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CIP-BRASIL. IOGAÇÁO NA PUBI ACAÇ,ÁO


SINDICATO NACIONAL DOS DE LIVROS,R)

Lisiane
l)ivulgaçào da ciência e literacia psicológica / t.isiane Bizarro, Mailton
Vasconcelos, Maria Adélia Minghelli Piela, l, ed, SáOPaulo:
2023.
352 p. 23 cm.
Inclui índice
ISBN 978-65-89092-62-9
l. Comunicação na ciência. 2, Literacia científica Psicologia.
I. Vasconcelos, Mailton, II. Pieta, Maria Adélia Minghelli, III 'Vítulo.

23-83564 CDI): 808,066


CIOU:

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ISBN:978-65-89092-629
Impresso no Brasil.
Sumário
Prefácio

1. Divulgação científica e literacia psicológica: definições e aplicações


13
Lisiane Bizarro, Mailton Vasconcelos e Maria Adélia Minghelli Pieta

28
2. Pensamento crítico, ciência e pseudociência na psicologia
Gustavo Gauer e Martina Hummes Bitencourt

48
3. Comunicando incerteza e complexidade
MariaAdelia Minghelli Pieta e Mailton Vasconcelos

4. Tradução do conhecimento (knowledge translation) e pesquisa em


psicologia 68
Ângelo Brandelli Costa, Davi Mamblona Marques Romão e Laura dos Santos Boeira

5. A validade de impacto na avaliação da qualidade da produção


científica em psicologia: reflexões e recomendações 86
Fabio Scorsolini-Comin e Jean Von Hohendorff

6. Literacia psicológica e o ensino de psicologia 103


Lisiane Bizarro e Maria Adélia Minghelli Pieta

7. Advocacy: advogar pela psicologia na esfera pública 114


Alessandra Diehl e Rogério Adriano Bosso

8. Psicoeducaçào como estratégia para a literacia psicológica 127


Fernanda Machado Lopes, Joana Bender Remus, Weridiane Lehmkuhl da Luz e
Natália Martins Dias

9. Onde está a evidência e como comunicá-la 146


MailtonVasconcelos e Maria Adélia Minghelli Pieta
da :Ia Icold,gtca fti\dtas digitais
!

cla na rnidla impressa , 181

'l ? , A psicoterapia no cinerna.„.. •, 201


[Xalima Bati%ta, C110 e J. I.andeira [vernandez

'13.Divulgaçao da ciência psicológica voltada à saúde mental


na academia 221
Yates, Ereya Bizarro da Costa, Sophia Beylouni Santos Martínez e Flávia Wagner
Denise 13alet11

14. Divulgação da ciência psicológica voltada ao contexto corporativo 238


Ana Carolina Peuker e Sibele Faller

'15.Divulgação da ciência e educação para o trânsito 263


Alessandra Sant'Anna Bianchi

'16.Psicologia para crianças do LaPlCC-USP: um relato da experiência


de literacia psicológica para crianças 281
Carmem Beatriz Neufeld, Isabela Lamante Scotton, Alessandra Luzia de Rezende e Luiza Vito

17. Breve história da divulgação da ciência na psicologia brasileira 304


José Aparecido da Silva e Rosemary Conceição dos Santos

18. Divulgação científica da psicologia: literacia científica, inovação e


sustentabilidade 329
Lisiane Bizarro e Alcyr Oliveira

Sobre os autores
339
índice
347
Prefácio
A chegada deste livro não poderia ocorrer em melhor hora. Ainda que
a necessária discussão sobre a literacia científica seja um tema tradicional,
com pesquisa científicamulti e transdisciplinar,o assunto se tornou agudo
em razão da pandemia da Covid-19.Minha esperança é que se torne um tema
crônico, conversadoe debatido anteriormente à entrada no ensino superior,
abordado sistematicamenteao longo de toda a formação universitária. Faço
esta análise em um panorama geral, considerando a necessária qualificação
do debate público a respeito de temas que exigem cooperação em muitos ní-
veis, como o combate a uma pandemia ou o enfrentamento do aquecimento
global, Tais assuntos escancaram a necessidade de o público compreender as
orientações científicas,o que requer um mínimo de literacia científica.
Analisando especificamente a profissão da psicologia, que apenas existe
em decorrência da ciência psicológica, a promoção da literacia psicológica
é urgente. Como apropriadamente nos lembram Bizarro e Oliveira no Ca-
pítulo 18, são mais de 400 mil psicólogos inscritos no sistema de conselhos
de psicologia do Brasil, aptos a exercer a atividade profissional. Milhares
de novos profissionais passam a fazer parte do sistema a cada ano, conside-
rando que atualmente existem no Brasil mais de 528 cursos de Psicologia,
o que totaliza mais de 40 mil concluintes anuais (https://download.inep.
gov.br/educacao_superior/enade/relatorio_sintese/2018/Psicologia.pdf).
A carreira de psicologia tem atraído milhares de jovens todos os anos, con-
siderandoque a profissão está em um momento de alta demanda social.
Todo esse cenário ressalta a importância da promoção da literacia psico-
lógica entre estudantes e profissionais da psicologia. Essa urgente necessi-
dade tanto se dá pela já reconhecida carência de formação científica nos
cursos, como descrito por Bizarro e Pieta no Capítulo 6, quanto pelo fato
de que o campo de atuação em psicologia, em suas diferentes áreas, ser
su-
jeito a práticas não científicas e, como muito bem nos alertam Gauer e
Bi-
tencourt no Capítulo 2, especialmente aquelas que se travestem como
cien-
tíficas,mas não sustentam esse predicado. Como enfatizam Bizarro
e Pieta
no Capítulo 6, a aplicação ética das atividades profissionais do
psicólogo
requer que elas sejam sustentadas cientificamente, de forma a
promover o
melhor possível, em determinado momento histórico do
desenvolvimento
da ciência psicológica. Para se alcançar esse imperativo ético,
a literacia é
condição necessária.
8 Divulgaçéo da ciência e literacia psicológica

Este livro traz contribuições relevantes para a promoção da literacia cien_


tífica em psicologia. Por exemplo, um assunto central, mas pouco tratado, é
sobre o conceito de evidência científica. Vasconcelos e Pieta discutem essa
questão no Capítulo 9, conceituando evidência científica, exemplificando
como identificá-la e qualificando os tipos de evidências científicas a partir dos
desenhos de pesquisa que as produziram. Ser capaz de analisar fortalezas
e dificuldades das diferentes estratégias do método científico é fundamental
para ser um consumidor crítico de informação, científica e não científica,pas-
so essencialpara a promoção da literacia. Outras questões importantessão
abordadas em diversos capítulos, como o desafio da comunicaçãoda incer-
teza e da complexidade, encarado por Pieta e Vasconcelosno Capítulo 3. O
caráter transitório e incerto do conhecimento científico é dificilmente apreen-
dido intuitivamente, o que torna árdua a tarefa de subsidiar práticas em co-
nhecimentos provisórios e assumidamente imperfeitos. Isso exige preparo
e orientação para ser alcançado,A capacidadede lidar com conhecimento
alicerçado nas melhores evidências disponíveis é uma competência estrutu-
rante da literacia psicológica.O livro também aborda temas emergentese
diretamente relacionados ao emprego ou às formas de promoção da literacia,
como é o caso da comunicação dos resultados da ciência psicológica para
além da comunicação entre os cientistas, restrita por sua natureza, como nos
apresentam Scorsolini-Comine Hohendorff no Capítulo 5; das ações de ad-
vocacy,como nos ensina Diehl e Bosso no Capítulo 7; além do recurso que a
psicoeducação provê como meio de promoção da literacia psicológica, como
descrevem Lopes, Remus, Lehmkuhl e Dias no Capítulo 8.
Costa, Romão e Boeira no Capítulo 4 discutem sobre a tradução do conhe-
cimento científico, tarefa nem sempre fácil, mas que é base da outra dimensão
que este livro se propõe a tratar: a divulgação científica. Diversos capítulos do
livro passam por esse tema, enfocando de uma forma ampla e servindo como
um convite para profissionais e pesquisadores da ciência psicológica realiza-
rem essa ação. Essa abrangente discussão sobre divulgação científica aborda
e engloba as mídias digitais com Rabelo no Capítulo 10; a mídia impressa
com Silva e Santos no Capítulo 11; a psicoterapia no cinema com Batista'
Cheniaux e Landeira-Fernandezno Capítulo 12; a saúde mental com Yates'
Costa, Martínez e Wagner no Capítulo 13; a saúde mental no mundo corpo-
rativo com Peuker e Faller no Capítulo 14; o comportamento no trânsito por
Bianchi no Capítulo 15; o contexto infantil como apresentado por Neufeld,
Scotton, Rezende e Vito no Capítulo 16; e com o breve histórico da divulga-
Prefácio9

ção científica da ciência na psicologia brasileira por Silva e Santos no Capítu-


Io 17.É fundamental compreender que a literacia psicológicae a divulgação
científicada psicologiaestão imbricadas (ou deveriam estar). Em um mundo
cada vez mais mediado por mídias digitais, o que permite que alguém com
um smartphone e acesso a redes sociais tenha potencial de alcançar muitas
pessoas, a ausência de literacia psicológica tem grande chance de promover
desinformaçãoe mais atrapalhar do que ajudar na divulgação da ciência psi-
cológica.Apesar do infeliz quase desaparecimento das lojas físicas de livros,
nunca é demasiadolembrar que as seções de psicologiaem ditas livrarias
sempre estiveram próximas (ou no meio) das seções de autoajuda-esoterismo
e religião. Esse é um indicador da imprecisa representação que a sociedade
tem da ciência psicológica. Serve de alerta sobre a necessidade de assentar na
literacia científica do profissional de psicologia a comunicação científica e a
atuação em psicologia. Desenvolverliteracia no profissional é a melhor ferra-
menta para divulgar adequadamente a pujante e dinâmica ciência psicológica
produzida no Brasil e no mundo.
E por meio da literaciacientífica,do pensamentocrítico e da interação
dessas duas competências, o que conceituo como pensamento científico, que
os profissionais de psicologia podem desenvolver um trabalho comprome-
tido com os melhores resultados possíveis para a sociedade. Isso auxiliará
na consolidação da visão da ciência para a sociedade, afastando dúvidas do
grande público sobre a cientificidadeda psicologia, como nos lembra Rabelo
no Capítulo 10.
Argumento que este livro chegou em muito boa hora, pois há indícios, que
talvez possam ser mais uma consequência da pandemia da Covid-19,de au-
mento de interesse no tema. A discussão, que parece ter se intensificado nas
redes sociais, sobre psicologia baseada em evidências (PBE) culminou na rea-
lização de um primeiro encontro brasileiro, em maio de 2022. Por sua nature-
za, como definem Bizarro, Vasconcelos e Pieta no Capítulo 1, a literacia psico-
lógica tem um papel central nesse renovado ou despertado interesse por PBE.
Como cientista, a ideia de a demarcação de uma área profissional precisar se
qualificar como "baseada em evidências" soa muito estranho pois, em prin-
cípio e ao final, qualquer atividade baseada em conhecimento científico deve
ser, em essência, baseada em evidências. Considerando o caráter transitório
do que sabemos e transformativo da ciência, graças à alteração dos meios
e condiçõespara se produzir conhecimentoà medidaque o conhecimento
avança e a tecnologia se modifica, as evidências também se atualizam. Portan-
10 I)ivulgaçao do ciência e literacia paicológica

to, falar em técnicascientíficasbaseadas em evidéncíasé como um pleonav


mo. Mas, como o movimentodas práticas profissionais/cíentíficas"baseada,
em evidência" nos ensina, é claro que muitas ativídadc:»profissionais,
que historicamente lastreadas na estruturação dc campos científicos, podem
ser habitadas e, por vczcs, dominadas por práticas que não se lastreiam nag
melhores evidências disponíveis, mas sím cm filiações dc dívcrsas naturczat,
desde históricas até interesses puramente mcrcadológicos. Incgavclmcntc, no
cerne dessa discussão sobre PBE,jaz a literacia da ciência psicológica,
Seja por sua história recente, considerando sua separação do pensamento
filosóficona segunda metadc do século XIX, seja pclos caminhos trilhado;
nesse período, diversos são os motivos para a psicologia também vivenciar
um estado de busca do qualificador"baseado em evidências", A excmpJodc
vários outros campos científicos,a história da ciência psicológica é tortuosa,
repleta de embatesentre paradigmascientíficos,recorrentes crises dc diver-
sas naturezas, como é o caso da recente crise de "reprodutibilidade" (consi-
dero mais precisa ser entendida como uma crise de credibilidade) c da crise
da falta de generalizaçãode achados científicosem função da insuficienteva-
riabilidadecultural da maioria das amostras de participantes da pesquisa em
psicologia(algo que, mais recentemente, convencionou-sechamar de proble-
ma WEIRDI). Apesar desse caminho tortuoso, a ciência ainda é uma das mais
preciosascriações humanas, porque, verdadeiramente, pode criar condições
de melhoria para a qualidade de vida das pessoas. Ainda há muito o que ser
feito, Por exemplo,se quisermos basear a prática em evidências, será neces•
Sárioproduzir evidênciasde qualidade, provenientes das melhores estratégias
metodológicasdisponíveis.Isso é fundamental para subsidiar práticas, pois
pouco adianta bradar pela necessidade de práticas baseadas em evidências
se tais evidências não existem. Ainda que Bizarro, Vasconcelos e Pieta no Ca-
pítulo 1 apropriadamentenos recordem de que há muita ciência psicológica
brasileira, cabe lembrar que o nível e a quantidade de nossa pesquisa ainda
são insuficientespara a produção de evidências situadas
culturalmente e que

1 Acrónimo de Western,Educated, Industrialized,


Rich and Democratic, Essa foi uma forma que Hei"
rinch et al. (2010) encontraram para tentar sintetizar
características comuns das amostras de mais
de 90% dos estudos de ciências comportamentais.
Ainda que imperfeito e impreciso, esse acrónimO
recebeu grande atenção da comunidade científica,
pois explicitou e trouxe para o debate a baixa (ou
a ausente) preocupação da pesquisa em produzir
evidências que pudessem ser derivadas da rica e
complexa variabilidade cultural humana, o que é
crítico para ciências que procuram descrever
e predizer o comportamento humano.
Prefácio 11

sejamúteis e efetivaspara a diversidade do povo brasileiro. Basta uma busca


atenta para identificar que há temas de pesquisa totalmente negligenciados e
muitosoutros que necessitam de mais investigação.Investir na ciência psico-
lógicaé fundamental nessa empreitada.
O primeiro passo para trilharmos um caminho profícuo para a prática da
psicologiano Brasil é promover o pensamento científico, competência básica
que precisa ser amplamente promovida em estudantes e profissionais de psi-
cologia.Esta obra é uma excelente porta para iniciar essa trilha.
Boa leitura!
Ronaldo Pilati
Doutor em Psicologia e
professor de Psicologia Social da
Universidade de Brasflia (UnB)

Referência
Henrich,J., Heine, S. J., & Norenzayan, A. (2010). The weirdest people in the world?
Behavio-
ral and Braill Sciences, 33(2-3), 61-83. https://d0i.org/10.1017/S0140525X0999152X
Divulgação científica e literacia psicológica:
definições e aplicações
L ts:ane Bizarro
MailtonVasconcelos
Maria Adélia Minghelli Pieta

Introdução
No levantamento Percepção pública da no Brasil -- 2019, apenas cerca de
10%dos brasileiros sabem dizer o nome de um cientista brasileiro ou de alguma
instituiçãoque faça pesquisa (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2019).
Será que psicólogas e psicólogos saberiam dizer o nome de cientistas da psicob
gia no Brasil ou onde trabalham e o que investigam?Não são poucos! Segundo
o ScimagoJournal & Country Rank, a produção científicabrasileira na área da
psicologia está há anos em 110 lugar em uma lista de 186 países. Isso sugere que
o Brasilestá entre os 10% que mais produzem conhecimento em psicologia no
mundo. Muito desse conhecimento é sobre a realidade do Brasil, problemas bra-
sileiros.Esse conhecimento está disponívele tem sido regularmente produzido
e publicado,especialmente nos últimos 30 anos. Este livro tem como objetivos
difundir a literacia psicológica e incentivar a divulgação da ciência na psicologia.
Nesta obra, utilizamos as expressões divulgação da ciência e literacia psico-
lógica.De maneira geral, a divulgação da ciência é entendida como a dissemi-
nação, ao público não especializado, de informações relacionadas a temas de
ciência.De fato, essa já foi uma definição aceitável, mas atualmente é conside-
rada incompleta. Reconhece-se, hoje, a complexidade das relações envolvidas
na difusão desses conhecimentos. A divulgação científica foi se desdobrando
conformeo papel da ciência na sociedade foi se modificando. Adquiriram im-
portância o papel da audiência e a formação do divulgador,a percepção pú-
blica da ciência e a interface com a mídia, os usos do conhecimento científico
(econômicos,políticos, militares, educacionais, comerciais etc.), as limitações
no processo de produção desse conhecimento: riscos, controvérsias, questões
éticas, culturais, econômicas, sociais e políticas (Massarani & Moreira, 2004),
14 Divulgaçãoda ciência e literacia psicológica

entre a ciência e a sociedade,


Ignorar a complexidadeda interação
é deletériopara a ciênciae para a sociedade
textualizadahistoricamente,
impede o pensamento, em vez de
porque a divulgaçãode conteúdo acrítico
fomentá-lo.O fato de tornar opaco o processo pelo qual a produção de conhe_
cimento é (ou deveria ser) ininterruptamente criticada no interior da própria
atividadecientíficatransforma a ciência em um mito e o cientistaem uma
autoridade (Massolaet al., 2015). A compartimentalização da ciência como
circunscrita a apenas dimensões escolares ou profissionais dificultao enten-
dimento e o uso do conhecimento científico para fazer perguntas e responder
a elas (Pilati, 2018).
Pautas atuais no contexto da pandemia da Covid-19e do aquecimento
global indicam que essa complexidade só aumenta com o negacionismo cien-
tífico,as fake news e o papel das mídias sociais (Henriques & Vasconcelos,
2020; Vilela & Selles, 2020). A divulgação da ciência feita de forma sensacio-
nalista pode servir a interesses específicos, sem a contrapartida de contribuir
para uma possibilidadede interpretação do mundo ou compreensão de como
ele é explicado pela cultura científica (Massola et al., 2015). Por isso, a defini-
ção da divulgaçãocientíficatem que ir muito além de uma difusão da ciência
por um cientista para um público leigo, o que ficou conhecido na história da
divulgaçãocomo o "modelo do déficit" (Massarani et al., 2002). Diferentes
capítulos deste livro contextualizam essa definição ainda quanto ao meio de
difusão, como as mídias digitais, e quanto a suas aplicações, como na advoca-
cy (defesa de uma causa), na saúde mental, nas escolas.
Por razões históricas, a divulgação científica da psicologia não foi uma
pauta prioritária, nem na formação de profissionais psicólogos,nem na for-
mação de pesquisadores. Há também um receio do uso da divulgação da ciên-
cia psicológicacomo uma prescrição, pois ignorar acriticamente limitaçõese
incertezas da ciência pode contribuir para perpetuar desigualdadessociais,
como o racismo sistémico (American Psychological Association, 2021).
Mesmo não sendo prioridade para a formação em psicologia,a divulga-
ção da ciência sempre foi uma necessidade profissional, e a psicoeducação
esteve presente em práticas profissionais. Em 1969, o discurso de George
Miller, como presidente da American Psychological Association, sugeriu que
o conhecimento especializado da psicologia poderia ter como objetivo"en-
tregar a psicologia" ao público em geral para que tenha acesso ao conheci-
mento psicológico e possa beneficiar-se deste (Banyard & Hulme, 2015). Há
pouco mais de dez anos, a divulgação científica da psicologiaganhou força
1. Dívulgaçào científica e literacia psicológica 15

quando o conceito de literacia psicológica passou a ser importante no ensino


de psicologia.

Literacia psicológica
A literacia psicológica é a capacidade de um indivíduo utilizar os conceitos
da psicologiapara promover o bem-estar e o desenvolvimentopleno para si
mesmo,para seus relacionamentose para a sociedade em geral (Cranney &
Dunn, 2010). Ou seja, como observamos o conhecimento da psicologia no
dia a dia e o que fazemoscom ele. A expressãoteve origem na década de
1990, quando Alan Boneau compilou cem termos básicos da psicologia para
estudantes de psicologia. A origem da expressão literacia psicológica surgiu
no contexto da década de 1990, portanto com uma preocupação voltada para
o ensino da psicologiacomo ciência,em uma época em que a alfabetização
científica ou literacia científica significava ensinar o bê-á-bá, os princípios fun-
damentais da ciência.
Foi na década de 2010 (Cranney & Dunn, 2010) que a literacia psicológica
passou a definir a capacidade de estudantes de psicologia para observar e uti-
lizar os conceitos da psicologia na própria vida, pois a divulgação da ciência
passou a ser mais do que ensinar o bê-á-bá.Além da formação continuada so-
bre os temas da psicologia e o vocabulário adequado, saber localizar e avaliar
as informaçõescientíficas,utilizar habilidadesde resolução de problemas e
de pensamento crítico, um cidadão psicologicamente letrado age eticamente,
reconhece, compreende e acolhe o respeito à diversidade ao comunicar efeti-
vamente (Cranney & Dunn, 2010).
Nessa época, a divulgaçãocientíficapassou cada vez mais a ter a função
de democratizar o acesso ao conhecimento científico e estabelecer
condições
para incluir os cidadãos no debate sobre temas especializadosque
podem
impactar sua vida e seu trabalho (Bueno, 2010). Não podemos deixar
de con-
siderar a ampla influência da ciência da informação e da ciência
cognitiva na
compreensãodo que é informação e como processamos informações
para
melhorar a tomada de decisão tanto de indivíduos quanto de
sistemas sociais
mais complexos (Lima, 2003). A ciência passou a fazer parte
do dia a dia, e a
psicologia não ficou de fora.
A literacia psicológica influenciou currículos, especialmente
na Austrália
e no Reino Unido (Karandashev, 2011; Dunn et ala, 2011;
Taylor & Hulme,
2015), ainda que a avaliação da literacia psicológicacontinue
sendo um de-
(In cié1Wiae literacia psicrológica
16

al., 2021 Por conseguinte, influenciou muitos livros de in-


safio (Newcllct observar conceitos e
psicologia, que agora têm seções sobre como
troduçáo à
fenônwnosde estudo da psicologia na vida diária.
sempre foi uma faceta
Contudo,veremos neste livro que a psicoeducação
divulgação científica da psicologia - aplicada, por exemplo, na psicologia da
da
na psicologia clínica, na psicologia escolar, na psicologia organizacio-
saúde,
profissional. Mas psicoe-
nal e do trabalho - que esteve presente na prática
sobre
ducar fora dc um contexto específico, como ampliar o conhecimento
a ser im-
a naturezahumana usando conhecimentos da psicologia,passou
portante mais recentemente (Rabelo, 2022). Um exemplo são as campanhas
SetembroAmarelo(mês de prevenção ao suicídio), Janeiro Branco (mês de
conscientizaçãosobre saúde mental) ou Abril Azul (mês de conscientização
sobre o autismo).

Modelosde comunicação pública da ciência e a


psicologia
Modelosde comunicação pública da ciência podem ser resumidos em dois
tipos: o que prevê uma comunicação de via única, tratando o público como
mero receptor (o chamado modelo do déficit); e outro que assume uma co-
municação de duas vias, em que o público ocupa uma posição ativa e de inte-
gração no processo; em outras palavras, um diálogo entre emissor e receptor.
O modelo do déficit é representado pela alfabetização científica ou pelo
letramento científico,que são traduções para a expressão inglesa scientific lite-
racy. Essa denominação foi adotada principalmente nos Estados Unidos, após
a Segunda Guerra Mundial, demarcando que a ciência era imprescindível à
sociedade,um fator essencialpara o progresso econômico e o bem-estar.A
expressãoelevavaa ciência à mesma relevância da escrita e da leitura e teve
uma influência no ensino de ciências; um indivíduo plenamente alfabetizado
precisaria ser preparado para ter condições de fazer leitura de textos científi-
cos (Sasseron & Carvalho, 2011; Teixeira, 2013).
Nas décadas de 1980 e 1990, houve uma proliferação de livros, progra-
mas de divulgaçãoda ciência na televisão
e seções especializadas em jornais•
Pesquisasque mostravam que a
população, em grande parte, desconhecia os
conceitos básicos científicos motivaram,
inclusive por políticas governamen-
tais, o estímulo à alfabetização
científica (como no Reino Unido, a década do
Comitee Public Understanding of Science
(CoPUS) - 1985-1995) e à ciência
l. Divulgação científicac literacia psicológica 17

(como, nos Estados Unidos, a Década do Cérebro - 1990-2000) (Durant,


2005). Esperava-se uma série de benefícios económicos, sociais, políticos
e culturais com essas iniciativas. Por sua vez, os cientistas aguardavam um
ganho colateral: quanto mais o público conhecesse a ciência, mais valoriza-
ria esse tipo de conhecimento, apoiando investimentos e tornando a carreira
científica atraente (Miller, 2001).
Mas os esforços dessa época não foram tão eficazes quanto esperado em
modificar as atitudes em relação à ciência ou aos cientistas, e não aumenta-
ram o percentual de cidadãos cientificamente alfabetizados nos Estados Uni-
dos ou no Reino Unido, que permanecia em torno de 10% (Massarani et al.,
2002; Porto, 2009).
Como mencionamos, foi nessa época do modelo do déficit que a expressão
literacia psicológica foi utilizada pela primeira vez (Boneau, 1990). Os cem
termos que definiriam o cidadão psicologicamente letrado da década de 1990
chegaramtarde demais, pois o modelo do déficit já estava em crise e não
sobreviveuàs evidências de que não produzia a mudança esperada. Nesse
mesmo contexto, a Década do Comportamento - 2000-2010 - foi uma reação
da American Psychological Association, apoiada por mais de 50 organizações,
à semelhança da Década do Cérebro. Esse esforço multidisciplinar procurava
divulgar os progressos alcançados nas ciências comportamentais e sociais e
sensibilizar a investigação nessas áreas buscando a compreensão e o apoio do
público (Kendall, 2000). A Década do Comportamento foi um dos primeiros
movimentos organizados na psicologia com esse fim, mas o contexto em que
acontecia a crise do modelo do déficit provavelmente foi responsável por sua
pequena repercussão.
A ênfase nesse modelo é dada à transmissão de conceitos, fatos científicos
e ao ensino do método científico, sem necessariamente haver uma articulação
entre eles. O importante é abrir os olhos para as maravilhas da ciência, suas
realizações e revelações (a corrida espacial, por exemplo). Essa fragmentação
e idealização dificultam uma articulação do conhecimento científico.
Nas atividades de divulgação, ainda é hegemônico o uso desse "modelo
do déficit", que, de uma forma simplista, vê na população um conjunto de
analfabetos em ciência que devem receber o conteúdo redentor de um conhe-
cimento descontextualizado e encapsulado. Aspectos culturais importantes
em qualquer processo de divulgação e as interfaces entre a ciência e outras
formas de conhecimento (como o artístico, o filosófico, o empírico, e o religio-
so) são raramente considerados (Durant, 2005; Massarani et al., 2002). Em
18 psicologica

pattc%as criticas à ciência na psicologia e a relutância em realizar atividades


de di\ulgaçào du ciência na psicologia (Massola et ale, 2015) justificam-sepor
essas liniitaçóes do tnodelo do déficit.
No final dos anos 1980 e início da década de 1990, o Ministério da Edu-
caçào Nacional da França protnoveu diversas reflexões sobre os museus de
ciênciae suas exposições,para incrementar o processo de educação em ciên-
cia. Essas reflexõessobre a concepção e a realização de exposições de ciência
rompiam conl o modelo do déficit. Por exemplo, os conhecimentos deveriam
ser reunidos num todo coerente, seni explicações exaustivas, mas definindo
claramente as causas, relações e determinações pertinentes ao fenómeno
abordado, de forma a perniitir aos visitantes uma compreensão não fragmen-
tada e simplista dos temas expostos. As informações deveriam estar contex-
tualizadas historicamente e em suas implicações socioeconómicas e culturais
(Teixeira, 2013). Assim, a ciência é vivenciada pelo público como parte da
realidade e não con10um conhecimento independente da cultura. Para além
da divulgação.uma cultura científica!
A virada para o século XXI foi marcada por uma série de controvérsias
envolvendoa ciência: a doença da vaca louca no Reino Unido, o mapeamen-
to do genoma humano, a clonagem e a criação de organismos geneticamen-
te modificados. Naquela década, movimentos anticiência ganharam força
com fundamentação religiosa elou política, inclusive no meio acadêmico.
O público ficou refém de desinformações fornecidas
por charlatães (como
falsamenterelacionar a administração de vacinas ao autismo em crianças)
favorecidospela mídia, pois não conseguia avaliar
a informação com as in-
formações disponibilizadas.
Estabeleceu-seentão uma crise a partir da
qual emergiu outro modelo, que
assumiu uma comunicaçãode duas
vias, em que o público passou a ocupar
uma posição ativa e de integração
no processo; em outras palavras, passou a
haver um diálogo entre emissor
e receptor. E uma abordagem comparativa-
mente nova para a tarefa de
explorar a multiplicidade de relações e víncu10S
que a ciência, a tecnologia
e a inovação têm entre o público em geral.
Atualmente,há uma ênfase
crescente na compreensão de como o público
escolhe usar o conhecimento
para mediar os científico e no desenvolvimento de interfaces
entendimentos de especialistas e
transferênciade conhecimento leigos de uma questão'
e a participação de pacientes/clientes no
nejamento e na execução
de pesquisas são manifestações mais atuais da
preensão pública da
ciência. Ainda mais importante
foi o reconhecimentO
l, Divulgaçàocientíficae literacia psicológtea
19

aspectossociaisda geração do conhecimento,da importância de considerar


a controvérsiae a incerteza que são características da ciência (Miller, 2001
Novasexpressões como conscientizaçãopública da ciência (public awareness
ofseienee - PAwS),compreensão pública da ciência (public undcrstanding of
seience PUS) ou, mais recentemente, engajamento público com ciência e tec-
nologia (public engagenwnt with science and technology Pest) representam
atitudes. comportamentos, opiniões e atividades que compõem as relações do
públicoetn geral ou da sociedadeleiga como um todo com o conhecimento
científicoe a organização desse conhecimento.
A visão nnistificadada atividade científica pela mídia, a ênfase no desempe-
nho genial de alguns cientistas, os resultados espetaculares e a expectativa de
aplicaçõesimediatasnão contribuem para uma visão realista sobre a ciência
(Stocking,2005; Levy-Leblond,2005). A produção e a transmissão do conhe-
cimentocientíficoconstituem uma atividade social de uma comunidade cien-
tífica. Os processos de socializaçãopróprios da comunidade científica não
transmitemapenas as competênciastécnicas, mas também os compromissos
dessa comunidadee seus mecanismosinternos de integração por meio dos
quais se estabelece essa atividade social (Mattedi & Spiess, 2010).
Na psicologia,a transição das grandes teorias e de teóricos para um corpo
de conhecimentoscom uma coleção de estudos com métodos de investigação
diferentestem sido um debate sobre a existênciade uma psicologia ou de vá-
rias psicologias(Gomes, 2021). Tanto a busca por uma unidade da psicologia
quanto o pluralismo do campo de conhecimento atual exigem um esforço em
direção a formulações teóricas explicativas, desafios metodológicos, consciên-
cia epistemológica e revisitação a temas clássicos, como a consciência em uma
perspectiva transcultural e interdisciplinar (Borghi & Fini, 2019; Machado et
ai., 2000).
A psicologiaherdou de seus antecedentes (outras ciências) seus problemas
(por exemploo dualismo mente e cérebro) e ofereceu à ciência seus proble-
mas e algumas soluções. Por exemplo, a psicologia influenciou o desenvolvi-
mento da estatística,que, por sua vez, foi influenciadapelo desenvolvimen-
to da ciência da computação, cujo desenvolvimentoinfluenciou a psicologia
cognitiva,que, por sua vez, teve grande importância nas neurociências. Nas
últimasdécadas,o rápido avanço da tecnologialevou a um estudo mais am-
PIOda cogniçãohumana, incluindo aspectos emocionaise comportamentais,
com métodos psicométricos, técnicas matemáticas e estatísticas
avançadas
(Cipresso& Immekus, 2017). Áreas da psicologia ganharam importância,
por
psicolópca
20 Divulgaçaoda ciência e literacia

interações entre genes e ambiente, a part•r


exemplo,para a compreensão das
genoma humano, ou no estudo de fenómenos
da possibilidadede estudar o
(Matthews, 2020). Como destaca
sociais, como atitudes políticas ou raciais
Gomes (2021), a psicologia é, em muitas formas, uma ciência aglutinadora,
cujo desafio é explicar, compreender e intervir como um elo entre as ciências
humanas e as ciências biológicas, num contínuo ontológico.
Diante desse amplo campo de conhecimento e prática, a literacia psicoló-
gica é importante para manter-se atualizado perante o desenvolvimento da
área e de outras disciplinas e avaliar criticamente a literatura (Pilati, 2018).
A prática da psicologia baseada em evidências exige o pensamento crítico da
literacia psicológica,por exemplo na psicologia clínica e em suas interfaces
(Leonardi & Meyer, 2015). Tomar decisões sobre a prática profissional levan-
do em conta a melhor evidência disponível sobre um problema e considerando
as limitações dos diferentes níveis de evidência é também uma conduta ética
(Melnik et al., 2014).
Ainda que as fronteiras não estejam bem delimitadas e a definição dos
termos seja um processo em construção, a divulgação da ciência e a literacia
psicológicaforam refinadas neste século, conforme ciência e sociedade fo-
ram interagindo. De organismos geneticamente modificados ao aquecimento
global, do genoma humano às mídias sociais, das fake news à inteligência
artificial, a navegação em um mundo repleto de informações recruta múltiplas
competênciaspara interpretar esses conteúdos, dar
sentido e levar isso em
conta para transitar nessa fluidez.
Parte dos problemas em nossa
sociedade hoje e no futuro está relacio-
nada ao comportamento humano.
Mudanças climáticas, violência, doenças
crônicas não transmissíveis,
estresse... Os psicólogos que conhecerem e sou-
berem aplicar conhecimentos,
habilidades e disposições da psicologia para
compreender esses problemas
(ou seja, quanto mais psicologicamente alfabe-
tizados eles forem) poderão
ir além das heurísticas do senso comum.
As pessoas esperam
da ciência, em geral, uma
"dica", uma orientação, solução mágica ou uma
uma explicação. Quem
de livros de autoajuda, satisfaz essa expectativa ven-
aumenta a sua popularidade se
for bom em oratória, em mídias sociais e'
poderá dar muitas
bém o que faz com que palestras. Mas essa expectativa é
cientistas
e profissionais evitem contato com a mfdiae
com atividadesde
divulgação da
de comunicar sobre ciência. Sair da inércia, encontrar a maneira
ciência na psicologia
dia a dia tem alguns e incorporar esse conheciment0 no
desafios.
t. Divulgação científica e literacia psicológica 21

Três desafios da divulgação da ciência


1, O que é ciência? A definição de ciência é complexa. Se você é contra ou
a favor, entendeu tudo errado, pois uma dicotomia não se aplica. A ciência é
um conjunto de conhecimentosadquiridos usando princípios específicosde-
finidos pela comunidade científica. E um tipo de conhecimento "novo" para
a humanidade, em relação aos demais tipos de conhecimento (teológico, em-
pírico, filosófico e tácito). E novo especialmente porque sua difusão mais fun-
damental depende do ensino formal (leitura, escrita, matemática), que ainda
não está universalmente distribuído. As fronteiras entre esses tipos de conhe-
cimento são muitas vezes difíceis de delimitar, e eles podem se influenciar mu-
tuamente. Por razões históricas (portanto, políticas, econômicas, culturais), o
conhecimento científico apresenta uma visão reconhecidamente eurocêntrica
hegemônica de ciência (Santos & Meneses, 2010), que constituiu a psicologia
como disciplina e profissão (Menezes et al., 2019). Mas esse não é o final da
história, é uma ótima razão para contribuir com conhecimentonovo e divul-
gar a ciência produzida sobre nossa realidade.
2. O acesso à informação científica. O principal meio de veiculação da pro-
dução científica é a publicação de artigos em revistas científicas com revisão
por pares (os trabalhos publicadospassam pelo crivo de mais de um juiz,
selecionadospor um ou mais editores que são acadêmicoscom experiência
em publicações científicas). O acesso às revistas científicas por meio da inter-
net facilitou muito a difusão da produção científica. A "ciência perdida" pro-
duzida em países em desenvolvimentonão tinha visibilidadeem um mundo
pré-internet,e as publicaçõeseletrônicastornaram-se a maneira mais rápida
de publicar e consumir esse tipo de informação. O Brasil foi um pioneiro e
um líder do chamado acesso aberto (acesso universal on-line ao conteúdo de
revistas científicas), com a criação da SciELO, uma biblioteca eletrônica que
teve início em 1998 e em 2013 já contava com a participação de 16 países
(Packer et al., 2014). O acesso aberto tem um custo, que é pago pelo autor ou
por agênciasgovernamentais.As alternativas são o acesso pago, por assina-
tura institucional (como o Portal Capes) ou com custos para o leitor (Schiltz,
2018), e a pirataria (Correa et al., 2022). Portanto, ter acesso a pesquisas ori-
ginais, conhecer o gênero de comunicação da comunidade científica e avaliar
criticamenteesse conteúdo é um desafio para quem quer divulgar o conhe-
cimentocientíficoou manter-seatualizado no seu campo de conhecimento.
A universalidadedesse acesso tem sido um esforço coletivo da comunidade
22 Divulgação da ciência e literacia psicológica

científica,mas a predominância da língua inglesa, se, por um lado, limita


tores, editores e leitores, serve, por outro, como língua franca.
3. Lidar com as limitações e incertezas da ciência. O conhecimento cientí_
fico se diferenciapor ser tentativo (conjectural, inconclusivo;não há verda-
des absolutas); testável (sujeita-se ao teste empírico); replicável (passível de
reprodução); histórico (muda com o tempo); criativo (inventivo, imaginati-
vo); parcimonioso (procura a simplicidade da explicação, em oposição à com-
plexidade);unificador (promove uma teia de inter-relações entre conceitos,
leis, teorias); e público (divulgado, transmitido, coletivo) (Pedruzzi & Raicik,
2020). Ou seja, ele não oferece verdades permanentes sobre o que comer,
como se comportar, ou uma explicação definitiva sobre as causas e conse-
quências do aquecimento global. Também não oferece soluções mágicas para
curar doenças ou emagrecer. Os dados obtidos por meio do método científico
têm que ser cuidadosamente analisados no contexto do conjunto de conhe-
cimentosjá produzidos, disponíveis à época e em um contexto. Respostas a
novos problemas (por exemplo,um novo vírus) são ainda mais conjecturais
e dependem de muitas observações.Não há uma mente brilhante capaz de
descobrir sozinha algo novo que se tornará uma verdade científicade uma
hora para outra. O conhecimentocientíficoé um trabalho colaborativode
uma comunidade científica que se pauta pelo ceticismo e falseacionismo para
aceitar como válidos conhecimentos que possibilitam inovações (Pilati, 2018).

Três desafios da literacia psicológica


1. Produz dissonância cognitiva. Essa expressão foi cunhada pelo psicói
norte-americanoLeon Festinger em 1957 e pode ser usada para descrever
aquele desconforto quando percebemos que nossas opiniões, nosso compor-
tamento ou nossas crenças estão em contradição. A contradição pode ser pro-
vocada pela literacia psicológica. Aplicar os conhecimentos da psicologia nos
relacionamentos, na criação dos filhos, no exercício da cidadania e na comu-
nicação com as pessoas com frequência implica se perceber em contradição
com as próprias ações e o conhecimento. Tolerar esse desconforto e aceitar
essa ambiguidade requer literacia psicológica. Em termos gerais, a divulgação
da ciência também pode produzir dissonância cognitiva, por exemplo, quan-
do há um desencontrodo conhecimentocientíficocom outros tipos de co-
nhecimento, como o teológico (talvez o mais comum). Uma postura científica
de compreensão do mundo não é inata ou facilmente adquirida. A evoluçã0
l. Divulgaçáo cienllfica e psicologWu 23

paramentou com um mecanismo cognitivo que tende a nos afastar de


nos
preferindo sistemas de conhecimento fechados não falsificáveis,
incertezas,
distanciam da incerteza e das contradições. Transpor essa barreira
que nos e racional
lidar com a incerteza por meio de um pensamento flexível, cético
e
forma como a ciência produz sentido da realidade (Pilati, 2018), O usual,
éa
produtivo é se ater a uma parte ou um fragmento da psicologia
mais seguro e
área como um todo (Gomes,
definindo-o como a sua área sem compreender a
como um todo produz
2021). Sair do seu fragmentoe compreendera área
dissonância cognitiva.
psicoeducaçáo e
2. Podeparecer autoajuda. Existe uma linha tênue entre
crítico e o
autoajuda, e também entre ciência e pseudociência. O pensamento
pessoas to-
conhecimento científico oferecem informações adicionais para as
a serem segui-
marem decisões informadas (Pilati, 2018). Não são prescrições
generalização
das, pois há limitações inerentes às evidências que dificultam a
permitir
dos dados de estudos individuais.Mas um conjunto de estudos pode
conclusões.A psicologiajá reuniu evidênciassobre muitos fenómenos, mas
elas não estão unificadas em uma teoria única. Por exemplo, sobre nossas
limitaçõescognitivas (percepção, memória, atenção), sobre nossa tendência à
conformidade social, sobre os efeitos adversos e colaterais do uso da punição,
sobre a importância das figuras de apego para o desenvolvimento infantil, os
prejuízosprovocados pelo estresse e a universalidadedas emoções básicas.
Esses fenômenos podem ser estudados e cada vez mais compreendidos por di-
ferentes métodos convergentes (cada vez mais multidisciplinares), ainda que
descritospor diferentes teorias, uma pluralidade de objetos de estudo. Por
sua vez, a psicologia está na interseção do contínuo ontológico (físico, biológi-
co, psicológico,interacional, social-organizacional, cultural), requerendo uma
abordagemmetodológica capaz de incluir tanto o psicofísico como psicobio-
lógico, do mesmo modo que o psicossocial e o psicocultural. Ao apreciarmos
essa posição no contínuo ontológico, temos um pluralismo de facetas do cam-
po psicológicoque está na intersecção desse contínuo. A formação em psico-
logia e o trabalho profissional refletem esse momento da ciência da psicolo-
gia, que oscila entre a pluralidade e o pluralismo (Gomes 2021). Parece que a
literaciapsicológica navega em uma coletânea de diferentes estudos e teorias,
mas a divulgação da ciência em psicologia situa-se no contínuo ontológico
entre as ciências naturais e as humanas. Daí sua riqueza para a divulgação da
ciência:os métodos convergentes para abordar um conceito, a capacidade de
investigartemas emergentes, o rigor metodológico de suas escalas e medidas,
24 da e

n translaçào (traduçào) para a prática, as implicaçõeséticas e sociais desse


Conhecer essa ciência não garante felicidade,
( '01110
saber se unta pessoa tem literacia psicologica'? Como saber se uma
pessoa e cientista? Apesar de as qualificações académicas (o título de psicólo.
o título de doutor) sereni um critério possível, o conhecimento científico
não é restrito ao que se aprende na escola ou na universidade.A ciênciaé
ferratnenta para ir alélli das nossas lilnitaçóescognitivase fisiológicas

tuaçào oferece informações sobre onde buscar informação técnica, quais os


nnétodos possíveis para responder a problemas de pesquisa e como interpre-
tar dados. Mas a literacia vem do reconhecimento das limitações do nosso
conhecimento,das incertezas e das ambiguidades,e também do potencial
transformador do pouco que sabemos e do quanto ainda temos que avançar.
Pensando em uma cultura científica, como seria se outros soubessem o que
você sabe (e vice-versa) e cientistas soubessem comunicar o que sabem sobre
temas novos para você'?

Por onde começar?


Não tem habilidades com mídias sociais, não escreve bem, não gosta de
falar em público, não sabe editar vídeos, não tem equipamentos...? Felizmente
habilidades de comunicação podem ser desenvolvidas.Mas essa barreira não
está levando em consideração a parte mais importante da divulgação da ciên-
cia: o público. Mais importante do que o conteúdo que você quer comunicar é:

• Identificar o que a sua audiência quer ou gostaria de saber. Conhecer o seu


público (características demográficas) com empatia (o que essas pessoas
dizem, o que ouvem, o que sentem, os seus problemas, os seus contextos)
e buscar informações confiáveis na psicologia para fazer a comunicação,
• Citar a origem da informação que está utilizando (para democratizar esse
acesso e para não plagiar ideias que não são suas).

Essas são as duas principais habilidades que um bom divulgador


precisa
ter e que envolvem literacia psicológica. A maneira de divulgar
(vídeo, mídias
sociais, material escrito, cartaz, cartilha) pode até ser feita
por outros proe
fissionais! O foco na audiência e a qualidade das
informações são as peças
fundamentais para começar.
I. Divulgação científica e literacia psicológica 25

Se você acha que ainda sabe pouco para divulgar a ciência e estimular a
literacia psicológica, explique isso às pessoas ao seu redor. Em nosso país,
temos 11 milhões de analfabetos e a média de anos de escolarização é 9,4
e com grandes diferenças regionais. Nesse contexto, uma pequena ação sua
pode fazer uma grande diferença.

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