa forma, não se pode, em hipótese alguma, tolher do indivíduo
esse direito de buscar a própria felicidade, fundado naquilo que lhe parece mais apto a
alcançá-la. É a aurora da liberdade de escolha.

fora de toda e qualquer raiz cristã. Nisso reside o que se poderia chamar de ilusão original do espírito
laico. Esse aspecto será fortemente frisado, de modo especial por Nietzsche, que colocará os valores
morais laicos na continuidade milenar da mensagem cristã. Ibid., p. 12.
118
Ibid., p. 03.
119
Ibidem.
53

1.2.2. O crepúsculo do dever e a aurora da liberdade de escolha

Com a chegada da modernidade e o estabelecimento de uma sociedade


democrática, a centralidade da moral, antes transcendente, migrou para o próprio
indivíduo. No entanto, mesmo liberta da tutela da religião a moral não perde
definitivamente o caráter de dever: para consigo mesmo, com a família, com a nação,
com o trabalho, com o partido. Mesmo que a sociedade pós-moderna tenha como
características marcantes a liberdade individual e o desprendimento de qualquer
determinação extrínseca à própria realidade pessoal, o imperativo do dever continua a
reinar por mais de dois séculos nas sociedades democráticas. Mas lentamente vai
sendo superado um tempo onde prevalecia a ingrata exigência de vencer a si mesmo,
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de sacralizar as virtudes públicas e privadas, de exaltar os valores de abnegação e


mero altruísmo. Uma fase heróica, austera, categórica das sociedades modernas que,
segundo Lipovetsky, chega ao fim.

“Após a época da enfática glorificação do dever moral irredutível, entramos num


período em que tal conceito se tornou eufêmico e desacreditado. Desde a metade
do século XX, fixou-se um novo mecanismo social de avaliação dos critérios
morais que já não se apóia naquilo que era a mola mestra do ciclo anterior: o
culto do dever”.120

Não é mais reverenciado o sentido glorioso do dever da imolação, do


sacrifício supremo, da abnegação pessoal. Foge-se de todo comprometimento exterior
e almeja-se um viver desinteressado e não submisso a determinações e prescrições.
Quer-se a liberdade total. A palavra dever, antes poderosa e absoluta, já não suscita
encantos, mas rejeição. A submissão incondicional da vontade humana à lei deu lugar
a uma sincrética conciliação entre dever e prazer.

“A fórmula ‘é preciso fazer...’ cedeu lugar ao fascínio da felicidade; a obrigação


peremptória, à excitação dos sentidos; a proibição irretorquível, à liberdade de
escolha. A retórica sentenciosa do dever não está mais no cerne de nossa cultura;
em seu lugar, o que temos são os chamamentos à boa vontade, os conselhos psi,
as promessas de felicidade e de liberdade aqui e agora”.121

120
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 24.
121
Ibid., p. 26.
54

Desaparecem as injunções da moral e extingue-se a cultura do sacrifício


do dever. São os direitos subjetivos, a qualidade de vida e a realização individual que
impulsionam em larga escala nossa cultura, e não mais o imperativo hiperbólico da
virtude.122 Mesmo que não deixem de existir por completo, é evidente que o
rigorismo e o espírito de virtuosismo perdem espaço social. E toda tentativa ou sinal
de “revitalização” do imperativo do dever desperta reprovação e até indignação. Em
sociedades democráticas liberais, o moralismo nunca é visto com bons olhos.
Logicamente, isso não significa que o homem hodierno não seja ético. Há, sim, uma
significativa valorização da ética, desde que isso não demande uma imolação ou
sacrifício pessoal.
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“De fato, as implicações formais de renúncia e austeridade foram globalmente


remodeladas no sentido de normas que satisfaçam nossas apetências particulares
e anseios de realização íntima. A época atual derrubou a hierarquia moralista das
finalidades, e, uma vez que o prazer em boa medida se tornou um conceito
independente de regras morais, a noção de felicidade subjetiva passou a irrigar
em profundidade a cultura cotidiana”.123

A felicidade já era um ideal social no período do Iluminismo. No entanto,


estava sujeita a uma escala de valores de ordem mais elevada, que preceituava em
primeiro lugar a abnegação de si próprio. Na pós-modernidade, rejeitando qualquer
noção de sacrifício, nos orientamos pela liberdade de escolha, ávidos pelo bem-estar e
pelos prazeres que nos proporcionam uma noção de felicidade. Grande responsável
pelo fim da ideologia do dever, a civilização do bem-estar individual se identifica
com a era do consumo, tirando de cena todas as formas de entraves ao deleite. Com
isso, a busca pela felicidade tem caminho livre.

“A lógica do consumo de massa alterou o universo das prescrições moralizadoras


e erradicou os imperativos coativos, engendrando uma cultura em que a
felicidade se sobrepõe à ordem moral, os prazeres à proibição, a fascinação ao
dever”.124

122
Ibidem.
123
Ibid., p. 28.
124
Ibid,, p. 29.
55

A era do consumo engendra significativas transformações nas prioridades


humanas. Ao passo que estimula permanentemente o bem-estar individual, ela
aposenta a obrigação moral. O ritual do dever se torna algo impróprio para uma
cultura materialista e hedonista, baseada na auto-exaltação e no estímulo excitante do
prazer a cada minuto. Além do consumismo, diversos outros fatores (intelectuais,
filosóficos, socioculturais) também desempenham um papel essencial no processo
histórico de depreciação do referencial moralista.125 É um período que se caracteriza
pelo esforço em renegar o discurso alienante da moral, cerceador das liberdades, em
nome da liberalização individual e coletiva. E segue adiante a dinâmica de
depreciação e abrandamento do dever. No lugar das rígidas diretrizes morais, salta
aos olhos a obsessão psicológica e o máximo gozo do bem-estar. No encalço dessa
cultura de “felicidade acima de tudo” revela-se um condicionante: o imperativo
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narcisista.

“A era da felicidade de massa celebra a individualidade livre, favorece a


comunicação e multiplica as escolhas e opções ao infinito. Entretanto, isso não
equivale a dizer que nenhum padrão seja mais aceito. Com efeito, a cultura da
felicidade não seria concebível sem um conjunto de normas, de informações
técnicas e científicas que predispõem a um constante exercício de autodomínio e
de vigilância sobre si. Após o imperativo categórico, o imperativo narcisista é
celebrado sem trégua pela cultura saudável e esportiva, estética e dietética”.126

A felicidade individualista aparece indissociável do esforço de


manutenção e gerenciamento otimizado de si mesmo. De certa forma, a negação de
uma forma impositiva do dever dá margem para o surgimento de outra, talvez não tão
rígida, mas com força avassaladora sobre o indivíduo obstinado pela felicidade
pessoal. Por um lado se rejeita a cultura autoritária e puritana tradicional, e por outro
se dá margem a novas imposições: eterna juventude, saúde modelar, peso ideal, forma
perfeita, lazeres harmoniosos, sexo sem culpa; todas voltadas para a realização

125
Entre as décadas de 1960-1970, a difusão das idéias marxistas, freudianas, nitzcheanas e
estruturalistas deu especial relevo à negligência pela religião do dever. Em bloco, os problemas
referentes à revolução, às aspirações pessoais, à vida libertária ocuparam o lugar da retórica do dever;
os temas da livre manifestação individual e emancipação sexual tomaram a dianteira em relação aos
parâmetros de virtude; o referencial psi preencheu aquele espaço antes reservado à fraseologia
condenatória. Por todas as partes, grandes expressões inaugurais da crítica filosófica da modernidade
foram invocadas, citadas e comentadas, no sentido de levar ao descrédito os princípios autoritários e de
promover os valores liberais na vida particular. Ibid., p. 30.
126
Ibid., p. 33.
56

pessoal, adaptadas ao estilo de cada um.127 Se o trabalho, a busca da qualidade de


vida e a saúde continuam sendo os fatores de mobilização mais importantes para o
indivíduo, o prazer, por sua vez, não é mais excluído, mas se torna legítimo,
valorizado e incentivado. O sujeito escolhe o prazer. Diante disso, uma nova ordem
amorosa transformou por completo a moral sexual tradicional.

“Ao longo de meio século, cada vez mais o sexo foi sendo dissociado das noções
de mal e de pecado; uma vez que a cultura repressiva dos sentidos se
desacreditou, Eros se tornou uma das manifestações mais expressivas do mundo
do pós-dever. O que era sinal característico da infâmia adquiriu direito de
cidadania. O sexo-pecado foi substituído pelo sexo-prazer”.128

O Eros encontra legitimidade enquanto instrumento de felicidade,


podendo ser expresso sem constrangimentos nem restrições, desde que não
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prejudique a terceiros. Esse processo histórico de dissociação entre sexo e moral é


uma manifestação típica dos tempos de igualdade democrática. Desde a época do
Iluminismo, os modernos colocaram o apreço à felicidade terrestre no mesmo nível
dos demais prazeres da vida. No entanto, desde que o prazer perdeu seu elo com o
pecado, tal noção ganhou certa forma de embelezamento. Na escala de valores, ao
longo da história, a sexualidade passou por grandes transformações. No século XVIII
e XIX, o esforço de moralização e hierarquização dos prazeres classificou as formas
eróticas de deleite no ponto mais ínfimo, ao passo que os prazeres de natureza
intelectual e afetiva eram considerados mais nobres.129 No entanto, esse dispositivo
de discriminação não resistiu ao processo pós-moralista. Hoje, embora perdurem as
diferenciações de gosto ou preferências individuais, as diversas formas de prazer
gozam de uma idêntica legitimação, um idêntico direito de expressão, sem cair em
um relativismo ou liberalismo total.

“Tenhamos em mente que a extinção da cultura do dever e o enaltecimento social


dos direitos subjetivos à vida livre e consumada não induzem nem um pouco à
total liberdade orgiástica. O desenvolvimento do erotismo se opera sempre dentro
de limites estritos: é bem mais alardeado que praticado, bem mais estável que
inconstante, bem mais contido que paroxístico”.130

127
Idem, p. 34.
128
Ibid., pp. 36-37.
129
Ibid, p. 38.
130
Ibid., p. 41.
57

Nesse processo de liberalização dos costumes há, logicamente, muitas


atitudes em matéria sexual que não são aceitas.131 A autonomia da sexualidade em
relação às normas puritanas e imperativas não equivale a uma permissividade
coletiva. Nem a revolução sexual da segunda metade do século passado, nem o
individualismo hedonista foram capazes de “legalizar” todas as proibições. O que
parece claro é que não há mais uma moral sexual homogênea.

“O ímpeto dos valores individualistas solapou o consenso que havia na


demarcação entre o honroso e a desonra, o normal e o patológico. O neo-
individualismo inaugura uma zona cinzenta de fragmentação dos critérios morais
e dos múltiplos juízos de valor, os quais já não têm como esteio fundamental um
dever adstringente. A era pós-moralista não comporta mais exortações à prática
da moral, mas ainda aceita microexclusões de acordo com a livre escolha
pessoal”.132
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Não dá para identificar a expansão social dos direitos individuais à


permissividade desenfreada, à devassidão dos sentidos, às anomalias sexuais. Embora
as minorias sexuais ainda não sejam plenamente aceitas e respeitadas, tem crescido
significativamente a tolerância. A liberdade de escolha, reflexo de uma cultura que
superou o imperativo do dever, dá sempre uma nova caracterização à sociedade
humana, mas não elimina um flagrante paradoxo: a era da autonomia individualista
também é a da desestabilização generalizada, causa de estresse e de ansiedade
crônica. Quando é maior a possibilidade de escolha, maior é a fragmentação social.
Lipovetsky aponta o “retorno da fidelidade”, por exemplo, como expressão da
fragilidade narcísica contemporânea. Quanto mais Narciso se retrai sobre si, tanto
mais almeja uma vida compartilhada a dois.133 Com a sociedade do contra-dever, a
dinâmica histórica da autonomia individualista é desonerada da obrigação interior que
opunha certas formas de conduta individual. Os deveres se tornam direitos.

131
Cita-se, segundo o autor: o incesto, a exploração de menores, a prostituição, atos hediondos,
práticas sadomasoquistas, dentre outras. Ibidem.
132
Ibid., p. 40.
133
Ibid., p. 49.
58

“O processo pós-moralista transformou os deveres em relação a si mesmo em


direitos subjetivos, e as máximas obrigatórias da virtude em livres opções e
conselhos operacionais, a fim de obter o máximo de bem-estar das pessoas”.134

Sujeito à livre escolha, o indivíduo priorizará, inegavelmente, seu próprio bem-estar,


sem deixar, no entanto, de ter certos “deveres” para consigo mesmo. O liberalismo de
“fazer o que quiser com a própria vida” tem nítidos limites. O suicídio, por exemplo,
embora assuma uma nova fundamentação, não deixa de ser um ato indigno. Se antes
era violação dos deveres do homem para com Deus, transformou-se em delito social e
erro moral no tocante à própria pessoa.135 Mesmo liberto da conotação de pecado, o
suicídio continua sendo um comportamento imoral em si e por si. Suscita, no entanto,
mais compaixão do que rejeição.
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“Essa mudança nas atitudes e nas representações revela o desaparecimento da


cultura dos deveres individuais e, de forma correlata, o triunfo da lógica dos
direitos subjetivos em suas mais extremadas conseqüências”.136

Expressão da sociedade individualista pós-moderna, o direito de escolher


emana em todos os aspectos da vida humana. As famílias, mais submetidas aos
interesses pessoais do que a um dever moral, são fragmentadas, a la carte, ao gosto
pessoal. O sexo, como vimos, assume uma conotação mais livre, sem tabus ou
proibições. Os pais não abrem mão do direito de escolha sobre os filhos que terão, ou
não terão, e quando terão. A religião também entra na onda do self service. Até a
própria morte, uma das maiores preocupações humanas, tende a se reciclar na lógica
do direito subjetivo e das opções livremente aceitas e, como expressão última do
individualismo, ganham fôlego os debates sobre a eutanásia.137 É mais um exemplo
das contradições deste tempo que, por um lado afirma o direito de cada um dispor de
sua própria vida, e por outro lado redefine-se a proibição ética de proporcionar a
morte de uma pessoa, mesmo com o consentimento livre e consciente do paciente.

134
Ibid., p. 61.
135
Ibid., p. 62.
136
Ibid., p. 64.
137
Ibid., p. 66. Na França, a Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade foi fundada em 1980.
Desde que foi criada, reúne em seus arquivos mais de 30 mil adesões. No mundo inteiro, calcula-se um
total aproximado de 500 mil militantes, espalhados em mais de trinta associações do gênero, todas
vinculadas a uma federação internacional.
59

Esse embate revela que, para o homem de nosso tempo, o sofrimento físico tornou-se
algo psicologicamente intolerável, e a morte voluntária é vista como seu último ato de
liberdade.138 Em consonância com o processo de legitimação social da eutanásia,
como “declaração da vontade de morrer com dignidade”, vários outros aspectos
relativos à própria pessoa fazem eco, como a escolha do próprio corpo.

“Mudança de sexo, transformação do corpo em objeto de consumo e produção,


são outras manifestações que indicam que os deveres tradicionais estão perdendo
força. De modo concomitante, o direito à autodeterminação subjetiva e o direito
individualista à livre utilização do corpo obtêm aceitação crescente”.139

Cada um faz o que quer com o próprio corpo, indiferente às reações que
podem suscitar à sua volta. É apenas mais um aspecto nessa progressiva supremacia
do direito de cada um dispor de si mesmo sobre os ditames incondicionais. Revela-se,
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assim, a fragmentação do consenso moral e a relativização da idéia de dignidade


humana que se segue à diluição dos deveres individuais e à exacerbação dos direitos
subjetivos.140 A cultura moralista preceituava a dádiva de si e a observância do dever
a perder de vista. Agora não há mais deveres, e a esta nova configuração humano-
social, Lipovetsky chama de “sociedade do pós-dever”.

1.2.3. Sociedade do Pós-dever

Essa sociedade, que de um lado assiste o crepúsculo do dever e de outro a


aurora da liberdade de escolha, é a “sociedade do pós-dever”. É a configuração
própria de uma época em que o sujeito humano se reserva o direito de rejeitar tudo o
que não o realiza, ou que não leva em conta sua liberdade. Enquanto a noção de
sacrifício perde sua justificação social, as lições de moral são encobertas pelo fulgor
de uma vida melhor, do irradiante sol das férias de verão, do banal passatempo das
mídias.141 Ávido pelo reconhecimento de seus direitos subjetivos, o indivíduo não
aceita imposições e deveres. Nessa sociedade, o único fim legítimo são os valores
humanistas. Nada mais é capaz de reprimir o desejo, que é levado à sua exacerbação
138
Ibid., p. 68.
139
Ibid., p. 70.
140
Ibid., p. 74.
141
Ibid,, p. 27.
60

extrema. Segundo Lipovetsky, “a fruição do momento presente, o culto de si próprio,


a exaltação do corpo e do conforto passaram a ser a nova Jerusalém dos tempos pós-
moralistas”.142
Sepultada a religião das obrigações, ganha vida uma marcante desinibição
pessoal, onde o sujeito se deixa levar pelas ondas da auto-realização. O sexo, sempre
atrelado às noções de mal e de pecado, assume uma liberdade própria e se torna
objeto de consumo de massa, enquanto a cultura repressiva dos sentidos é
desacreditada. Assim, o Eros se torna uma das manifestações mais expressivas do
mundo do pós-dever.143 No entanto, esse grande impulso subjetivo não significa que a
sociedade pós-moralista esteja órfã de regulamentações sociais ou valores a serem
preservados. Embora o ritual do dever tenha perdido o “direito de cidadania”, os
costumes do sujeito individualista pós-moralista não mergulharam numa anarquia.
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“O bem-estar e os prazeres são exaltados, mas a sociedade civil anseia por ordem
e moderação: os direitos subjetivos dominam nossa cultura, mas ‘nem tudo é
permitido’. A dissolução do sistema moralista não conduz à devassidão total. O
neo-individualista é simultaneamente hedonista e regulamentado, sedento de
autonomia e avesso aos excessos, hostil aos mandamentos sublimes e também ao
caos ou às transgressões da libertinagem pura e simples”.144

Existem, claro, situações e atitudes imorais, visto que ganharam


importância fundamental nas opções e práticas do indivíduo pós-moralista o conforto
sem medida, a recreação, o sensacionalismo. Não significa, com isso, que estamos
livres de certas imposições. O “dever” continua presente e atuante, embora
dissimulado pelas vias da busca pessoal da realização constante e instantânea.
Lipovetsky ressalta o aparecimento de duas tendências contraditórias, atuando nos
diversos ambientes sociais: por um lado um hedonismo que exprime e acentua o culto
individualista do momento presente, impele aos prazeres imediatos e deprecia o valor
do trabalho. Por outro lado uma busca incessante da perfeição, da saúde e higiene,
numa gestão “racional” do tempo e do corpo.145 A essência do individualismo é
mesmo um paradoxo.

142
Ibid., p. 29.
143
Ibid., p. 37.
144
Ibid., p. 28.
145
Ibidem.
61

“Ante a desestruturação dos controles sociais, os indivíduos, em contexto pós-


disciplinar, têm a opção de assumir responsabilidade ou não, de autocontrolar-se
ou deixar-se levar. A alimentação é o melhor exemplo: nossa sociedade da
magreza e da dieta é também a do sobrepeso e da obesidade”.146

Na sociedade do pós-dever, a liberdade é imprescindível e os passos


humanos, antes submetidos ao “destino”, são condicionados pelas escolhas pessoais.
Mas essa mudança, aparentemente tão libertadora, tem um lado mais sombrio que
encobre a espiral para o niilismo, onde tudo é sacudido e posto em discussão.147 A
superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais é despedaçada e
torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro. Dissolvidos os
princípios e critérios absolutos, a cultura neo-individualista pós-moralista abala pela
raiz a noção do dever e acentua a exigência da liberdade e do aperfeiçoamento
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individual, em vista da felicidade pessoal.

“Em poucas décadas, passamos de uma civilização do dever a uma cultura da


felicidade subjetiva. As implicações formais de renúncia e austeridade foram
globalmente remodeladas no sentido de normas que satisfaçam nossas apetências
particulares e anseios de realização íntima. No período do Iluminismo, a
felicidade conseguiu impor-se como um ideal social. A época atual derrubou a
hierarquia moralista das finalidades, e, uma vez que o prazer em boa medida se
tornou um conceito independente de regras morais, a noção de felicidade
subjetiva passou a irrigar em profundidade a cultura cotidiana”.148

O sujeito é envolvido por uma frenética busca de realização. A sedução


tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus, e a publicidade é seu profeta.149
Como já vimos, a publicidade midiática e o consumismo tornam-se pilares
fundamentais da cultura pós-moralista, onde o indivíduo está sempre se satisfazendo
e, no entanto, está sempre insatisfeito. No mundo do trabalho a cultura pós-moralista
também produz efeitos inovadores. O antigo estilo impositivo é deixado de lado em
vista de uma harmonia entre os objetivos da empresa e a busca pelo bem-estar
individual dos funcionários. Em vez de tornar-se um empecilho, o subjetivismo pós-
moralista se torna mais um fator de competitividade na empresa.

146
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 21.
147
LYON, D., p. 95.
148
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 248.
149
Ibid., p. 31.
62

“Enquanto antes o que prescrevia regularidade e disciplina era a moral, hoje esta
é um instrumento de flexibilização da empresa. Antes havia um sistema de
autoridade, constrangimento e direção obrigatória, hoje há menos hierarquia e
disciplina, maior iniciativa, maior abertura às mudanças e à agilidade com vistas
a uma maior competitividade”.150

A artimanha da razão pós-moralista esvazia o princípio das obrigações,


visando uma maior dinamização e implicação dos homens na empresa. Fatores
psicológicos e relacionais passam a gerir o mundo do trabalho. A motivação para o
trabalho e uma maior responsabilização pessoal, sempre sujeita a uma compensação,
tornam-se protótipo de administração empresarial. Em sintonia com uma ética da
responsabilidade, não se fixam arbitrariamente normas de conduta. Essa se torna
desejável por estar conforme ao progresso de cada pessoa. O espírito de equipe é
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valorizado e os objetivos de competitividade das empresas são mais facilmente


alcançáveis na medida em que se incentivam as paixões individualistas de autonomia
e realização pessoal.151
Os valores e referenciais éticos, aparentemente tão raros na sociedade pós-
moralista, não estão de todo solapados do contexto das relações. A pós-moralidade
não é sinônimo de imoralidade. Essa hipertrofia do direito de cada qual viver só para
si é a fórmula do individualismo consumado152, onde não há obrigação de se dedicar
aos outros. No entanto, há elementos que possibilitam registrar a persistência de
ideais éticos em contexto individualista.

“Em primeiro lugar, o desaparecimento de uma moral incondicional não teve


como conseqüência a difusão de comportamentos egoístas no conjunto do corpo
social. Em segundo lugar, o relativismo de valores não contribuiu para o niilismo
moral porque perdura um núcleo duro de valores democráticos. E, por fim, a
perda dos referenciais tradicionais não resultou no caos social, dado que a
libertação individual não produziu uma anarquia total dos costumes”.153

A sociedade pós-moralista não supõe o desaparecimento de todos os


valores éticos, mas permite surgir novas regulamentações. Fascinada pelo frívolo e

150
Ibid., p. 247.
151
Ibid., p. 100.
152
Ibid., p. 108.
153
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 39.
63

pelo supérfluo, ela entrou em seu momento flexível e comunicacional, caracterizado


pelo gosto do espetacular e pela inconstância das opiniões e das mobilizações
sociais.154 As visões religiosas tradicionais estão cada vez mais sujeitas ao encontro
abrasivo com tendências modernas de secularização, conseqüência de um mundo em
que a escolha reina suprema. Quando tudo pode ser escolhido, acompanhamos o
surgimento de comportamentos e atitudes desprovidas de valores.

“Com o desmoronamento dos grandes discursos normativos acerca da moral,


assiste-se a fenômenos inéditos que participam de um individualismo
irresponsável: cinismo generalizado, recusa do esforço e do sacrifício
individuais, comportamentos compulsivos, tráfico de drogas e toxicomania,
violência gratuita, particularmente em relação às mulheres nas periferias urbanas.
O reino do hedonismo coincide apenas em parte com a era da tomada de
responsabilidade”.155
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Nesse contexto pós-moralista, onde a complexidade não permite


determinações exatas, a responsabilidade pessoal assume um papel determinante na
sociedade. A ausência do dever exterior gera uma inconstância no indivíduo: ao passo
que pode suscitar responsabilidade também pode justificar tanta hesitação, ansiedade,
dúvida e problemas. É o preço a ser pago pela sociedade que absolutizou o sentido de
escolha. Segundo Lipovetsky, essa sociedade pós-moralista se caracteriza como a
terceira era da moral.
A primeira fase, historicamente mais longa, foi a era teológica da moral,
inseparável dos mandamentos divinos.156 Como vimos anteriormente, esse esquema
moral funcionou até o começo do Século das Luzes, quando os modernos buscaram
estabelecer as bases de uma moral independente da Igreja e de qualquer
transcendência. Surgia, assim, a segunda era da moral, a laica moralista ou “moral
natural”, onde os princípios morais eram pensados em termos estritamente racionais,
universais, eternos, e, independente da religiosidade, estariam presentes em todos os
homens.157 Os modernos estabeleceram, assim, a preponderância dos imperativos
morais sobre as obrigações religiosas. Uma inversão de primazia fundamentada

154
Ibid., p. 40.
155
Ibid., p. 39.
156
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 24.
157
Ibid., p. 25.
64

principalmente na tolerância religiosa e no reconhecimento da liberdade de


consciência, como vimos anteriormente. Por fim, Lipovetsky nos situa na terceira
fase da história da moral, a sociedade pós-moralista, que exalta mais os desejos, o
ego, a felicidade, o bem-estar individual, do que o ideal de abnegação.

“Nossa cultura cotidiana desde os anos 1950 e 1960 não é mais dominada pelos
grandes imperativos do dever sacrificial, mas pela felicidade, pelo sucesso
pessoal, pelos direitos do indivíduo. Essa evolução se revela especialmente na
antes chamada esfera da moral individual, a dos deveres para consigo mesmo
(castidade, temperança, higiene, trabalho, poupança, interdição de suicídio). No
fundo, todos esses imperativos transformaram-se em opiniões livres, em direitos
individuais, tendo sido, no passado, pensados, ao contrário, como deveres
absolutos do homem para consigo”.158

O próprio autor assim complementa sua definição de sociedade pós-


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moralista:
“Sociedade pós-moralista quer dizer sociedade que se nega a inscrever em
caracteres de bronze os supremos deveres do homem e do cidadão ou a entoar
hinos de exaltação à renúncia pessoal. Isso não significa que os objetivos morais
tenham definhado. De fato, no mesmo momento em que a escola do dever
declina, testemunhamos por toda parte uma redescoberta da preocupação ética,
um reavivar da problemática e da ‘terapia’ moralizadora. As grandes odes
moralistas caem em desuso, mas a ética volta à ordem do dia”.159

Os grandes imperativos éticos são coisas de um tempo já passado. A


soberania do dever já ficou pra trás e, com reconhecida imponência, ganha espaço
uma ética mais subjetiva, mais autônoma, livre de parâmetros externos reguladores.
Falamos, assim, de um “retorno da ética”, como abordaremos mais adiante. Da
soberania do dever à autonomia ética, a sociedade se transformou consideravelmente,
e o ser humano se tornou hipermoderno. A sociedade hipermoderna, então, assume
contornos peculiares, e novos valores direcionam o sujeito humano a trilhar novos
caminhos.

158
Ibid., p. 27.
159
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 185.
65

1.3. Novos valores e novos caminhos

Na onda das constantes transformações, acentuadas com a pós-


modernidade e mais ainda na hipermodernidade, não há como impedir que mudem
também os valores, os princípios, as orientações que iluminam os pensamentos e a
prática do indivíduo. Sem partir simplesmente para a crítica, tão comum por parte de
tantos estudiosos, pretendemos mostrar, com o auxílio de Lipovetsky, quais são os
valores fundamentais e como a hipermodernidade os cultiva. Abordaremos, ainda que
parcialmente, como o modo de agir do homem hipermoderno configura novas
realidades, como a família, o trabalho, os relacionamentos interpessoais. Como
vimos, a dinâmica da pós-modernidade, refletida na cultura do “Eu”, se acentuou
consideravelmente com a hipermodernidade. Intensificou-se o processo de
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personalização, dando vigor à mudança da soberania do dever para a autonomia ética.


A sociedade pós-moderna se torna também pós-moralista, visto que o
homem pós-moderno rejeita submeter-se aos valores tradicionalmente cultivados. Os
deveres caem por terra ou se transformam em direitos subjetivos. A tendência de uma
sociedade liberta da tutela dos deveres e que preza pela liberdade de escolha
individual é que cresça a responsabilidade individual, o que nem sempre acontece.
Numa sociedade centrada no indivíduo e em suas buscas pessoais, ganha vigor uma
moral marcantemente subjetivista, e o “eu” torna-se parâmetro para todo
relacionamento interpessoal. Dessa forma, as instituições até então “sagradas”
assumem uma fisionomia mais personalista. Nos mais diversos ambientes desponta
uma renovação ética, marcantemente personalista e “indolor”. Não seria, segundo
Lipovetsky, um verdadeiro retorno da ética, mas a constituição de um minimalismo
ético, sempre sujeito à lógica hipermoderna do consumo e da sedução.

1.3.1. Individualismo e Moral Subjetiva

Em uma sociedade “self-service”, onde o imperativo moral social


enfraquece, aumenta a importância da responsabilidade individual, pois cada um se
torna co-autor de seu estatuto moral. Se por um lado o sujeito hipermoderno está mais
perdido e confuso, por outro lado está menos tutelado e, naturalmente, mais obrigado
66

a gerir seu próprio mundo como artista de sua própria escultura. Diante dessa
configuração social marcantemente personalista, pode-se dizer que o individualismo
não é uma opção, mas um caminho do qual o sujeito tem dificuldades para fugir.

“As idéias de soberania individual e de igualdade civil, parte constitutiva da


civilização democrática-individualista, exprimem os ‘princípios básicos e
inquestionáveis’ da moral universal, manifestam os imperativos imutáveis da
razão moral e do direito natural que não podem ser ab-rogados por nenhuma lei
humana. São ‘verdades evidentes por si’, e simbolizam o novo valor absoluto dos
tempos modernos: o indivíduo humano”.160

A moral laica, sustentáculo da modernidade democrática, eleva o


indivíduo à condição de valor moral primeiro e último, reconhecendo seus direitos
subjetivos e fazendo da felicidade pessoal uma obsessão. No encalço da busca pessoal
pela felicidade está a moral subjetiva, como diretrizes que apontam o caminho a ser
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trilhado. Individualismo e moral subjetiva são, então, duas realidades intrinsecamente


ligadas, que definitivamente excluem as rígidas imposições externas. As exigências
concernentes a cada pessoa não cessaram, mas agora se exprimem em meros termos
de escolha, vantagem, funcionalidade, apagando o lastro da retórica formal
obrigatória.161
Suplantada a cultura da obrigação moral pela gestão integral de si mesmo,
o reino do pragmatismo individualista ocupou o lugar do idealismo categórico.
Embora silenciadas as exigências de caráter absoluto no tocante à vida de cada um, a
cultura individualista contemporânea não autoriza toda e qualquer atitude,
restabelecendo certas restrições éticas.162 Lipovetsky acredita que, efetivando-se um
controle social heterônimo que leve em conta o interesse de cada indivíduo, é
possível criar novas regulamentações existenciais sem injunções de natureza
autoritária. O individualismo de nosso tempo é avesso a qualquer autoritarismo, e tem
como “lei fundamental” a realização pessoal, a busca pelo bem-estar, pela felicidade,
enfim, a satisfação individual. Tudo isso paralelo a uma aspiração sem precedente
pelo dinheiro, pela propriedade e pela segurança. Não podemos afirmar, no entanto,
que hoje o indivíduo seja mais individualista do que em tempos passados.

160
Ibid., p. 02.
161
Ibid., p. 61.
162
Ibidem.
67

“O indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o


homem hodierno – despudoradamente agora – não mais titubeia em pôr a nu o
caráter individualista de suas preferências. Pensar só em si não é mais tido como
algo imoral. O referencial do eu conquistou direito de cidadania”.163

Não causa espanto uma atitude individualista, um indivíduo que age


preocupado consigo próprio. É uma forma de socialização comum nas sociedades
atuais o indivíduo buscar ambientes onde se identifica e reforça sua individualidade.
É o desejo de estar entre idênticos, junto a quem compartilha as mesmas
preocupações imediatas e circunscritas, os mesmos objetivos existenciais. Segundo
Lipovetsky, a última figura do individualismo não reside numa independência
soberana associal, mas, sim, “nas ramificações e conexões em coletivos com
interesses miniaturizados, hiperespecializados”.164 Associações e sindicatos surgem
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com a finalidade de atenderem aos interesses de seus membros. Quando deles fazem
parte, os indivíduos o fazem por reconhecerem aí uma possibilidade de satisfação de
seus próprios interesses.
Nessa lógica individualista, o sujeito pertence primeiramente a si, e não há
princípio algum acima de seu direito de dispor até mesmo da própria vida. Claro está
que essa concepção é fruto de um considerável enfraquecimento da noção religiosa,
aliado à crescente legitimação dos valores da liberdade pessoal. Emancipados da
tutela da Igreja e das tradições, como já vimos anteriormente, os indivíduos ficam
mais entregues a si mesmos, e então a busca do interesse pessoal e a obsessão pelo
dinheiro o corroem tendenciosamente.165
Seria um erro enfatizar unicamente a face bruta do individualismo, não
reconhecendo também seus aspectos positivos. Paradoxalmente, o individualismo traz
consideráveis problemas, mas também apresenta um significativo avanço na busca da
autonomia individual.

“Quer na esfera individual, quer na esfera profissional, a autonomia


individualista tem revertido em alguma forma de desequilíbrio existencial. Se,
por um lado, a invectiva contra a burocratização tecnocrática e a exaltação da

163
Ibid., 107.
164
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, xxiii.
165
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 125.
68

responsabilidade individual e criativa merece encômios, por outro lado importa


ter em mente as novas contradições que daí procedem: mais independência,
porém com mais ansiedade; mais iniciativa, porém com mais exigências de
mobilização; mais valorização das diferenças, porém com mais imposição
competitiva; mais individualismo, porém com mais espírito de equipe e de
‘comunidade integrada’; mais exaltação do respeito individual, porém mais
injunções a mudar e a reciclar”.166

É difícil falar de uma maneira definitiva sobre o individualismo. Todo


processo de modernização ou inovação supõe custos significativos. Com o
individualismo não é diferente: há certezas e incertezas. Apesar das contradições, é de
fundamental importância buscar compreender as circunstâncias em que se dão as
transformações, antes de fazer um juízo. Segundo Lipovetsky, por um lado o neo-
individualismo é tolerante, mas por outro lado é severo em relação a tudo o que seja
uma afronta à pessoa. Quando a prioridade de cada um está voltada para si mesmo, é
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permitido pensar e agir livremente, desde que não cause danos a terceiros.167 Essa é a
lógica do individualismo de nosso tempo, um misto de tolerância e precaução. E o
paradoxo se fortalece.

“No momento em que impera o culto do ego é que os valores da tolerância


triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos
outros atinge sua consagração suprema. A consciência individualista é uma
mescla de indiferença e repugnância pela violência, de relativismo e
universalismo, de incerteza e imposição absoluta dos direitos do homem, de
abertura às diferenças ‘dignas de consideração’ e recusa às diferenças
‘inadmissíveis’. O relativismo total é apenas uma posição teórica defendida em
panfletos e dissertações filosóficas. Na realidade social, a flutuação das
convicções assinala a margem a partir da qual o núcleo mínimo da ética
democrática se vê ameaçado”.168

A cultura neo-individualista está vinculada aos valores da liberdade


pessoal. Tudo o que vai contra esse princípio, é rechaçado. Significa que a tolerância
individualista pós-moderna não implica renúncia de todas as convicções. Há, por
exemplo, considerável respeito pela opção religiosa, mas não são bem vistas as
práticas que cerceiam a liberdade, pondo em risco a dignidade humana em nome da
religião. Em matéria de sexualidade e vida familiar a tolerância é ampla, mas

166
Ibid., 254.
167
Ibid., 127.
168
Ibid., p. 127.
69

comedida quanto a certos comportamentos exagerados. Muito valorizados pelo


individualismo, os valores da tolerância e do respeito ao outro nunca se manifestaram
tão intensamente quanto em nossa época, ocasionando uma repulsa generalizada ao
emprego gratuito da violência.169 Ou seja, nossa época, hipermoderna, pós-moralista,
neo-individualista, não abre mão dos valores éticos que visam “proteger” a pessoa.
Claro está, dessa forma, que a promoção dos direitos individuais não conduz à
tolerância absoluta e unânime. O individualismo prossegue sua escalada,
“reivindicando o direito de dizer o que bem se entende, menosprezar o que se queira,
‘negar’ qualquer realidade, ainda que se trate de um fato histórico evidente”.170 Ao
passo que certas proibições se dissipam, marcados pela lógica da personalização
surgem e se fortalecem novos valores sem, no entanto, abandonar outros
tradicionalmente vitais. Encontra-se a caminho uma importante renovação ética.
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1.3.2. Renovação ética, ética “indolor” e minimalismo ético

Diante de uma realidade social hipermoderna, onde as constantes


transformações e inovações deixam o sujeito perdido, sem “porto seguro”, é comum
pensar que os valores éticos desapareceram. Evitando um olhar cético, Lipovetsky vê
na “derrocada dos valores” não mais que uma mudança vital na maneira de pensar e
agir do homem atual. No embalo do processo de personalização, como já vimos, e
imbuído de uma cultura individualista-narcisista, o indivíduo abandona valores
tradicionalmente importantes e assume novos valores, centrados no “eu”, o que não é
equivalente à barbárie. Segundo o autor, “é uma atuação em favor dos valores
humanistas, que remete à definição de novas linhas éticas demarcatórias, em face dos
poderes acrescidos da ciência”.171 O maior beneficiário dessa renovação ética é o
sujeito humano, não mais um mero cumpridor de imposições ético-morais.
Neste sentido, agir eticamente correto é agir em vista da própria realização
e bem-estar. Essa nova maneira de se reportar aos valores não se inspira nas formas
religiosas tradicionais, mas aceita e preserva seus referenciais humanistas. Constata-

169
LIPOVETSKY, G., Os Tempos Hipermodernos, p. 38.
170
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 129.
171
Ibid., p. 70.
70

se que, após um período de relativo ocaso, a ética é reconduzida ao pedestal, mas não
se trata precisamente de uma volta idêntica ao que era antes, e sim de “um
distanciamento do sistema em que a moral funcionava no passado, uma diferença no
registro social dos valores”.172 Não seria um retorno, mas uma renovação, que traz em
si uma novidade própria que diferencia substancialmente os valores ético-morais
atuais daqueles tradicionais. Na cultura individualista pós-moralista a renovação ética
encontra uma de suas mais típicas manifestações, que lhe dá um impulso vital.

“Embora a ética tenha readquirido foros de legitimidade, não houve uma


reinstalação da antiga e sólida moral de nossos antepassados no cerne da vida
social, mas apenas a emergência de uma regulamentação ética de um gênero
inusitado. A própria efervescência do zelo caritativo e humanitário constitui uma
forma de exteriorização do obscurecimento do senso do dever, pois é sob a
roupagem da velha moral que de fato se insere o sistema pós-moralista de
funcionamento social. Aquilo que muito impropriadamente se denomina de
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‘retorno da moral’ serve apenas para acelerar a saída da época moralista das
democracias, já que se trata do estabelecimento de uma ‘moral sem obrigações
nem sanções’, segundo as aspirações da massa, que se mostra inclinada por um
individualismo-hedonista democrático”.173

Esse “retorno da moral” significa uma ética desligada do dever irredutível,


da imposição severa, da imolação ao próximo, ao trabalho, à família, à nação, da
supremacia do esforço sobre as benesses da fruição. Lipovetsky lembra que somos
ávidos por regras justas e equilibradas, mas sem renúncia pessoal: “queremos
regulamentações, não imposições; ‘especialistas’, não fiscais da moral”.174 Enquanto
uma ética de natureza obrigatória causa repulsa, uma “ética do sentimento” evita
tolher a liberdade do indivíduo com normas extrínsecas.

“Não há dúvidas de que alguns sinais indicativos da ordem moral ainda


perduram. Porém, isso não é suficiente para concluir que haja um retorno da
ordem moral, sendo muito mais evidente o fato de que a sociedade atual é
arrastada pelos vagalhões de um processo sistemático de anemização e
desmoralização do espírito do dever. Contudo, também não paira dúvida acerca
da existência de um renovado interesse pelas questões de ordem moral. Essa
renovação ética deve ser entendida como um ímpeto de moral individualista e
indolor, não tendo nada a ver com o restabelecimento de uma moral pautada pelo
sacrifício. Abnegar-se? É impossível ignorar o descrédito em que caiu esse ideal.

172
Ibid., xxvi.
173
Ibid., p. 105.
174
Ibid., p. 26.
71

Sacrificar-se por uma causa superior coletiva? Não se acha mais quem defenda
isso”.175

Esse reaparecimento da ética rejeita toda lógica do dever, do imperativo


categórico, do cerceamento da liberdade individual, ao passo que reflete uma
crescente valorização da ética nos mais diversos aspectos da vida social. É uma
característica própria do neo-individualismo cultivar novos valores éticos, desde que
isso não exija abnegação e sacrifício. Pelo viés da ética, as sociedades atuais buscam
se “proteger” de todo tipo de imposição que possa frear a caminhada individualista. O
autor nos lembra que, na sociedade pós-moralista, a ética não se reinstala como ideal
incondicional, mas “como expediente da sociedade liberal para conter os temores
suscitados pela excrescência das novas instâncias de poder, ora tecnocientíficas, ora
midiáticas”.176 Essa renovação ética instaura definitivamente a época pós-moralista,
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sobrepondo direitos e liberdades às obrigações morais. Ganha força uma demanda


ética não contrária aos interesses pessoais, mas favorável à promoção de um mundo
liberto das rígidas demarcações. Vejamos algumas expressões dessa renovação ética,
com suas características peculiares.

a) Moral Indolor e minimalismo ético

Está claro que o enfraquecimento da moral tradicional não significa uma


ausência total de valores morais. Em consonância com o processo de personalização,
a moral adaptou-se aos novos valores de autonomia individualista, assumindo um
caráter profundamente livre, emocional e indolor. É assim que Lipovetsky define essa
renovação ética.

“Por detrás de toda revitalização ética, vê-se o triunfo de uma moral indolor,
última fase da cultura individualista democrática, desvinculada, em sua lógica
mais profunda, tanto das conotações de moralidade como de imoralidade. (...)
Em nossos dias, o que desperta maior reprovação não é a norma ideal, mas sim
uma eventual reativação do conceito de dever absoluto, a tal ponto que o
moralismo ficou sendo equiparado, socialmente falando, ao terrorismo e à
barbárie”.177

175
Ibid., p. 136.
176
Ibid., p. 211.
177
Ibid., p. 27.
72

Essa moral indolor, libertada de toda imposição externa ao sujeito, é uma


reação evidente a qualquer imolação pessoal ou sacrifício. O sujeito aceita o desafio
da responsabilidade, mas rejeita tacitamente o dever incondicional. Assim configura-
se a fase do minimalismo ético, pleiteando uma ética compatível com o primado do
ego. Neste sentido, toda generosidade, solidariedade, compromisso social e
institucional, não são incompatíveis com o individualismo, desde que não sacrifiquem
o sujeito. Toda atitude moralmente correta intenta, também, uma satisfação pessoal.
Ética indolor e individualismo convivem pacificamente. Não desapareceu a caridade,
e sim o ideal de viver para o outro.

“Não é, portanto, o princípio do auxílio caritativo que perdeu sua justificação, e


sim o princípio de viver em benefício de outrem. O individualismo
contemporâneo não está em oposição antagônica com as obras de beneficência,
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mas só com o ideal de se doar a si mesmo. Há um desejo de ajudar os outros, mas


sem se comprometer em excesso, doando a si mesmo em demasia. Generosidade
vá lá, contanto que seja algo fácil e distante, sem ligação com esta ou aquela
forma superior de renúncia”.178

Em se tratando de caridade o individualismo pós-moralista concebe uma


dedicação restrita, principalmente em situações de urgência, em circunstâncias
excepcionais, quando o sentimental é atingido. Não se pode negar que o sujeito pós-
moralista, embora individualista, é sensível à solidariedade. Naturalmente, primeiro
ele se preocupa consigo mesmo, depois se importa com o outro, “naquilo que for
possível”. Ainda que denote uma forte tendência para a introversão, o individualismo
não elimina a preocupação ética, mas origina um altruísmo indolor de massa. Os
“shows caritativos”, por exemplo, são uma maneira individualista de sensibilizar com
causas nobres. Essa ética de urgência em favor dos deserdados, com suas numerosas
iniciativas, é o que resta “quando os grandes breviários ideológicos do progresso e da
revolução são abandonados, quando não se crê mais nas promessas da política, do
progresso e do Estado”.179
O sucesso da ética, nesse sentido, corresponde ao fracasso das ideologias
messiânicas, à falência das grandes representações do progresso e da história. Talvez
não fossem comuns tantas iniciativas solidárias quando se alimentava a esperança de

178
Ibid., p.109
179
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 32.
73

um mundo melhor a partir de uma nova forma de poder, idealizados nos partidos e na
revolução. O sucesso da ética minimalista se deve, também, à grande decepção do
sujeito com as estruturas sociais e políticas de seu tempo. No entanto, se antes o
comprometimento era um dever, hoje a solidariedade é expressão de uma
sensibilidade pessoal. A configuração de uma ética indolor traz consigo suas
preocupações.

“O grande perigo não se encontra na formulação de uma ‘ética indolor’, uma


‘ética sem dogmas’ ou de uma ‘moral à la carte’, mas nas reações
fundamentalistas, dos mais variados níveis, a essa desconstrução da lógica
disciplinar do trabalho e da obediência ao sagrado, à tradição, à família, às
instituições de controle e à religião”.180

Com o crepúsculo do dever, Lipovetsky não aponta para o


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desaparecimento total da idéia de dever, mas reconhece uma redução considerável da


retórica maximalista das obrigações e uma simultânea consagração do dever mínimo.
E dentre os grandes responsáveis pela disseminação dessa nova roupagem ética estão
os meios de comunicação de massa.

b) Ética midiática

O culto do dever sacrificial não é mais exaltado em lugar algum, nem na


escola, nem nos livros, nem mesmo na esfera política. No entanto, é interessante
perceber que a caridade, bem como os apelos à solidariedade, nunca alcançaram tanto
sucesso e espaço midiático. A moral emocional foi reciclada segundo as leis do
espetáculo.181 Com o grande poder de encantamento que tem, a mídia protagoniza a
difusão de novos costumes e práticas. Nesse sentido, a mídia é promotora de uma
nova configuração ética, suave e indolor.

“Agora, os ‘empresários da moral’ não são apenas as associações caritativas e


humanitárias, mas também as redes de TV e os astros da mídia. Quanto mais se
depaupera a religião do dever, mais consumimos generosidade; quanto mais os
valores individuais ganham terreno, mais proliferam e alcançam recordes de
audiência as encenações midiáticas das boas causas. A era pós-moralista não tem
o sentido de uma recusa do referencial ético, mas de uma superexposição

180
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, xxv.
181
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 28.
74

midiática dos valores, isto é, de uma reciclagem destes nas leis do espetáculo da
comunicação de massa”.182

Esse aggiornamento das técnicas de caridade ganhou visibilidade em


meados dos anos 1980, com monumentais concertos, mega-shows e maratonas
televisivas.183 É inegável que esse grande espaço midiático reservado às mais diversas
experiências solidárias tem como finalidade os interesses da mídia, obcecada pelos
índices de audiência. Temos que reconhecer, no entanto, que a onipresença midiática,
como nova instância de organização da realidade social, e associada a um poder de
irradiação sem precedentes, está na base do avassalador retorno da preocupação
ética.184 O novo humanitarismo caritativo dispensa a rigidez moral, sendo claramente
avesso ao espírito de disciplina, uniformização e imposição. Sempre num ambiente de
recreação, propaga a caridade por ocasião de grandes desventuras humanas. É uma
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bondade de ocasião, uma solidariedade epidérmica, sem engajamento ético. Seguindo


a lógica da sedução, o sujeito é convidado a uma atitude caritativa descomprometida.

“O momento presente é afim com a efusão sentimental de lágrimas, com a


dramatização da existência, com os elos espontâneos e autônomos do coração.
Fica bem longe aquele tom dominante do ‘ser-obrigado-a-fazer’. Com a
teatralização do Bem, a emoção hiper-realista do público eletrizado tomou o
lugar do idealismo da antiga obrigação categórica”.185

A caridade televisiva não origina compromisso, mas fundamenta e


estimula uma consciência ética efêmera e indolor. Não instaura um reavivamento das
virtudes, mas determina a vitória do consumismo individualista. Com um grande
poder de mobilização altruísta, a eficácia das campanhas midiáticas está condicionada
ao fato de que não entram na rotina, mas sempre despertam experiências novas. O
“engajamento” se dá de forma superficial, simplesmente emocional, sem
compromisso concreto. E quanto mais cômoda for a possibilidade de ser “solidário”,

182
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 110.
183
Bob Geldolf teve a idéia de pôr o rock a serviço do Terceiro Mundo, acossado pela fome. Assim,
uns quarenta astros de rock ingleses fazem o registro dos direitos autorais do disco sem finalidade de
lucro. Ibidem.
184
Ibid., p. 211.
185
Ibid., p. 113.
75

melhor. Se, por um lado, os órgãos midiáticos desencadeiam grandes ímpetos de


solidariedade, por outro lado acomodam e descomprometem os indivíduos.

“Enquanto a mídia motiva circunstancialmente o coração das pessoas, ao mesmo


tempo exonera de culpa as consciências e age de forma a desviar os indivíduos
dos hábitos correntes de socorro mútuo e benevolência ao próximo. O altruísmo
do pós-dever é acalentado pela distância. Assim, ficamos mais sensibilizados
com a miséria que a tela magnética faz chegar até nós do que com aquilo que
somos capazes de tocar com nossos próprios sentidos”.186

O impacto televisivo nos põe em contato com situações inesperadas e


distantes. Assim, muitas vezes sentimos mais pena de um desconhecido que esteja
sofrendo a longa distância, e cuja imagem apareça na TV, do que de uma pessoa em
condições idênticas, próxima de nós. A mídia não cria vínculos de responsabilidade,
nem propõe uma conduta moral, ela apenas comove, despertando um misto de pena e
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indignação. O sofrimento alheio aparece como algo intolerável, revelando um


conteúdo participativo nas desgraças do próximo. Mesmo comovido, o sujeito evita
sacrificar-se. Ciente disso, a mídia usa seu poder de comoção para alcançar suas
metas.

“Quanto menos espírito de sacrifício, maior a capacidade de angariar fundos. A


era do marketing humanitário e caritativo é pouco exigente em relação aos
indivíduos, entretanto, mais eficaz; pouco rigorista, entretanto, com maior
capacidade de ‘mobilizar’ as massas, ainda que só esporadicamente”.187

Sem ignorar os possíveis alcances caritativos, não há dúvidas de que toda


estratégia midiática voltada à solidariedade seja fortemente interesseira. Não somente
a TV, mas a maioria dos meios de comunicação procura vincular seu trabalho às
situações e realidades que despertam comoção e fazem “vender o produto”. Nesse
sentido, a onda ética adentra o mundo dos negócios.

c) Ética nos negócios

A onda de “revitalização” ética atinge também o mundo dos negócios,


onde as questões ético-morais ganham cada vez mais espaço. O interesse do cliente

186
Ibid., p. 115.
187
Ibid., p. 116 – nota de rodapé 06.
76

consumidor precisa ser levado em conta, sem abrir mão dos interesses empresariais.
Num tempo em que o indivíduo se mostra bastante sensível aos valores humanos, às
práticas inclusivas, solidárias, enfim, a toda iniciativa que lhe pareça de bom grado,
as empresas assumem a bandeira da preocupação social em seus negócios,
conquistando consumidores e admiradores. Surge, assim, a “responsabilidade social
da empresa”.188 Se na modernidade a empresa era regida pelo anonimato e pela
disciplina, a empresa pós-moderna assume uma nova configuração, buscando ser
“portadora de uma mensagem de sentido e valor humanos”.189 No entanto, seria
exagero dizer que as empresas se tornaram mais “humanas”, ou mais altruístas.

“Hoje, a grande empresa busca atingir um padrão de trabalho digno, um objetivo


nobre, algo que ultrapasse o mero âmbito do lucro; por isso, se faz dotar de um
‘giroscópio ético’, capaz de fornecer um sentido à atividade econômica. À
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medida que a concorrência econômica se acentua, as grandes firmas pregam


ostensivamente cartazes demonstrando sua preocupação com os valores, mais
como vetores de adesão e dinamização empresarial, como instrumento jurídico
capaz de atenuar a responsabilidade da empresa, do que como imposições
categóricas da ordem moral. A voga dos códigos e prescrições éticas nada tem de
vago idealismo; em seu núcleo mais interno, é fundamentada no princípio de que
a crença ética é algo essencial para o êxito comercial e financeiro”.190

Longe de refletir uma consagração ética, o despertar do interesse ético no


mundo dos negócios evidencia sua dimensão utilitarista. A moral torna-se um
instrumento que contribui para o sucesso da empresa. Foi-se a época em que era
constrangedor e desagradável para os negócios falar em princípios éticos e morais ou
em responsabilidade social. Numa visão liberal clássica, a ética aparecia como um
freio, um obstáculo à eficácia econômica, uma utopia contra-produtiva. Mas, nas
últimas décadas, “o respeito aos princípios da moral tornou-se o motor de uma
empresa eficiente, fazendo parte das necessidades do comércio e do próprio
capitalismo”.191 Hoje, içar a bandeira da ética nos negócios e falar em valores
humanos e princípios éticos é fundamental para toda e qualquer empresa encontrar
maior receptividade social. Ethics is good business.192 Em pouco tempo, a moral

188
Ibid., p. 221.
189
Ibid., p.224.
190
Ibid., p. 225.
191
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 43.
192
“Ética é bom negócio” - LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 228.
77

transformou-se em meio econômico, em instrumento de gestão, em técnica de


administração. Segundo Lipovetsky, “é provável que o marketing ético e social, tão
difundido hoje, desapareça quando o ar do tempo não estiver mais favorável à
solidariedade”.193 Seria, então, mais uma etapa dos inescrutáveis caminhos da
sociedade humana?

“O percurso atual da ética faz lembrar outros trajetos anteriormente realizados;


um favorecia a satisfação dos ‘desejos’, outro a consolidação das ‘estruturas’. Na
situação atual, o que confere valor e credibilidade ao discurso é a simples
renúncia da palavra mágica; hoje tudo pode ser vendido sob os auspícios da
ética”.194

Quem garante que a preocupação ética seja permanente? Seu sucesso no


mundo dos negócios está relacionado às promessas de eficiência, mas também a uma
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cultura sedenta de renovação. As regulamentações, preceitos e projetos empresariais


não são imutáveis, mas atualizados periodicamente, sintonizados com o diversificado
e instável universo econômico, onde tudo se ajeita às circunstâncias. É certo, no
entanto, que o desdém pelo parâmetro ético, na situação atual, torna-se um grande
equívoco e pode representar um custo alto para qualquer empresa ou instituição
social. Embora essa inovação ética no mundo dos negócios transforme
consideravelmente as relações comerciais e as estratégias empresariais, seria exagero
dizer que mudam os objetivos mercadológicos. A finalidade econômica da empresa
não muda.

“O patrocínio de iniciativas de interesse geral não desvia a empresa de seu


objetivo econômico, mas atesta um desejo de ampliar e otimizar a comunicação,
integrando-a em sua lógica de vetores, de alvos, de temas ainda ignorados. As
estratégias éticas são, antes de tudo, instrumentos de comunicação da superfície,
do poder e das modalidades de comunicação tendo como fim aduzir um valor à
marca. Sob o signo ético das iniciativas de interesse geral, a competição das
marcas e a investida sobre novos mercados prosseguem em sua ofensiva”.195

O parâmetro ético se torna mais uma arma nas batalhas comerciais, dando
uma nova “personalidade” à empresa, mais atenta às exigências dos consumidores.

193
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p. 51.
194
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 229.
195
Ibid., p. 240.
78

Numa época em que a qualidade dos produtos tende a se nivelar, a ética é mais uma
estratégia do mercado, que atua como instrumento de diferenciação e de
personalização da empresa, criando condições para sua boa aceitação social.196 Tantas
estratégias revelam uma obstinação sedutora por parte do mercado e marcam o
surgimento de um consumidor mais exigente. Mais do que oferecer inovações, com
qualidade e eficiência, é preciso transmitir confiança, ressaltando o senso de
responsabilidade social e ecológica das firmas. Nesse sentido chama atenção em
nossa época o “empenho” de tantas empresas em transmitir uma imagem de “empresa
ecológica”, empenhada em cuidar do meio ambiente.197 É importante para a empresa
criar novas alternativas de sedução, transmitindo uma imagem sintonizada com as
preocupações e problemas que assolam a sociedade. Se os consumidores e
protagonistas econômicos, de modo geral, fazem suas opções baseadas no nexo com
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valores e outras questões de interesse geral, seria um erro estratégico as empresas


ignorarem o critério ético.198

196
Ibid., p. 244.
197
Vide anúncio sobre Responsabilidade Socioambiental do Banco Bradesco, no Brasil: “Transformar
o mundo em um lugar melhor é tarefa de todos. Mas, para isso, é preciso mudar primeiro a consciência
humana. Ao longo dos tempos, o Bradesco se tornou uma das principais referências brasileiras em
comprometimento socioambiental e hoje é a instituição financeira que mais investe nessa área. Foram
anos na construção de valores que agora fazem a diferença. Atualmente, a organização ocupa na
sociedade um espaço que vai além da atividade comercial. Por meio de produtos, serviços e parcerias,
contribui para a formação de valores de todos que, mesmo indiretamente, participam do seu cotidiano.
Aperfeiçoar constantemente a qualidade no atendimento ao cliente faz parte dessa formação. Por isso,
no decorrer de sua história, o Bradesco consolidou sua base organizacional e tecnológica, criando
produtos e serviços com foco na sustentabilidade, evidenciando, assim, a importância do cliente.
Afinal, ele é o grande propulsor das ações do banco. No entanto, responsabilidade socioambiental é
mais que isso. É ter cidadania, é praticar a inclusão social, é contribuir com o meio ambiente. Em
1956, o banco plantou uma importante semente na tentativa de alcançar esses ideais. Nascia nesse ano
a Fundação Bradesco, considerada hoje o maior projeto social do país. Com essa iniciativa foi possível
oferecer a milhares de alunos de todo o Brasil um ensino gratuito e de qualidade. (...) O banco ainda
alinhou as eficiências dos serviços a uma atitude responsável em relação ao meio ambiente. O uso de
papel reciclado; a coleta seletiva de metais, vidros e plásticos; a utilização de sacos plásticos
biodegradáveis, são algumas das atitudes ambientais adotadas. Além disso, associa alguns de seus
produtos a iniciativas de auxílio ao meio ambiente. Um recente exemplo é o Programa
Ecofinanciamento de Veículos, uma parceria com a S.O.S Mata Atlântica, em que mudas de árvores
são plantadas a cada veículo financiado. Essas são apenas algumas das iniciativas do Banco Bradesco.
Mesmo participando ativamente desse compromisso, a Organização acredita que é preciso ir além,
fazendo sempre mais e aumentando sua contribuição na busca de um mundo melhor. Faça você
também a sua parte, afinal, cuidar do meio ambiente é cuidar da própria vida!” Fonte: acessado em 26
de agosto de 2008. In:
http://www.bradescorural.com.br/site/conteudo/resp_socioambiental/default.aspx
198
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 244.
79

Diante dessa visível preocupação com o meio ambiente, por parte de


empresas e instituições de interesses mercadológicos, a época pós-moralista
corresponde também à ascensão de uma “ética do meio ambiente”. A cidadania pós-
moderna é mais ecológica do que política, pois aspira cada vez mais a uma cidadania
“verde”.199 Sem abandonar o caráter “indolor” da renovação ética, a preocupação
ambiental ganha vigor sem exigir sacrifício humano. Também em relação à natureza,
mais do que deveres, o indivíduo tem direitos.

“Após as conquistas históricas dos direitos-liberdades e direitos sociais,


presenciamos o crescimento das reivindicações em favor do direito à qualidade
de vida, expressão característica do individualismo pós-moderno. É inegável que
a cultura ecológica e sua preocupação de responsabilidade para com as gerações
futuras representam uma estocada certeira na lógica do individualismo radical,
que subtrai o ônus da responsabilidade. No entanto, a mola propulsora da
‘consciência verde’ das massas será sempre a exigência individualista de viver
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melhor e mais tempo”.200

Embora ganhe notoridade a idéia de obrigação moral em relação ao futuro


do planeta, para a maioria das pessoas isso não implica um verdadeiro compromisso.
Seguindo uma moral minimalista, que não prescreve auto-renúncia nem sacrifício
supremo, basta evitar o desperdício, usar produtos recicláveis, consumir produtos
naturais, respeitar e cuidar dos espaços verdes e apoiar movimentos e redes de
solidariedade. São atitudes que não comprometem verdadeiramente, mas produzem
sentimento de “missão cumprida”, de “consciência tranqüila”.
A lógica industrial e consumista ganha vigor sob a bandeira da
responsabilidade ético-ambiental. O eco-consumismo propaga um novo estilo de
vida: produtos “bio”, higiene biológica, turismo “verde”, consumo ecológico. Longe
de revelar uma autêntica sensibilidade ecológica, essa reestruturação social é
possibilitada por três fatores: a dinâmica das paixões individualistas, os interesses
econômicos e a sutileza tecnicista.201 A ética do meio ambiente harmoniza ecologia e
economia, moral e eficácia, qualidade e crescimento, natureza e lucro. Com a
justificativa de respeito ao meio ambiente, se dá continuidade à concorrência

199
Ibid., p. 193.
200
Ibid., p. 195.
201
Ibid., p. 196.
80

econômica, e os valores vão sendo mobilizados e instrumentalizados a serviço dos


interesses do mundo dos negócios.202
Lipovetsky vê essa “renovação ética” a partir de quatro grandes fatores.
203
Primeiramente, uma sucessão de catástrofes, desastres e perigos, que acelerou a
tomada de consciência relativa à preservação do meio ambiente e do homem, bem
como a preocupação com as futuras gerações e o destino do planeta.204 Na esteira de
diversos escândalos, o modelo econômico neoliberal degradou a imagem da empresa
no mundo dos negócios. Diante da crescente desconfiança em relação ao universo
empresarial, a ética nos negócios desempenha um papel de legitimação e reabilitação
das empresas, estampando ambições de interesse coletivo e conquistando a fidelidade
do cliente.205 Um terceiro fator é a nova onda de marketing, que estimula e lança
produtos que respeitem o meio ambiente e melhorem a qualidade de vida das pessoas.
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A ética, assim, funciona como marketing dos valores, estratégia comercial e


comunicacional, um novo instrumento de valorização das empresas no mercado.206
Por fim está a promoção da cultura empresarial, com ênfase nos recursos humanos e
na mobilização dos empregados. Valorizando a autonomia e a responsabilidade dos
empregados, e dinamizando um clima de confiança interno, busca-se criar uma
imagem humana da empresa.207
Nessa flagrante renovação ética, a moral transformou-se em meio
econômico, instrumento de gestão, técnica de administração. Virtudes e valores estão
a serviço dos interesses vitais das empresas. Diferentemente do imperativo ético
tradicional, agora não se exige dos indivíduos devoção, doação de si ou sacrifício de
qualquer ordem.

202
Ibid., p. 198.
203
Dentre tantos, podemos destacar: a diminuição da camada de ozônio, a poluição atmosférica, a
emissão de gás de efeito estufa, a destruição da floresta amazônica.
204
LIPOVETSKY, G., Metamorfoses da Cultura Liberal, p.43.
205
Ibid., pp. 44-45.
206
Ibid., pp. 46-48.
207
Ibid., pp. 48-49.
81

1.3.3. Relações novas e valores novos

Na medida em que a centralidade de todo pensar e agir humano é o


próprio indivíduo, como vimos ao longo deste capítulo, novos relacionamentos vão
surgindo, impregnados de novos valores. Na pós-modernidade instaurou-se uma
profunda revolução nas relações interpessoais, onde o que importa é ser
absolutamente si mesmo, desenvolvendo-se independentemente de critérios externos.
O narcisismo e a indiferença são reflexos de uma sociedade que assiste ao crepúsculo
do dever, onde as pesadas armaduras ideológicas e institucionais, os costumes
tradicionais ou disciplinar-autoritários, bem como os princípios religiosos
imperativos, são substituídos e a vida cotidiana perde os referenciais seguros de
outrora. Os mais diferentes aspectos da vida humana são assolados por renovações
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constantes. Abordaremos, a seguir, alguns deles, onde o impacto se torna mais


visível.

a) A Família

Diante dos marcantes traços das sociedades contemporâneas, a família


assume uma nova configuração, distinta do modelo tradicional. Há um grande apreço
pela família, mas quase nenhum pelas normas incondicionais. Proliferam, assim, os
casos de divórcios e uniões livres, bem como o número de filhos gerados fora do
matrimônio, sem ver nisso algo destoante, mas como algo cada vez mais comum e
normal. Em benefício da realização pessoal íntima, esvaziou-se o culto às antigas
prescrições e foram suprimidos os deveres que limitavam os direitos individuais,
irrompendo uma nova ordem familiar.208 A idéia de se casar, conservar a união, gerar
filhos, não é mais vista como uma imposição obrigatória. A “validade” do casamento
está na realização pessoal que ele propicia. A família, assim, é uma instituição pós-
moralista, reciclada pela lógica da autonomia individualista.
Nessa situação, a procriação, quer era a principal justificativa para os laços
conjugais tradicionais, se libertou da submissão ao casamento. Não há mais o “dever”
de se casar para procriar, mas o “direito” individualista de gerar filhos, independente

208
LIPOVETSKY, G., A Sociedade Pós-moralista, p. 137.
82

do estado civil. Instaurou-se o reino individualista da geração de filhos e da livre


escolha do tipo de família.209 Se a ordem moral proclamava o primado da família em
face do indivíduo, com a nova ordem familiar, o indivíduo tem primazia sobre a
família.

“Longe de ser um fim em si mesma, a família tornou-se uma prótese


individualista, uma instituição na qual direitos e aspirações subjetivas
preponderam sobre as obrigações categóricas. Durante muito tempo, os valores
da autonomia individual estiveram sujeitos à ordem da instituição familiar. Essa
época foi superada. O extraordinário crescimento dos direitos individualistas
depreciou tanto as obrigações morais do casamento quanto a da prole numerosa.
Sem dúvida, os pais reconhecem que ainda têm deveres a exercer perante os
filhos, mas não a ponto de se acharem na obrigação de se manterem unidos por
toda a vida ou de fazer o sacrifício de seus interesses pessoais”.210

O consumismo, a multiplicidade de opções e alternativas de


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entretenimento e passa-tempos, as preocupações pessoais com estudo, trabalho,


relacionamentos, acabam por tornar cada membro da família uma ilha. Há pouco ou
quase nenhum convívio, e os costumes tradicionais de refeições, programas e
atividades conjuntas, enfim, aquele tradicional espírito familiar, é do “tempo dos
avós”. Diante dessa configuração familiar, há “famílias” que só têm em comum o
mesmo teto. Tão flexíveis são as características da família pós-moralista hodierna que
já é viável fazer a montagem ou a desmontagem da mesma segundo a preferência de
cada um. Para Lipovetsky, “aquilo que antes era uma instituição obrigatória
metamorfoseou-se agora em instituição de gênero emotivo e elástico”.211
Embora a antiga ordem familiar carecia de liberdade, e a família era
submetida a um modelo prescrito, com papéis pré-definidos, muitos valores que então
eram cultivados fazem muita falta hoje. A relação entre pais e filhos foi
profundamente atingida pela dinâmica neo-individualista, e hoje os filhos já não são
ensinados a honrar os pais, mas a buscar por vontade própria a felicidade, a procurar
uma vida independente, a escolher um rumo livre e as amizades de sua preferência.212
Houve uma transformação radical nas relações intrafamiliares: outrora os pais tinham

209
Ibid., p. 138.
210
Ibid., p.139.
211
Ibidem.
212
Ibid., p. 141.
83

a centralidade, agora tudo converge para os filhos. Segundo Lipovetsky, embora a era
pós-moralista enfraqueça os deveres em seu conjunto, ela amplia o espírito de
responsabilidade dos pais em relação aos filhos.213 Agora, os filhos têm mais direitos
e os pais mais deveres.

“A ingratidão dos filhos causa menos escândalo do que a indiferença dos pais em
relação a seus rebentos. A violência exercida contra as crianças passou a ser um
dos delitos mais graves, mais intoleráveis aos olhos da opinião pública”.214

Essa constatação se confirma com os inúmeros casos, amplamente


divulgados pela mídia, onde a irresponsabilidade dos pais é visível.215 Claro está que,
na cultura familiar pós-moderna a criança tornou-se o princípio-responsabilidade dos
adultos, um vetor primordial de reafirmação dos deveres. No entanto, essa ênfase nos
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deveres não significa uma freada brusca na hipertrofia individualista.216 Isso porque
esse gênero de obrigações paternas diz respeito à esfera privada, onde a obrigação
tem menos a ver com um imperativo categórico e inflexível e do que com um vínculo
emotivo. Lipovetsky não vê nisso uma “imolação” ou “sacrifício” por parte dos pais,
pois em suas obrigações não se vê qualquer pressuposto de mandamento impositivo
em relação a si mesmo: “realizar-se na vida também significa compartilhar alegrias,
constituir família, doar-se aos filhos, vencer o desafio de saber educá-los, sustentá-
los, fazê-los felizes”.217 A realização dos pais geralmente está condicionada à
felicidade dos filhos. Sua dedicação já não é concebida como uma renúncia de si
próprio, mas como instrumento integral de auto-realização, como uma necessidade de
ser útil, de amar e ser amado.

b) O trabalho

O trabalho é um dos aspectos que interferem diretamente no ambiente


familiar, muitas vezes obstaculizando uma verdadeira relação entre os sujeitos. Na era

213
Ibid., p. 142.
214
Ibid., p. 144.
215
Citam-se os seguidos casos de abandono de crianças recém-nascidas, bem como flagrantes de
violência e outros fatos que causam repugnância e revolta pública.
216
Ibid., p. 146.
217
Ibidem.
84

pós-moralista, constata-se que o trabalhador antes disciplinado se tornou um homem


flexível e o trabalho não é mais um dever, e sim uma necessidade em vista da
realização pessoal. A “liturgia da produtividade” foi celebrada com grande pompa por
todos os regimes, liberais ou totalitários, valorizando o trabalho bem feito, o esforço,
o dever de ser útil à sociedade, ao mesmo tempo em que se via a preguiça ou o ócio
como uma fonte de perigo, um “delito social”.218 Mas essa concepção do trabalho,
própria do século XIX, foi superada.219 Em consonância com os valores
individualistas e consumistas, ocorreram grandes mudanças no mundo do trabalho e o
trabalhador, antes peça de engrenagem, assumiu espaço maior. Depauperou-se, assim,
a ideologia moralista do trabalho.

“Cada vez menos a idéia de trabalho vem conjugada com a de um dever


individual e coletivo; já não se fazem as grandes exortações sobre a obrigação de
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trabalhar. Não se exaltam mais as virtudes da paciência e perseverança, quase


não mais se ensina a coragem do dia-a-dia nem o imperativo moral de ser útil à
coletividade ou a obrigação social de realizar sua ‘microscópica parcela de um
trabalho conjunto’, por menor que seja o resultado alcançado. O advento da
sociedade de consumo de massa e suas normas relativas à felicidade
individualista tiveram nisso um papel fundamental”.220

Em oposição à valorização do trabalho, propagou-se intensamente a busca


pelo bem-estar, pelo lazer, pelo tempo livre. As aspirações coletivas se deslocaram, e
a posse de bens materiais, o gozo das férias, a redução do tempo de serviço,
substituíram o ideal da vocação social do trabalho. O trabalho é importante na medida
em que garante as condições para uma realização pessoal, fora dele, claro. É o
trabalho que permite ao sujeito consumir. A antiga máxima do século XIX “viver
para o trabalho” foi substituída por outra: “a vida começa depois do trabalho”.221 O
final do expediente produz uma sensação de libertação e as férias são aguardadas

218
Ibid., p. 150.
219
Segundo Lipovetsky, naquele século, burgueses puritanos e espíritos laicos, socialistas e liberais
comungaram dos mesmos ideais do trabalho, declamaram todos o mesmo refrão “em honra do deus
Progresso, filho primogênito do trabalho”, nas palavras de Paul Lafargue. Os puritanos protestantes
tinham o serviço profissional em conta de um dever indicado por Deus ao homem, uma atividade em
honra da glória de Deus, o meio mais adequado para se ter certeza de receber a graça divina. As
diversas correntes republicanas glorificaram o trabalho, expressão cotidiana da solidariedade de cada
um em relação aos demais, imprescindível para a consecução do progresso indefinido da humanidade.
Ibid., p. 149.
220
Ibid., p.151.
221
Ibid., p.152.
85

ansiosamente. No entanto, como não dá pra fugir do trabalho, busca-se dinamizá-lo,


para que não seja tão penoso. Atentas às aspirações e motivações individuais, as
empresas estimulam a autonomia individual e a participação tornando o sujeito
gerenciador de seu próprio trabalho.

“Na esteira da procura social do tempo fora-do-trabalho, difundiram-se os


conceitos de horários flexíveis, ambientação e individualização do tempo de
trabalho, trabalho de meio período, jornada contínua, legitimidade crescente dos
feriados prolongados. Outras tantas disposições culturais e organizativas
exprimem, em sua essência mais profunda, não precisamente a abolição do
conceito de dignidade do trabalho, mas o desaparecimento do catecismo laboral,
trazendo a correlata consagração dos direitos subjetivos a uma vida mais simples,
mais voltada para a satisfação das próprias aspirações e do tempo livre de cada
um”.222

No auge dos valores individualistas, as empresas sabem que não podem


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descuidar da satisfação do funcionário. Essa passagem do trabalhador-objeto ao


assalariado-sujeito de direitos requer políticas concretas de negociação e
transparência, de divisão do poder e redistribuição dos lucros, de formação do pessoal
e de gestão interativa das condições de trabalho.223 Mesmo diluídas as grandes
exortações ao trabalho, não significa que este perde seu valor. Seu valor, no entanto,
está submetido à realização pessoal. Reflexo disso é a busca desenfreada pelo
trabalho, não como cumprimento de uma obrigação moral abstrata, mas no desejo
pessoal de obter êxito.

“No re-investimento contemporâneo no mundo do trabalho, é sempre a busca da


realização pessoal que está em jogo. A dinâmica da auto-absorção individualista,
portanto, não está em involução, mas passou da esfera privada para a esfera
profissional. Ao menos parcialmente, a era individualista pós-moralista se revela
auto-organizadora. O ego aparece em primeiro lugar, porém as aspirações de
autonomia e de afirmação pessoal vêm conjugadas para legitimar novamente a
atividade do trabalho”.224

A preocupação do homem com o trabalho na verdade é uma preocupação


consigo mesmo, com a busca de reconhecimento, de promoção, de uma carreira que
lhe garanta um futuro brilhante. Mais direitos subjetivos, menos deveres: os efeitos da

222
Ibid., p. 152.
223
Ibid., p.155.
224
Ibid., p.161.
86

cultura neo-individualista vão sendo decisivamente integrados à esfera profissional.225


As promessas de lucro fácil, bem como outras sedutoras alternativas vão revelando
uma realidade preocupante, e o individualismo pós-moralista pode assumir duas
facetas.

“Enquanto uma tendência encaminha o indivíduo para a atividade profissional,


há outra que o distancia disso. Enquanto uma serve de motivação para fazê-lo
trabalhar, a outra o redime de compromissos. Se uma dignifica o valor do
trabalho, a outra exalta os lucros fáceis; quando uma conduz à reafirmação dos
valores éticos, a outra leva à transgressão dessas mesmas normas (corrupção,
transações ilícitas, delitos, fraudes, etc)”.226

Desligados dos valores e princípios éticos, o trabalho pode se tornar um


meio prostituído. Atitudes egoístas e irresponsáveis podem suscitar relações injustas e
opressoras. Urge então a necessidade de se fortalecer a responsabilidade humana
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diante de suas ações.

c) Outros aspectos

Nas sociedades pós-moralistas também surge uma nova relação entre


sujeito e Estado. Os indivíduos demonstram pouca consideração pela coisa pública,
não se cultiva o amor às leis, e a nação não é mais vista como um ideal superior, que
exigia sacrifício e doação por parte dos cidadãos. Segundo Lipovetsky, hoje estamos
livres de qualquer “imposto de sangue”.

“Após o período heróico da nação, sobrevêm sua fase eleitoreira e indolor.


Assim, ao invés de cruzadas que exortam ao sacrifício, o que vemos é um
nacionalismo pós-moralista, caricatura de uma ordem moral isenta de obrigações
a cumprir ou de ambição histórica definida. (...) Já não se ensinam lições sobre os
sagrados deveres para com a pátria; o que se deseja é um engajamento
individualista e responsável para com a comunidade”.227

O dever de consagrar-se a finalidades superiores perdeu a credibilidade,


enquanto ganha espaço o dever para com o indivíduo. Na mesma lógica se consagra a
preponderância dos direitos individuais sobre as obrigações coletivas. Depauperou-se
a moral republicana e somente a moral inter-individual tem foros de credibilidade
225
Ibid., p.167.
226
Ibid., p.168.
227
Ibid., p.179.
87

social.228 Apesar disso, Lipovetsky não defende a hipótese de que a democracia esteja
desgastada.

“Se, de um lado, é verdade que, em razão dos novos hábitos pós-moralistas, a


democracia vem sofrendo desestabilizações de toda espécie, de outro lado, deve-
se ter presente que nosso sistema de vida democrático, em seus fundamentos
essenciais, nunca obteve um reconhecimento tão generalizado como entre nossos
contemporâneos, mais precisamente quanto à unanimidade consensual em torno
da valorização do princípio do pluralismo democrático”.229

Mesmo que o relacionamento entre o indivíduo e o poder público seja frio


e distante, não se cogita um poder fora dos moldes democráticos. As eleições, por
exemplo, quase não são fatores de mobilização social. Apesar disso, segundo
Lipovetsky, há um crescimento daquilo que os juristas denominam “autoridades
administrativas autônomas”.230 A exigência de transparência social, a preocupação
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com a legalidade, com os direitos, são fatores que crescem e confirmam a sociedade
democrática. Se antes o dever era o ponto central da existência, agora temos o
“cidadão jurista”.231 A exigência de moralização do povo foi substituída pela
exigência de moralização do poder público.
Também na questão religiosa é flagrante a incidência da lógica
individualista. Visto que as sociedades pós-moralistas resistem a toda imposição que
não leve em conta a subjetividade pessoal, crescem as seitas religiosas voltadas
estritamente para a satisfação pessoal, fortemente marcadas pela dimensão emotiva.
As orientações religiosas tradicionais enfraquecem quando não remodeladas de
acordo com os anseios de seu tempo. A rejeição de certos princípios e valores
tradicionalmente apregoados pela religião, de certa forma deixa o sujeito humano sem
direção, completamente perdido.
Em seu relacionamento com a natureza, o indivíduo pós-moderno passa a
vê-la não mais simplesmente como uma força a ser explorada, mas como um
interlocutor a ser ouvido e respeitado. Toda renovação ética tem uma preocupação
com o meio ambiente e o futuro humano. O interesse ecológico trabalha no sentido de

228
Ibid., p.181.
229
Ibid., p.182.
230
Ibid., p.183.
231
Ibid., p.184.
88

responsabilizar o homem, ampliando o campo dos deveres, e recusando o modelo


“produtivista”, com o emprego de técnicas suaves, não-poluentes.232 No mesmo
espírito ecológico há uma mutação no relacionamento do homem com os animais.
Desde a caça predatória, às experiências científicas, os protestos são freqüentes. É
uma característica marcante do narcisismo essa receptividade do indivíduo em
relação ao que lhe é exterior. Nesse sentido, até mesmo a dor sofrida por um animal
torna-se insuportável para ele.

1.4- Conclusão

Neste capítulo, que ora concluímos, procuramos desenvolver nosso


trabalho seguindo a dinâmica de Gilles Lipovetsky, que evita uma crítica pessimista
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em relação à sociedade pós-moderna na qual estamos inseridos. Seu estudo reflete


uma tentativa de compreender o dinamismo próprio destes tempos que ele denomina
de “hipermodernos”, caracterizados pela derrocada da moral rigorista e pelo
surgimento de uma ética a la carte, marcada pela ausência de sacrifícios e pelo
excesso de autonomia. Assim, as instituições antes “sagradas” perdem sua
credibilidade e assumem um caráter mais subjetivista. Sem as tradicionais referências
e os princípios norteadores, inspiradores, reguladores do agir humano, dá-se uma
crise de referências, um vazio existencial. A “realização plena”, prometida pelas
inovações da modernidade, não se realizou e o doce progresso azedou. Dominada
cada vez mais por princípios estranhos à religião, a sociedade é secularizada e a razão
instrumental é a regra de vida.
Se na modernidade a felicidade pessoal estava condicionada a fazer bem
aquilo que estava estabelecido, na pós-modernidade a força da sedução, fortemente
personalista, guia o sujeito em suas opções e escolhas. Movido por transformações
vertiginosas e tecnologias da última hora, o eficaz e sedutor processo de
personalização suscita uma revolução permanente na sociedade humana, levando ao
ponto culminante o reinado do indivíduo. Como característica fundamental deste
tempo, o narcisismo representa o desprendimento do domínio do Outro e a ruptura

232
LIPOVETSKY, G., A Era do Vazio, p. 11.
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com a padronização de massa. O Eu torna-se o centro das preocupações e ganha vigor


o espírito da “eterna juventude”, onde o corpo é promovido a um verdadeiro objeto de
culto, rodeado de cuidados e investimentos constantes. A complexidade desse tempo
se revela na flagrante indiferença por um lado, e da marcante sensibilidade por outro.
Com a morte das ideologias, como vimos, visualiza-se um desencanto generalizado
no campo político.
A moral de “configuração sagrada” sofreu uma considerável mudança,
assumindo um caráter mais voltado para o indivíduo humano, com a libertação do
preceito do dever. O crepúsculo do dever, como vimos, representa a rejeição de toda
normatização imposta de fora, e a liberdade de escolha representa a autonomia
humana e a busca daquilo que satisfaz seus anseios. No entanto, a sociedade do pós-
dever não significa necessariamente ausência de deveres, mas rejeição de tudo aquilo
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que se opõe à liberdade humana ou que não considera os direitos subjetivos. A pós-
moralidade não é sinônimo de imoralidade, e o relativismo de valores não contribuiu
para o niilismo moral. A partir de um referencial humano, novos valores e critérios
éticos são dinamizados socialmente, fundados no individualismo e na moral
subjetiva. Dessa forma, uma atitude individualista dificilmente causa espanto.
Tudo isso representa, para Lipovetsky, uma renovação ética. Não um
retorno à religião tradicional do dever, mas a instauração de uma ética indolor, que
rejeita toda lógica do dever, do imperativo categórico, do cerceamento da liberdade
individual. No mundo dos negócios esse despertar do interesse ético evidencia sua
dimensão utilitarista. A própria “ética do meio ambiente”, que propaga a idéia de
obrigação moral em relação ao futuro do planeta, para a maioria das pessoas não
implica sacrifícios e nem um verdadeiro compromisso. No embalo das profundas
transformações que envolvem nossa sociedade atual, configuram-se novas relações
que, muitas vezes, representam uma ameaça à sobrevivência humana e refletem uma
carência ética preocupante.

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