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MINO CARTA JOE BIDEN ORGULHA-SE DE AMAZONAS A SECA EXTREMA INTERDITA O

SEU PAÍS E DE SEU CARGO, MAS NÃO PASSA DE TRANSPORTE FLUVIAL E REAVIVA O POLÊMICO
PERSONAGEM MEDÍOCRE DE UM ENTRECHO SEM PROJETO DE RECUPERAÇÃO DA BR-319, UMA
NEXO E COM CONSEQUÊNCIAS IMPREVISÍVEIS AMEAÇA À INTEGRIDADE DA FLORESTA

INÊS 249

1º DE NOVEMBRO DE 2023
ANO XXIX N° 1283 R$ 31,90

— EXCLUSIVO —

CONFLITO de INTERESSES
A COMISSÃO DE ÉTICA DO GOVERNO APURA SE
ROBERTO CAMPOS NETO LUCRA COM DECISÕES DO BC
Sala das Cidades
e Estados

Conte com a experiência e os


serviços especializados da CAIXA
na execução e no gerenciamento de
projetos de desenvolvimento para o
seu estado ou município.
Financiamentos

Assessoramento Técnico

Concessões e PPP

Desenvolvimento Social
e Infraestrutura

Habitação
INÊS 249
1º DE NOVEMBRO DE 2023 • ANO XXIX • N° 1283

Parlamentares usam a
desoladora paisagem para
justificar o asfaltamento de
rodovia na Amazônia. Pág. 24

6 A SEMANA O processo
32 J U S T I Ç A
9 MARJORIE MARONA de cassação do mandato Nosso Mundo
de Sergio Moro avança 38 GAZA A diplomacia segue
no Tribunal Regional encurralada, enquanto
Ensaio Eleitoral do Paraná Israel prepara sua invasão
Biden atiça
10 M I N O C A R TA
34 ARTIGOO Estado brasileiro 40 E U A Perda de hegemonia
o revide aos oprimidos também é responsável pela acirra o exercício agressivo
desigual divisão do trabalho do poder de Washington
Seu País doméstico, a impor jornadas 42 I S R A E L As agruras de
exaustivas às mulheres

Plural
20 M I L I TA R E S O governo um judeu crítico em meio
busca distensionar a ao clamor por vingança
relação com as Forças 44 O B S E R V E R Biden torna-se
Armadas com robustos Economia

48
Ao completar
36 D I S N E Y
sócio da catástrofe iminente
investimentos na Defesa
100 anos, a maior empresa 46 A R G E N T I N A Apesar das
24 A M A Z Ô N I A A seca extrema
no bioma ressuscita o
de entretenimento do incertezas, os eleitores NOVO
A L E X PA Z U E L L O / G O VA M E R E N AT O N A S C I M E N T O

polêmico projeto de
mundo planeja drástica parecem dobrar a aposta OLHAR
mudança de rumos na resiliência democrática
recuperação da BR-319
28 M I N E R A Ç Ã O Oito anos após CIDADE DE DEUS, A SÉRIE,
o desastre de Mariana, RETRATA A COMUNIDADE SOB
milhares de vítimas ainda A PERSPECTIVA DA RESISTÊNCIA
lutam por reparação O DONO DA BANCA E COM UM VIÉS MAIS OTIMISTA
A COMISSÃO DE ÉTICA DO GOVERNO
52 T H E O B S E R V E R A experiência tornada
É INSTADA A APURAR SE O CHEFE DO linguagem 54 I D E I A S Lukács, o intérprete
Capa: Pilar Velloso. BANCO CENTRAL TEM FUNDO COM original do marxismo 56 R I TA V O N H U N T Y
Foto: Sergio Lima/AFP APLICAÇÕES EM TÍTULOS PÚBLICOS 57 A F O N S I N H O 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio INÊS 249
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa, Carlos Drummond e Mauricio Dias
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) TIRO PELA CULATRA
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
Se Augusto Aras permanecesse no
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis comando da Procuradoria-Geral da
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) República, as denúncias contra Bolsona-
REVISOR: Hassan Ayoub ro teriam um lugar certo: a gaveta. Agora,
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, Antonio Delfim Netto,
Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia Xakriabá, Celso Amorim, com a iminência da indicação de um novo
Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro, Drauzio Varella,
Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo, Guilherme Boulos, PGR pelo presidente Lula, temos espe-
Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, Lídice da Mata,
Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila, Marcelo Freixo,
rança de que justiça seja feita. A CPMI do
Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, Ornilo Costa Jr., 8 de Janeiro presidida pela senadora Eli-
Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel, Riad Younes,
Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, ziane Gama fez reverter as expectativas
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano
dos bolsonaristas de implicar o atual go-
verno. Além dos crimes elencados pela
CARTA ONLINE comissão, Bolsonaro ainda terá de res-
EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITOR-ASSISTENTE: Leonardo Miazzo
ponder por outros crimes nas searas elei-
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação), Camila Silva,
ARAPUCA toral, civil e criminal. O ex-capitão está
Getulio Xavier, Marina Verenicz e Victor Ohana
num mato sem cachorro. Nada como res-
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor) Não existe uma guerra, e sim
ESTAGIÁRIOS: André Costa Lucena, Beatriz Loss e Sebastião Moura pirar os ares puros da democracia, na
uma matança. É um Davi contra
REDES SOCIAIS: Caio César qual todos são iguais perante a lei..
SITE: www.cartacapital.com.br vários Golias, a começar pelos EUA.
Paulo Sérgio Cordeiro
Antony Blinken, secretário de Estado
norte-americano, saiu a campo para co-
Os bolsonaristas criaram uma
lher informações e repassar aos aliados
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. CPMI objetivando obter um resul-
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150 israelenses as impressões dos países
tado surrealista: que o governo Lula fos-
árabes. É uma diplomacia de fancaria.
PUBLISHER: Manuela Carta se declarado culpado por um golpe con-
José Carlos Gama
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene tra si mesmo. A investigação levou,
ANALISTA DE MARKETING E PLANEJAMENTO: Gabriela Bertolo
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos Para Biden e o governo israelense, o porém, ao indiciamento do seu “Mito”.
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios “direito de Israel se defender” autori- Aliás um segundo indiciamento, pois o
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos,
za a matança de palestinos inocentes. O primeiro ocorreu na comissão da
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva
presidente dos EUA apoia incondicional- Covid-19. Mais uma denúncia para
REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE: mente Netanyahu de olho nas eleições. O enriquecer o currículo do inelegível.
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, Sylvio Belém
enio@gestaodenegocios.com.br
veto à resolução brasileira em prol de um
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto, cessar-fogo só explicita isso. Já que os is-
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br
raelenses avaliam que o ataque do Hamas
NEOFASCISMO POP
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agholanda@Agholanda.com.br é o “11 de Setembro” do povo judeu, con- Os argentinos não aprenderam na-
MG: Marco Aurélio Maia, (31) 99983-2987, marcoaureliomaia@gmail.com
vém refrescar a memória dos resultados da com o péssimo exemplo dado
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da “guerra ao terror” travada pelos EUA. pelo Brasil em 2018? Vamos levar anos
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Av. Pedroso de Moraes, 2219 – Pinheiros – SP/SP – CEP 05419-001. últimos quatro anos. Qual é o sentido de
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de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de no tempo. Precisa despertar. Até quando o povo brasileiro
acordo com a Lei de Imprensa.
Ana Lúcia Borghese elegerá seus inimigos
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP para representá-lo?
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) Este é um daqueles textos que me- Jamari França
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
recem ser levados para as salas de
aula e reuniões de estudos bíblicos. Te- Independentemente da disputa
mo pela forma como este conflito está entre esquerda e direita, Rodrigo
sendo apresentado aos fiéis católicos e Pacheco e Davi Alcolumbre são políticos
evangélicos. O artigo de Fornazieri ser- poderosos que buscam a perpetuação
ve de base para qualquer conversa sen- no poder para defender interesses pró-
sata sobre o que ocorre na Palestina. prios e de pequenos grupos.
Antônio Thiago Paulo César Morais

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C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 5
A Semana INÊS 249

Alheio à realidade,
Castro celebrou um
“duro golpe na maior
Novo ministério milícia da Zona Oeste”

Após os ataques de milicianos


no Rio de Janeiro, Lula
voltou a defender, na
terça-feira 24, a criação de
uma pasta específica para
enfrentamento à
criminalidade. “Quando
fiz a campanha, eu ia criar
o Ministério da Segurança
Pública. Ainda estou
pensando em criar, vendo
como ele pode interagir
com os estados”, disse

Rio de Janeiro/ Cidade sitiada


no programa Conversa
com o Presidente.
“Queremos compartilhar
com os estados as soluções Criminosos ateiam fogo em 35 ônibus em retaliação à morte de um miliciano
dos problemas.” Ricardo
Capelli, secretário-executivo

O
do Ministério da Justiça, s cariocas viveram mais um dia ções dos focos de incêndio ou a partir de heli-
é o principal nome cotado
de terror na segunda-feira 23. cópteros, expuseram a letargia dos policiais e
para assumir a nova
estrutura, caso venha Milicianos atearam fogo em 30 bombeiros para isolar as áreas dos ataques e
mesmo a ser criada. ônibus, cinco BRTs (veículos ar- debelar o fogo que reduziu a pó os ônibus.
ticulados usados em corredores expressos) No início da noite, durante uma balbu-
e um trem da Supervia na estação Tancredo ciante coletiva de imprensa, Castro informou
Neves, entre os bairros de Paciência e San- que 12 suspeitos foram presos por “ações de
ta Cruz. Mais de 17 mil crianças ficaram sem terrorismo”. No dia seguinte, seis desses
aulas, milhares de trabalhadores tiveram de “terroristas” haviam sido liberados por falta
se arriscar em vans clandestinas para retor- de indícios de autoria e materialidade nos
nar às suas casas e os prejuízos das empresas atos de vandalismo. O governador ainda ten-
de transporte são estimados em 35 milhões tou dividir, na terça-feira 24, a fatura da
de reais. Os ataques ocorreram em retalia- guerra travada em seu quintal. Segundo ele,
ção à morte de Matheus da Silva Rezende, o não se trata de uma questão fluminense, e
Faustão, sobrinho de Luís Antônio da Silva sim de “um problema do Brasil”. De fato, o
Braga, o Zinho, chefe da maior milícia da Zo- crime organizado avança na maioria dos es- ROV EN A ROSA /A B R , R ED ES SO CI A IS E PAU LO PIN TO/A B R

na Oeste do Rio de Janeiro, conhecida como tados, mas nenhum outro parece ter perdido
“Bonde do Z” ou “Família Braga”. tanto o controle da situação como o Rio, com
Alheio ao suplício imposto pelos crimino- boa parte de seu território controlado por
sos à população carioca, o governador Cláudio milícias e por facções do narcotráfico, sem
Castro celebrou nas redes sociais a operação mencionar as sociedades entre os grupos.
policial que resultou na morte do líder milicia- Em resposta aos apelos do governador, o
no. “Hoje demos um duro golpe na maior milí- ministro da Justiça, Flávio Dino, enviou mais
cia da Zona Oeste”, escreveu no Twitter, antes 145 agentes da Força Nacional para reforçar a
de bravatear: “O crime organizado que não ou- segurança no Rio. O grupo se juntará a outros
se desafiar o poder do Estado”. Não apenas de- 155 homens que já atuam no patrulhamento.
safiou, como expôs a inação das forças de se- Nas rodovias federais, o policiamento conta
gurança durante a onda de ataques. As ima- com 550 agentes federais, sendo 250 da Polícia
gens captadas pelos telejornais, nas imedia- Rodoviária Federal e 300 da Força Nacional.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
1º.11.23

São Paulo/ Espiral da intolerância


Vale-tudo eleitoral

Em busca de reeleição
Adolescente vítima de homofobia abre fogo contra colegas em escola pública em 2024, o prefeito de São
Paulo, Ricardo Nunes, passou
a adotar os mesmos métodos

V
ítima de bullying por ser homos- coisa aconteça. A escola tem de ser um local de seu padrinho político na
sexual, um adolescente de 16 anos seguro, tem de ser um local de convivência”, disputa, Jair Bolsonaro.
matou a tiros uma estudante e fe- lamentou o governador paulista, Tarcísio de Em recente entrevista à Rádio
riu outras duas em uma escola Freitas, ao reconhecer que o Estado falhou no Eldorado, insinuou que o
deputado Guilherme Boulos,
pública no Jardim Sapopemba, Zona Leste de combate ao bullying e à homofobia nas escolas.
do PSOL, seu principal
São Paulo, na segunda 23. Aluno do primei- “Depois de uma situação dessas, você chega à adversário, tem relações
ro ano do ensino médio, ele entrou no colégio conclusão de que não estamos sendo capazes.” com o Hamas, grupo armado
por volta das 7h30, efetuou os disparos e de- Giovanna Bezerra, de 17 anos, levou um tiro palestino que executou
pois foi apreendido pela Polícia Militar. na cabeça e morreu. As duas feridas foram so- mais de 1,3 mil israelenses,
a maioria deles civis. “O eleitor
“A gente não pode deixar que esse tipo de corridas e levadas para o Hospital Sapopem-
quer saber como é que
ba. O advogado Antonio Edio, está a cidade dele, se vai ter
que representa o atirador, con- prefeito que é amigo da turma
firmou que o adolescente pegou do Hamas, se vai ter prefeito
o revólver do pai escondido pa- que é adepto de invasão, de
não atender à legislação.”
ra o ataque por “não aguentar
Após semear a fake
mais essa situação de homofo- news, o emedebista, cuja
bia”. Ao se solidarizar com as ví- administração é avaliada
timas e seus familiares, o presi- positivamente por apenas
dente Lula criticou o aumento 23% dos paulistanos,
segundo o Datafolha,
do número de armas de fogo em
arrematou: “Sou um cara que
posse de civis, incentivado por respeita as leis, né?” O alcaide
Jair Bolsonaro. “Não podemos parece ignorar o fato de que
normalizar armas acessíveis difamação também é crime.
para jovens na nossa sociedade
Tarcísio de Freitas reconheceu o fracasso do Estado no combate ao bullying e tragédias como essas.”

Cracolândia/ MAD MAX PAULISTANO


PARA ESCAPAR DE ATAQUE, MOTORISTA ATROPELA 16 USUÁRIOS DE DROGAS

Ao trafegar pela Avenida Rio na de uso de crack. Oito vítimas com o objetivo de dispersar os
Branco, no Centro de São foram hospitalizadas, quatro frequentadores da Cracolândia
Paulo, o motorista de um delas com fratura exposta. e sufocar o narcotráfico. Na
Volkswagen Virtus viu-se cer- O episódio desnuda a falên- prática, a iniciativa apenas
cado por uma horda de usuários cia da política de guerra às dro- fragmentou a cena de uso, es-
de drogas no cruzamento com a gas decretada pelo prefeito Ri- palhando usuários pela região
Rua dos Gusmões. Eles arre- cardo Nunes, do MDB, em par- central. Na região do 3º DP, de
bentaram os vidros do carro, ceria com o então governador Campos Elísios, os roubos du-
furtaram a bolsa da esposa e Rodrigo Garcia (PSDB) e, a par- plicaram em dois anos. De ja-
um celular na mão de uma crian- tir deste ano, com Tarcísio de neiro a agosto deste ano, foram
ça no branco traseiro. Em atitu- Freitas (Republicanos). 4.766, quase 20 por dia. No
de desesperada, o condutor Em junho de 2021, a prefei- mesmo período de 2021, ocor-
acelerou o veículo e atropelou tura e o governo estadual defla- reram 2.282 roubos, pouco O foco na repressão e na dispersão
16 pessoas aglomeradas na ce- garam a Operação Caronte, mais de nove casos diários. dos adictos revelou-se um fiasco

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A Semana INÊS 249

Irã/ Atrocidade
Com a bênção
de Ancara

O presidente Recep Tayyip


Erdoğan apresentou ao
desvelada
Parlamento da Turquia, na Garota de 16 anos morre após
segunda-feira 23, a proposta espancamento pela polícia da
de adesão da Suécia à Otan,
a aliança militar liderada por moralidade no metrô de Teerã
potências ocidentais. Durante
meses, Ancara bloqueou a
adesão da Suécia à Otan, sob

A
adolescente Armita Geravand,
a alegação de que Estocolmo
oferece refúgio a militantes que estava em coma após ter si-
do Partido dos Trabalhadores do espancada pela polícia da
do Curdistão, o PKK. O grupo moralidade no metrô de Teerã,
separatista aderiu à luta teve morte cerebral confirmada no domingo
armada pela criação de um
22. Organizações de direitos humanos, co-
Estado para o povo curdo e é
considerado uma organização mo a Hengaw, foram as primeiras a noticiar
terrorista pela Turquia, pela a hospitalização da garota de 16 anos, que
União Europeia e pelos EUA. teria sido abordada por violar a lei que obri- A garota foi abordada por não usar o hijab,
Erdoğan cedeu aos apelos ga o uso do hijab, véu que cobre os cabelos de denunciam ONGs de direitos humanos
do governo sueco após
mulheres muçulmanas. As autoridades ira-
barganhar com o presidente
norte-americano, Joe Biden, nianas negam a agressão e dizem que a jo- tembro do ano passado, Mahsa Amini, de 22
um vantajoso acordo para a vem caiu após sofrer uma queda de pressão. anos, morreu sob custódia da polícia moral
aquisição de 40 caças F-16 e A empresa responsável pelo metrô de iraniana, após ser presa em Teerã por supos-
79 kits de modernização para Teerã divulgou um vídeo que mostra a ado- tamente não usar o hijab da forma correta. O
aviões de guerra, ao custo de
lescente desacordada, sendo retirada do assassinato desencadeou a maior onda de
20 bilhões de dólares.
trem para a plataforma. O vídeo apresenta, protestos no país desde a Revolução Islâmica
porém, pontos de edição e não mostram o de 1979. A teocracia iraniana reagiu à mobili-
que ocorreu dentro da composição. Em se- zação com violenta repressão.

Europa/ TORMENTA NO BÁLTICO


A OTAN AMEAÇA RETALIAR A RÚSSIA POR SUPOSTA SABOTAGEM EM GASODUTO

A Rússia e os países da Otan no ano passado, os investiga- tegrante da Otan, sugeriu blo-
voltaram a trocar acusações, dores acreditam que uma peça quear as rotas marítimas rus-
desta vez por conta de um inci- metálica grande e pesada, en- sas no Mar Báltico, se for com-
dente no Mar Báltico. A Finlân- contrada perto do local do va- provada a sua participação.
dia, que aderiu à aliança militar zamento, foi lançada intencio- “Repito mais uma vez: a Rús-
REDES SOCIAIS E ISTOCKPHOTO

do Ocidente meses após a inva- nalmente de uma embarcação sia não teve nada a ver com is-
são da Ucrânia, acusa Moscou russa. Uma linha de transmis- so. Qualquer ameaça tem de
de sabotar o Baltic Connector, são de dados que corria em pa- ser levada a sério, não importa
gasoduto de 77 quilômetros de ralelo também foi cortada. de quem venha. Qualquer ame-
extensão que assegura o forne- Helsinque pediu explicações aça à Federação Russa é ina-
cimento de gás natural de à China e à Rússia sobre a pre- ceitável”, reagiu Dmitri Peskov,
Helsinque a partir da Estônia. sença de seus navios na região. porta-voz do Kremlin, advertin-
Diferentemente do ocorrido Já Edgars Rinkevics, presiden- do para a possibilidade de uma
Moscou “não teve nada a ver com nos dutos russos Nord Stream, te da Letônia, ex-república so- escalada no conflito em caso de
isso”, rebateu porta-voz do Kremlin alvos de explosão submarina viética vizinha da Estônia e in- retaliação aos navios russos.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
MARJORIE MARONA
Professora do Departamento de Ciências Políticas da
UFMG. É coautora de A Política no Banco dos Réus: a
Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil

República das togas

que suas prerrogativas lhe facultam, tal- forma ainda miram alterações de regras
► A expansão do poder vez como estratégia para aumentar sua processuais, reduzindo o poder dos mi-
judicial cria obstáculos influência sobre o Supremo e adjacências nistros individual ou coletivamente: é o
judiciais, contornando os custos políticos caso daqueles que buscam limitação pa-
ao presidencialismo com sua base social de apoio, que reclama ra decisões monocráticas ou preveem a
de coalizão e representa uma postura enérgica em face das assime- possibilidade de derrubada das decisões
um desafio adicional trias de gênero e raça no Poder Judiciário. do STF pelo Congresso.
Reagindo, o ministro Luís Roberto
para a governabilidade Nesse espírito, Lula teria deixado pa- Barroso convocou uma entrevista co-
ra conferir a Edilene Lobo o posto de pri- letiva em que saiu em defesa do STF, re-
meira ministra negra da história do TSE lembrando a higidez e eficiência da Cor-

A
té bem recentemente, a quase apenas depois que o clamor por repre- te diante das ameaças à democracia. De
unanimidade dos analistas po- sentatividade no Judiciário já se torna- resto, o ministro parece ignorar as ban-
líticos brasileiros recorreria, ra ensurdecedor; e não sem antes ter aco- deiras agitadas tanto pelo governo quan-
sem pestanejar, ao presidencialismo de modado as preferências dos próprios mi- to pelo Legislativo que, dissemelhantes
coalizão como artefato explicativo um nistros do STF. Para o STJ, o presidente em forma e conteúdo, se agitam sob os
tanto versátil do funcionamento do sis- preferiu indicar separadamente a advo- mesmos ventos do desejo de contenção
tema político. A ideia de que a governa- gada Daniela Teixeira, recolhendo pon- dos ímpetos expansionistas do poder ju-
bilidade depende da capacidade do pre- tualmente os ativos de sua escolha, pa- dicial. Prova disso é o resgate do julga-
sidente de construir coalizões multipar- ra, então, nomear dois outros homens pa- mento da ação em que a existência de um
tidárias como base de apoio no Congres- ra as vagas restantes. Finalmente, espe- estado de coisas inconstitucional no sis-
so forjou um modelo analítico vigoroso, cula-se que Lula venha buscando o no- tema prisional havia sido reconhecida.
inobstante desafiado, desde o princípio, me de uma jurista mulher que empreste A inquestionável violação massiva,
pela expansão do poder judicial. Aliás, legitimidade à jogada que envolve o mo- sistemática e generalizada de direitos
depois de Bolsonaro, a relação entre os vimento de peças no Ministério da Jus- fundamentais, decorrente da situação
poderes Executivo e Legislativo, de um tiça e na AGU para o preenchimento da das penitenciárias no Brasil, não afasta
lado, com o Supremo, de outro, poderia vaga no STF, aberta pela aposentadoria todas as críticas sobre os fundamentos
bem ser caracterizada como uma espécie da ministra Rosa Weber. Quanto à PGR, civilizatórios da atuação do Supremo, tal
de Síndrome de Estocolmo – aquela em em que se registra escassez de candida- qual defendido por Barroso e reafirmado
que as vítimas de sequestro desenvolvem tas mulheres, dados os critérios de elegi- pela oportunidade que o julgamento ofe-
sentimentos de simpatia, empatia ou até bilidade, Lula vem adiando a indicação rece para que a Corte promova interven-
lealdade em relação aos sequestradores. de um substituto para Aras, estendendo ção deveras ativa na conformação das po-
Não surpreende, portanto, que o STF o mandato de Elizeta Ramos indefinida- líticas públicas. De fato, o STF não pode
venha sofrendo pressões tanto do gover- mente – na prática tornando-o ad nutum. ser refém das disputas políticas para se
no quanto do Congresso. De um lado, Lula Desde outro front a Câmara requen- desincumbir de seu quinhão na constru-
parece ter adotado uma abordagem inova- ta propostas de reforma que visam en- ção de um país mais justo e democrático.
dora em face do processo de indicação pa- quadrar o Supremo, assumindo a clássica Não pode, porém, lançar mão da retórica
ra a Corte – e outros cargos da cúpula do tática de retaliação que consiste na pro- da razão iluminista de um tribunal cren-
sistema de justiça e da alta burocracia ju- positura, e eventual aprovação, de emen- te na sua missão de empurrar a história
rídica do Estado, no STJ, TSE, PGR e AGU, das constitucionais sobre temas já deci- à revelia do senso comum majoritário. A
por exemplo. Desde a controversa nomea- didos pela Corte, que alteram o modelo tradução institucional dessa batalha cer-
ção do ministro Cristiano Zanin para a Su- de nomeação dos ministros, estabelecem tamente transborda o modelo da coali-
B A P T I S TÃ O

prema Corte, Lula dá sinais de promover mandatos ou fixam critérios que modi- zão. Mais não se sabe. •
uma articulação conjunta das indicações fiquem seu perfil. Outros projetos de re- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 9
Ensaio

A guerra insana Joe Biden pretende que o opressor


se torne oprimido
P O R M I N O C A R TA

E
xtraio de uma gave- começar pelas atuais. A reportagem de ele cultivava uma pretensa vocação de
ta que se confunde capa desta edição – assinada pelo exce- Dom Juan, conquistador indestrutível
com a minha memó- lente André Barrocal – conta das ma- de qualquer fêmea, disponível ou não.
ria de jornalista de zelas do neto de Roberto Campos, à Roberto Campos visitava amiúde os
longuíssimo curso época dele também conhecido como Civita da Editora Abril, quando eu di-
imagens que se Bob Fields. Além de servir aos interes- rigia a revista Veja, e aos donos da ca-
prestam a contar histórias variadas, a ses dos Estados Unidos e da ditadura, sa recomendava que se livrassem do aci-

M A HMUD H A MS/A FP E SAUL LOEB/A FP

Ele é capaz de se orgulhar ...

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
INÊS 249

... por esta devastação

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 11
Ensaio

ma assinado. A dama favorita de Bob na Fria, apresentava-se como a luz a en- pela primeira vez, Barack Obama disse
época, certa vez, me ofereceu um relato frentar as trevas representadas pela ao encontrá-lo: “Eis aqui o cara”. Logo,
das façanhas do senhor ministro, mas eu União Soviética. entretanto, o seu Departamento de Es-
recusei, embora não deixasse de anotar Era treva geral, pois nem uma po- tado cuidou de abastecer com informa-
tudo aquilo que ela me dizia. A imagem tência nem a outra arcava com o papel ções evidente e pretensamente negati-
convocada para ilustrar aquele momen- pretendido. Ambas significavam o im- vas a respeito do próprio “cara”. Foi en-
to mostra-me entre Campos e Delfim perialismo praticado de formas diferen- tão deflagrada a Lava Jato, que chegou
Netto, em um almoço no restaurante tes, mas sempre malignas. Nunca deixa- a prender Lula para aprisioná-lo na pró-
instalado no último andar do prédio da ram de haver motivos para que o Brasil pria sede da Polícia Federal em Curitiba.
Abril, na Marginal Tietê, em São Paulo. desconfiasse das intenções do “grande Uma foto aparece nestas páginas pa-
irmão do Norte”, conforme os editoriais ra evocar o dia da prisão, ainda à espera

R
ecomendo observar o ter- da dita grande imprensa nativa, embo- no Sindicato dos Metalúrgicos de São
no italiano de seda enver- ra eu a encarasse como mínima, a pior Bernardo, quando Celso Amorim e o
gado pelo nosso herói. Não do mundo. Mesmo em tempos recen- acima assinado ladearam Lula, foto-
sei até que ponto valeria a tes, Tio Sam remeteu a sua frota até as grafados não por acaso pela fidelíssima
pena dizer tal avô tal neto, mesmo por- costas brasileiras para garantir, se pre- secretária Cláudia, enquanto a polícia
que atuam em áreas distintas. Mas a ciso fosse, o golpe de 1964, sem contar esperava aos pés da ladeira que deságua
personagem do enredo que o mundo vi- Dan Mitrione, espião da CIA, a desem- na avenida principal, onde seus agentes
ve neste exato instante é, indiscutivel- penhar o papel de vigilante dos movi- se amoitavam. Naquele momento, foi
mente, Joe Biden, o presidente dos Es- mentos centro e sul-americanos. então selada uma grande e indestrutí-
tados Unidos que tanto se orgulha do Quando Dilma Rousseff assumiu a vel amizade entre os dois visitantes, re-
seu país e do cargo que exerce. A bem Presidência, teve de se empenhar para lação que até hoje dá frutos na impecá-
da sacrossanta verdade, não represen- que Washington não conseguisse impor vel assessoria daquele que já foi chan-
ta a potência ilibada que deveríamos à Petrobras a presença das sete fatídicas celer e hoje é o conselheiro especial do
admirar. Durante a chamada Guerra irmãs. Mas, em 2003, Lula empossado presidente da República.

Antiga conversa
quando Roberto
Campos era
Bob Fields

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Importante a definição da política Esta conversa em torno entrecho sem nexo, rejeita toda e qual-
de Lula gerou uma
de grande resguardo em relação aos quer solução, em primeiro lugar aque-
amizade indestrutível
planos de Netanyahu, graniticamente la sugerida pela diplomacia brasileira,
convencido da condição de Israel como e promove o conflito insano. Não seria
país eleito por Deus para todo o sempre. esta uma demonstração da pontualidade
Verifica-se, contudo, que o Holocausto, ameaça crescer exponencialmente. do tropel dos cavaleiros do Apocalipse,
decantado em prosa e verso, nada ensi- Biden, no entanto, acha que assim há a encarnarem desgraças que medeiam
nou a Israel de Netanyahu, pronto a en- de ser, já que na sua opinião soberana entre fome, fogo, guerra e pestilência?
frentar com força total a justa rebeldia os repressores tornam-se oprimidos, Insisto, sou jornalista de longa data.
dos palestinos rechaçados para a Faixa em uma singular troca de papéis. Se- Dúvidas há em relação à do meu nas-
de Gaza, bombardeados e talvez inva- ria possível acabar com esta guerra, a cimento, de todo modo ocorrido em
didos a curto prazo, privados de água e despeito do empenho de países como o Gênova, cidade de Cristóvão Colombo.
eletricidade e, portanto, de operar hos- Brasil a favor da paz? A fúria do agres- Exageradas, exorbitantes décadas de
pitais, onde já morreram 4 mil crianças, sor que se reputa agredido, com o aval jornalismo aprendido com meu pai.
ARQUIVO PESSOAL

mulheres e idosos. do presidente americano, de olhos vol- Tempos duros de um trabalho que aca-
O balanço desta operação desuma- tados para o vácuo de Torricelli, o pon- bava entre duas e três da manhã. Ao en-
na aponta que o total de mortos já pas- to de interrogação soa como definitivo. cerrá-lo, ele concluía a jornada com a
sa de 7 mil e, vistas as condições atuais, Biden, protagonista medíocre de um frase: “Mais uma batalha perdida”. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 13
R EPORTAGEM DE CA PA

DOIS LADOS
DO BALCAO
A COMISSÃO DE ÉTICA DO GOVERNO É INSTADA
A APURAR SE CAMPOS NETO DETÉM UM FUNDO
COM APLICAÇÕES EM TÍTULOS PÚBLICOS

por A NDR É BA R ROCA L

O
governo luta no Congres- ca de sua indicação para o cargo. A pape-
so para aprovar a cobran- lada informava ainda que Campos Neto
ça de Imposto de Renda possuía quatro offshores: Peacock Asset,
sobre os lucros de fun- COR Asset, ROCN e Darling Corp. To-
dos exclusivos e de em- das em paraísos fiscais. A primeira, nas
presas sediadas no exte- Bahamas, as demais, nas Ilhas Virgens.
rior, geralmente em pa- Em outubro de 2021, no escândalo dos
raísos fiscais, as chama- Pandora Papers, um consórcio internacio-
das offshores, mas esbarra nas resistên- nal de mídia revelou o nome de figurões
cias de sempre. Compreende-se: os negó- detentores de negócios em paraísos fis-
cios na mira são coisas de milionários. A cais. Campos Neto despontou em cena,
equipe econômica estima que os fundos graças à COR Asset. Havia constituído a
e as offshores guardem 1,5 trilhão de reais firma em 2004, com 1 milhão de dólares.
em nome de 62 mil brasileiros, média de Diz tê-la fechado em agosto de 2020. Por
24 milhões de reais por titular. Entre es- 15 meses, tinha sido presidente do BC e ao
ses abonados está o presidente do Banco mesmo tempo investidor offshore. Resu-
Central, Roberto Campos Neto. mo da ópera: escapava de imposto no Bra-
O economista carioca de 54 anos sil e podia aferir ganhos extras na hipóte-
construiu uma sólida carreira de finan- se de o dólar encarecer diante do real. O
cista antes de chegar ao BC pelas mãos BC, registre-se, influencia o preço da moe-
ZECA RIBEIRO/AG. CÂ M A R A

de Jair Bolsonaro, em 2019. Havia tra- da brasileira. Em decorrência do escânda-


balhado na década de 1990 no banco lo internacional, a Comissão de Ética Pú-
Bozano Simonsen, depois juntou-se à blica, órgão da Presidência da República,
equipe do espanhol Santander por 17 abriu uma investigação sobre o banquei-
anos, em dois períodos diferentes (de ro. Um processo do tipo “ético”, que exa-
2000 a 2003 e de 2006 a 2018), confor- Tudo dentro da lei, afirmam mina a conduta de um funcionário fede-
me o currículo enviado ao Senado à épo- os advogados de Campos Neto ral. Seu número é 00191.000622/2021-71.

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
UMA DÚVIDA DE FUNDO

No site da CVM, a “xerife” do


mercado financeiro e de capitais,
é possível ver as características e
os negócios do fundo exclusivo de
30 milhões de reais que seria de
Campos Neto. O investimento em
títulos públicos tem potencial para
configurar conflito de interesses

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 15
R EPORTAGEM DE CA PA

Lemos assumiu a relatoria na Comissão


de Ética. Haddad faz o meio de campo entre
o presidente Lula e Campos Neto

A comissão faz reuniões mensais e o to do desembargador Morais da Rocha. ro: Roberto de Oliveira Campos Neto. “To-
processo foi colocado na pauta do encon- Questionados quatro vezes por da a gestão de seus investimentos, desde
tro de 29 de junho deste ano. Pela primei- CartaCapital, os advogados Ticiano que assumiu o Banco Central, foi terceiri-
ra vez desde a sua abertura, o recurso en- Figueiredo e Pedro Ivo Veloso, defenso- zada, justamente como forma de demons-
trou na fila de julgamentos. O relator de res de Campos Neto, não confirmaram a trar sua lisura, boa-fé, compromisso com
então era Francisco Bruno Neto, advo- existência da ação nem explicaram os ar- a ética pública, bem como evitar qualquer
gado e professor nomeado por Bolsonaro gumentos que a embasaram. É possível tipo de conflito de interesses, conforme já
em 2020, cujo mandato de três anos ter- conferir, no site da Comissão de Ética, que informado, em mais de uma oportunida-
minou. O atual é Bruno Espiñeira Lemos, o processo foi “suspenso por decisão judi- de, à Comissão de Ética”, responderam por
procurador do estado da Bahia, também cial em relação ao impetrante ROCN”. São escrito os advogados. “Aliás, tais fatos já
advogado e ex-defensor do petista Jaques as iniciais do nome completo do banquei- foram analisados, mais de uma vez, pelo
Wagner, líder do governo no Senado. Le- MPF, que jamais constatou ilícito ou irre-
mos assumiu um posto na comissão em gularidade. Portanto, é um assunto que já
fevereiro, nomeado por Lula. foi esclarecido, cuja licitude foi reafirmada
pelas autoridades competentes.”

S
em ter sido julgado em junho, Se tudo está esclarecido e o banqueiro
o processo voltou à pauta da agiu sempre conforme a lei, qual a razão
Comissão de Ética em julho, para recorrer à Justiça e impedir a análi-
depois foi listado entre os te- se da Comissão de Ética? CartaCapital fez
mas de uma reunião extraor- esta pergunta aos advogados e não obteve
dinária de 5 setembro e pauta- resposta. O chefe do Ministério Público
ESPECIA L /PR E M A RCELO CA M A RGO/A BR
ZECA RIBEIRO/AG. CÂ M A R A , GA BINE T E

do de novo para a reunião rotineira da- Federal em 2021, Augusto Aras, havia ins-
quele mês (dia 27). Nesta última opor- taurado uma averiguação preliminar so-
tunidade, uma ordem judicial impediu bre Campos Neto após os Pandora Papers,
qualquer deliberação. Campos Neto ha- mas logo arquivou o caso. A exemplo de
via recorrido à 16a Vara Federal de Brasília Campos Neto no BC, Aras fora indicado
e conseguido uma liminar, em uma ação por Bolsonaro para a Procuradoria-Geral
que corre sob sigilo. Em 23 de outubro, a da República. Na eleição do ano passado,
Advocacia-Geral da União foi ao Tribunal o economista foi votar vestido com uma
Regional da 1a Região para tentar derrubá- O deputado Lindbergh Farias quer saber camisa amarela da Seleção Brasileira de
-la. O recurso aguarda um pronunciamen- se o fundo é ou não do presidente do BC futebol, traje típico do bolsonarismo. No

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
início de 2023, com Lula no poder, ainda SILÊNCIO POR VIA JUDICIAL
integrava um grupo de WhatsApp intitu-
lado “ministros Bolsonaro”.
Integrante da Comissão de Ética de
2012 a 2018 e seu ex-presidente, o advoga-
do Mauro Menezes diz haver um protoco-
lo internacional sobre os procedimentos
adequados a autoridades da área econômi-
ca que, no momento da posse, tenham ne-
gócios particulares. A autoridade precisa
nomear alguém para cuidar desses negó-
cios, um blind trust, e comprometer-se a
não se envolver na gestão, a não se comu-
nicar com o gestor, nem dar informações
a ele. “A pessoa não pode ser obrigada a se
desfazer dos negócios, mas também não
pode interferir neles”, afirma Menezes. É
o que os advogados de Campos Neto sus-
tentam ter ocorrido no caso das offshores.
“Se houver uma prova de que a autorida-
de orientou os investimentos ou a admi-
nistração desses negócios, aí teríamos um
problema”, prossegue Menezes.

A
dor de cabeça de Campos
Neto por estes dias não se li-
mita às offshores. Há também
um “fundo exclusivo”. Em 27
de setembro, mesmo dia em
que foi proibida pela Justiça
de julgar o processo sobre o banqueiro, a O presidente do BC conseguiu uma liminar na Justiça para impedir a Comissão
Comissão de Ética recebeu um pedido pa- de Ética de examinar, em setembro, um processo contra ele. No site da Comissão, ele é identificado
como ROCN, as iniciais de seu nome completo, Roberto de Oliveira Campos Neto
ra investigá-lo por conflito de interesses.
Desde 2001, o Código de Conduta da Alta
Administração Federal veda a participa-
ção de uma autoridade em “investimento flito de interesses partiu do deputado vestimentos que possuam, além de preen-
em bens cujo valor ou cotação possa ser Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janei- cher uma Declaração de Conflito de In-
afetado por decisão ou política governa- ro, crítico contumaz do juro alto pratica- teresses. São regras destinadas a preve-
mental a respeito da qual a autoridade do pelo Banco Central. O parlamentar ci- nir que motivações privadas influenciem
pública tenha informações privilegia- ta no documento um certo “fundo exclu- o rumo de políticas públicas.
das, em razão do cargo ou função”. Quem sivo”. Esse tipo de fundo costuma cuidar O fundo exclusivo atribuído a Campos
viola o código, diz o artigo 17, está sujeito do patrimônio de um indivíduo ou de uma Neto tem o CNPJ 30.077.624/0001-78.
a uma advertência da Comissão de Ética. família. Aquele mencionado pelo deputa- Foi registrado no mesmo dia, 10 de janei-
Mais: a comissão pode sugerir ao presi- do tem realizado investimentos afetados ro de 2018, na Comissão de Valores Mobi-
dente da República a demissão do fun- por decisões do BC. Sua existência cons- liários, a “xerife” do mercado financeiro,
cionário. Uma situação que, na hipótese taria das informações que o próprio Cam- e na Receita Federal. É possível ver suas
de chegar a tal ponto no caso de Campos pos Neto prestou à Comissão de Ética ao características e seu histórico de investi-
Neto, terminaria nos tribunais. Motivo: a entrar no cargo atual. Integrantes dos al- mentos no site da CVM. Possui um único
Lei de Autonomia do BC, de 2021. tos escalações governamentais precisam cotista, pessoa física e detentor de 100%
O pedido feito à comissão sobre con- informar à comissão sobre empresas e in- do patrimônio desde o início. É mantido

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 17
R EPORTAGEM DE CA PA

e gerido pelo Santander, a instituição que


empregou Campos Neto por quase duas
décadas e que, hoje, está entre umas das
poucas escolhidas pelo BC para planejar a
criação de uma “moeda digital” brasileira.
Os investimentos do fundo exclusivo
mantido no banco espanhol começaram
em 29 de janeiro de 2019, um mês antes de
Campos Neto assumir o BC. O montante
guardado somava 12,5 milhões de reais na
ocasião. Agora em outubro, chega a 30,5
milhões, crescimento de 144% em pouco
menos de cinco anos. Em cifras, o aumen-
to foi de 18 milhões de reais, média mensal
de 315 mil. O salário do presidente do BC
é de 18,8 mil. De início, o fundo aplicava
quase tudo em cotas de fundos de renda
fixa do Santander. Hoje, sua carteira está
diversificada. Dos 30,5 milhões de reais,
17,7 milhões (58%) estão em cotas de ou-
tros fundos, 4,4 milhões (14%) em ações
e 7,9 milhões (25%), em títulos públicos.

T
ítulo público é um papel que o go-
verno vende no mercado finan-
ceiro em troca do compromisso
de devolver o dinheiro lá na fren-
te ao comprador e de pagar um
adicional sobre o valor original
do título. Assim a turma da Avenida Faria
Lima se esbalda sem fazer força: “empres- O BC independente mantém deu mais 1,2 milhão de reais, com o juro
os juros acima dos 12% ao ano
ta” ao Poder Público em troca de juro alto. a 12,75%. Agora em outubro, há 332 mil
Uma das referências usadas para remu- reais de LFTs no fundo exclusivo.
nerar um comprador de título público é a data em que o governo promete pagar o No dia do pedido de análise do fundo
taxa básica do Banco Central. O porcen- detentor do papel. A aplicação nas LFTs pela Comissão de Ética, Campos Neto
tual da Selic é revisto a cada 45 dias pelo correspondia a 20% do patrimônio do havia sido questionado no Congresso so-
Comitê de Política Monetária, grupo for- fundo à época. A Selic estava em 2%, a me- bre a posse de um fundo exclusivo e fugi- M A RCELO CA M A RGO/A BR E JON AS PEREIR A /AG. SEN A DO

mado pelo presidente e os oito diretores nor já registrada. Eram tempos de pande- ra do assunto. O presidente do BC partici-
do BC. De sua entrada no banco até ou- mia e de economia devagar, quase paran- pava de uma audiência pública na Comis-
tubro de 2023, Campos Neto participou do. Dois meses depois, o fundo vendeu a são de Finanças e Tributação da Câmara
de 37 reuniões do Copom. A Selic estava terceiros cerca de metade das LFTs. A Se- dos Deputados e tinha sido inquirido por
em 6,5% quando de sua estreia no comitê lic ainda era de 2%. Em tese, uma transa- Lindberghh Farias: “O senhor tem fundo
e paira nos 12,75% desde 21 de setembro. ção sem ganho extra além dos 2% de ju- exclusivo?” Para o petista pode até ser “le-
Em agosto de 2020, o fundo exclusivo ros. Título ligado à Selic tem rendimen- gal”, mas é “imoral” o chefe do Banco Cen-
em questão investiu 5 milhões de reais em to diário no montante equivalente à fatia tral “colocar dinheiro em offshore e fundo
Letras Financeiras do Tesouro, títulos in- diária da taxa. Em julho de 2021, o fundo exclusivo para não pagar imposto”. “Nesse
dexados à Selic. Essas LFTs tinham sido vendeu mais 495 mil reais daquelas LFTs, fundo exclusivo, tem investimento em Te-
emitidas pelo Tesouro Nacional cinco me- quando a Selic estava em 4,25%. No mês souro Direto, em títulos do Tesouro? Ele
ses antes, em 13 de março de 2020, com seguinte, alienou mais 810 mil, com taxa é remunerado pela Selic ou pelo IPCA?”,
vencimento em 1o de setembro de 2026, a 5,25%. Em junho do ano passado, ven- prosseguiu o deputado. Campos Neto co-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
mentou que era a favor de cobrar Impos- O “fundo exclusivo” pode custar a
to de Renda de offshore e fundo exclusivo. Campos Neto um terceiro processo na
E só. “O senhor não me respondeu se tem AO PARTICIPAR DE Comissão de Ética. O caso Pandora Papers
um fundo exclusivo. Se esse fundo exclu- UMA AUDIÊNCIA NA gerou não um, mas dois. Além daque-
sivo tem remuneração de taxa Selic ou de le “ético”, há um destinado a examinar a
CÂMARA, CAMPOS
IPCA (…) É grave se a remuneração foi ta- Declaração de Conflito de Interesses que
xa Selic ou IPCA”, replicou o parlamentar. NETO RECUSOU-SE o presidente do BC havia apresentado ao
A RESPONDER SE entrar no governo. O objetivo é conferir se
É OU NÃO TITULAR

P
edro Paulo, do PSD do Rio, ele havia prestado informações suficien-
deputado-relator da lei da taxa- tes sobre suas offshores e sobre como lida-
DO FUNDO
ção de offshores e fundos exclu- ria com suas aplicações privadas enquan-
sivos, saiu em socorro do ban- to ocupasse um cargo público. O proces-
queiro: “A pergunta vai ao en- so, de número 00191.000706/2021-71, es-
contro do sigilo fiscal do presi- No pedido dirigido à Comissão de Éti- teve na pauta da comissão em agosto e se-
dente do Banco Central (...) Ele não está ca após o debate, o deputado petista afir- tembro. Nesta última, um pedido de vistas
nessa audiência aqui obrigado a responder ma que nenhum questionamento havia de Bruno Lemos adiou uma decisão. O re-
sobre aplicações que ele tem na pessoa físi- sido “satisfatoriamente respondido (pelo lator do caso é Edvaldo Nilo de Almeida,
ca dele”. Guilherme Boulos, do PSOL pau- presidente do BC) de modo a afastar qual- advogado nomeado no ano passado por
lista, uniu-se a Farias: “Pelo bem da trans- quer suspeita de violação do Código de Bolsonaro. Paulo Guedes, ex-ministro da
parência, se ele não tem nada a dever, se- Conduta da Alta Administração Federal”. Economia, figura nos mesmos dois pro-
ria muito interessante que respondesse”. CartaCapital perguntou aos advogados de cessos oriundos do escândalo de 2021. Ele
Campos Neto declarou estar ali para deba- Campos Neto sobre fundo exclusivo, ou- tinha uma offshore, a Dreadnoughts, nas
ter economia e não respondeu sobre o fun- tros fundos que possa ter o economista e Ilhas Virgens, aberta com 8 milhões de dó-
do exclusivo. Falou apenas de offshores: eventuais conflitos de interesse. “Não há lares em 2014. Seus advogados são os mes-
que as tem há 15, 20 anos e que não mo- qualquer relação entre a atuação do presi- mos de Campos Neto e conseguiram igual-
vimentou esse dinheiro no exterior, pois dente do Banco Central e seus investimen- mente uma liminar judicial para barrar o
terceirizou a gestão. “Mas o senhor tem ou tos. Todas as mudanças na taxa Selic fo- exame de um dos casos pela comissão.
não tem fundo exclusivo?”, insistiu Farias. ram adotadas de forma colegiada, técnica, O andamento de seus processos, sua
Novo silêncio do banqueiro. A audiência e com o objetivo de controlar o crescimen- presença pela manhã no Congresso em
pública terminou com a dúvida no ar. to da inflação”, responderam por escrito. 27 de setembro, o posterior pedido de
Lindbergh Farias para a Comissão de
Ética investigá-lo e a reunião da comis-
são à tarde compunham o pano de fundo
de uma conversa que Campos Neto teria
com Lula no Palácio do Planalto na noite
daquela mesma data. Foi o primeiro en-
contro frente a frente entre eles no atu-
al governo. Durou das 18h30 às 19h50. O
ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
participou e declarou a jornalistas que o
tête-à-tête versou sobre temas gerais, “de
construção de relação, de pactuação em
torno de conversas periódicas” entre o
presidente e o banqueiro. Na volta ao Pla-
nalto, Lula não poupou críticas a Campos
Neto por causa dos juros. Chamava-o não
pelo nome ou pelo cargo, mas de “cidadão”.
A Selic começou a ser reduzida pelo Copom
em 2 de agosto. O voto do comandante da
O ex-ministro Paulo Guedes também esconde informações instituição foi decisivo no placar de 5 a 4. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 19
Seu País

Morde e assopra
MILITARES O governo busca distensionar a relação com as Forças
Armadas com robustos investimentos na indústria da Defesa
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

A
s evidências de corrupção presa que vendeu o programa ao governo, Dino, desafeto dos militares, tem poten-
e espionagem que envol- Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do gene- cial explosivo para azedar ainda mais a re-
vem militares próximos a ral da reserva Carlos Alberto dos Santos lação entre o governo Lula e a caserna. O
Jair Bolsonaro no episódio Cruz, outro ex-ministro de Bolsonaro. Na clima em parte dos oficiais de alta patente,
da nebulosa compra e pos- casa de outro investigado, o servidor Pau- que já era de desconforto desde o anúncio
terior utilização ilegal do software First lo Maurício Fortunato, que foi diretor de da delação do tenente-coronel Mauro Cid,
Mile voltaram a agitar a lama que insiste Operações da Abin no governo passado, principal ajudante de ordens de Bolsona-
em grudar nos coturnos de parte do alto foram apreendidos 171,8 mil dólares em ro, vem se deteriorando com notícias re-
escalão das Forças Armadas. Comprado espécie, montante não justificado que, centes como a intenção do governo de re-
sem licitação em 2018, ainda no governo segundo a PF, pode estar relacionado ao criar a Comissão de Mortos e Desapareci-
de Michel Temer, pelo Gabinete de Segu- negócio fechado durante a intervenção. dos durante a ditadura ou a divulgação do
rança Institucional, o programa espião, O envolvimento de Braga Netto e San- relatório final na CPI mista sobre o movi-
segundo as investigações da Polícia Fede- tos Cruz nas investigações de uma PF co- mento golpista que culminou nas invasões
ral, foi utilizado durante três anos pelos mandada pelo ministro da Justiça, Flávio às sedes dos Três Poderes em 8 de janei-
arapongas da Agência Brasileira de Inte-
ligência, a Abin, para vigiar os passos de
pelo menos 33 mil cidadãos. A quase tota-
lidade dos registros foi apagada antes da
batida policial, mas, nos 1,8 mil arquivos
obtidos pela PF foi constatada a espiona-
gem exercida sobre políticos, juízes, advo-
gados, jornalistas, ativistas de direitos hu-
manos e outros desafetos do governo.
Desenvolvido em Israel, o software foi
comprado também pelo Exército, em um
“pacote de segurança” que drenou cerca
de 40 milhões de reais em recursos do Ga-
binete de Intervenção Federal no Rio de
Janeiro, então comandado pelo ex-minis-
tro e vice na chapa de Bolsonaro em 2022,
o general da reserva Walter Braga Netto.
Entre os alvos das ações de busca e apre-
ensão autorizadas pelo Supremo Tribunal
Federal figurava o representante da em- Abin. A operação contra a espionagem ilegal da agência incomoda setores do Exército

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TAMBÉM pág. 24
NESTA Amazônia. Políticos usam a
SEÇÃO seca no bioma para defender
o asfaltamento de uma rodovia

ro deste ano. Elaborado pela senadora Eli- Monteiro, busca deixar claro ao comando Digitais. O software espião First Mile
CRISTIN A INDIO DO BR ASIL /A BR E A N TÔNIO CRUZ /A BR

ziane Gama, do PSD, o relatório pediu o in- militar que os movimentos para neutrali- foi comprado por Braga Netto com
recursos da intervenção federal no Rio
diciamento de ex-comandantes da Mari- zar a velha guarda golpista e para fortale-
nha e do Exército e de outros sete generais. cer os setores profissionais e democráticos
das três forças são cursos que correm em
Para conter essa insatisfação, o go- paralelo e não devem se misturar. de oficiais, da ativa e da reserva, que im-
verno aposta nos generosos investimen- A ideia do governo é separar o joio do pede a modernização das Forças Arma-
tos nas Forças Armadas com recursos do trigo ao mesmo tempo que reconstrói das e de sua relação com o Estado de Di-
novo Programa de Aceleração do Cresci- as pontes com almirantes, brigadeiros reito: “Há um grupo organizado que che-
mento e projetos de produção ou inovação e generais. Especialista em questões de gou ao poder com o impeachment de Dilma
tecnológica impulsionados por órgãos co- Defesa, Francisco Carlos Teixeira, pro- Rousseff e passou a controlar as institui-
mo o BNDES e a Finep. Ao adotar a tática fessor titular de História Contemporâ- ções superiores das Forças Armadas. Es-
do “morde e assopra”, Lula, sempre com o nea da UFRJ, refuta o termo “banda po- se grupo conspirador e antidemocrático
auxílio do ministro da Defesa, José Múcio dre”, mas concorda que há hoje um grupo cria obstáculos à Nova República desde

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 21
Seu País

Aeronáutica. Em parceria com a sueca


Saab, a brasileira Embraer começou a
fabricar caças Gripen no interior paulista

que, em 1977, Ernesto Geisel anunciou o


projeto de abertura política e essa turma,
orbitando em torno do então ministro do
Exército, Sylvio Frota, tentou aplicar um
golpe contra o próprio Geisel. Entre eles,
estava o então capitão Augusto Heleno”.
A militares como Heleno causa especial
irritação a movimentação do governo pa-
ra recriar a Comissão de Mortos e Desa-
parecidos, dissolvida ao apagar das luzes
do governo Bolsonaro. Elaborada pelo Mi-
nistério dos Direitos Humanos, a minuta
com a proposta de recriação do comitê re-
cebeu parecer favorável do Ministério da
Justiça e agora aguarda a análise final da
Casa Civil antes de ser encaminhada pa- missão Nacional da Verdade rompam, de Sérgio Nogueira, todos eles generais. Pa-
ra a assinatura do decreto presidencial por fato, com os limites que as duas comissões ra o deputado federal Rogério Correia, do
Lula. “Entendemos que os motivos que le- viveram”, diz o professor Rafael Maul, in- PT, integrante da Comissão, as investiga-
varam à extinção da Comissão não corres- tegrante do Grupo Tortura Nunca Mais no ções deixaram claro que existiu uma orga-
pondem à realidade dos fatos. Ainda não Rio de Janeiro. O ativista de direitos hu- nização para a tentativa de um golpe: “Es-
foi cumprida sua missão legal”, diz o pa- manos identifica a necessidade de avan- sa disposição autoritária vinha na raiz do
recer elaborado pela Secretaria de Aces- ço nas políticas de resgate da memória: próprio governo e se radicalizou na me-
so à Justiça do MJ. O documento, assinado “Talvez sejamos o país que menos se lem- dida em que avançava a conjuntura. Bol-
pelo ministro Dino, acrescenta que o fim bra das violações do Estado ao conjunto sonaro colocou no seu entorno pessoas
dos trabalhos “não considerou a existên- da sociedade. Pensar que elas atingiram de confiança para atentar contra a demo-
cia de outras atividades ainda em curso e apenas um determinado período e alguns cracia diante da iminente derrota eleito-
de ações judiciais em andamento”. No tre- setores ajuda na sua perpetuação”. Para ral”. Com o avanço da linha golpista du-
cho que mais teria trazido incômodo à ve- Maul, as recomendações da CNV, por sua rante o governo, diz o parlamentar, o ex-
lha guarda militar, o ministério fala sobre vez, apontam para “a fundamental articu- -presidente fez substituições no comando
a “necessidade de atender plenamente às lação da política de memória em relação à das forças: “Seja com militares, seja com
recomendações do relatório publicado em ditadura com a continuação das violências civis, Bolsonaro se cercou de pessoas que
2014 pela Comissão Nacional da Verdade”. de Estado praticadas até os dias de hoje”. concordavam com a tese do golpe e com
A insatisfação nos setores bolsonaris- uma operação de Garantia da Lei e da Or-
O relatório final da CNV, que pede “a tas das Forças Armadas aumentou com a dem como consequência do 8 de Janeiro”.
intensificação das atividades voltadas à lo- divulgação do relatório final da CPMI do No outro lado da pista, o governo Lu-
calização e identificação dos restos mor- 8 de Janeiro. Além do próprio Bolsonaro, la corre com um pacote de investimentos
tais dos desaparecidos políticos”, respon- identificado, com certa licença poética, co- que pretende trazer de vez as Forças Ar-
sabilizou 377 pessoas pelos crimes come- mo o “mentor intelectual” da trama gol- madas para o seu lado. Somente no PAC es-
tidos durante a ditadura, entre eles todos pista, foram solicitados os indiciamentos tão previstos investimentos para expandir
os presidentes militares do regime, de dos ex-comandantes da Marinha, almi- a base produtiva e a infraestrutura de De-
Castello Branco a João Figueiredo. “Es- rante Almir Garnier, e do Exército, gene- fesa que se aproximam dos 28 bilhões de
peramos que tanto a retomada da Comis- ral Marco Antônio Freire Gomes, e tam- reais até o fim do mandato. Já o orçamen-
são de Mortos e Desaparecidos quanto o bém os ex-ministros Braga Netto, Augus- to total previsto para o setor este ano é de
cumprimento das recomendações da Co- to Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Paulo 8,4 bilhões de reais e abarca projetos co-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Marinha. Além dos submersíveis,
há recursos para o desenvolvimento
de um míssil nacional antinavio

projetos. O investimento previsto é de 238


milhões de reais. “Estamos pegando um
sistema de Base Industrial de Defesa ma-
duro, com Institutos de Ciência e Tecnolo-
gia com projetos maduros em um momen-
to que temos recursos para investir. Isso
trará ao Brasil enorme capacidade para
produzir e exportar produtos de Defesa”,
diz Celso Pansera, presidente da Finep.

A financiadora apoia o desenvolvi-


mento de drones em parceria com a Sué-
cia, de mísseis ar-ar do tipo A-Darter com
a África do Sul e do sistema de foguetes de
artilharia terra-terra Astros. “O fomento
mo a construção de um submarino de pro- O novo PAC prevê à indústria de Defesa permite ao Estado
pulsão nuclear e de um míssil nacional an- dispor de inovações imprescindíveis para
quase 28 bilhões
tinavio, ambos pela Marinha, e a expan- o monitoramento do meio ambiente e das
são da produção do avião cargueiro militar
de reais para fronteiras, garantindo a segurança das ter-
KC-390 pela Aeronáutica. Outra aposta é a a indústria da ras indígenas, da população e do território
retomada, pela Embraer, da produção dos Defesa até 2026 nacional”, diz a ministra Luciana Santos.
caças Gripen em parceria com a empresa Dando sequência à estratégia de apro-
sueca Saab para a Força Aérea Brasileira. ximação com o comando militar traçada
A linha de montagem foi inaugurada em por Múcio, Lula deve participar nas pró-
maio com as presenças de Lula, Múcio e meiro momento, mostrou-se preocupado ximas semanas do lançamento das pe-
do comandante da Aeronáutica, o tenen- em dotar as Forças Armadas de meios que dras fundamentais de uma nova unida-
te-brigadeiro do ar Marcelo Damasceno. correspondam à estatura política e estra- de do Instituto de Tecnologia da Aero-
Entre os projetos militares contempla- tégica do Brasil”, disse o militar. náutica (ITA) em Fortaleza e de uma no-
dos estão a compra de blindados e helicóp- Durante um seminário na sede do va Escola de Sargentos do Exército no Re-
teros para o Exército, a construção de sub- banco, Mercadante anunciou a aprova- cife. É possível que o presidente aprovei-
marinos convencionais para a Marinha e a ção de dois créditos no valor total de 2,4 te uma das duas ocasiões para anunciar a
implantação de um Sistema de Defesa Ci- bilhões de reais para a exportação de ae- criação da Agência Nacional de Seguran-
bernética para as três forças. Em setem- ronaves da Embraer: “A nossa política ex- ça Cibernética. Paralelamente, o minis-
bro, o ministro Múcio e o comandante terna precisa ser universalista, multila- tro da Defesa tenta aparar outras ares-
EMBRAER/SAAB E MARINHA DO BRASIL

da Marinha, almirante Marcos Sampaio teral, fomentando a paz e a diplomacia. tas e, segundo interlocutores, teria pe-
Olsen, reuniram-se com o presidente do Temos liderança no Sul Global e acredi- dido ao ministro Silvio Almeida, dos Di-
BNDES, Aloizio Mercadante, que afir- tamos que uma indústria de Defesa for- reitos Humanos, para “aguardar um mo-
mou “a importância do setor de Defesa no te, capacitada e inovadora é um alicerce mento menos turbulento” para recriar
processo de neoindustrialização do País”. para a nossa política externa”. a Comissão de Mortos e Desaparecidos.
Após a visita, Múcio e Olsen falaram sobre Em setembro, a Finep, órgão subordi- Indagada por CartaCapital, a pasta não
a proposta de elevar o orçamento militar nado ao Ministério da Ciência, Tecnologia confirmou, mas também não negou o
a 2% do PIB, patamar recomendado pela e Inovação, também anunciou seu Edital pedido de Múcio. Entre tapas e beijos, a re-
Organização do Tratado do Atlântico Nor- de Inovação para a Base Industrial de De- lação entre o governo e as Forças Arma-
te (Otan): “O presidente Lula, desde o pri- fesa, que dará apoio a 25 empresas em 22 das ainda é um trabalho em construção. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 23
Seu País

Estrada
você não a comprou, a ocupou irregular-
mente. Foi o que aconteceu ao longo da
BR-319. Tinha muitas terras públicas.

da perdição
Ainda tem, mas naquela época era mui-
to mais evidente. Então, as pessoas cor-
reram para pegar o seu pedaço, ocupar

REGIÃO NORTE A seca extrema no


e vender”, afirma Ane Alencar, diretora
científica do Instituto de Pesquisas Am-
Amazonas ressuscita o polêmico bientais da Amazônia.

projeto de recuperação da BR-319 No fim dos anos 2000, houve a expan-


são de unidades de conservação ao longo
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A
da estrada, uma tentativa de conter a ex-
ploração da mata, mas o movimento foi in-
suficiente. Segundo Fernanda Meirelles,

O
secretária-executiva do Observatório
drama provocado pela seca defender nas últimas semanas a revitali- BR-319, a partir de 2014 registrou-se um
no Amazonas desenterrou zação imediata da estrada. Ambientalis- aumento de circulação de carros e da
um projeto polêmico de três tas e movimentos sociais se opõem. Ale- ocupação de certos trechos. No gover-
décadas na Região Norte, o gam que a reconstrução da BR aceleraria no Bolsonaro, a defesa da reconstrução
reasfaltamento da BR-319, a “morte” da Floresta Amazônica. voltou à tona, após milhares de pacien-
entre Manaus e Porto Velho. Construídos Sem manutenção, abandonada, a 319 tes morrerem em Manaus por falta de
em 1976, os quase 900 quilômetros da ro- ficou conhecida como rodovia fantasma. oxigênio durante a pandemia de Covid
dovia estão em petição de miséria desde o Nos últimos 15 anos, obras pontuais re- em 2021. Como desculpa, o Ministério
fim dos anos 1980, com vários trechos in- cuperaram pedaços esparsos da BR, o da Saúde, sob o comando do amazonen-
transitáveis e tomados pela vegetação. Por que atraiu grileiros para o entorno. “Se se Eduardo Pazuello, atribuiu o atraso na
causa das restrições ao tráfego de embar- você abre uma estrada ou a melhora, a entrega dos tubos a problemas de logística,
cações, políticos e ruralistas passaram a terra valoriza, não é? Principalmente, se embora não houvesse nenhuma restrição

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ao tráfego aéreo. A queda de pontes e a fal- do tiver um monte de áreas protegidas Oportunismo. Abandonada desde
ta de manutenção pioraram as condições na região e com fiscalização ambiental.” o fim dos anos 1980, a BR surge
como alternativa para romper
da rodovia – e elevaram a pressão de pro- Meireles destaca ainda a importância
o isolamento amazonense provocado
dutores rurais por novos investimentos. de preservação do entorno da rodovia e as pelo “sumiço” das vias navegáveis
No ano passado, o Ibama concedeu possíveis consequências da obra. “O des-
uma licença prévia para o reasfaltamen- matamento se expande principalmente
to, o que tem justificado os apelos à reto- em áreas de terras públicas, sem destina-
mada das obras. “Manaus é uma cidade ção específica. Não são áreas de unidade uma área muito importante para a manu-
isolada e os políticos da região atendem de conservação, nem terras indígenas, tenção dos serviços ambientais, do clima.”
a um clamor dos próprios cidadãos, que nem assentamentos rurais, e isso acele- O senador amazonense Plínio Valério,
se sentem isolados. Mas você pode sair ra o processo de grilagem e ocupação. Pri- do PSDB, em pronunciamento na tribu-
A L B E R T O C É S A R A R A Ú J O /A M A ZÔ N I A R E A L E O B S E R VAT Ó R I O B R - 3 1 9

de barco para Belém, para Boa Vista, e a meiramente, exploram a madeira, depois na do Senado, defendeu a repavimenta-
população mais pobre sempre usou o rio, vêm os incêndios para a abertura dessas ção desta e de outras rodovias no estado.
leva a sua rede e dorme na viagem de bar- áreas. Também são instalados pastos e aí “Sem que estejam transitáveis, não tere-
co. Esta é a realidade da região, o trans- o gado avança e sobe até a Amazônia Cen- mos como assegurar a mobilidade da po-
porte é íntegro”, salienta Suely Araú- tral. A 319 é uma conexão para o que a gen- pulação de toda essa região, nem a pros-
jo, especialista em políticas públicas do te chama de Arco do Desmatamento, es- peridade tão almejada por todo mundo”,
Observatório do Clima e ex-presidente se processo de ocupação de terra. Há um discursou, antes de criticar a ministra do
do Ibama. “A floresta no Amazonas ain- trecho muito conservado no entorno e é Meio Ambiente, Marina Silva, por ter co-
da está muito protegida, exatamente por- locado em dúvida a licença prévia expedi-
que a ocupação da população está con- da pelo Ibama para a recuperação da BR.
centrada em Manaus, o desmatamento A ministra, na verdade, disse que a licen-
está localizado na cidade. Hoje, com as O Ministério do Meio ça será revista e que o projeto necessita de
condições de fiscalização ambiental, o avaliação ambiental estratégica, conside-
governo não tem como controlar. Vai ser
Ambiente decidiu rever rando o alto impacto. “Se a Amazônia ul-
um caos e um erro histórico se a BR for a licença prévia de trapassar os 20% de desmatamento, entra
reasfaltada agora. Pode ser que no futu- reasfaltamento emitida num ponto de não retorno. Eu não quero
ro a gente tenha essa possibilidade, quan- no ano passado destruir recursos de milhares de anos pe-

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 25
Seu País

lo lucro de poucas décadas”, afirmou a mi-


nistra durante uma audiência pública, em
maio, na Comissão de Desenvolvimento
da Câmara dos Deputados.
A justificativa de que a má condição da
estrada prejudica o escoamento da produ-
ção na Zona Franca de Manaus é rebatida
pelos movimentos sociais, dada as alter-
nativas de transporte fluvial e aéreo. “Os
beneficiados serão os fazendeiros, os pe-
cuaristas e os desmatadores. A Zona Fran-
ca vai continuar a mandar e a receber seus
componentes normalmente, sem que seja
preciso asfaltar a 319”, salienta Silas Mes-
quita, do Grupo de Trabalho Amazônico,
rede com mais de 600 entidades ambien-
tais. “Com o asfaltamento da BR, as co-
munidades tradicionais e os povos indí-
genas serão ameaçados. Se vai abrir estra-
da, vão chegar ainda mais fazendeiros, te-
rá um tráfego maior de carro e, por conse-
quência, um impacto na vida dos animais.”

A vida dos animais, na verdade, está


ameaçada faz tempo. Por conta do fenô-
meno El Niño, que potencializou a seca O período de tico, concomitantemente. A sinergia en-
no Amazonas e o aquecimento da água tre esses dois fenômenos é o que tem le-
chuvas chegará
no Oceano Atlântico, mais de 150 botos vado algumas regiões da Amazônia a es-
foram encontrados mortos desde o fim
mais tarde, talvez se extremo de seca”, explica Ane Alencar.
de setembro. Os efeitos desses fenôme- só no início do Os sinais, afirma, começaram a aparecer
nos também reduziram a níveis alar- próximo ano em maio, quando era possível perceber um
mantes os volumes dos principais rios e certo estresse hídrico. “Em junho, a gente
igarapés da região, e provocaram quei- viu que tinha uma anomalia em alguns dos
madas que instalaram uma nuvem de fu- rios, mas, realmente em setembro, a seca
maça no céu. Além da morte de animais, chegou de vez no Brasil, na região próxima
ao menos dois seres humanos morreram uma das principais fontes de subsistência a Manaus, Rio Negro, Tefé, e foi subindo do
em decorrência da seca, no fim de setem- na região. A União anunciou a liberação de Sudoeste, chegando até o Rio Amazonas.”
bro, durante o deslizamento de terra na 460 milhões de reais para mitigar os efei- Nem mesmo a recente chuva forte foi
comunidade do Arumã, em Beruri, a 173 tos, recursos que deverão ser aplicados em suficiente para minimizar o impacto. O
quilômetros de Manaus. Os problemas ações de defesa civil, dragagem de rios, an- nível do Rio Negro, em Manaus, registrou
respiratórios espalham-se pela região. tecipação de benefícios sociais, repasses o ponto mais baixo desde o início do sécu-
Dos 62 municípios amazonenses, 59 es- de cestas básicas e aumento do efetivo de lo passado, inferior a 13 metros. O normal
tão em situação de emergência e mais de combate a incêndios. “De certa maneira, é flutuar entre 27 e 29 metros. O Madeira,
600 mil moradores foram afetados. Por a gente sabia que neste ano viria uma se- em Porto Velho, chegou a medir 1,10 metro,
causa da dificuldade de alunos e profes- ca muito forte, quando foi anunciado que segundo Boletim de Monitoramento Hi-
sores chegarem às escolas, o governo esta- El Niño estava se instalando, impactan- drológico do Serviço Geológico do Brasil.
dual decidiu antecipar em duas semanas do a Região Amazônica. El Niño exacer- Depois das últimas chuvas, subiu 70 cen-
o fim do ano letivo. Além de comprometer ba a seca e, para piorar, ainda teve o im- tímetros. Na terça-feira 19, o Amazonas,
o transporte fluvial, a seca afeta a pesca, pacto do aquecimento das águas do Atlân- nas proximidades de Itacoatiara regis-

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
trou 90 centímetros, e o Solimões, na es- Disputa. Comunidades isoladas, rios e essa seca impacta muito a vida
tação Manacapuru, alcançou 3,61 metros, mortandade de botos... Para a ministra dos habitantes, em todos os aspectos,
Marina Silva, as obras na rodovia
abaixo do menor volume, em 2010, de 3,92. inclusive no alimentar, pois os peixes que
vão piorar o desastre ambiental
Desde 2005 não se via uma seca tão ex- morreram em massa são a sua principal
trema na Amazônia. E não há sinal de me- fonte de proteína.” A falta de energia, diz,
lhora nos próximos meses. A estação de isola algumas comunidades e torna a situ-
chuvas vai atrasar e só deve ocorrer no iní- ação ainda mais complicada.
cio do próximo ano. “O período de cheia, A prorrogação da seca extrema e, con-
que deveria começar agora, não vai ser sequentemente, o adiamento do perío-
suficiente para recuperar o nível de seca. do de chuva estenderão seus efeitos até
MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRAUÁ, JOSÉ CRUZ/

Algumas previsões dizem que esta seca vai o Nordeste, região historicamente cas-
se estender até janeiro e o Rio Negro não tigada pela estiagem. De acordo com o
A BR E A L BERTO CÉSA R A R AÚ JO/A M A ZÔNIA RE A L

para de descer. Então, a chuva de agora não Inpe, os efeitos de El Niño ainda estarão
é o bastante para provocar efeito positivo. presentes no primeiro semestre de 2024
Dá uma aliviada na fumaça e tudo o mais, e vão contribuir para manter as chuvas
mas são pancadas isoladas, chove um pou- abaixo da média. Segundo o Centro Na-
co aqui e outro ali”, lamenta Meireles. cional de Monitoramento de Desastres
Naturais, órgão vinculado ao Ministério
Para Ane Alencar, os efeitos de El Niño de Ciência e Tecnologia, mais de cem mu-
são incomparáveis. “Em 2005, a gente nicípios nordestinos estão em condição
via cenas de barcos encalhados e tal, mas de seca severa, o correspondente a cer-
nunca houve esse nível de mortandade ca de 30% das áreas agrícolas e de pasta-
de peixes, botos e outros tipos de fauna. gens. No extremo oeste da Bahia, a zona
As principais ruas da Amazônia são os impactada chega a 80%. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 27
Seu País

Lamaçal sem-fim
MINERAÇÃO Oito anos após o desastre
de Mariana, milhares de vítimas ainda
lutam por indenizações justas
POR MARIANA SER AFINI

N
o dia em que a lama che- dos mais de 50 milhões de metros cúbi-
" gou, fui ver o que era
aquilo e me deparei com
cos de rejeitos de mineração altamen-
te tóxicos. Ninguém arrisca um palpite
a imagem mais triste da sobre quando o ecossistema local con-
minha vida”, recorda a seguirá se refazer. Talvez nunca, espe-
pescadora Regiane Soares Rosa, mora- culam ambientalistas. O fato é que mi-
dora de Baixo Guandu, no Espírito San- lhares de trabalhadores perderam sua
to, um dos 49 municípios atingidos pe- principal fonte de sustento e, até ho-
lo rompimento da barragem de Fundão, je, dezenas de comunidades ainda não
na cidade mineira de Mariana, em 2015. têm água potável para consumo, preci-
Depois de devastar vilarejos inteiros, o sam ser atendidas por caminhões-pipa
tsunami de rejeitos de minério de ferro ou comprar água mineral engarrafada.
alcançou o Rio Doce e percorreu 600
quilômetros até tingir de marrom as Obrigada a se reinventar na luta pe-
águas esverdeadas do litoral capixaba. la sobrevivência, Regiane hoje trabalha
Responsável pelo desastre, a Samarco, como costureira. Encontrou na coleti-
controlada por duas gigantes da mine- vidade a força para não desistir de lutar
ração, a brasileira Vale e a anglo-austra- por justiça. “Tornei-me uma militan-
liana BHP Billiton, ainda não reparou te da causa”, conta. Ela faz parte da co-
os danos causados a milhares de habi- ordenação estadual do Movimento dos
tantes nos dois estados. Atingidos por Barragens, conhecido pe-
Regiane cresceu nadando no Rio la sigla MAB. “Não vejo como acidente,
Doce, o maior curso de água do Sudes- foi um crime mesmo. É impossível que
te brasileiro. Com a tragédia, sua tran- uma empresa daquele porte, tendo Va-
quila rotina se deteriorou rapidamente. le e BHP como suas principais acionis-
Toda a família vivia da pesca e, de uma
hora para outra, viu o flúmen se conver-
ter em um abatedouro de seres aquá-
ticos de variadas espécies. “Vi milha-
res de peixes pulando para fora d’água
Os atingidos pedem
por causa da contaminação. A cena me
machucou tanto que fiquei mais de seis ao governo federal
meses sem voltar ao leito do rio”, con- para interceder nos
ta. Da barragem rompida, foram verti- acordos de reparação

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Impactos. O tsunami de rejeitos de
minério de ferro devastou vilarejos
inteiros e contaminou o Rio Doce

tas, não tivesse condições de saber que a


barragem iria romper. Eles têm um ser-
viço de inteligência de ponta.”
Após celebrar acordos com o Minis-
tério Público, a Samarco repassou, a tí-
tulo de indenização, 10 bilhões de reais
a cerca de 95,7 mil atingidos, um valor
médio de 104 mil reais por beneficiá-
rio. Em caráter temporário, milhares
de famílias receberam auxílio mensal
de um salário mínimo. Mas, pelos cál-
culos do MAB, somente 10% dos pre-
judicados pelo rompimento da barra-
gem receberam algum tipo de repara-
ção. “As pessoas mais jovens até conse-
guem se reinventar, mas a adaptação é
mais difícil para quem passou a maior
parte da vida trabalhando com a pesca”,
lamenta Regiane. Segundo a costurei-
ra, muitos habitantes de sua comunida-
de sofreram impactos na saúde mental.
“As pessoas vivem tristes. Muita gente
perdeu o rumo da vida, caiu no alcoo-
lismo, nas drogas. Outros entraram em
depressão. Os jovens querem ir embora,
os mais velhos perderam a esperança.”

Dezenove trabalhadores morre-


ram soterrados e milhares de famílias
perderam suas casas, plantações e cria-
ções, em decorrência do desastre. A la-
ma tóxica encobriu mais de 240 hecta-
res de Mata Atlântica e mais de 14 tone-
ladas de peixes mortos foram removidos
do Rio Doce e alguns afluentes. “O de-
sastre é muito maior do que se imagina,
porque desorganizou completamente a
DOUGL AS M AGNO/A FP

vida de todas as comunidades”, afirma


Thiago Alves, da coordenação nacional
do MAB. “As empresas foram negligen-
tes, não prestaram assistência a milha-
res de atingidos e, para piorar, o governo

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 29
Seu País

de Minas Gerais contentou-se com ini-


ciativas pontuais de reparação, mínimas
diante da gravidade da tragédia. Por isso
estamos ampliando a nossa luta.”
Recentemente, o movimento lançou
a campanha “Revida Mariana”, cujo ob-
jetivo é dar mais visibilidade ao drama
das famílias atingidas e cobrar a federa-
lização do caso. Há poucos dias uma co-
mitiva do MAB foi recebida por Geraldo
Alckmin, vice-presidente da República
e ministro do Desenvolvimento, Indús-
tria, Comércio e Serviços, e por Marina
Silva, titular da pasta do Meio Ambien-
te. Em 5 de novembro, quando o desas-
tre completa oito anos, os atingidos fa-
rão uma manifestação em Brasília e es-
peram ser recebidos pelo presidente Lu-
la. “O governo federal precisa olhar para
o que está acontecendo, porque essa his-
tória ainda não acabou”, afirma Alves.

O caso também foi levado à Justiça


inglesa, uma vez que uma das empre-
sas acionistas, a BHP Billiton, tem se-
de na Inglaterra. O julgamento está pre-
visto para outubro de 2024. “Estamos
com muita esperança na Corte inglesa
e acreditamos que, ao internacionalizar
a causa, teremos mais chances de rece-
ber uma reparação justa”, explica Alves.
De acordo com a Fundação Renova, Na Inglaterra, uma acreditar que o Estado brasileiro deve
constituída pelas mineradoras respon- tomar as rédeas desse processo. En-
ação judicial cobra
sáveis pelo desastre para mitigar os da- quanto isso, aguardamos o julgamen-
nos ambientais e sociais, “a reparação
230 bilhões de reais to na Inglaterra.” Três terras indíge-
começou logo após o rompimento da da Vale e da BHP nas, dos povos Krenak, Tupiniquim e
barragem”. A entidade diz que foram Guarani, também foram afetadas, as-
“solucionados 405 casos de restituição sim como uma área habitada pela etnia
do direito à moradia”, com entrega de Puri, que há alguns anos havia sido con-
imóveis ou pagamento de indenização, e siderada extinta. Descobriu-se, porém,
outros 284 “têm uma solução definida”. de futuro. É devastador”, afirma Alves. que 349 representantes desse povo ain-
A questão é que foram afetados 49 muni- Atualmente, discute-se a repactua- da vivem entre os municípios de Aimo-
cípios, e alguns deles ficaram quase to- ção do acordo do Rio Doce, mas o coor- rés e Resplendor, quase na divisa com
talmente submersos na lama. “Cidades denador do MAB diz que faltou diálogo o Espírito Santo. “Fala-se muito no im-
históricas perderam sua arquitetura do com os atingidos e, por isso, não acredi- pacto econômico, mas, para nós, hou-
século XVIII, até hoje várias áreas estão ta que o novo arranjo dará conta de re- ve uma destruição ancestral. Ao matar
em construção, com tapumes por todo parar toda a perda material, imaterial o rio, tiraram a nossa vida”, diz Meire
o lado. A população está extremamen- e socioambiental causada pela Samar- Mniamá Puri Dauáma, uma das lide-
te cansada, adoecida e sem perspectiva co. “Acionamos o governo federal por ranças da etnia Puri.

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Para inglês ver. Apenas uma pequena no Thiago, uma das 19 vítimas fatais. O
parcela das vítimas recebeu algum tipo corpo da criança de 7 anos foi encontra-
de reparação da Samarco, denuncia o do dias depois do desastre, a 100 quilô-
Movimento dos Atingidos por Barragens
metros de distância da casa da família.
“Ele ficava com a avó. Quando tudo co-
meçou a desabar, foram arrastados pe-
Segundo Meire Dauáma, a comuni- la lama. Minha sogra foi levada por 100
dade Puri, assim como os Krenak, tem metros, mas sobreviveu. Já meu filho foi
uma relação de divindade com o Rio arrancado de mim dessa forma brutal.”
Doce. “Era considerado nosso Deus, e
agora não sabemos como passar nos- Engasgada pelo choro, Geovana re-
sos conhecimentos aos nossos filhos.” corda que, após da morte do filho, de-
Ela denuncia que as mineradoras nunca senvolveu uma série de doenças. “Tive
apresentaram uma proposta de repara- uma úlcera nervosa gravíssima, caí em
ção para a etnia Puri, cujo sustento vi- depressão profunda e, agora, tenho pso-
nha todo da pesca e da caça. O povo rei- ríase.” A família morava em Mariana e,
vindica a realocação em outro territó- depois da tragédia, mudou-se para Ouro
rio. “Existe uma área em Santa Rita do Preto. “Achávamos que, com o tempo, as
Itueto que, para a nossa cultura, é con- coisas melhorariam, mas está cada vez
siderada sagrada. Se fôssemos transfe- mais complicado.” Os quadros de doen-
ridos para lá, seria uma forma de pre- ças nervosas estenderam-se para as du-
servar a nossa cultura.” as meninas que nasceram depois do de-
Passados oito anos, Geovana Rodri- sastre. Uma delas tem 3 anos e a outra 5,
gues ainda se recorda com riqueza de e ambas não sabem lidar com a ausência
detalhes os acontecimentos daquela fa- do irmão que nem chegaram a conhecer.
tídica tarde de 5 de novembro de 2015. “Minha família foi destruída. Sei que na-
“Eu estava no trabalho quando soube da vai trazer meu filho de volta, mas es-
que a barragem tinha rompido e voltei sas empresas precisam pagar pelo que
pra casa imediatamente, mas o pior já fizeram. Elas não têm coração, só têm
havia acontecido”. Ela é mãe do peque- CNPJ. Espero que a Justiça possa atin-
gi-las no lugar onde mais dói, o bolso.”
O caso de Geovana Rodrigues é um
dos 700 mil que estão sob a defesa do
escritório de advocacia inglês Pogust
GLÊNIO CAMPREGHER/REVIDA MARIANA E ARQUIVO MAB/MG

Goodhead. Há poucos dias, a Justiça in-


glesa aceitou que a Vale seja incluída na
disputa. Isso significa que, caso os atin-
gidos saiam vencedores do julgamento,
a gigante brasileira terá de arcar com os
custos de reparação com a anglo-aus-
traliana BHP Billiton. A ação coletiva
busca reparações individuais. Devi-
do à grande quantidade de vítimas re-
presentadas na ação, trata-se do maior
julgamento da história inglesa. O valor
exigido pela defesa é de mais de 230 bi-
lhões de reais, e o montante deverá ser
dividido entre os atingidos de acordo
com cada caso. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 31
Seu País

Fim de linha
na natimorta candidatura geraram uma
vantagem indevida ao ex-juiz na disputa
pela vaga paranaense no Senado, argu-
menta Luiz Eduardo Peccinin, advoga-
JUSTIÇA ELEITORAL O processo de do da Federação Brasil da Esperança, que
cassação do mandato de Sergio Moro reúne PT, PCdoB e PV. Há, ainda, diver-
sas inconsistências na prestação de con-
avança em tribunal paranaense tas, como o recebimento de recursos de
origem não identificada, a omissão de re-
POR RENÉ RUSCHEL ceitas e gastos, além de contribuições re-
cebidas após as eleições.

Q
O Podemos apresentou à Justiça
uando abandonou a toga bunal Regional Eleitoral do Paraná, adiar Eleitoral notas fiscais que somam quase 2
para ocupar uma vaga no em um mês os depoimentos das testemu- milhões de reais em gastos da pré-campa-
primeiro escalão do go- nhas arroladas pelo senador e pelos parti- nha de Moro à Presidência. As despesas
verno de Jair Bolsonaro, dos que ingressaram no Judiciário com as incluem a contratação de seguranças par-
parecia que Sergio Moro ações. Inicialmente previstas para ocor- ticulares, passagens aéreas, carro blinda-
havia, finalmente, enten- rer de 25 a 27 de outubro, as oitivas foram do, honorários advocatícios e pesquisas
dido que o Judiciário não é o lugar ade- transferidas para o período entre 29 de eleitorais, entre outras. As ações movidas
quado para fazer política. Desprovido do novembro e 1º de dezembro. As datas fo- pela federação liderada pelo PT e pelo PL
manto de super-herói do combate à ram alteradas a pedido da defesa, que soli- de Paulo Martins, segundo colocado na
corrupção, tão bem cerzido pela mídia na- citou um prazo maior para analisar docu- disputa pela vaga paranaense no Senado,
tiva, o ex-juiz logo percebeu que não seria mentos apresentados à Justiça pelo Pode- listam, porém, contratos de prestação de
tão simples fazer deslanchar a nova car- mos, o antigo partido do ex-juiz. Seja qual serviços que ultrapassam a cifra de 19 mi-
reira. Saiu do Ministério da Justiça pela for o resultado do julgamento na Corte pa- lhões de reais, valor quatro vezes superior
porta dos fundos, sem qualquer feito re- ranaense, certamente a parte derrotada ao limite de gastos para a pré-campanha
levante e acusando o chefe de interferir vai apelar ao Tribunal Superior Eleitoral, ao Senado fixado pela Justiça Eleitoral, de
no trabalho da Polícia Federal. Logo de- em Brasília, que já demonstrou não ser co- 4,4 milhões de reais. Quando Lauro Jar-
pois, filiou-se ao nanico Podemos para nivente com os malfeitos dos lavajatistas dim, colunista do jornal O Globo, veiculou
lançar sua candidatura à Presidência da ao cassar o mandato de Deltan Dallagnol essa informação, Moro correu para as re-
República. Ao notar que o partido não ti- por violação da Lei da Ficha Limpa. des sociais para contraditá-lo: “Esses va-
nha musculatura para sustentar seu pro- Os propositores das ações acusam Mo- lores estavam inicialmente previstos pa-
jeto, bandeou-se para o União Brasil. Os ro de se beneficiar da pré-campanha à ra a possível campanha presidencial que
caciques da nova legenda podaram as asas Presidência no período em que esteve fi- não houve, então, por óbvio, inexistem”.
de Moro, oferecendo ao neófito a possibi- liado ao Podemos. Os milionários gastos O PL argumenta, porém, que diversas
lidade de disputar apenas o Senado. Im- despesas de campanha foram realiza-
pedido pela Justiça Eleitoral de disputar das de forma dissimulada, como se fos-
o cargo por São Paulo, retornou à Repú- sem contratações para atividades parti-
blica de Curitiba, onde se elegeu senador dárias, sem finalidade eleitoral. Segundo
com o voto de 1,9 milhão de paranaenses. O depoimento das a legenda, desconsiderar esses fatos po-
Agora, vê-se diante de uma nova ameaça, testemunhas foi deria abrir “precedentes hediondos” pa-
que pode alijá-lo da vida pública. ra futuros pleitos. “Sem a suficiente re-
Alvo de dois processos que podem re-
adiado por um mês. primenda do Judiciário, restará implíci-
sultar na cassação de seu mandato, Moro Mesmo assim, o caso ta a permissão para que qualquer partido
ganhou uma curta sobrevida após o de- terá um desfecho político ou pretenso candidato promova
sembargador Dartagnan Serpa Sá, do Tri- ainda neste ano um derrame de recursos e exponha des-

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
A pré-campanha à
Presidência da República juiz e pelos feitos da Lava Jato. “Não há
gerou uma vantagem indicação de atos de pré-campanha que
indevida ao ex-juiz na
especificamente se refiram à competição
disputa pelo Senado
e ao eleitorado paranaense, sendo ilógico
considerar os atos praticados fora do
Paraná como relevantes à demanda”,
escreveu na peça.
O julgamento está na última fase de
instrução processual. Peccinin esclare-
ce que o adiamento das oitivas das teste-
munhas “não altera em nada o processo,
apenas atrasa um pouco o desfecho”. O ad-
vogado de Moro ainda não decidiu se seu
cliente vai depor ou não à Justiça. A juris-
prudência garante ao indiciado o direito
de não produzir provas contra si mesmo.

Na avaliação do advogado Gustavo


Henrique Serpa, especialista em Direito
Eleitoral, não é possível dissociar este caso
de outro bastante rumoroso, a cassação do
mandato da então senadora e também ex-
-juíza Selma Arruda, do PL de Mato Gros-
so do Sul, conhecida como “Moro de saias”,
em 2019. Ambos os processos apontam a
suposta prática de abuso de poder econô-
mico no período da pré-campanha. Serpa
lembra que a Lei 13.165/2015, aplicada pela
primeira vez no pleito de 2018, permitiu a
divulgação de suas candidaturas no perío-
do que antecede as eleições, sem que isso
configurasse propaganda eleitoral anteci-
pada. Os candidatos não podem, contudo,
pedir votos expressamente nem realizar
gastos de campanha que ultrapassem va-
lores considerados “moderados”.
medidamente um dos concorrentes para, tivos lícitos ou ilícitos, os gastos ultrapas- Arruda perdeu o mandato por não
no meio do jogo, ‘converter’ a candidatura saram os limiteis legais, e não foi pouco. declarar despesas da pré-campanha
para outro cargo cujo limite de gastos seja Se assim fosse, poderia haver apenas mul- que somam 1,2 milhão de reais. “Os gas-
inferior”, afirma em sua petição. ta. Mas estamos falando de um valor su- tos do senador paranaense”, acrescen-
Peccinin, advogado da federação lide- perior, até quatro vezes maior que o teto.” ta Serpa, “não parecem moderados nem
rada pelo PT, concorda com a avaliação. Defensor de Moro, o advogado Gusta- podem ser relativizados. Cabe à Justiça
A RQUIVO/AG. SEN A DO

“Houve evidente abuso do poder econô- vo Guedes argumenta que a vitória de seu Eleitoral coibir com rigor qualquer tipo
mico pelo dispêndio de recursos financei- cliente não decorreu da exposição duran- de abuso que venha contaminar a lisu-
ros na pré-campanha de Sergio Moro, que te o período em que se apresentava co- ra das eleições, como forma de garantir
não foram declarados nem contabilizados mo presidenciável do Podemos, e sim pe- a segurança jurídica e evitar distorções
pela Justiça Eleitoral”, diz. “Seja por mo- lo reconhecimento do seu trabalho como no processo democrático.” •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 33
Seu País

Mulheres exaustas
Decolonial, que várias soluções vêm sen-
do concebidas, tais como casas coletivas
nas quais o trabalho doméstico é dividi-
do de maneira igualitária, creches aber-
ARTIGO O Estado tem responsabilidade tas 24 horas, cozinhas e lavanderias co-
na desigual divisão do trabalho doméstico letivas. Reconhecendo a centralidade da
coletivização do cuidado para a garantia
e do cuidado não remunerado no Brasil de trabalho decente a trabalhadoras com
encargos de família, a Convenção nº 156
P O R L E L I O B E N T ES C O R R Ê A E H E L E N A M A R T I N S D E C A R VA L H O *
da OIT determina a promoção de traba-
lhos comunitários, públicos ou privados,
como serviços e meios de assistência à
infância e à família.

E
A seu turno, a Recomendação nº 165 da
m 4 de outubro, o Ipea publi- trabalho, a Organização Internacional OIT, também de 1981, que desenvolve as
cou o estudo Gênero É o Que do Trabalho adotou, em 1981, a Conven- normas da Convenção nº 156, servindo
Importa: Determinantes do ção nº 156, sobre a igualdade de oportu- de orientação geral para a implementa-
Trabalho Doméstico Não Re- nidades e de tratamento para trabalha- ção de políticas nacionais, estabelece que
munerado no Brasil. A partir dores com encargos de família. Somente as autoridades competentes, a partir do
da análise de dados da Pesquisa Nacio- após mais de 40 anos de sua proposição necessário diálogo social tripartite, de-
nal por Amostra de Domicílio do IBGE pela OIT o texto foi enviado ao Congres- vem assegurar serviços e meios de assis-
em 2019, verificou-se que as mulheres so Nacional, pelo presidente da Repúbli- tência à infância e à família que atendam
continuam sendo as principais prejudi- ca, para ratificação. Segundo provérbio às necessidades das trabalhadoras, espe-
cadas pela desigual distribuição do tem- atribuído a culturas africanas, “é preci- cialmente de comunidades locais.
po despendido com trabalho doméstico so uma aldeia inteira para educar uma
e com o cuidado não remunerado de criança”, o que nos remete à importân- Nesse contexto, cabe ao Estado orga-
crianças, idosos e enfermos. cia da coletivização do cuidado. nizar, diretamente ou por meio de incen-
De acordo com o estudo, a presença de Com efeito, nos termos dos artigos 227 e tivos, a prestação adequada e apropriada
filhos amplia o tempo gasto nesse tipo de 230 da Constituição da República, é dever de “serviços e meios de assistência à in-
trabalho em magnitudes diferentes, sen- concorrente da família, do Estado e da so- fância e à família, isentos de despesas ou
do o dobro para as mulheres na compara- ciedade assegurar direitos fundamentais mediante uma taxa razoável, de acordo
ção com a variação verificada entre os ho- de crianças, adolescentes, jovens e pessoas com a capacidade de pagamento dos tra-
mens. No mesmo sentido, a presença de idosas. Mas quem cuida de quem cuida? balhadores, operados ao longo de linhas
idosos com 80 anos ou mais de idade pro- A cientista política Françoise flexíveis e atendendo às necessidades das
duz efeitos distintos sobre mulheres e ho- Vergés aponta, no livro Um Feminismo crianças de diferentes idades, de outros
mens, ampliando a carga de trabalho re- dependentes que requeiram cuidado e de
produtivo delas, mas não gerando efeito trabalhadores com encargos de família”.
sobre eles. Ainda segundo o Ipea, os en- No que tange ao cuidado com filhas
cargos de família recaem sobre a mulher e filhos, em recente relatório divulgado
mesmo quando ela desempenha o papel Após 42 anos, o País em parceria com o Unicef, o braço das
de responsável pela provisão da renda fa- ainda não ratificou Nações Unidas para a infância e ado-
miliar. Verificou-se que mulheres ocupa- a Convenção nº 156 lescência, a OIT reconhece a importân-
das despendem mais tempo com traba- cia da ampliação e do fortalecimento de
lho doméstico e de cuidado não remune-
da OIT, a promover sistemas de proteção social, em espe-
rado do que homens desocupados. a equidade entre os cial por meio de benefícios universais
Considerando o impacto das respon- trabalhadores com de apoio às famílias, como instrumen-
sabilidades familiares na capacidade de encargos de família to fundamental para combater as doen-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Informalidade. Três em cada quatro
empregadas domésticas continuam
sem acesso a direitos trabalhistas

mo mulheres pobres e negras, encon-


tram-se marginalizadas do sistema de
proteção social trabalhista. Mais de 75%
das trabalhadoras domésticas no Brasil
são informais. A situação dessa catego-
ria bem ilustra o fato de que, ademais
dos encargos de família que cultural e
socialmente recaem sobre a figura femi-
nina, o cenário de inserção de mães no
mercado de trabalho é permeado por de-
sigualdade social, falta de redes de apoio,
abandono paterno, insuficiência de cre-
ches públicas, longos deslocamentos en-
tre a casa e o trabalho, apenas para citar
alguns desafios.

A propósito, o Ipea concluiu que a pre-


sença de filhos adolescentes “de ambos os
sexos reduz as jornadas masculinas, mas
apenas filhas adolescentes mulheres re-
duzem a carga reprodutiva feminina”, o
que evidencia a perpetuação do ciclo ge-
racional de desigualdade na divisão sexual
do trabalho de cuidado não remunerado.
Assim, para além dos direitos traba-
lhistas específicos à maternidade e à não
discriminação em virtude de encargos de
família, tanto no acesso como na perma-
nência em postos de trabalho, é urgente e
imperativo que o Estado brasileiro ratifi-
que a Convenção nº 156 da OIT e assegu-
re cidadania e dignidade a todas as mu-
lheres que vivem do trabalho, garantindo
ças, a pobreza, a fome, a discriminação, a benefícios relacionados a desemprego, funções decentes especialmente para as
a falta de acesso à educação, o casamen- doença, maternidade, invalidez e apo- profissionais informais, pobres e negras,
to e o trabalho infantis. sentadoria. São medidas decisivas para por meio de políticas públicas de coleti-
O relatório propõe, como uma das me- reduzir a pobreza e promover o bem-es- vização do cuidado. •
didas decisivas para alcançar a proteção tar e a equidade social e econômica de
social universal para todas as crianças e crianças e adolescentes.
ISTOCKPHOTO

*Lelio Bentes Corrêa é presidente do Tribunal


adolescentes, a garantia de proteção so- Ocorre, no entanto, que trabalhado- Superior do Trabalho. Helena Martins de
cial para pais, mães e cuidadores, asse- ras informais, em especial aquelas em Carvalho é mestra em Direito, Estado e
gurando o acesso ao trabalho decente e condições de vulnerabilidade social, co- Constituição pela UnB e assessora no TST.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 35
Economia

Mickey
no aperto
Após um século de sucesso
global, a Disney planeja mudança de rumos
POR MARK SWENEY

E
nquanto a Disney celebra, caminho”, afirma Dan Ives, analista da
nesta semana, um século bri- Wedbush, com sede nos EUA. “A Disney
lhante de sucesso global, a enfrentou muitos desafios em seus cem
portas fechadas seus princi- anos, mas este é o período decisivo.”
pais executivos avaliam o que O lançamento do Disney+ por Iger,
poderá ser a mudança mais radical na his- no momento em que a pandemia varria
tória da maior empresa de entretenimen- o planeta, foi um acaso, pois o isolamen-
to do mundo. Bob Iger, o “Senhor Resol- to resultou numa adesão estratosférica
ve-Tudo” da Disney, fez um retorno sur- aos serviços de streaming. Os investido- lor de mercado de 370 bilhões de dólares.
preendente como executivo-chefe em no- res atribuíram as enormes perdas que a Uma Disney otimista até previu que ul-
vembro passado, após a demissão de seu Disney sofria ao desafiar a Netflix como trapassaria a Netflix, que tem uma base
sucessor escolhido a dedo, Bob Chapek, uma estratégia para preparar a empre- global de 239 milhões de assinantes, até
cujo reinado desastroso durou menos de sa para o futuro, a era da visualização di- 2024. Desde então, as ações da Disney
dois anos. Os desafios que Iger enfrenta gital. Dezesseis meses após o lançamen- caíram quase 60% e o número de assi-
são inúmeros e complexos. “Temos mui- to, o Disney+ ultrapassou 100 milhões de nantes baixou para 146 milhões – de um
to a fazer”, afirmou aos funcionários na assinantes, embora as perdas chegassem máximo de 164 milhões – com a estagna-
reunião de anúncio do seu regresso oficial. a bilhões de dólares. Implacáveis, os in- ção do mercado de streaming após a pan-
Um poderoso investidor ativista faz vestidores levaram o preço das ações da demia. Para tranquilizar os investido-
campanha por assentos no conselho, dis- Disney a um pico histórico, de 201,91 dó- res, um novo foco na rentabilidade trou-
cute-se a venda de joias da coroa, incluin- lares em março de 2021, e a administra- xe o lançamento de um nível de negócios
do a ESPN e a ABC, uma dura batalha le- ção deleitou-se com o brilho de um va- apoiados por publicidade. Uma repres-
gal sobre o futuro de seus parques temá- são ao compartilhamento de senhas de-
ticos na Flórida continua e seu domínio ve ocorrer em breve. “Eles apostaram no
nos filmes de grande sucesso está estag- cavalo certo na hora errada, em termos de
nando. Isso sem contar a questão de co- O maior desafio é streaming e negócios digitais”, avalia Ives.
mo ele pode transformar um serviço de tornar um serviço de
streaming deficitário na chave comercial Iger planeia cortar 7 mil postos de
para o futuro da Disney.
streaming deficitário trabalho como parte de uma campa-
“A Disney é uma das empresas e mar- na chave comercial nha para reduzir custos em 5,5 bilhões
cas de maior sucesso na história do mun- para assegurar um de dólares e restabelecer os dividendos.
do, mas hoje enfrenta uma bifurcação no futuro próspero Na semana passada, Nelson Peltz, o bi-

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Navalha. De volta ao comando,
Bob Iger pretende cortar 7 mil
postos de trabalho para reduzir
custos em 5,5 bilhões de dólares
e fazer a empresa voltar a lucrar

gay” da Flórida, que limita a discussão de


questões LGBTQ+ nas escolas.
DeSantis argumentou que “a Disney
lionário fundador da empresa ativis- a Disney não aumentou significativa- consciente” não deve receber tratamento
ta Trian Partners, renovou sua pressão mente sua participação global nas bilhe- especial no estado. Apesar dessa batalha
por lugares no conselho administrativo terias de cinema nos últimos três anos. terrestre, é a forma como a Disney lida
da Disney, aumentando sua participação Em outras partes do império, a Casa com a mudança tectônica na economia e
na empresa para 2,5 bilhões de dólares. de Mickey está duplicando sua crescen- no consumo do seu mundo nas telas que
Da mesma forma, há pressão para se te divisão de parques temáticos e cruzei- determinará seu sucesso enquanto em-
considerar a venda de ativos, como a rede ros, anunciando um investimento de 60 barca em seu segundo século.
nacional de tevê ABC – que abriga progra- bilhões de dólares na próxima década. O “Os desafios que vemos para todos os
mas como Grey’s Anatomy – e a gigante investimento ocorre em meio a uma dura conglomerados de mídia refletem o rit-
dos esportes a cabo ESPN, que a Disney batalha legal com o governador da Flóri- mo das mudanças no mundo, que exigem
adquiriu em 1996. Uma das reclamações da, Ron DeSantis, que busca a indicação uma nova abordagem de todos”, afirma
de Peltz foi que Iger pagou a mais pela republicana para as eleições presiden- Josh Berger, ex-presidente da Warner
21st Century Fox, que comprou de Rupert ciais dos EUA no próximo ano. Bros. no Reino Unido, Irlanda e Espanha.
Murdoch em 2019 por 71 bilhões de dóla- “Ainda estamos vivenciando as convul-
res, e que inclui franquias de filmes co- No ano passado, DeSantis aprovou sões desde o início da digitalização da mí-
T HOM AS H AW K E REDES SOCIAIS

mo Avatar e X-Men e programas de tevê po- uma legislação que retira da Disney um dia, a mais profunda das quais foi a revo-
pulares como Os Simpsons e Modern Family. estatuto fiscal especial, criado por lei lução do streaming. É um cenário econô-
Os acordos de estúdio anteriores de em 1967, que lhe permite autogovernar mico diferente e as grandes empresas de
Iger trouxeram franquias lucrativas. a área de cerca de 10.117 hectares em Or- mídia tradicionais, que não são conheci-
Com a Marvel, a Lucasfilm e a Pixar lando, onde fica seu complexo de parques das por sua agilidade, estão apenas ten-
vieram Os Vingadores, Star Wars e Pro- temáticos Walt Disney World. A medida tando acompanhar o ritmo.” •
curando Nemo. Mas o apetite por sa- foi vista como uma retribuição pela opo-
gas de super-heróis está diminuindo e sição da companhia à nova lei “não diga Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 37
Nosso Mundo

Os corpos
se a acumulam
em Gaza

Salgar a terra O
adiamento da invasão das
tropas israelenses à Faixa
de Gaza não deve ser in-
terpretado como um re-
cuo do governo de “emer-
GAZA A diplomacia segue encurralada, gência nacional” sob o comando de
enquanto Israel ensaia uma invasão Benjamin Netanyahu ante eventuais
pressões externas. As forças militares
“mortífera” ao território palestino estacionadas na fronteira parecem ape-
nas esperar o momento certo para o iní-
POR SERGIO LIRIO
cio, segundo as palavras do ministro da
Defesa, Yoav Gallant, de uma incursão
“precisa e mortífera”. As ligeiras inves-
tidas em território palestino nos últimos
dias, à caça de inimigos, são um ensaio

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 46
NESTA Argentina. Surpresas
no primeiro turno,
SEÇÃO incertezas no segundo

do que está por vir. “Esta deve ser a últi- “Será a última guerra” a ser a maior fonte de risco de um alas-
ma guerra em Gaza. Pela simples razão tramento do conflito. “Não temos paci-
na região, promete
de que não haverá mais Hamas. Levará ência para tolices e iremos desferir ata-
um mês, dois meses, três meses”, afir- o ministro da ques contundentes contra aqueles que
mou Gallant no domingo 22. Os bombar- Defesa, Yoav Gallant pretendem nos atacar”, afirmou à Sky
deios não cessam, porém, assim como o News o tenente-coronel Peter Lerner,
bloqueio de combustíveis e energia que no comando das tropas israelenses na
ameaça o funcionamento dos hospitais. fronteira com o Líbano. O Hezbollah é
Só na terça-feira 24, cerca de 700 pales- tes de Gaza. Gilad Erdan, representante militarmente mais organizado e pode-
tinos foram mortos por mísseis lança- israelense nas Nações Unidas, acusou roso do que o Hamas – e teria sob seu
dos a partir de Israel. Com uma popula- Guterres de tolerância com o terrorismo e poder, estima-se, cerca de 100 mil fogue-
ção majoritariamente jovem, não é de sugeriu a sua renúncia, enquanto o Minis- tes, o que elevaria o embate a outra di-
surpreender o número de vítimas me- tério de Relações Exteriores decidiu ne- mensão. De acordo com Hadi Hachem,
nores de 18 anos. São ao menos 2.360 gar vistos a funcionários da organização. embaixador libanês na ONU, o país tem
desde 7 de outubro, contabiliza a Unicef, A União Europeia também não se esforçado para manter distância da
agência das Nações Unidas para a infân- se entende e os líderes do continen- guerra, mas o governo não controla
cia. “A situação é uma mancha crescen- te passaram a agir por conta própria. os paramilitares e as escaramuças na
te na nossa consciência coletiva. A taxa Na terça-feira 24, o presidente fran- fronteira têm aumentado de intensida-
de mortalidade e ferimentos de crianças cês, Emannuel Macron, reuniu-se de. “Com base nas minhas reuniões e na
é simplesmente impressionante”, afir- com Mahmoud Abbas, da Autoridade dinâmica no terreno, diria o seguinte: o
mou Adele Khodr, diretora do Unicef pa- Palestina, e Netanyahu, além de visitar risco de expansão do conflito é real, mui-
ra o Oriente Médio e Norte da África. parentes de vítimas francesas no con- to, muito real e extremamente perigo-
flito. Diante do primeiro-ministro isra- so”, afirmou Tor Wennesland, enviado
Esta foi mais uma semana de flagran- elense, Macron repetiu os argumentos das Nações Unidas ao Oriente Médio.
tes derrotas da diplomacia. A esta altu- de Guterres: condenou o Hamas e pro-
ra, é mais plausível o conflito se espa- pôs uma coalização contra o terroris- O Conselho de Segurança da ONU
lhar pela região, devido às rusgas com mo, mas defendeu a criação de um Es- voltaria a se reunir na quinta-feira 26,
o Hezbollah na divisa com o Líbano e tado palestino como única opção para após o fechamento desta edição. O Bra-
da morte de oito militares sírios em um uma paz duradoura. A viagem serviu ao sil, na presidência rotativa, subme-
ataque israelense, do que se chegar a um álbum de fotos do francês – e só. Abbas teu aos 15 integrantes a proposta de
acordo de cessar-fogo. O Conselho de tornou-se figura irrelevante no confli- Washington, que sugere uma “pausa hu-
Segurança da ONU continua bloquea- to, contestado por seu povo, que o con- manitária” no lugar do cessar-fogo e a in-
do pelos Estados Unidos, guarda-cos- sidera conivente com Israel. Netanyahu, clusão no texto de um trecho sobre “o di-
tas do governo Netanyahu. Respalda- por sua vez, tem uma agenda própria – reito inerente de todos os Estados” à au-
do por Washington, Israel tem ido além além de aplacar a sede de vingança de todefesa, salvo-conduto às atrocidades
de ignorar a opinião do resto do planeta. parte dos israelenses, manter-se no po- cometidas por Israel em Gaza. A chance
Nos últimos dias, a diplomacia do país der a todo custo – e conta com o único de aprovação continua mínima. Depois
tornou-se mais agressiva em relação a respaldo que faz diferença a Tel-Aviv, o da rejeição da minuta da Rússia e o ve-
quem contesta o “direito de autodefe- de Joe Biden. Em resposta a Macron, o to dos Estados Unidos à resolução bra-
sa” (ou de vingança) de Tel-Aviv. A últi- premier israelense repetiu a ladainha da sileira, o Conselho tornou-se uma torre
ma vítima foi o secretário-geral da ONU, luta da “civilização contra a barbárie” e de babel, na qual todos falam e ninguém
António Guterres, que ousou ao mesmo pregou o extermínio do grupo palestino. escuta. “Acompanhamos com pesar a in-
MOH A MMED A BED/A FP

tempo repudiar os ataques do Hamas, “O Hamas”, afirmou, “não ameaça ape- capacidade deste Conselho, por duas ve-
mas lembrar que a violência não “acon- nas os judeus. Ameaça o Oriente Médio, zes, de adotar uma resolução ou mesmo
teceu no vácuo”, guarda relação com os 56 ameaça a Europa, ameaça o mundo.” de apelar a um cessar-fogo para pôr fim
anos de “asfixia” do povo palestino e não Os embates entre as forças israelenses a esta guerra”, lamentou o chanceler do
justifica a “punição coletiva” dos habitan- e combatentes do Hezbollah continuam Egito, Sameh Shoury. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 39
Nosso Mundo

Os demônios
Bellaigue traça o perfil de Mossadegh e
o retrata como o primeiro líder liberal do
Oriente Médio moderno. “Era um racio-

de Tio Sam
nalista que odiava obscurantismo e acre-
ditava na primazia da lei. Sua compreen-
são da liberdade foi excepcional no Irã e

ANÁLISE A periclitação da hegemonia acirra o


em toda a região. Na verdade, o Ocidente
teria gostado mais dele se ele tivesse sido
exercício agressivo do poder de Washington menos comprometido com a liberdade.”
Ele não recuaria de sua demanda por in-
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO dependência econômica para atender a
Grã-Bretanha. Ele não prenderia comu-
nistas para agradar a Washington. O pla-

E
no para derrubá-lo fez um grande dano
m pronunciamento depois Pahlevi, Winston Churchill, Anthony aos interesses ocidentais.
da visita ao conturbado Mé- Eden com o presidente Eisenhower, John Para Bellaigue, o episódio Mossadegh
dio Oriente, o presidente Joe Foster Dulles e a Agência Central de In- foi o início de uma política dos EUA em
Biden encarnou o espírito teligência dos EUA. A ideia da Ajax veio apoio aos déspotas de má qualidade do
norte-americano. Disse o da inteligência britânica, depois de bal- Oriente Médio. A lógica dessa política era
senhor da guerra: “Deixe-me comparti- dados esforços junto a Mossadegh para assim: “Os orientais não podem ser en-
lhar com vocês por que garantir que Is- reverter a nacionalização da Anglo-Ira- tregues à independência e à liberdade.
rael e a Ucrânia tenham sucesso é vital nian Oil Company (AIOC). A motivação Homens fortes, pró-americanos, ofere-
para a segurança nacional dos Estados britânica era simplesmente recuperar a cem a melhor esperança de estabilidade”.
Unidos. Você sabe, a história nos ensinou concessão de petróleo da AIOC. Saddam Hussein era um homem forte.
que, quando os terroristas não pagam um No livro Patriot of Persia, Christopher Hosni Mubarak também. A galeria dos
preço por seu terror, quando os ditado- Bellaigue registra o “arrependimento” déspotas é longa e bem fornida.
res não pagam um preço por sua agres- norte-americano. “Anos mais tarde, os
são, eles causam mais caos, morte e mais Estados Unidos reconheceriam que, ao Essa política sofreu sua primeira der-
destruição. Eles continuam e o custo e derrubar Mossadegh, cometeram um er- rota em 1979, quando os revolucionários
as ameaças aos Estados Unidos e ao mun- ro terrível, pois sufocaram valores que islâmicos do aiatolá Khomeini derruba-
do continuam aumentando”. simpatizavam com os seus. Em 2000, ram o xá. Khomeini revelou distância
Um episódio revelador das proezas do Madeleine Albright, secretária de Esta- das ideias de Mossadegh. “Não estamos
American Spirit ocorreu no Irã, em 19 de do de Clinton, reconheceu que, em 1953, interessados em petróleo”, anunciou, lo-
agosto de 1953. O Arquivo de Segurança os EUA desempenharam “papel signifi- go após seu retorno triunfante do exílio.
Nacional dos Estados Unidos liberou, em cativo na orquestração da derrubada do “Queremos o Islã”. Quanto à democracia
2013, documentos que registram as faça- popular primeiro-ministro iraniano de estilo ocidental, equivale à “usurpa-
nhas da CIA no Irã. “O golpe militar que Mohammed Mossadegh”, e que isso ti- ção da autoridade de Deus para governar”.
derrubou Mohammed Mossadegh e o go- nha sido claramente “um revés para o de- No alvorecer do século XXI, os Estados
verno da Frente Nacional foi realizado senvolvimento político do Irã”. Unidos invadiram o Iraque a pretexto de
sob direção da CIA como um ato de po- aniquilar um arsenal de “armas de des-
lítica externa norte-americana.” A CIA truição em massa”. Depois do atentado
usava e usa criptônimos para identificar às Torres Gêmeas, o presidente George
operações clandestinas, tal como o golpe W. Bush contra-atacou, reinventando a
que em 1953 apeou o primeiro-ministro
Os Estados Unidos tal “ameaça iraquiana”. A ameaça estaria
iraniano Mohamed Mossadegh. Ajax foi estão se tornando um escondida sob a forma de armas quími-
o criptônimo atribuído à operação. Es- país mais parecido cas, atômicas e biológicas nos porões dos
sa empreitada aliou o xá do Irã, Rezha com ele mesmo palácios de Saddam Hussein. Um dos ins-

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
cido, entre outras coisas, por ter declara-
do que a finada União Soviética era o Im-
pério do Mal. O desaparecimento desse
demônio não parece, no entanto, ter di-
minuído o poder do inferno. Entre alia-
dos e adversários há a percepção de que
o Mal, o Grande Satã, não estava exata-
mente onde Reagan o imaginava, mas
se transferiu de armas e bagagens para
a Casa Branca e suas redondezas.
O demônio ocupa os subterrâneos da
ordem imperial em declínio, um império
que abandonou a hegemonia benevolente
do imediato pós-Guerra para se agarrar
desesperadamente ao exercício puro e du-
ro do que ainda resta de seu poder. A peri-
clitação da hegemonia acirra o exercício
agressivo do poder. Esse é o fenômeno que
perturba os terráqueos, atônitos entre a
morte do velho e as incertezas do novo.

Na ordem norte-americana em far-


rapos, o nomos da terra significa a exi-
gência de respeito à vontade imperial, à
sua moral particularista, idiossincráti-
ca e assimétrica. O direito, dizia Hegel,
enquanto existência da liberdade, é uma
determinação essencial na refrega con-
tra a “boa intenção” moral. “Os protestos
contra esse desenvolvimento são... remi-
JAMES MONTGOMERY FL AGG/BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA

niscências do ‘estado bruto de natureza’


que revelam um apego doentio à própria
particularidade, narcisisticamente des-
frutada como moral.”
petores da ONU, de nacionalidade nor- presidente e do Conselho de Seguran- O narcisismo moral dos EUA não pre-
te-americana, afirmou que o relatório ça Nacional. Os debates no Congresso cisa de adjetivos. Está sempre preparado
apresentado para fundamentar a deci- apresentaram pronunciamentos incri- para qualificar os recalcitrantes e desse-
são de invadir era mentiroso. Lembran- velmente “patrióticos”, louvando a co- melhantes como “Estados bandidos”. O
do a história do lobo e do cordeiro, pou- ragem dos bravos rapazes e moças que avanço do narcisismo intervencionista
co importa a verdade. Os Estados Unidos levam adiante mais esta guerra travada norte-americano é constitutivo de sua
e a cupincha Inglaterra não gostavam de em nome da civilização e da democracia. natureza e demonstra por que eles to-
Saddam. Por isso, os mísseis Tomahawk As transgressões aos direitos dos po- mam o seu país como a “utopia realiza-
e ataques aéreos foram disparados so- vos continuam a ser executadas com per- da”. Os Estados Unidos estão se tornan-
bre as cabeças do pobre povo do Iraque. sistência, sempre edulcoradas com a pre- do um país mais parecido com ele mes-
Os meios de comunicação informa- ocupação de invocar razões “morais” pa- mo. Uma reconciliação do fenômeno com
vam, então, que mais de 60% dos nor- ra suas tropelias e barbaridades. O ex- o conceito, provavelmente a apoteose do
te-americanos apoiavam a decisão do -presidente Ronald Reagan ficou conhe- fim da história. •

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 41
Nosso Mundo

Abraço de urso
lenses, foram chocantes. Poucos contes-
tam que Israel tem o direito legal e moral
de se defender. Mas os líderes árabes, te-
mendo a ira do seu povo, têm razão quan-
Biden deixa-se do dizem que a punição coletiva de civis
enredar por Netanyahu e torna-se não é a melhor forma de reagir. A ONU
também exige um cessar-fogo. Sem isso,
sócio da iminente catástrofe outras tragédias como a explosão do hos-
pital anglicano al-Ahli serão inevitáveis.
P O R SI M O N T IS DA L L Apesar do que dizem as dissimuladas au-
toridades britânicas, não existe uma in-
vasão “calma e comedida”.

E
isso? Será isso o que os maiores maram a União Europeia num especta- O gabinete de guerra de Israel esta-
líderes ocidentais podem fazer dor quase irrelevante. beleceu quatro objetivos para a “Opera-
enquanto a hora H se No Conselho de Segurança da ONU, ção Espadas de Ferro”: destruir militar-
aproxima? O “gentil” Joe Biden guardião esfarrapado do ultrajado direi- mente o Hamas, eliminar a ameaça terro-
distribuiu simpatia e dólares to internacional, a França e todos os ou- rista em Gaza, resolver a crise dos reféns
em uma visita de sete horas a Israel. tros apoiaram um esboço de resolução e defender as fronteiras do Estado e os ci-
Pequenas quantidades de ajuda pingam para interromper as hostilidades e anu- dadãos. Mas as autoridades admitem que
em Gaza. Dois de 200 reféns foram lar a ordem de evacuação do norte de Ga- ainda discutem o que virá depois. Dizem
libertados. Mas não há cessar-fogo, não há za dada por Israel. Mas os Estados Uni- que uma ocupação renovada é impossível.
“pausa humanitária” ou zona segura, não dos vetaram, dizendo que isso ataria as Mas parece faltar uma estratégia de saí-
há fim para os bombardeios, não há plano mãos de Israel. Pateticamente, o Rei- da. Uma invasão “significará confrontar
de longo prazo. Crescem os temores de no Unido absteve-se, juntamente com a o Hamas no seu território e será provavel-
uma conflagração cada vez maior. Rússia, uma combinação infeliz. mente um assunto prolongado e sangren-
Em vez disso, há uma aquiescência oci- Muita diplomacia está em curso nos to”, alertou o Grupo de Crise Internacio-
dental relutante, embora vergonhosa, so- bastidores. O maior receio é que, se Israel nal, independente. “Livrar Gaza de ma-
bre o iminente ataque militar em grande atacar, o Hezbollah no Líbano abra uma neira sustentável de todas as manifesta-
escala de Israel a Gaza – com seu objeti- segunda frente. A instabilidade tem se ções daquilo que os israelenses conside-
vo compreensível, mas inatingível: a erra- alastrado ao Iraque e à Síria. As promessas ram terrorismo e que muitos palestinos
dicação definitiva do Hamas. Com mais dos Estados Unidos de fornecer mais bom- chamam de resistência será impossível, se
de 4 mil palestinos mortos, o “time” do bas e balas para Israel enfurecem o mun- não houver uma ampla mudança política.”
primeiro-ministro israelense, Benjamin do muçulmano. Entretanto, ninguém, Então, quem poderia governar Gaza,
Netanyahu, para usar o termo chocante nem mesmo Biden, sabe qual é o plano de supondo que o Hamas seja de fato depos-
escolhido por Biden, deveria receber car- Netanyahu pós-Hamas, pós-guerra. Isso to definitivamente? Um administrador
tão vermelho. Acabou de receber luz verde. porque quase certamente não existe um. nomeado pela ONU e apoiado por forças
A desordem política ocidental, a con- As atrocidades terroristas de 7 de ou- de manutenção da paz? Uma espécie de
fusão e a hesitação diante desse desastre tubro, que ceifaram 1,4 mil vidas israe- Alto Representante internacional, como
em evolução são desanimadoras. Os pri- na Bósnia? Sugere-se que o controle po-
meiros-ministros visitantes, o britânico deria ser devolvido à Autoridade Palesti-
Rishi Sunak e o alemão Olaf Scholz, im- na, destituída pelo Hamas em 2007. Mas
prensando Biden, agiram para agradar a AP é fraca e mal-amada. Para começar,
ao seu público doméstico e, deixando de
O presidente seu presidente, Mahmoud Abbas, teria de
lado as gentis palavras de cautela, agiram dos EUA cometeu abrir caminho para novos líderes eleitos.
como queria Netanyahu. Os desacordos erros básicos no Em todo caso, não está claro quanta
entre autoridades graduadas transfor- Oriente Médio influência os líderes ocidentais hesitan-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
tes podem exercer sobre qualquer acor- te, mas não porque o líder de Israel te- Cumplicidade. O presidente
do para o pós-guerra. O apoio aparente- nha mudado de repente. Netanyahu lu- dos Estados Unidos reforçou
o apoio bélico e militar a Netanyahu
mente incondicional de Biden e Sunak a ta desesperadamente para sobreviver.
e chancelou a invasão de Gaza
Israel os desqualifica como mediadores Quando Biden desceu do Air Force One
da paz. A Liga Árabe exige novamente a em Tel-Aviv na quarta-feira 18, foi aper-
retomada de conversações para a cria- tar a mão de Netanyahu. Mas este o agar-
ção de um Estado palestino. Mais do que rou num abraço de urso carente. Perigo- por seus pontos cegos e por sua nature-
nunca, Israel não está escutando. so, profundamente impopular, duas-ca- za positiva, agora é o “dono” desta guer-
Biden cometeu três erros básicos no ras, tóxico – esse é Netanyahu hoje. ra. Se a situação se deteriorar ainda mais,
Oriente Médio desde 2021. Concentran- não haverá como escapar. Ele tem uma
do-se nas questões internas e na China, Não é exagero dizer que ele poderia longa guerra para travar, com a Rússia
tentou ignorar a região. Não é possível. arrastar Biden consigo. Após o choque na Ucrânia. E potencialmente enfrenta
Em segundo lugar, embarcou nos Acor- inicial os ter reunido, os dois líderes es- outra, fria ou quente, com a China. Co-
dos de Abraão de Donald Trump e na ca- tão novamente em caminhos divergen- mo abutres a voar em círculos, Vladimir
ravana de normalização árabe-israelen- tes. Longe de buscar uma desescalada, Putin e Xi Jinping, que se encontraram
se. Fatalmente, esses acordos “históricos” Netanyahu prevê uma “longa guerra”. em Pequim, assistem tranquilamente.
tentaram contornar o conflito palestino. Na verdade, parece que é o que ele quer. Seja quem for o culpado, e certamente
Terceiro: Biden não conseguiu reagir du- “Isto não é do interesse de ninguém, ex- não é tudo culpa dele, esta catástrofe se de-
ramente quando Netanyahu, um grande ceto de Netanyahu, que, provavelmente, senrola sob o comando de Biden. Os com-
fã de Trump, montou seu próprio golpe vê o fim de seu governo chegar com o tér- parsas de Trump e do Partido Republicano
antidemocrático no estilo do Capitólio, mino da próxima batalha com o Hamas”, estão à espreita. Falta apenas um ano para
aliou-se a fanáticos da extrema-direi- comentou o analista norte-americano a eleição presidencial nos Estados Unidos
MIRIA M A LST ER /A FP

ta determinados a anexar a Cisjordânia David Rothkopf. Um conflito prolongado, em 2024. É triste pensar que Netanyahu,
e minou os esforços dos Estados Unidos que inflija mais vítimas civis e maior ins- que Biden tanto fez para salvar, estaria
para atenuar as tensões com o Irã. Biden tabilidade regional, poderá afetar ainda entre os que aplaudem a sua derrota. •
ignorou-o, mas pouco mais que isso. mais profundamente os Estados Unidos.
Essa geada derreteu forçosamen- Biden, emanando empatia, limitado Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 43
Nosso Mundo

A solidão da
do exatamente onde seria construído.
Thrall usa essas experiências para es-
clarecer o que chama de “sistema”, uma

consciência
estrutura repressiva que considera in-
sustentável, mas que não espera que mu-
de em breve, haja o que houver em Ga-
za. “Este é o maior desafio que ela já en-
O jornalista Nathan Thrall frentou. Não se pode exagerar o choque
e as agruras de ser um judeu crítico quando que os israelenses sentiram ao ver ima-
gens de homens armados a mover-se por
os compatriotas só querem vingança uma cidade como Sderot. É algo saído de
seus pesadelos, uma inversão total de to-
P O R R AC H E L C O O K E
da a noção que têm sobre o isolamento
de Gaza, um problema sobre o qual eles
não precisam pensar, exceto durante as

N
escaladas periódicas”, lamenta. “Mas es-
os dias que se seguiram aos O livro de Thrall deve seu título a um ta guerra não terminará com a igualda-
ataques do Hamas no sul homem que ele agora considera amigo: de entre judeus e palestinos. Continua-
de Israel, o jornalista nor- Abed Salama, que vive em Anata, cida- rá a existir um regime de controle força-
te-americano Nathan de da Cisjordânia próxima de Jerusa- do, quer Israel esteja presente em Gaza,
Thrall, ex-diretor do pro- lém, quase cercada pela barreira de se- quer consiga encontrar representantes
jeto árabe-israelense no Grupo de Crise paração israelense. Em 2012, o filho de na Autoridade Palestina que possam aju-
Internacional, viu-se ansiosamente 5 anos de Salama, Milad, foi morto de- dá-lo a controlar Gaza, ou simplesmen-
situado entre a preocupação com a espo- pois que o ônibus em que viajava nu- te decida deixar o Hamas no poder. En-
sa e as filhas em sua casa em Jerusalém ma excursão escolar sofreu um aciden- tretanto, tem de arrasar Gaza para satis-
e a consciência de que, enquanto segue te. No livro, Thrall descreve as muitas fazer seu próprio público, para lhes dar
em turnê para promover seu novo livro, iniquidades que Salama, como palesti- uma resposta à questão de como pode
cada aparição pública agora é mais ten- no, teve de suportar nas horas e nos dias afirmar com credibilidade que isso nun-
sa do que habitualmente, pela possibili- após o acidente, a começar pela impos- ca mais acontecerá.”
dade de mal-entendidos. “Os aconteci- sibilidade de viajar até o hospital onde
mentos tornaram mais difícil eu falar”, Milad poderia estar. O jornalista tam- Thrall não descarta a possibilidade
diz, quando nos encontramos em Lon- bém usa a tragédia para contar as histó- de que o primeiro-ministro israelense,
dres. “Muitos que leram Um Dia na Vida rias de muitos outros. Entre eles estão o Benjamin Netanyahu, sobreviva à crise:
de Abed Salama me disseram que o colono israelense Eldad Benshtein, que “Ele deveria estar com medo, mas acho
acharam presciente, o consideram um atendeu ao acidente como paramédico, que é muito bom para ele ter formado
livro necessário. Mas para outros há a e Dany Tirza, que, como líder do plane- um governo de unidade nacional. Todas
sensação de que trago uma mensagem de jamento estratégico das Forças de Defe- as falhas serão compartilhadas de
nuances. Estou lhes contando sobre a sa de Israel na Cisjordânia, traçou com agora em diante”.
vida de judeus e palestinos numa situação eficácia o muro de separação, decidin- A Autoridade Palestina, que con-
claramente injusta, e eles sentem que não trola a Cisjordânia, e seu presiden-
podemos falar de uma injustiça diante te, Mahmoud Abbas, nunca foram tão
da atrocidade.” Ele prossegue: “É um mo- gravemente ameaçados quanto agora,
mento muito cru, quase um momento tendo uma organização rival desafiado
pós-11 de Setembro no grau em que as
“Sinto uma Israel de uma forma que nunca o fez. “O
pessoas têm medo de expressar simpa- responsabilidade Hamas mostrou-se disposto a sacrificar
tia pelos palestinos, e ainda não sei qual moral de fazer o controle territorial de Gaza por um ob-
das duas atitudes vai prevalecer”. o que posso” jetivo maior, a liderança do movimento

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Em má hora. Thrall está em turnê
para lançar seu novo livro, uma ode à
conciliação entre judeus e palestinos

ele estava desesperado para falar com


alguém sobre seu filho, e agora se refere
a Thrall como “o homem que o fez cho-
rar” (ele entende isso como um elogio).
Mas os israelenses no livro também fi-
caram felizes em conversar, e as suspei-
tas desapareceram quando o conhece-
ram. “Eu sabia que a única maneira de
ter sucesso seria se os leitores sentis-
sem que era uma representação ho-
nesta, se todos parecessem humanos,
reais, com motivos, amores, ciúmes e
ambições explicáveis.”

Mesmo assim, esse trabalho é difícil.


Ser um judeu crítico de Israel é também,
às vezes, ser muito solitário. “Minha
mãe é uma típica emigrada judia-sovi-
ética para os Estados Unidos”, diz. “Ela
tem uma ligação tribal com Israel. Não
suporta ler nada que escrevo.” Thrall
mora no país há 12 anos. Ele pretende
ficar? Sim, mas é complicado. “Sinto
uma responsabilidade moral de fazer
nacional”, afirma. As ações do Hamas o que posso. Sinto essa responsabilida-
não proporcionarão, no entanto, uma de como norte-americano, cujos impos-
grande vitória. “O mundo tem um his- tos dão quase 4 bilhões por ano a Israel.
tórico de ser capaz de ignorar os pales- Sinto-a como judeu, porque o governo
YA H E L G A Z I T / M I D D L E E A S T I M A G E S / A F P E J U D Y H E I B L U N

tinos. Gaza ficará em ruínas, muitas vi- israelense afirma agir em nome do po-
das terão sido perdidas, eles terão falha- vo judeu, e sinto-a como um ser huma-
do completamente.” no que vive em Jerusalém e tem amiza-
Thrall fez contato com Salama pe- des profundas com os palestinos. Mas…
la primeira vez por meio de um amigo. o nível de brutalidade que tenho visto
“Moro a 2 quilômetros de Amata. Eu os não apenas desde sábado, mas no sába-
percorria semanalmente, sem me im- do, me deixa com o coração partido. Te-
portar que esse gueto fique abaixo da nho três filhas que nasceram nesta so-
Universidade Hebraica de Jerusalém, ciedade, e temo que lhes esteja prestan-
que você pode olhar do belo e bem cui- do um péssimo serviço ao criá-las neste
dado terreno do campus para os postos lugar, e que, se algo acontecer com elas,
de controle e as filas de pessoas tentan- a culpa será minha.” •
do passar por eles.” Ganhar a confian-
ça de Salama foi relativamente simples, Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 45
Nosso Mundo

A razão vencerá?
OBSERVATÓRIO DAS ELEIÇÕES Apesar das
incertezas, a Argentina parece dobrar
a aposta na resiliência democrática
P O R L EO N A R D O AV R I T Z E R E A N D R ES S A R OVA N I *

A
democracia argentina chegou a ter 1 ponto porcentual a mais
mostrou mais uma vez sua de votos em relação ao resultado atingi-
resiliência nas eleições. Se do nas eleições primárias. Para quem vê
a vitória de Javier Milei o copo libertário meio cheio, Milei che-
nas primárias de agosto ga ao segundo turno longe da liderança.
causou um terremoto no cenário políti- Com o aumento da participação do eleito-
co, o resultado do primeiro turno da elei- rado em relação às primárias, perdeu pa-
ção para presidente da República provo- ra o voto de centenas de milhares de ar-
cou, no domingo 22, níveis semelhantes gentinos. Mas sua proposta de ultralibe- defesa de armas, críticas grosseiras ao
de surpresa. Depois de ceder ao canto da ralismo, além da maneira de se apresen- papa, ataques aos direitos das mulheres
sereia de um candidato populista de di- tar como completamente instável, leva- e incapacidade de explicar sua proposta
reita cuja proposta implicava o fim de ram a uma rejeição forte por parte de to- de dolarização para salvar a economia?
qualquer tipo de indústria nacional e a dos os eleitores que não haviam votado Assim, nesta primeira excepcionalidade
destruição completa do Estado, os argen- nele na primeira fase. O que antes pare- demonstramos se os argentinos sucumbi-
tinos perceberam que esse não parecia cia ser uma base a ser ampliada pode ter ram ao voto de protesto generalizado e ra-
ser um caminho viável e se voltaram à sido seu teto. Sua primeira declaração co- dical ou se conseguiram perceber a tem-
única força política capaz de resistir aos ordenada e estruturada foi justamente o po que esse não é o caminho.
diferentes ventos da política nacional. discurso após os resultados do primeiro
Na reviravolta, o peronista Sergio turno, num tom abaixo do adotado duran- A segunda excepcionalidade está li-
Massa, terceiro lugar nas eleições pri- te a campanha, em uma possível tentati- gada a Sergio Massa. Dificilmente, em
márias, saiu vitorioso da disputa, con- va de convencer eleitores de Bullrich de qualquer democracia no mundo, o mi-
centrando 36,6% dos votos do primeiro que vale correr o risco. Esse é seu maior nistro da Economia de um país em crise
turno e mostrando alta competitividade desafio, mas como alcançá-lo mantendo sairia vencedor no primeiro turno. O vo-
eleitoral. Alçado à condição de favorito, o mesmo conjunto de ações que incluem to em Massa explica-se basicamente por
Milei registrou 29,9% das preferências sua capacidade de alcançar os eleitores do
do eleitorado e deixou de fora do segundo centro, de assumir a responsabilidade pe-
turno uma das principais correntes polí- la condução da economia e por sinalizar
ticas, representada por Patricia Bullrich, Ao contrário dos uma reorganização necessária a partir de
do Juntos por el Cambio. brasileiros em relação 10 de dezembro, data na qual o novo pre-
Para se ter a dimensão do tamanho da sidente assumirá o governo. Prova que o
reversão política que as eleições signifi-
a Bolsonaro, peronismo continua vivo e, talvez, até com
caram, três excepcionalidades são impor- os argentinos não melhor saúde do que em tempos recentes.
tantíssimas de ser percebidas. Em primei- ignoram o que pensa Mas ele precisa de mais. O mapa da vota-
ro lugar, a estagnação de Milei, que não e diz o extremista Milei ção de domingo indica os caminhos que o

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mano a mano. Na descrição de parte pa pela qual Bullrich concorreu, tam- o eleitorado argentino escolheu não re-
da mídia argentina, o segundo turno bém aparece como um ponto excepcio- lativizar o que Milei, assim como Bolso-
entre Massa e Milei opõe o nojo ao medo
nal. Ou seja, uma oposição dentro de um naro, fez, faz e diz. A adesão significati-
sistema político de revezamento de po- va às propostas raivosas de um candida-
der entre duas concepções, os peronis- to de extrema-direita alterou o tabulei-
governista tem a percorrer. Na capital ar- tas e os cambiemos ou o macrismo, acaba ro político, e quiçá o futuro, do país. Ca-
gentina, a vitoriosa foi Patricia Bullrich, por levar a um desfecho completamente berá aos peronistas depois de governar
com 41% dos votos, 9 pontos porcentuais inesperado, devido à incapacidade da pró- para acentuar a polarização, conduzir o
à frente de Massa. Em seu discurso no pria candidata de manter os votos recebi- país com o objetivo de estabelecer uma
domingo à noite, o governista sugeriu um dos pela chapa nas primárias. Bullrich fez ampla coalizão ao centro. Massa é o can-
“governo de unidade nacional”. Mas, pou- uma campanha voltada para a defesa do li- didato ideal para essa tarefa. •
cos minutos antes, Bullrich, pertencente vre-mercado, com propostas mais próxi-
à coalização que se construiu como antí- mas de Milei e com duras críticas ao pe- *Leonardo Avritzer é professor-titular
tese do peronismo governista, deixou cla- ronismo, e acabou por ceder ao candida- de Ciência Política da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor
ro que unir os descontentes – como exal- to de extrema-direita o posto histórico de
L U I S R O B AY O / A F P E E M I L I A N O L A S A LV I A / A F P

em Sociologia Política pela New School


tou Milei, dois terços dos eleitores querem sua corrente no imaginário político nacio- for Social Research e coordenador do
mudança – não será tarefa fácil para ele. nal. Macri, contudo, é apontado como um INCT–IDDC. Andressa Rovani é jornalista e
Assim como será difícil o trabalho de man- dos elementos-chave nesse esfacelamen- doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.
O Observatório das Eleições na Argentina
ter preços sob controle para que uma né- to, por demonstrar a Bullrich um apoio a
é um projeto internacional organizado
voa de estabilidade continue a pairar so- conta-gotas. Tudo indica que o cambiemos pelo Instituto da Democracia, sediado na
bre o país até o segundo turno. Como des- tem poucas chances de sobrevivência. UFMG e coordenado por Leonardo Avritzer.
taca a mídia argentina, é uma briga do no- Com sérios problemas econômicos e O projeto envolve uma equipe de pesquisadores
jo contra o medo – e as armas da disputa sociais e com um recorde de abstenção de várias instituições e universidades, tanto
no Brasil quanto na Argentina, e tem como
ainda precisam ser reapresentadas. no primeiro turno, a única palavra possí- principal objetivo acompanhar as eleições
Por último, vale a pena mostrar que o vel para o segundo turno é incertidumbre. que estão programadas para ocorrer
destino da Juntos por El Cambio, a cha- Mas, diferentemente do caso brasileiro, até 19 de novembro no país vizinho.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 47
Plural

Nova representação
AUDIOVISUAL. Cidade de Deus, a série, olha para a comunidade
sob a perspectiva da resistência e com um um viés mais otimista
P O R A N A PAU L A S O U S A

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Livro. As memórias de Tove
SEÇÃO Ditlevsen são um eloquente
relato sobre a doença mental

dos moradores, dos integrantes da co-


munidade que não estão envolvidos com
a criminalidade. Também temos muitas
narrativas femininas”, diz Aly Muritiba,
que assumiu a direção do projeto. “A gente
fala de um universo criminal, das milícias,
mas sempre do ponto de vista de quem so-
fre as consequências dessa realidade.”
Muritiba já teve filmes selecionados
para festivais como San Sebastian (Pa-
ra Minha Amada Morta, 2015),
Sundance (Ferrugem, 2018), Veneza (De-
serto Particular, 2021) e para a Semana da
Crítica de Cannes (Pátio, 2013) e dirigiu
séries como O Hipnotizador (HBO), Car-
cereiros (Globo), O Caso Evandro (Globo
Play) e Cangaço Novo (Prime Video).

Nascido em Mairi, no sertão baiano,


ele mudou-se para São Paulo aos 20 anos
para estudar. Trabalhava como bilhetei-
20 anos depois. Thiago Martins (à esq.), no papel de Braddock, e Alexandre Rodrigues ro da Companhia Paulista de Trens Me-
(acima), como Buscapé, o fotógrafo narrador, são dois dos atores mantidos na produção tropolitanos (CPTM), enquanto cursava
da plataforma HBOMax rodada no Parque Novo Mundo, zona norte de São Paulo
História, e, depois, passou em um con-
curso público para agente penitenciário.

O
“Quando me convidaram para dirigir a
Parque Novo Mundo, na Zo- lano (Dhonata Augusto) têm um diálogo série, pensei na responsabilidade que era.
na Norte de São Paulo, é que sintetiza o espírito da nova produção: Mas também pensei que era melhor que
descrito, no site da prefeitu- – Cresci escutando a senhora dizer o projeto caísse nas mãos de alguém co-
ra, como um lugar marcado que a gente tem de mudar as coisas de mo eu. São poucos os carcereiros que vi-
pela carência de espaços pú- dentro para fora, mãe. Tentei fazer isso raram cineastas”, diz, em tom de brinca-
blicos e áreas verdes e pelas moradias pre- na polícia. Se a senhora sair do centro co- deira, mas demarcando a questão de clas-
cárias. Localizado entre a Marginal Tietê munitário, quem vai fazer isso? se constituinte de nossa cinematografia.
e as rodovias Presidente Dutra e Fernão O mote do filme, “se correr o bicho pe- “Quando Cidade de Deus estreou, nem vi.
Dias, o bairro tem sido também, nos últi- ga, se ficar o bicho come”, foi substituído Eu, sinceramente, nem ouvi falar do fil-
R E N AT O N A S C I M E N T O E L A I S L I M A / TA N G E R I N A

mos meses, o lugar onde se recriam os am- por outro. “Agora é: ‘A gente vai ficar por me. Eu era bilheteiro de trem. Só fui ver
bientes e as histórias da Cidade de Deus, aqui, e a gente vai lutar’. Vinte anos depois, quando comecei a estudar cinema.”
comunidade da Zona Oeste do Rio que dá as histórias são contadas da perspectiva Se, em 2002, as classes menos favoreci-
nome a um dos filmes mais impactantes das foram integradas ao projeto no elen-
da história do cinema brasileiro e, agora, co, na figuração e nas funções auxiliares
a uma série dele derivada. da equipe técnica, em 2023 a ideia de re-
A diária acompanhada por CartaCapital “Tínhamos, desde presentatividade teve de ser aprofundada.
tinha começado às 5 da tarde e iria até as “Tínhamos, desde o começo, uma ideia de
5 da manhã do dia seguinte. Era a déci-
o começo, uma reparação histórica da equipe envolvida.
ma primeira de 14 semanas de filmagens. ideia de reparação O Cristiano Conceição, por exemplo, que
Na sequência rodada quando a imprensa histórica”, diz a foi operador de câmera no filme, é dire-
chegou ao set, Cíntia (Sabrina Rosa) e De- executiva Silvia Fu tor de fotografia na série”, diz Silvia Fu,

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 49
Plural

se recorte dos 20 anos depois nos pare-


ceu um bom gancho.”
A trama narrada em Cidade de Deus, o
longa-mnetragem, encerra-se no início
da década de 1980. As histórias da série
acontecem no início dos anos 2000. O
narrador é novamente Buscapé, agora
um fotógrafo de sólida carreira. Para os
flashbacks serão selecionados materiais
do filme que ficaram fora do corte final.
Muritiba diz ter procurado manter al-
gumas referências estéticas do estilo que
acabou por ganhar o nome de favela movie
e, ao mesmo tempo, ter ido buscar inspira-
ção em filmes produzidos em Nollywood,
a indústria cinematográfica nigeriana.
“Eu queria algo de um cinema popular
que não fosse aquele de Hollywood”, diz.

A primeira temporada da série tem


Depois do mais de 80 locações em São Paulo e in-
sucesso. cluirá oito diárias no Rio de Janeiro, on-
A atriz Roberta de serão filmadas tomadas aéreas e cenas
Rodrigues, que
mais abertas, nas quais a cidade se deixa
também volta
como Berenice, diz ver. Em busca do clima carioca, a produ-
ter passado anos ção trouxe mais de 15 atores da comuni-
fazendo papéis dade para São Paulo.
de empregada “Quando chegaram no Cingapura, os
doméstica na TV
atores comentaram ter achado muito pa-
recido com Cidade de Deus, que é uma fa-
vela horizontal. O Rio, neste momento,
seria inviável por questões de seguran-
ça”, pondera Muritiba.
Além de moradores da comunidade,
o elenco inclui atores do longa-metra-
líder de conteúdo roteirizado da Warner No Cingapura 12, outra das locações, ou- gem. Alexandre Rodrigues, o Buscapé,
Bros. Discovery, empresa à qual pertence a vi uma moradora falando que a série esta- vive atualmente em São Paulo e não ne-
HBOMax, plataforma produtora da série. va empregando mais de cem pessoas ali.” ga que o convite despertou nele um mis-
A outra empresa produtora, a O2, que Segundo Andrea, o desejo de transfor- to de emoções. “Fiquei com medo. Como
botou de pé o filme no início dos anos mar o livro de Paulo Lins em série não contar a história 20 anos depois? Vem
2000, faz eco à fala de Silvia. “Lá atrás, a partiu da O2. O que aconteceu é que, al- uma montanha-russa de sentimentos.
gente estava desbravando esse tipo de tra- guns anos atrás, uma produtora france- O dia em que entendi o que tinha acon-
balho”, diz a sócia Andrea Barata Ribeiro. sa quis comprar os direitos do livro pa- tecido com a gente foi o dia em que o fil-
“Hoje, sabemos como chegar numa comu- ra fazer uma série. Mas a O2 tinha aqui- me recebeu quatro indicações para o
nidade. Um set é uma invasão e a convi- lo que, no mercado, se chama first option, Oscar”, recorda.
vência tem de ser pacífica. É fundamen- e fez valer o seu direito. Buscapé, conta Rodrigues, virou um
tal também que a comunidade faça parte “Levou tempo até surgir uma ideia que fotógrafo premiado, com cicatrizes reais
do processo. Na série, temos pessoas da co- a gente achasse que valia a pena. Era di- e simbólicas das guerras que cobriu, e
munidade escrevendo o roteiro, inclusive. fícil encarar o gigante”, diz ela. “Mas es- também amadurecido. “Acho que tam-

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
bém estou mais maduro”, emenda ele, “Quando o filme guém para carregar bolsa para o camera
que seguiu a carreira de ator. (man)’”, conta. Depois disso, foi estudar
Roberta Rodrigues, a Berenice, tam-
estreou, nem vi. na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
bém não abandonou o ofício – mas por Eu era bilheteiro “Como morador, eu digo: o filme foi ab-
um triz. “Nesses 20 anos, passamos to- de trem’, diz Aly solutamente ruim, porque botou um ca-
dos por uma longa caminhada. Cheguei Muritiba, o diretor rimbo na comunidade. Pessoas perderam
a desistir de ser atriz depois de passar seus empregos e lembro de ter amigos que
por um episódio de racismo em uma no- deixaram de vir me visitar”, afirma. “Co-
vela”, conta emotiva e orgulhosa de ter mo cineasta, sou fã. Quando recebi o con-
conseguido, recentemente, o primeiro e da minha mãe”, diz, enfática e, de no- vite, fiquei com o pé atrás, mas entendi
papel como protagonista, em Veronika, vo, emotiva. “Também pela primeira vez, que meu ponto de vista seria respeitado.
série ainda inédita, produzida pelo Glo- muita gente da comunidade se deu conta A gente vai ter tiro e sangue derramado,
boplay em parceria com a AfroReggae. de que nós podíamos ser artistas.” mas vai contemplar também a luta, a vi-
“Faço uma advogada criminal. Foi o Mas uma conversa com o roteirista tória, o projeto social, a escola de samba.”
primeiro papel em que eu tinha uma fi- Rodrigo Felha, via Zoom, mostra que, Fernando Meirelles, o diretor de
lha, tinha uma mãe. Porque, depois de Ci- passadas duas décadas, se as críticas es- Cidade de Deus, tornado um dos grandes
dade de Deus, comecei fazendo papel de téticas esmaeceram diante dos reconhe- nomes do cinema brasileiro, olha para
empregada em uma novela. Aí veio outra cimentos obtidos pelo filme, as marcas trás com a serenidade que lhe é habitual.
novela e qual era o meu papel? Emprega- deixadas em parte da comunidade ain- A primeira coisa que diz, na entrevista, é
da. Hoje vão, enfim, aparecendo alguns da se deixam antever. que sequer desejava que a série fosse fei-
outros papéis para atores pretos, mas “Tô na rua, diretamente de City of God. ta. Voto vencido, numa coisa insistiu: não
ainda ganhamos menos que os brancos.” Sou nascido e criado aqui”, anuncia Fe- seria o diretor, mas apenas produtor.
Roberta levanta, por conta própria, lha, assim que aparece na videochama-
o tema da violência desnuda que, à épo- da. Um dos fundadores dos projetos Ins- Agora que o projeto ganhou vida, não
ca, gerou críticas ao filme. “Para a gen- tituto Arteiros e Central Única das Fave- nega, porém, que a possibilidade de ver a
te, o que marcou não foi a violência. Ali, las (Cufa), ele estreou no audiovisual no história recontada, sob o olhar de hoje e
foi a primeira vez que a gente viu tanta documentário Falcão, Meninos do Trá- sem que o viés seja apenas o da violência,
gente preta na tela. A gente também viu fico (2006), produzido pela Cufa, com o alegra. “O filme falava de como o trá-
pessoas indo ao cinema pela primeira vez direção de MV Bill e Celso Athayde. “O fico se instalou. Na primeira temporada
para ver o filme – foi o caso do meu pai Athayde me disse: ‘A gente precisa de al- da série, a gente vê as milícias se insta-
lando. Nossa ideia é chegar a três tempo-
radas”, revela. “Marielle (Franco) é uma
das personagens que pode vir a inspirar
outras temporadas.”
Cidade de Deus, segundo Silvia Fu, é
o maior projeto da HBOMax. “Tem uma
complexidade enorme. Só a figuração che-
R E N AT O N A S C I M E N T O E 0 2 F I L M E S / V Í D E O F I L M E S

ga a ter 150, 200 pessoas em cada diária”,


diz ela, lembrando que tal investimento
só foi possível por se tratar de um produ-
to com grande potencial internacional.
Encerradas as filmagens, dentro de
poucas semanas, a série deve passar um
ano na pós-produção – fase na qual se-
rão, por exemplo, aplicadas, às cenas fil-
madas em São Paulo, os morros do Rio.
A data de estreia ainda é uma incógnita.
“Mas acho que vai causar barulho”, apos-
Equipe. Rodrigo Carvalho, diretor de fotografia, Meirelles e Muritiba no set paulistano ta Andrea, como se tivesse um déjà-vu. •

C A R TAC A P I TA L — 1 ° D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 51
Plural

A experiência
Tove é uma jovem incomumente séria,
com poucos amigos e, aqueles que ela

tornada linguagem
tem, parecem misteriosamente estran-
geiros. “A infância”, escreve, “é longa e es-
treita como um caixão, e você não conse-
gue sair dele sozinha.” Em vez de brincar
A trilogia autobiográfica da no pátio de seu prédio, ela prefere ler e es-
crever poemas.
autora dinamarquesa Tove Ditlevsen é um Este é, em parte, um Künstelerroman
relato eloquente de uma vida atravessada (narrativa sobre o crescimento e amadu-
recimento de um artista) em busca de ras-
pela doença mental e pelo uso de drogas tros de um futuro estrelato literário no iní-
cio da vida. A infância termina lindamente
P O R A L E X P R ES TO N assim: “Minha infância cai silenciosamen-
te ao fundo da minha memória, a bibliote-
ca da alma da qual tirarei conhecimento e

A
experiência para o resto da minha vida”.

" gora sou realmente uma


viciada?, pergunto. Sim,
cialista que foi demitido de vários em-
pregos por causa do ativismo políti- Um dos muitos elementos quase mila-
ele diz, com seu sorriso tí- co. Seu bairro de baixa renda é cheio grosos da prosa da autora – que, à primei-
mido e hesitante, agora de bêbados e o futuro de Tove é – na ra vista, parece despreocupadamente in-
você é realmente uma vi- melhor das hipóteses – casar-se com gênua – é a maneira pela qual ela se fixa
ciada.” As majestosas memórias sobre um “trabalhador qualificado e estável”. em um objeto e cola seus personagens ne-
arte e vício de Tove Ditlevsen, reunidas Desde muito cedo, no entanto, ela tinha le, como se, assim, conseguisse aterrá-los
na Trilogia de Copenhagen, foram publi- vestígios da doença mental que arrasaria em seu mundo físico.
cadas originalmente em dinamarquês sua vida adulta. Sua infância foi dominada Assim, ela escreve: “A raiva sombria da
entre o fim dos anos 1960 e o início dos por uma sensação sufocante de melancolia. minha mãe sempre terminava com ela
anos 1970, e saíram em inglês em 2019. me dando um tapa na cara ou me empur-
Na segunda-feira 31, os três livros au- rando contra o fogão”. Já seu pai é “gran-
tobiográficos, chamados Infância, Juven- de, preto e velho como o fogão, mas não
tude e Dependência, chegarão às livra- há nada nele que me cause medo”. E, fi-
rias brasileiras, em tradução de Heloisa nalmente, uma página depois, à medida
Jahn e Kristin Lie Garrubo. A Trilogia que a infância passa, o fogão torna-se um
de Copenhagen traça a história de Tove ponto de solidez: “A sala navega no tem-
do nascimento ao estrelato literário, pas- po e no espaço, e o fogo ruge no fogão”.
sando pelos anos sórdidos e angustiantes A prosa fria é interrompida por glorio-
da dependência de drogas, que termina- sos floreios poéticos, e essas explosões de
ram com seu suicídio em 1976. lirismo são mais que meramente orna-
A trilogia é estridentemente franca, mentais. Os livros lidam com o tempo e
totalmente reveladora – ela não faz o a narrativa alterna-se entre o presente e
menor esforço para esconder os muitos o passado para que, como na obra do no-
episódios vergonhosos de uma existên- rueguês Karl Ove Knausgård, nos mova-
cia caótica e devastadora. TRILOGIA DE COPENHAGEN mos em um caleidoscópio que nos leva das
Tove Ditlevsen nasceu em Vesterbro, Tove Ditlevsen. Tradução: Heloisa Jahn particularidades observadas com minúcia
um bairro de Copenhague, na Dinamar- e Kristin Lie Garrubo. Companhia das ao amplo espaço de uma vida. “O tempo
Letras (392 págs., 79,90 reais)
ca, em 1917, filha de uma mãe inquieta e passou e minha infância ficou fina e pla-
socialmente ambiciosa e de um pai so- na como papel”, escreve ela, a certa altura.

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Honestidade e lirismo. A escritora,
nascida em 1917 em um bairro de baixa
renda em Copenhague, publicou mais
de 30 livros, incluindo poemas, contos
e romances, e cometeu suicídio em 1976

uma injeção de Demerol – um opioide.


“O quarto expande-se num salão ra-
diante”, escreve ela. Mas, quando passa o
efeito, “parece que um véu cinza e visco-
so recobre tudo o que meus olhos veem”.
Carl é um monstro e torna-se o último e
pior de uma longa fila de homens que abu-
saram da fragilidade emocional de Tove.
Ele a controla, primeiro, com Demerol
e, depois, com Metadona – outro opioide,
ainda mais forte – e a carreira de escritora
com a qual ela sonhava tão intensamente
quando criança começa a definhar. Enciu-
mado, Carl, silenciosamente, tira Ditlevsen
de um jantar com Evelyn Waugh e de-
pois a acalma com uma dose de Demerol.
Até mesmo a conclusão meio esperanço-
sa do livro é influenciada pelo conheci-
mento do leitor sobre o que está por vir.

Escrever sobre dependência de dro-


gas e doenças mentais é difícil, porque
essas coisas apresentam um desafio di-
reto à nossa capacidade de transformar
a experiência em linguagem.
A trilogia de Tove – que publicou mais
de 30 livros, incluindo poemas, contos e
romances – é notável não apenas pela
honestidade e o lirismo. Seus livros via-
jam pelas profundezas obscuras da expe-
riência humana e retornam, mortalmen-
A ascensão do nazismo a faz sentir- pegadas de uma criança na areia úmida”. te feridos, mas ainda eloquentes. A trilo-
MUSEU DOS TRABALHADORES/

-se “como se as ondas do grande ocea- O último livro da trilogia, Depen- gia Copenhagen é tão crua e comovente
no do mundo pudessem virar meu pe- dência, é o mais memorável. Depois de quanto An Angel at My Table, de Janet
queno e frágil navio a qualquer momen- assumir e descartar dois maridos, Tove Frame. Assim como este, irradia a luz
to”. Ela aborta uma criança porque is- conhece Carl, um médico, numa festa pa- clara da verdade e representa a vitória
so atrapalharia sua escrita, e diz: “Não ra comemorar o fim da guerra. No dia se- final de uma vida que, para quem a viveu,
DINAMARCA

me arrependo do que fiz, mas nos cor- guinte, embora ele seja “prognata e tenha deve ter parecido uma derrota. •
redores escuros e manchados da minha 64 dentes na boca em vez de 32”, ela vai
mente há uma leve impressão, como as encontrá-lo novamente e Carl lhe aplica Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 53
Plural

Entre a filosofia
pretação relativamente original de Marx.
Intelectual oriundo da burguesia ju-

e a realidade
daica, mas, desde cedo, atraído por uma
sensibilidade anticapitalista, Lukács tor-
nou-se comunista na esteira da revolu-
ção russa, em outubro de 1917.
IDEIAS Uma nova leva de livros de e sobre Seu primeiro trabalho de fôlego após a
adesão ao marxismo foi História e Consci-
Lukács revela sua busca obstinada por ência de Classe, publicado em 1923. É a es-
uma interpretação original do marxismo ta obra controversa, responsável por uma
inflexão na história do marxismo, que é
P O R FÁ B I O M A S C A R O Q U E R I D O * dedicado o livro História e Consciência de
Classe, Cem Anos Depois, organizado pe-
lo mesmo José Paulo Netto.

N
ão resta dúvida de que bloco, os títulos revelam um pensamen- Entre os estudiosos de Lukács, o li-
Georg Lukács (1885-1971) to em permanente ebulição, pressionado vro é objeto de polêmica porque o próprio
é um dos grandes nomes entre a fidelidade à letra do pensamento filósofo o renegou nas décadas posterio-
da história do pensamen- de Marx e a busca por atualizá-lo à luz res, qualificando-o como ainda idealis-
to marxista. O filósofo das transformações do capitalismo, as- ta, incapaz de explicar os fundamentos
nascido na Hungria impressiona não sim como do mal chamado “socialismo materiais do processo histórico de for-
apenas pela extensão quantitativa, mas realmente existente”. mação do ser social.
pela ambição de sua obra. É como se, a Destaca-se, a este respeito, Lukács, Essa virada “ontológica” – no sentido
cada texto, Lukács acrescentasse uma Uma Introdução, de José Paulo Netto. de que se interessa pelo gênero humano
nova camada à compreensão filosófica A obra passeia com desenvoltura por al- no seu desenvolvimento temporal – foi
da tradição fundada por Karl Marx. guns dos principais tópicos do pensa- explicitada, de fato, apenas a partir dos
É o que nos mostra uma nova leva de mento lukacsiano, sublinhando os diver- anos 1950. Mas ela já pode ser identifi-
livros de e sobre Lukács, recentemente sos obstáculos enfrentados pelo filósofo cada, em germe, nos seus trabalhos dos
editados pela Boitempo. Tomados em em sua busca obstinada por uma inter- anos 1930, momento também marcado

ESTÉTICA: A LUKÁCS, UMA HISTÓRIA E TEORIA SOCIAL, POR QUE LUKÁCS?


PECULIARIDADE DO INTRODUÇÃO CONSCIÊNCIA VERDADE E Nicolas Tertulian.
ESTÉTICO. VOL. I DE CLASSE, CEM TRANSFORMAÇÃO Tradução: Juarez
José Paulo Netto.
Boitempo ANOS DEPOIS Torres Duayer. Boitempo
Georg Lukács. Mário Duayer.
(112 págs., 43 reais) (352 págs., 93 reais)
Tradução: Nélio Schneider. José Paulo Netto (org.). Boitempo
Boitempo, Boitempo (240 págs., 59 reais)
(536 págs., 127 reais) (344 págs., 89 reais)

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Húngaro nascido no seio de
uma família judaica burguesa, o
pensador tornou-se comunista
na esteira da revolução russa

pelo início de uma convivência ambiva- É também a esse último Lukács que ças provocadas pelo desenvolvimento
lente com o regime soviético. se voltam Nicolas Tertulian, em Por Que do capitalismo.
Obra fundamental dessa etapa ma- Lukács?, e Mário Duayer, em Teoria So- Felizmente, nem por isso está descar-
dura do pensamento lukacsiano é justa- cial, Verdade e Transformação. Nas suas tada a possibilidade de que o seu traba-
mente a sua Estética, cujo primeiro vo- especificidades, ambos os livros identifi- lho seja tomado como um dos pontos de
lume chega agora aos leitores brasilei- cam, no modo como Lukács enlaça razão partida possíveis para essa reavaliação.
ros. À defesa do “realismo crítico” (que e realidade, teoria e mundo social, sua É disso que nos dão prova os cinco livros
não se confunde com o “realismo socia- grande contribuição para o marxismo. aqui apresentados.
lista”), visto como a forma literária mais São obras que, cada qual à sua maneira,
adequada à “narração” do movimento É verdade que, na ânsia de encontrar esquadrinham um autor incontornável pa-
REDES SOCIAIS

da realidade, segue-se uma tentativa de o verdadeiro Marx, Lukács, não raro, se ra o pensamento crítico contemporâneo. •
investigar as “peculiaridades do estéti- mostra menos receptivo à necessidade
co” no quadro de uma filosofia materia- de reavaliar criticamente o pensamen- *Fábio Mascaro Querido é professor
lista da história. to do autor alemão a partir das mudan- de Sociologia da Unicamp.

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 55
RITA VON HUNTY
Rita é a persona drag do ator e professor Guilherme Terreri.
Por meio dos estudos culturais, Rita discute
temas sociais com o horizonte da emancipação radical

Formas de matar

(1961) e O Nascimento da Clínica (1963), ao longo do último século, a “curar”,


► O suicídio de Karol Foucault tornou-se um dos maiores no- “tratar” ou “converter” pessoas LGBTI+.
Eller, uma influenciadora mes da filosofia ocidental do século XX. No Brasil, embora tais práticas sejam
Segundo o também filósofo francês consideradas ilegais pelo Conselho Fe-
digital de 36 anos que Didier Eribon, um dos mais impor- deral de Psicologia desde 1999, dados de
buscava a “cura gay”, tantes biógrafos e comentaristas de uma pesquisa realizada pela PUCRS re-
reforça a urgência da Foucault, sua mensagem pode ser lida velam, que, em 2018, um em cada três
como uma “revolta contra os poderes profissionais da área apresentava “ati-
criminalização da normalização”. tudes corretivas” com relação à sexuali-
desse tipo de tortura Os discursos da “cura gay” são exem- dade de pacientes que requeriam ajuda.
plos explícitos daquilo que Foucault ex- Mais de 10% dos profissionais que res-
punha e criticava. ponderam a pesquisa apresentavam as
Desde a Modernidade, alguns grupos mesmas atitudes, mesmo quando não

K
arol Eller era uma influen- exerceram o poder de nomear “a doen- lhes era requerida ajuda sobre o tema.
ciadora digital bolsonaris- ça” e “o doente”, sem nunca, no entanto, Em realidade, as práticas que partem
ta de 36 anos. Na quinta-fei- depreenderem suas posições dentro de da ideia de que sexualidades “não héte-
ra 12, ela compartilhou, em suas redes uma estrutura social desigual de poder. ro” são patológicas produzem cenários
sociais, um story no qual alegava ter Um dos casos, talvez, mais emblemá- de trauma e tortura e, com documenta-
“perdido uma batalha” e fornecia um ticos da arbitrariedade de diagnósticos da frequência, levam pessoas ao suicídio.
endereço para o resgate de seu corpo. médicos seja o da drapetomiania. Há uma abundante produção cientí-
O ato que colocou fim à vida dela Inventado em 1851, na Louisiana, por fica, documental e ficcional sobre o te-
ocorreu às vésperas de uma nova “in- Samuel A. Cartwright, o “diagnóstico” ma, além de sanções políticas em diver-
ternação” em um “retiro evangélico” categorizava como “doentes” as pessoas sos países para que tais práticas sejam
para a “cura gay”. escravizadas que tentavam fugir des- abolidas. No Brasil, ainda há registro de
Urge compreender a dimensão de prá- sa condição. 26 formatos de “curas gay”.
ticas como esta, que visam tornar pato- Karol Eller foi vítima de uma delas
lógicas as nossas existências. O racismo “científico” de Cartwright ao praticar o que especialistas da área
A noção de “cura” só pode ser con- encontra ecos lgbtifóbicos no presen- chamam de “autoextermínio”.
cebida em relação à noção de sua posi- te. A Organização Mundial da Saúde de- A partir de mais essa tragédia, depu-
ção antagônica, ou seja, a da “doença”. sempenhou papel decisivo na classifi- tados do PSOL protocolaram um pedi-
No que diz respeito à compreensão cação de nossos corpos como “doentes”. do de investigação contra a igreja envol-
da dimensão política e social dos dis- A homossexualidade feminina ou vida no caso, e a deputada Erika Hilton
cursos produtores de categorias como masculina, por exemplo, figurou como (PSOL-SP) apresentou um Projeto de
“patológico” e “saudável”, uma das tra- doença na sua lista de Classificação In- Lei (PL) que visa criminalizar práticas
dições críticas mais aceitas e difundi- ternacional de Doenças até 1990. Já a desse tipo.
das é aquela que tem como eixo fun- transexualidade foi considerada uma Enquadrar-nos como “doentes” é só
damental o pensamento do filósofo e “doença mental” até o recentíssimo mais uma das estratégias que os nos-
teórico social francês Michel Foucault ano de 2019. sos inimigos usam para nos extinguir.
B A P T I S TÃ O

(1926-1984). É possível localizar, dentre as práticas Seguimos lutando, para dizer o ób-
Por meio de trabalhos reconhecidos médicas, psicológicas e religiosas, vio: a doença está no ódio deles. •
e premiados, como História da Loucura aquelas que se têm dedicado, ao menos redacao@cartacapital.com.br

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Corrida maluca
ções acumuladas umas sobre as outras. mente, consequências e desdobramentos.
► A confusão instalada Neste momento do Campeonato Bra- No caso do Botafogo, o clube apresentou
no esporte deixa-se ver sileiro vem à tona a salada criada pelo um abaixo-assinado dos jogadores decla-
apagão no Engenhão, o Estádio Olímpi- rando-se em condições de jogar na terça-
através dos protestos co Nilton Santos, do Botafogo, ocorrido -feira seguida ao domingo, em que, depois
relativos ao calendário durante a partida contra o Athletico Pa- da partida suspensa, completou o segun-
entupido pelas múltiplas ranaense, no sábado 21. Embora o episó- do tempo – sem a presença de torcedores.
dio seja pequeno diante do tamanho dos Além da questão do desrespeito aos
competições sobrepostas demais desacertos, ajuda a dar a dimen- torcedores que pagaram e não viram a
são da confusão generalizada em que se partida completa – espera-se que haja al-
encontra o clube. gum ressarcimento –, um “sindicato” de

I
mpossível deixar de lembrar da tar- jogadores pediu o cumprimento do inter-
de e da noite vividas pela popula- De acordo com a Light, as linhas da valo regulamentar entre um jogo e outro.
ção do Rio de Janeiro na segunda- companhia estavam íntegras e a luz fal- Há duas observações, no mínimo,
-feira 23 e na terça-feira 24, durante os tou por um defeito na estrutura do lo- curiosas sobre isso. Aos jogadores, cer-
ataques ao transporte público realiza- cal. Os geradores do estádio não conse- tamente, não caberia a iniciativa de rom-
dos por milicianos. A falta de segurança guiram segurar a carga de energia nos re- per o prazo legal. E, em segundo lugar, a
que toma conta da cidade é apenas um fletores e nas demais áreas. ideia de um sindicato tomando iniciati-
símbolo do que se passa, em diferentes Nesta sanha desenfreada para ar- va em defesa dos jogadores causa estra-
graus, no País como um todo. E não se rancar o lucro a qualquer custo, os cri- nheza, uma vez que isso não acontece há
trata de uma situação exclusivamente térios de igualdade de condições nas muito tempo. Quando acontece, tende a
brasileira. Já vimos crises semelhantes disputas são postos para escanteio. ser uma iniciativa patronal.
na Colômbia, por exemplo. Com tantas competições simultâneas, Mesmo no plano internacional, há
Eu, pessoalmente, fico com a sensação os clubes escolhem as que mais lhes inte- muito tempo não se tem notícia de órgãos
de que o nível de manifestações de vio- ressam e são obrigados a jogar as outras que representem os jogadores em defe-
lência atinge patamares que tiram a tran- disputas com times reservas, mistos ou da sa de interesses comuns. E, ainda falan-
quilidade de qualquer pessoa, onde quer base. Tal situação acaba por ter, inevitavel- do em calendário, estamos, por aqui, nos
que se vá. Ninguém está imu- aproximando de disputas deci-
ne a ela, por mais isolado que sivas. Quer seja festejando títu-
se esteja. Basta nos lembrar- los e acessos, quer seja amar-
mos de que, neste momento, gando derrotas, os ânimos ine-
temos duas guerras em curso. vitavelmente se acirram.
O esporte vai, nesse contex- Em meio a tudo isso, mere-
to, seguindo em sua missão de ce menção o jovem Guilherme
ajudar a aliviar as tensões do Madruga, do Botafogo de Ri-
B A P T I S T Ã O E V Í T O R S I L V A / B O T A F O G O F. R .

cotidiano. Ao mesmo tempo, beirão Preto (SP), que, por duas


não tem como se livrar dos re- vezes, em pouquíssimo tempo,
flexos dessa situação alarman- teve duas indicações ao Prêmio
te. Pudera. Puskás de gol mais bonito do
O caos instalado no es- ano. Primeiro, foi com uma bi-
porte deixa-se ver através cicleta espetacular lá de longe.
dos já batidos protestos re- No último fim de semana, assi-
lativos ao calendário que es- nalou mais um golaço aquém da
tá, literalmente, entupi- linha do meio de campo. •
do pelas múltiplas competi- Escuro. O apagão no Engenhão espelha o caos do nosso futebol redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 1 º D E N OV E M B R O D E 2 0 2 3 57
VENES CAITANO

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
de onde vem
o papel

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