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LEITURAS FILOSÓFICAS III

TOMÁS DE AQUINO
PROF. LUIZ ASTORGA
Presidente da Mantenedora
Ricardo Benedito Oliveira
Reitor:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
Pró-Reitoria Acadêmica
Gisele Colombari Gomes
Diretora de Ensino
Prof.a Dra. Gisele Caroline
Novakowski
PRODUÇÃO DE MATERIAIS
Diagramação:
Alan Michel Bariani
Edson Dias Vieira
Thiago Bruno Peraro
Revisão Textual:
Camila Cristiane Moreschi
Danielly de Oliveira Nascimento
Fernando Sachetti Bomfim
Luana Luciano de Oliveira
Patrícia Garcia Costa
Produção Audiovisual:
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Márcio Alexandre Júnior Lara
Osmar da Conceição Calisto
Gestão de Produção:
© Direitos reservados à UNINGÁ - Reprodução Proibida. - Rodovia PR 317 (Av. Morangueira), n° 6114 Fernando Sachetti Bomfim
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO

RAZÃO, FÉ E O OFÍCIO DO SÁBIO

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................5
1 CAPÍTULOS I A III....................................................................................................................................................... 7
1.1 CAPÍTULO I: É PRÓPRIO DO SÁBIO ORDENAR..................................................................................................... 7
1.2 CAPÍTULO II: O OFÍCIO DO SÁBIO.........................................................................................................................8
1.3 CAPÍTULO III: HÁ VERDADES QUE TRANSCENDEM A RAZÃO...........................................................................8
2 CAPÍTULOS IV A VI....................................................................................................................................................9
2.1 CAPÍTULO IV: CONVÉM QUE VERDADES ACESSÍVEIS À RAZÃO TAMBÉM SEJAM REVELADAS...................9
2.2 CAPÍTULO V: CONVÉM QUE VERDADES SOBRENATURAIS TAMBÉM SEJAM REVELADAS.......................... 10
2.3 CAPÍTULO VI: CONVÉM À RAZÃO CRER EM VERDADES QUE A TRANSCENDEM.......................................... 11
3 CAPÍTULOS VII A IX.................................................................................................................................................. 12

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3.1 CAPÍTULO VII: VERDADES ACESSÍVEIS E INACESSÍVEIS À RAZÃO NATURAL NÃO PODEM SER
CONTRADITÓRIAS ENTRE SI...................................................................................................................................... 12
3.2 CAPÍTULO VIII: OS TIPOS DE ARGUMENTOS QUE CONVÊM ÀS VERDADES SOBRENATURAIS.................. 12
3.3 CAPÍTULO IX: SOBRE O MODO DE ARGUMENTAR E SOBRE O PLANO DA OBRA.......................................... 13
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................ 15

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INTRODUÇÃO

Bem-vindos à disciplina “Leituras de Santo Tomás”. A este ponto, o aluno certamente


está ciente do volume das obras de Santo Tomás de Aquino e da riqueza que cada uma delas
concentra.
É natural, portanto, que constitua um desafio escolher duas obras bastante significativas
do pensamento do Doutor Angélico, de modo que o estudante de filosofia possa delas tirar
proveito para a boa formação de seu pensamento, sem que, porém, se disperse num excesso
de temas. Diversas obras, como Os Princípios da Natureza, A Eternidade do Mundo, O Ente e a
Essência e o Tratado das Substâncias Separadas tentam o docente à sua exposição.
No entanto, sem deixar de lado o convite a que o aluno futuramente visite tratados como
os mencionados, foi prioritário selecionar duas obras que não apenas transmitam verdades, mas
que orientem o imaginário filosófico do aluno e lhe deem certa desenvoltura ao trabalhar com os

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gêneros acadêmicos mais comuns da alta escolástica. Para este fim, selecionamos a Suma Contra
os Gentios e as Questões Disputadas Sobre a Alma.
A primeira, por ser uma monumental exposição concatenada de argumentos em defesa
da fé, que constrói habilmente cada ponto sobre seu anterior, desde as verdades divinas acessíveis
à razão até chegar à altura das verdades de fé, como na construção de uma catedral.
A segunda, por constituir uma questão disputada, gênero escolástico comuníssimo com
o qual o aluno deve acostumar-se, e por conter em si verdades cruciais sobre a alma humana,
assunto de importância perene e central na filosofia.
Vamos, portanto, à Suma, que constitui nossa Unidade 1. A abertura da Suma é mais
que uma apresentação ou um plano de estudos; ela é uma exposição sobre um tema central da
escolástica, que delineia o esforço da recristianização da Ibéria.
Trata-se da defesa da fé cristã com as armas da razão e da Revelação – e uma defesa não
apenas dos conteúdos naturalmente cognoscíveis da fé, mas daqueles passíveis exclusivamente
de revelação.

A Suma contra os gentios foi terminada provavelmente antes de 1265, quando seu
autor tinha por volta de 40 anos. É um escrito voltado para autores cristãos, que
precisavam refutar posições de origem pagã ou islâmica. Trata-se de uma síntese
impressionante, realizada em quatro livros.
O primeiro contempla a existência de Deus e os seus atributos; o segundo, dos
seres criados, com destaque para o ser humano, formado por corpo e alma; o
terceiro livro explica a providência e o governo divinos sobre o univreso; finalmente,
o quarto livro se volta a temas teológicos, como a Trindade e os sacramentos.
Tomás gostava muito desta sua obra, pois nela conseguira expor parte importante
do seu pensamento de maneira organizada e profunda. Ele apenas a superará
com a Suma teológica.

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Inicialmente, pois, vê-se qual o ofício do sábio (isto é, o que é a sabedoria em sentido
universal), o que é o sábio e o que lhe compete. Vê-se ainda por que a sabedoria é algo bom em
si para se buscar e as dificuldades em defendê-la. Finalmente, explica-se por que devemos aceitar
que há verdades que transcendem a razão.
Em seguida, comenta-se porque as verdades acessíveis à razão são mesmo assim propostas
aos homens pela fé, porque verdades que transcendem a razão também devem ser propostas, e
porque não é leviano crer nessas verdades sobrenaturais.
Por fim, argumenta-se que as verdades conhecidas mediante o esforço da razão natural
não podem ser contrárias às verdades naturais; explica-se também como a razão deve proceder
com relação às verdades exclusivamente de fé, e como as argumentações relativas aos tipos
distintos de verdade se refletem na própria estrutura da Suma Contra os Gentios.

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1 CAPÍTULOS I A III

Os capítulos I a III tratam: da sabedoria e do ofício do sábio; da busca da sabedoria como


algo bom em si; das dificuldades de defender a verdade católica; dos motivos para aceitar que há
verdades que transcendem a razão.

1.1 Capítulo I: é Próprio do Sábio Ordenar

É próprio do sábio ordenar as coisas, ou seja, dirigi-las aos seus devidos fins. Esse
primado da finalidade das coisas é visto também entre as diversas artes, na medida em que uma
está subordinada à outra (como a engenharia naval está subordinada às finalidades traçadas pela
navegação) e, portanto, é dirigida pela outra. Por isso, são chamados mais propriamente de sábios
os que dominam artes ou ciências mais abrangentes e arquitetônicas.
E vemos que o sábio em sentido puro e simples é aquele que não domina esta ou aquela

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arte ou ciência, mas uma ciência que considera as causas últimas e mais universais da realidade: a
filosofia. E, se a causa e finalidade última do cosmos é um intelecto, o papel do sábio por excelência
(o filósofo) é se entregar à consideração da verdade (que é a finalidade do intelecto).
Ou seja, se estamos falando do papel do sábio de sua maneira mais fundamental – aquela
em que se considera a verdade fundante de todas as outras, então o seu ofício é, ao menos quanto
à razão natural, o da Filosofia Primeira.
Nesse ponto, é muito significativo que Tomás cite a própria Sabedoria encarnada: “Eu
aqui nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. Pois engana-se quem acha que o
ofício do sábio, por exigir a contemplação, implique inércia ou passividade: Deus veio não só para
contemplar a verdade (Ele é a verdade), mas para dar testemunho dela, ou seja, defendê-la contra
o erro e manifestá-la.
Para que seja completo, o trabalho do sábio deve ser difusivo, caritativo: deve levar a
verdade contemplada aos demais. Na mesma medida, portanto, o ofício do sábio é impugnar
erros. Porque é isso o que faz quem ama a verdade: querer que a presença dessa amada seja plena.

Thomas Joseph White – A ciência da teologia. Neste vídeo, o autor


explica a noção de teologia em Tomás de Aquino e sua relação com
a filosofia.

Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1OhTlwiHOJI.

Outros vídeos do Thomistic Institute são esclarecedores, como


Dominic Legge – São Tomás sobre a fé e a razão.

Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=sfqgGRNr2ws.

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1.2 Capítulo II: o Ofício do Sábio

No segundo capítulo, Tomás detalha o objetivo de ensinar a verdade da fé católica e a


dissipar os erros contrários a ela. Primeiro, deixa claro que este ofício não apenas compete ao
sábio no sentido mais universal dessa palavra, mas que é o mais perfeito, o mais sublime, o mais
útil e o mais alegre.
É perfeito, porque produz uma beatitude participada – um lampejo da alegria da vida
eterna. Cita Eclesiástico: Feliz o homem que permanece na sabedoria. É sublime, porque eleva o
homem a Deus pela semelhança, na medida do possível. E, como a semelhança é causa do amor,
aproxima de Deus pela amizade. Útil, porque a sabedoria leva à imortalidade – em verdade, como
diz Platão, ela é uma preparação para a morte. Ela é tão útil quando o alvo é para a flecha. Alegre,
porque a perfeição do homem é a alegria.
Em segundo lugar, Tomás mostra que os erros que contrariam a fé apresentam dificuldades
ao argumentador cristão. Porque, embora a verdade seja una, o erro é múltiplo. Há infinitas
maneiras de se estar errado. Até em temas em que há mais de uma maneira de estar certo, há muito
mais maneiras de se estar errado. E nem sempre nós temos vivência e conhecimento próximos do

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erro; como era o caso dos antigos que haviam crescido no erro e se convertido depois.
Outra dificuldade é que se deve conhecer o interlocutor. Contra aqueles que defendem
heresias, é válido citar o Novo Testamento e, claro, a razão natural. Já no caso dos judeus, aceita-
se o Antigo Testamento, além da razão natural. Porém, no caso dos muçulmanos e dos pagãos,
Tomás apontava que a única autoridade é a razão natural; no caso dos muçulmanos, isso ocorre
porque alegam que o Antigo e o Novo Testamentos foram deturpados e assim se afastaram da
doutrina islâmica.

1.3 Capítulo III: Há Verdades que Transcendem a Razão

No capítulo III, é mostrado porque devemos aceitar que há verdades que transcendem
a razão. Ou, posto de outra maneira, que é razoável aceitar que algumas coisas transcendem a
razão.
O primeiro princípio a se aceitar é o de que a apreensão e a demonstração do que uma coisa
é estão mensuradas pelo próprio ser da coisa. O modo de apreensão e o modo de demonstração
de algo correspondem à natureza deste algo. Assim, há aquelas verdades que estão ao alcance
da razão natural e, por isso, podem ser demonstradas por ela, como a existência de Deus. E há
aquelas outras que transcendem a razão natural, como a Trindade de Deus.
A argumentação é bastante interessante e desenvolvida essencialmente com três
argumentos principais. Primeiro, que o princípio da inteligibilidade de algo é o seu ser. É o
modo de ser de uma coisa que determina como ela se dá a conhecer, a ser percebida. E o ser de
algo é primeiramente e fundamentalmente o ser de sua substância. Ora, Deus é imaterial, logo
não temos conhecimento direto de sua substância por nossos meios naturais, que partem dos
sentidos. O conhecimento que temos d’Ele é por meio dos seus efeitos. E o ser dos efeitos, embora
nos permita inferir alguns atributos de Deus, não é o ser divino.
O segundo é que não devemos afirmar a priori a inexistência do que nos escapa – uma
tendência cada vez maior em qualquer sociedade que tem o hábito de se orgulhar e se vangloriar
das coisas que sabe. Ele começa por mostrar que o que é percebido por uma pessoa com maior
capacidade (seja por treino, seja por talento etc.) muitas vezes não o é por outra de menor
capacidade. Ele compara o filósofo treinado a uma pessoa sem qualquer ensino.

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Logo depois, ele fala da distância ainda maior que há entre o menor dos anjos e o mais
excelente dos filósofos. (Essa etapa envolve a aceitação da existência dos anjos, o que, se precisasse
ocorrer mediante a razão natural, nos exigiria um esforço paralelo de demonstração, mas que
pode ser dispensado no presente contexto).
Em seguida, lembra que nem o maior dos anjos consegue abarcar com seu intelecto a
substância divina – e aqui observe-se que, embora o conhecimento angélico não dependa de
sentidos, que eles aliás não possuem, nenhuma espécie que esteja no intelecto angélico, por ser
criada, consegue ser um espelho do ser infinito de Deus. Santo Tomás então arremata essa escala
de intelectos mostrando como são semelhantes o filósofo que nega a existência daquilo que sua
razão não consegue demonstrar e o homem sem ensino que nega a existência de realidades que
o filósofo consegue captar.
O terceiro ponto, finalmente, é que nosso intelecto nem sequer esgota a inteligibilidade
das naturezas sensíveis (que são adequadas ao nosso modo de conhecimento natural), mas nem
por isso nega que ainda haja verdades por descobrir nestas coisas sensíveis.

2 CAPÍTULOS IV A VI

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Os capítulos IV a VI argumentam: que as verdades acessíveis à razão devem ainda assim
ser propostas aos homens pela fé; que verdades que transcendem a razão também devem ser
propostas; que não é leviano crer nessas verdades sobrenaturais.

2.1 Capítulo IV: Convém que Verdades Acessíveis à Razão Também Sejam
Reveladas

No capítulo IV, o que se tem é a justificativa de que os preâmbulos da fé também se


encontrem nos artigos de fé. Ou seja: são em si acessíveis à razão, mas mesmo assim foram
propostas, por inspiração sobrenatural, como algo ao qual se pode dar assentimento pela fé.
Primeiro, porque do contrário poucos chegariam ao conhecimento desses preâmbulos da
Fé, fosse por insuficiências em sua constituição natural, fosse porque nem todos têm a vocação
para uma vida inteiramente dedicada ao estudo e precisam dar prioridade à sua família, fosse
por vícios como a preguiça. O estudo abrangente e aprofundado da metafísica é árduo. Não à
toa a metafísica é a última etapa da filosofia. Embora o amor pelo conhecimento seja natural ao
homem, nem todos estão inclinados ou bem dispostos a realizá-lo dessa maneira.
Segundo, porque, ainda que se vençam as dificuldades mencionadas, uma vida de estudo
desse tipo exige muito do espírito. Se o estudo abrangente e aprofundado da metafísica é árduo,
é igualmente árduo dedicar-se aos requisitos exigidos por ele. Exige-se também uma maturidade
mínima: esses estudos costumam dar frutos tardios, que brotam melhor em espíritos menos
agitados pelas paixões.
Terceiro, porque é muito fácil (até ao mais treinado dos intelectos) cometer erros. E erra-
se não apenas sozinho, mas com a ajuda do entorno, pois é muito fácil ser desviado pela opinião de
pessoas que parecem sábias e, não obstante, abraçam posições muitas vezes contraditórias entre
si. Ademais, às vezes argumentos sofísticos são usados no lugar de demonstrações verdadeiras.

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Portanto, foi salutar que a clemência divina apresentasse também como matéria de fé as
verdades em si acessíveis à razão. Assim, todos – pois são todos que precisam salvar-se – podem
facilmente, sem dúvida e sem erro, participar do conhecimento destas coisas divinas.
Em suma, os artigos da fé têm o objetivo de proporcionar à alma os recursos que levam à
salvação, que são necessários a todos. Seria absolutamente contrário à razão revelar à humanidade
apenas aquelas verdades salvíficas que nenhum gênio tivesse descoberto sozinho, pois muitos
seriam privados delas.

2.2 Capítulo V: Convém que Verdades Sobrenaturais Também Sejam


Reveladas

O quinto capítulo trata da conveniência de que verdades inacessíveis à razão sejam


propostas pela fé. Este capítulo é interessante porque lida com algo que poderia parecer óbvio: se
não é acessível à razão, claramente teve que ser revelado. Mas o argumento não se limita a apontar
a mera necessidade de se conhecer as verdades sobrenaturais às que se precisa dar assentimento

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para a salvação. A ideia é mostrar também de que maneiras o conhecimento de verdades que
transcendem a razão colaboram para a própria salvação. Ou seja: trata-se em si da conveniência
de propô-las.
Pois bem, elas: 1 - ajudam a almejar a Deus; 2 - a elevar a nossa natureza a Ele e a participar
de alegrias espirituais (como os próprios filósofos o fizeram ao propor a vida do espírito a pessoas
dominadas pelos sentidos); 3 - Permite reconhecer a grandeza divina; 4 - reconhecer as nossas
limitações; e 5 - Participar, ainda que de modo limitado, de verdades mais sublimes.
A almejar a Deus, porque não se almeja senão àquilo que se conhece em alguma medida.
Nossa natureza espiritual precisa ser atraída para metas que transcendem nossa razão natural e
a existência terrena na qual ela está imersa, para que aprendamos a desejar as coisas do alto; esse
processo tem estrutura semelhante à ação dos filósofos antigos, que buscavam voltar a mente dos
homens às coisas do alto, e às alegrias espirituais que emanam tanto da vida virtuosa ativa quanto
da contemplativa. Ou seja: Deus não é plenamente abarcável pela razão, nem se esconde dela por
completo. Isso nos lembra a frase de Hugo de São Vítor no tratado dos Sacramentos da Fe Cristã:
“O que sabemos de Deus tem o efeito de nos fortalecer e nutrir o coração, e o que ignoramos
serve de estímulo ao conhecimento”.
Permite reconhecer a grandeza divina e estimular um pensamento correto quanto a Deus,
porque – como diz Santo Tomás, dando um significado ainda mais amplo à frase famosa de Santo
Anselmo – nós só O concebemos corretamente quando O pensamos como superior todas as
coisas que nossa razão consegue cogitar.
Quanto a reconhecermos as nossas limitações, isso nos leva a afastar a presunção, que,
como diz Santo Tomás, é a mãe do erro. O objetivo é, como se viu antes, dissipar a ideia de que
tudo que se vê é verdadeiro e tudo que não se vê é falso.
Quanto a participar das verdades mais sublimes, Tomás segue aquela passagem conhecida
de Aristóteles (Ética X, 7, 1177b), em que afirma que o homem, apesar das suas limitações, deve,
na medida do possível, elevar-se às coisas imortais e divinas. De fato, ainda que tenhamos um
conhecimento imperfeito das coisas superiores, este pouco é mais nobre que todo o conhecimento
das coisas inferiores (cf. Sobre as Partes dos Animais I, 5644b). Ele realiza mais plenamente o
homem, na medida em que sua diferença específica é a racionalidade: a elevação da razão perfaz
a pessoa no que ela tem de mais propriamente humano.

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2.3 Capítulo VI: Convém à Razão Crer em Verdades que a Transcendem

O capítulo VI expõe por que não é leviano crer nessas verdades sobrenaturais. É
interessante que o conteúdo deste capítulo não se destina propriamente a ser usado na conversão
de gentios, mas, em certa medida, no auxílio e fortalecimento dos fiéis em sua fé, nos termos do
que o leitor poderá ver na seção 3 do capítulo IX. Esse conteúdo de fato não consiste exatamente
numa exposição (que seria voltada ao gentio) da autoridade da Escritura ou dos próprios milagres.
E, para o fiel, embora ela tampouco seja uma apresentação de argumentos verossímeis
para o esclarecimento das verdades de fé, ela se presta à convicção do fiel e à defesa contra a
acusação de que, em sua consciência, ele creria levianamente em verdades sobrenaturais. O fiel
não se julga confiar em verdades sobrenaturais sem motivos razoáveis para isso.
Explica-se justamente que a revelação de verdades que excedem a razão foi acompanhada
e confirmada por ações visíveis que em si superam a natureza, como curas milagrosas e
ressurreições. Além disso, homens totalmente rudes e ignorantes adquiririam eloquência,
sabedoria e conhecimento inimagináveis por meio da inspiração divina. Tudo isso também fora
anunciado com antecipação em profecias numerosas.

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Soma-se a isso o fato de que a fé cristã não atraiu para si apenas homens rudes, mas uma
multidão de sábios, o que é admirável, especialmente considerando-se que afluíam livremente –
não pela espada –, e que a todos que vinham para ela não se faziam promessas de recompensas
carnais: as promessas eram de prêmios para o espírito, e não neste mundo, mas em outro. O que
se prometia para este mundo era o que este mundo deu a Cristo: a cruz. A perseguição de tiranos.
Nenhuma fé leviana floresce apesar de tudo isso.
E Santo Tomás adiciona que, após esses milagres que inicialmente anunciaram a fé, se eles
em algum momento cessassem de acontecer e a religião cristã perdurasse pelas gerações apenas
pela memória desses milagres, isto constituiria milagre maior ainda.
O capítulo se conclui, então, com uma comparação diametralmente oposta entre a fé
cristã e a doutrina de Maomé.

A filosofia pode ser entendia como o conhecimento supremo, ao qual todos os


demais deveriam se curvar. Assim, a teologia seria considerada uma espécie
de simbologia, que permite aproximar-se de conceitos que serão mais bem
desenvolvidos pela razão humana na filosofia.
De modo genérico, esta é a posição de Hegel, que levou o racionalismo ao último
grau. Para Tomás e outros filósofos medievais, a filosofia é incapaz de abarcar a
totalidade do real, porque há aspectos que superam a inteligência humana.
Pela reveção e o estudo teológico, alcançamos verdades superiores às forças
naturais humanas. Como vemos, há um choque inevitável entre a concepção
racionalista e a visão clássica do conhecimento.

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3 CAPÍTULOS VII A IX

Nesta sessão, que conclui esta Unidade I, veremos que as verdades naturais e sobrenaturais
não podem ser contraditórias entre si, veremos de que modo a razão deve argumentar com
respeito às verdades sobrenaturais, e como a defesa destas duas ordens de verdades se reflete na
estrutura da Suma Contra os Gentios.

3.1 Capítulo VII: Verdades Acessíveis e Inacessíveis à Razão Natural não


Podem Ser Contraditórias entre Si

O capítulo VII se trata justamente de que, a priori, as verdades que a razão natural pode
alcançar não podem ser realmente contraditórias àquelas que só podem ser alcançadas pela fé,
pela revelação divina.
O argumento inicial dá continuidade ao capítulo anterior: o extenso conjunto de razões

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para se confiar nas verdades de fé não poderia ser contrário às razões que temos para confiar nas
verdades naturalmente evidentes.
O segundo argumento, que poderíamos considerar mais central e mais profundo –
porque dá a razão pela qual essa contradição não é possível – é que aquele Deus, ao qual a razão
natural consegue demonstrativamente atribuir não só a existência, mas atributos como perfeição
infinita no ser e a condição de causa primeira do universo, não pode, portanto, contradizer-se. A
verdade, assim como o ser, é una. As coisas existem e, por existir, são em si verdadeiras, mesmo
que algumas só nos cheguem pela via da razão, outras apenas pela fé e outras por ambas.
E é por isso que esse segundo argumento desembocará no quarto: que uma natureza, na
mesma medida em que existe, tem um ser positivo que exclui seu contrário (que exclui o não-
ser relativo a ele); portanto, nada que tem efetivo ser pode abarcar duas verdades contraditórias
acerca dele. Afirmar uma a verdade não é outra coisa senão dizer o ser de algo e negar-lhe o
respectivo não-ser.
O Aquinate agrega, finalmente, a autoridade de São Paulo e de Santo Agostinho, e conclui
que, a priori, quaisquer argumentos que busquem negar as verdades de fé carecerão de real caráter
demonstrativo: serão no máximo razões de probabilidade ou razões sofísticas.

3.2 Capítulo VIII: os Tipos de Argumentos que Convêm às Verdades


Sobrenaturais

O capítulo VIII esclarece de que modo a razão deve argumentar com respeito às verdades
sobrenaturais. E esse tema se estende ao início do capítulo 9, que também esclarece a quem se
destina adequadamente cada tipo de exposição das verdades de fé.
Primeiro, Tomás retoma um ponto já estabelecido anteriormente: que as coisas sensíveis
conservam em si vestígios de Deus. Por um lado, são imperfeitas para esclarecer tudo sobre a
substância divina; por outro lado, o efeito guarda em seu modo de ser alguma semelhança com
sua causa, visto que o agente produz efeitos semelhantes a si próprio. Assim, os efeitos são fonte
de algum conhecimento sobre Deus, embora não Lhe sejam perfeitamente semelhantes.
Assim, as semelhanças verdadeiras que nos auxiliam a compreender as verdades de fé não
são capazes de nos levar demonstrativamente a elas, ou a conhecer essas verdades como quem as
contempla diretamente em sua origem.

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No entanto, essas semelhanças são verdadeiras e úteis para a compreensão dessas verdades,
desde que (como já se disse anteriormente) se mantenha afastada a presunção de querer abarcá-
las completamente ou demonstrar sua existência.
Neste sentido o Aquinate cita as palavras de Santo Hilário de Poitiers (De Trinitate, 10):
“Quem busca piedosamente a verdade infinita, mesmo que algumas vezes não a alcance, progride
sempre na sua busca. Mas não queiras penetrar naquele segredo (...) presumindo compreender a
suprema inteligência: entende que há coisas incompreensíveis”.

3.3 Capítulo IX: Sobre o Modo de Argumentar e Sobre o Plano da Obra

Em seguida, Santo Tomás relembra que a divisão das verdades entre aquelas que
conseguimos alcançar apenas por nossos esforços e aquelas que necessitamos que sejam reveladas
para nós não diz respeito a seu caráter de verdade em si, nem insere qualquer tipo de duplicidade
intrínseca à natureza da verdade e do ser. Tal divisão, meramente extrínseca, existe devido à nossa
limitação, como criaturas, de abarcar todos os modos do ser, o qual em Deus é ademais infinito.
Tomás observa então que, quanto às verdades divinas naturalmente atingíveis pela razão,

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deve-se proceder pela via demonstrativa, como se faria com o objeto de qualquer outra ciência.
Quanto às verdades de fé, o que se pode fazer contra os que as atacam não é demonstrá-las –
até porque uma mente só pode demonstrar aquilo que ela abarcou, e essas verdades não são
inteiramente compreensíveis pela nossa razão. Antes se deve impugnar as razões que o oponente
apresenta contra a fé; deve-se demonstrar que essas razões não são eficazes – e sabemos a priori
que elas não o são, pelo que já foi visto no capítulo anterior.
Quanto aos argumentos de verossimilhança e razoabilidade que se oferecem para
esclarecer as verdades de fé, estes não se devem destinar aos que a atacam, mas ao fortalecimento
e ao auxílio dos fiéis. Tomás não as considera instrumentos adequados de conversão, não
somente por sua insuficiência para tal fim, mas porque tal insuficiência poderia até confirmar os
adversários no erro em que estão, uma vez que poderiam crer que a fé do cristão se baseia nesses
argumentos. Podem até servir como auxílios num processo de conversão que já se iniciou, mas
não são ferramentas adequadas para se arrancar o gentio da incredulidade.
Para a própria conversão, o Aquinate defere este papel à autoridade das próprias Escrituras
e à sua confirmação pelos milagres. Seu motor efetivo é este, mais do que quaisquer argumentos.
Vejam-se a sobriedade a humildade de Santo Tomás: produz-se uma obra deste porte para a
defesa da fé e para o auxílio do fiel missionário, mas a conversão, em si mesma, ao menos na sua
causa fundamental, é operada por Deus em Sua revelação (registrada na Sagrada Escritura) e em
seus milagres, seja diretamente, seja valendo-se das criaturas como instrumentos. E Tomás nos
explica esse fato de modo simples e claro, voltando seus olhos para o próprio fiel cristão: “(Nós
mesmos) não cremos em verdades que excedem a capacidade humana a não ser que tenham sido
reveladas por Deus”.
Por fim, Santo Tomás apresenta o plano de conteúdo da Suma em concordância com o
que se expôs até aqui: parte-se das coisas mais manifestas para aquelas que menos o são. Primeiro,
trata daquelas verdades acessíveis à razão natural com argumentos demonstrativos e prováveis,
com apoio dos filósofos e dos santos: são os livros I, II e III. Depois, no livro IV, trata daquelas
verdades que excedem a razão natural, refutando os argumentos dos adversários e afirmando a
verdade da fé com razões prováveis e de autoridade, “na medida em que Deus nos auxilie”.
Quanto às verdades acessíveis à razão natural, tem-se no livro I aquelas que dizem respeito
a Deus em si mesmo; no livro II, as que dizem respeito à procedência das criaturas a partir de
Deus; no livro III, as que dizem respeito à ordenação das criaturas a Deus como a seu fim (note-se
a influência dionisiana na estrutura da obra).

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Santo Tomás conclui a introdução à Suma Contra os Gentios anunciando que o tema do
livro I – Deus em si mesmo – iniciará com a demonstração da verdade mais fundamental sobre
Deus em si mesmo: sua existência. Sem isso, diz o próprio Aquinate, toda a consideração sobre as
coisas divinas careceria de valor.

Sávio Laet de Barros Campos – A união entre filosofia e teologia


em Tomás de Aquino. É um artigo despretensioso, mas sólido,
sobre as relações entre a filosofia e a teologia no pensamento de
Tomás. O autor cita a Suma contra os gentios e a Suma teológica.

Disponível em:
http://filosofante.org/filosofante/not_arquivos/pdf/uniao_
filosofia_teologia.pdf.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta unidade, pudemos fazer uma visita introdutória aos primeiros artigos da Suma
Contra os Gentios, que não nos dão apenas uma visão do plano da obra, mas um mapa de como
Santo Tomás define o seu próprio ofício, como entende o alcance da razão com relação à verdade
e com que recursos se deve expor e defender uma verdade, conforme ela seja ou não plenamente
acessível à razão.
Este ponto importante é articulado recordando o leitor de que a verdade sobre cada coisa
deve ser procurada e apreendida na medida em que a própria coisa permite, e que isto não é
diferente na relação entre fé e razão enquanto meios para se chegar a verdades.
Especialmente importante é sua explicação de como, a priori, duas verdades quaisquer
não podem ser contraditórias entre si – o que já depõe veementemente contra a posição, tão
comum em nossa contemporaneidade, de afastar a fé e a razão a título de “libertar a ambas”. Uma

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posição que, ao final, apenas consegue deformar a primeira e mutilar a segunda.

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UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO

QUESTÕES SOBRE A ALMA

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 17
1 QUESTÃO I: SE A ALMA PODE SER FORMA E ALGO CONCRETO......................................................................... 18
2 QUESTÃO VI: SE A ALMA É COMPOSTA DE MATÉRIA E FORMA.........................................................................20
3 QUESTÃO XI: SE AS ALMAS RACIONAL, SENSÍVEL E VEGETATIVA SÃO NO HOMEM UMA SÓ
SUBSTÂNCIA................................................................................................................................................................23
4 QUESTÃO XIV: SE A ALMA HUMANA É IMORTAL.................................................................................................26
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................30

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INTRODUÇÃO

A obra que estudaremos na Unidade 2 apresenta um tema extremamente relevante no


domínio da Filosofia e, ainda mais importante, no da Teologia: a alma. As questões sobre a alma
foram escritas provavelmente durante a estada de Tomás na corte papal em Orvieto e Viterbo
(entre 1260 e 1264) ou, mais provavelmente, durante o período em que residiu em Santa Sabina
(de 1265 a 1268), antes que fosse para a sua segunda e turbulenta regência em Paris.
Nessa obra se podem ver, por exemplo, de maneira detalhada e organizada, as respostas
que Santo Tomás já delineava contra os averroístas da Faculdade de Artes no tocante à unidade
do intelecto, à criação da alma, à sua imortalidade etc., assim como as correções que endereçaria
àqueles que defendiam a pluralidade de formas substanciais ou o hilemorfismo universal, por
exemplo.
A obra em questão tem a vantagem adicional de ser, como o próprio nome indica, uma

LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO | UNIDADE 2


“questão disputada”. É a oportunidade para o aluno conhecer melhor um dos mais consagrados
formatos da produção acadêmica medieval.
Como seria impossível comentar satisfatoriamente a obra inteira, nossa atenção se voltará
principalmente às questões I, VI, XI e XIV, embora se venha a fazer menção a outras conforme
convenha. As perguntas relativas a essas questões são, respectivamente: se a alma pode ser forma
e, ao mesmo tempo, algo concreto; se a alma se compõe de matéria e forma; se as almas racional,
sensível e vegetativa são no homem uma só substância; e se a alma é imortal.

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1 QUESTÃO I: SE A ALMA PODE SER FORMA E ALGO CONCRETO

A primeira questão trata justamente do primeiro e mais fundamental dos temas: a


natureza da alma. Seria a alma algo concreto, isto é, este algo individual e existente, ou seria ela
algo que nos põe sob determinada espécie, ou seja, algo que nos permite colocar cada homem
sob o universal “homem”? O próprio título da questão nos aponta à solução: tanto uma quanto a
outra são verdadeiras.
Aproveitando, no entanto, o ensejo dessa primeira questão, convém dar ao aluno uma
orientação útil sobre como estudar melhor o formato da questão disputada. Para evitar perder-se
no vaivém entre argumentos e réplicas, comum a esse tipo de obra, devem-se seguir os seguintes
passos:

➢ Inicialmente, ler o título (no caso, “Se a alma humana pode ser forma e algo concreto”);
➢ Ver a resposta provisória dada pelo autor (no caso, “E parece que não”). O leitor deve

LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO | UNIDADE 2


antecipar que a resposta final será o contrário da provisória; neste caso, portanto, a
resposta final será afirmativa;
➢ Saltar todos os argumentos que se seguem à resposta provisória para chegar à verdadeira
resposta da questão (“Respondo: Deve-se dizer que...”);
➢ Se, antes do “Respondo”, houver um Sed contra, isto é, se houver “Mas, em sentido
contrário...”, leiam-se estes argumentos, pois normalmente ajudam a preparar o leitor no
sentido certo, em direção à verdadeira resposta. Se não houver um Sed contra, siga-se
diretamente para a real resposta (o “Respondo”);
➢ Após terminar de ler a resposta, retornar ao início da questão e ler o primeiro argumento,
logo abaixo da resposta provisória;
➢ Ir à parte posterior à resposta e ler a réplica a esse argumento: “Quanto ao primeiro....”.
Voltar e fazer o mesmo com o argumento seguinte, continuando essa leitura alternada até
que terminem os argumentos e todas as suas réplicas.
Retornando ao tema da questão, o leitor que acolheu esta recomendação pôde antever que
a alma é forma do corpo e também algo concreto. Pois já no Sed contra se veem dois argumentos
importantes, que se desenvolverão na verdadeira resposta.
Primeiro que, se tudo se encontra numa espécie segundo sua forma, e o homem é animal
racional por definição, ele, então, é animal racional por sua forma: uma alma racional. E a
racionalidade da alma é o mesmo princípio pelo qual se demonstrará não só que ela é subsistente,
mas subsistente num sentido muito mais forte que as almas das criaturas não racionais. Ela,
portanto, é forma e é algo concreto, individuado, subsistente.
Já o segundo argumento provém da função mais própria da alma humana, o conhecimento
da verdade (ou seja, a intelecção). Pois, considerando o modo humano natural de conhecimento, a
alma precisa estar unida ao corpo para nutrir-se das imagens que os sentidos nos proveem. Assim,
se ela está unida ao corpo num só composto, necessita ao menos ser tão concreta, individual e
subsistente quanto o corpo.

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Ao seguirmos para a resposta propriamente dita, vemos a defesa de que alma é algo
concreto. Para ser algo concreto, para ser uma substância, ela deve subsistir por si mesma e ser
algo completo numa espécie e no gênero da substância. Não pode ser um acidente, ou seja, não
deve estar em outro como num sujeito, tampouco pode ser uma parte integral do indivíduo,
como uma mão ou um pé – que, embora não sejam acidentes, não se encontram numa espécie
senão por redução ao próprio indivíduo e, por isso, não são verdadeiras substâncias.
Pela mesma razão, a alma não pode ser uma harmonia entre elementos ou algum tipo de
composto. Ademais, se o fosse, não se poderiam explicar as capacidades vegetativas, sensitivas
e (principalmente) intelectivas que uma alma possui, pois elas transcendem as capacidades dos
meros elementos.
Aliás, quanto à alma intelectiva, apresenta-se a base de um argumento que veremos
desenvolvido mais plenamente em aula seguinte, mas que é importante considerar desde já: se o
entender é em si uma operação imaterial, a faculdade que o opera é também, em si, uma faculdade
imaterial. Ela brota de uma alma que está unida a um corpo, mas opera e subsiste imaterialmente.
O cérebro não é o órgão do entender, embora o processo de abstração necessite das imagens que
ele fornece. O intelecto, uma faculdade da alma, opera o entender.

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Não à toa, portanto, Aristóteles reconheceria que ao menos o intelecto precisa subsistir
por si. Platão, por sua vez, diria que não só a alma precisa subsistir, mas que ela se insere plena e
perfeitamente na espécie, isto é, tem natureza específica completa. Segundo essa interpretação da
posição platônica, não seria apenas individual, mas o indivíduo humano que possuiria o corpo
como quem usa uma roupa, ou como um piloto que navega uma embarcação.
Santo Tomás faz um reparo ao legado platônico, porque, se as coisas fossem assim, uma
vez retirado o piloto, o barco continuaria sendo barco e apenas cessaria de operar. E a verdade
é o contrário: separada a alma, o corpo não apenas cessa suas operações, mas cessa o seu ser. É
justamente como consequência disso que ele começa a deteriorar-se. É por essa mesma razão,
aliás, que Aristóteles dizia que só se chama realmente de “mão” aquela parte do indivíduo vivo.
Diz Tomás: se 1- aquilo pelo qual o corpo vive é a alma; e 2- viver, para os viventes, é ser;
então 3- a alma é aquilo pelo qual o corpo humano tem ser em ato. O que equivale a dizer que ela
é a forma do corpo. Por outro lado, se a solução platônica fosse plenamente verdadeira, a união
com o corpo seria um estorvo à alma, que já seria capaz de atingir sua finalidade natural sem ele,
como se comenta na Questão II, na réplica ao argumento 14.
Assim, Tomás desenvolve e aprofunda a solução aristotélica: o intelecto, sendo uma
faculdade que atua imaterialmente, precisa ter um ser que, em si, seja isento da matéria. Se ele é
uma parte da alma, deriva dela o seu ser. E ela, portanto, precisa ter um ser que, em si, não seja
o ser do corpo. Assim, a alma racional tem uma relação com o ser que é distinta das almas das
outras criaturas. O ser dela não se identifica com o ser do composto, senão que ela tem o ser
diretamente em si e imediatamente o comunica ao corpo com o qual compõe essencialmente o
homem. Ela subsiste por si. Corrompido o corpo, a alma persiste.
E, embora não represente uma espécie completa na categoria da substância (ou seja,
embora ela não seja um exemplar propriamente dito da espécie humana, uma vez que a espécie
humana é alma e corpo juntos), a alma se insere na espécie não por redução ao indivíduo –
como ocorre com partes integrais como a mão, o olho e o pé –, mas por compor integralmente a
essência do indivíduo: esta alma humana compõe, com este corpo humano, esta essência humana,
inserida completamente sob a espécie “homem”. A alma é algo concreto e é forma do homem.

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Leia Pedro Thyago dos Santos Ferreira, com Forma Substancial


Subsistente e Intelectual. É uma dissertação de Mestrado,
realizada na UFRJ, sobre a natureza da alma humana segundo
Tomás de Aquino. É útil para que vocês conheçam dissertações e
teses realizadas por estudiosos brasileiros.

Disponível em:
https://www.academia.edu/38789327/Forma_Substancial_Subsistente_e_
Intelectual_A_Natureza_da_Alma_Humana_em_Tomás_de_Aquino.

2 QUESTÃO VI: SE A ALMA É COMPOSTA DE MATÉRIA E FORMA

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Na presente questão, complementam-se alguns conceitos centrais sobre a noção de alma.
Anteriormente, pôde-se ver que a alma é algo individual e subsistente (algo concreto) e que é
forma do corpo. O aluno já familiarizado com a noção aristotélica de forma tem ciência de que ela,
por ser princípio atual que compõe o ente corpóreo numa relação com a matéria (que é princípio
potencial), não pode possuir matéria. Aliás, esse é um argumento mencionado no próprio Sed
contra dessa questão, a saber: todo composto de matéria e forma possui forma.
Ora, se a alma, que é forma, possuísse matéria e forma, a sua forma teria uma forma, o
que eventualmente nos levaria ao infinito. Essa questão VI, no entanto, se volta principalmente
ao debate com os defensores do hilemorfismo universal e de doutrinas afins. O mais conhecido
proponente dessa doutrina era o filósofo judeu Avicebrão, mas ela se tornou muito difundida no
meio cristão e se fez presente em grandes autores, como Gundissalvo, Roger Bacon, Grosseteste
e Boaventura.
Em grande parte, durante a leitura dessa questão, o estudante provavelmente perceberá
que o principal problema é a identificação plena entre matéria e potência – uma longa herança
originada, por exemplo, em comentadores aristotélicos da Antiguidade, como Alexandre de
Afrodísias, e revigorada no ambiente universitário.
Não é coincidência que o pluralismo das formas substanciais frequentemente
acompanhasse a adoção do hilemorfismo universal, pois a diferenciação entre matéria incorpórea
e matéria corpórea se daria com o advento da forma da corporeidade. De fato, houve esforços
por parte dos que adotavam tal doutrina no sentido de diferenciar uma matéria física e outra
metafísica, ou uma matéria corpórea e outra incorpórea, espiritual.
Para Tomás, no entanto, a adoção do termo matéria para realidades incorpóreas e
espirituais pecaria por equivocidade uma vez que é propriamente a potência a realidade que se
observa na alma (e na capacidade receptiva de sua faculdade intelectiva, por exemplo), assim
como nos anjos. Toda matéria implica potência, mas nem toda potência implica matéria.
É interessante observar, aliás, como a noção de matéria espiritual perdura até a
contemporaneidade em certas teologias ou como a dificuldade de conceber a potência separada
da matéria pode levar a certas interpretações mecanicistas da vontade e do entendimento, ou
mesmo à redução da realidade à corporeidade.

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O hilemorfismo universal parte do pressuposto de que deveria haver matéria onde quer
que se encontrem as propriedades da matéria, como o receber, o ser sujeito de algo, o estar em
potência. (O “ser sujeito de algo” é, fundamentalmente, ser um substrato subsistente de acidentes
– algo sobre o qual eles advêm, por assim dizer.)
E Tomás trata essa tese não só como equivocada, mas como impossível. Todas essas
realidades acima (receber, ser sujeito, estar em potência) se dão na alma e nas coisas corpóreas de
modo equívoco, porque, nas coisas corpóreas, elas envolvem mutação e movimento, o que, como
aponta Aristóteles, se reduz ao movimento local como ao primeiro e mais comum. A recepção
nas coisas corpóreas não se dá no mesmo modo que as incorpóreas. Qualquer ente que não ocupe
lugar não pode participar dessas realidades da mesma maneira; a recepção, a sujeição e a potência
existem de modo diferente. Falar de matéria para coisas que não ocupam lugar é usar o termo de
modo equívoco.
O próprio Aristóteles dá testemunho contrário ao hilemorfismo universal no terceiro
livro Sobre a Alma, em que trata o inteligir como certo “padecer”, mas um padecer distinto do
das coisas corpóreas. Ademais, como observa Aristóteles na Física, a alma recebe sabedoria e
prudência (ou seja, sofre mudanças) justamente em repouso, separando-se do movimento e das

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coisas móveis.
Outro ponto aduzido por Tomás diz respeito ao entendimento da própria noção de espécie
na natureza. A forma que advém à matéria constitui a espécie. Se a alma possuísse matéria, ela
constituiria, por si só, a espécie humana, o que é falso – a não ser que se acreditasse que a união
com o corpo é algo acidental, não essencial à natureza humana.
Ademais, se a alma fosse composta de matéria e forma, ela mesma não poderia ser forma
do homem, porque a forma é o que, integralmente, dá ser ao composto. Isso porque apenas a
forma da alma cumpriria esse papel. E outros problemas surgiriam da noção da alma como um
composto de matéria e forma: por exemplo, que, se a alma é composta e tem unidade por si,
então, não há razão para que o corpo não tenha unidade por si e não seja ele mesmo composto
de matéria e forma.
E, assim, teríamos a união de duas realidades unas, que exigiriam uma causa adicional para
estarem unidas. E em vão se postularam diversos princípios para isso, contrariando a explicação
de Aristóteles, no livro VIII da Metafísica, de que alma e corpo se unem sem mediação, assim
como o ato à potência.
Dito tudo isso, Tomás volta sua atenção ao fato de que a negação da matéria na alma
não a iguala a Deus (que é ato puro), pois a negação da matéria não exclui que haja potência na
alma : potência é poder ser. E cita novamente Aristóteles, no sentido de que potência e ato não se
encontram apenas nos entes móveis, embora a matéria, sim.
E o modo como Tomás apresenta a coexistência de ato e potência na alma é o mais
radical de todos: o fato de que ela não é seu próprio ser. A potência mais claramente imaterial e
mais profunda que reside na alma é que ela, por si, apenas pode ser; o ser a completa para que
ela exista. Ela não é o ser senão aquilo pelo qual o composto tem ser. Ela é, na coisa criada, um
princípio do ser. Diz Tomás: “E assim encontra-se potência e ato nas formas por si subsistentes:
na medida em que o próprio ser é o ato da forma subsistente, a qual não é seu próprio ser.”
Aliás, não é essa a única potência que se poderia apresentar na alma. Tomás inicia sua
sequência de réplicas a argumentos e, nela, explica que a alma é sujeito de acidentes (o que por
si só já indica potência): ela tem capacidades intelectivas por realizar, bons hábitos por adquirir
etc. Reforça também nas suas réplicas (especificamente a quinta) que as “paixões” no intelecto
possível que o levam à atualização – as recepções das formas abstraídas das coisas – devem ser
entendidas equivocamente às dos entes materiais, assim como as ações do intelecto agente.

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Nas réplicas 11 e 12, por exemplo, retoma o fato de que é equívoca e inadequada a
denominação de “intelecto material” (νοῦς ὑλικός) para o intelecto possível, utilizada por
Alexandre de Afrodísias.
Na réplica 8, atende a uma objeção importante. O oitavo argumento citava Aristóteles
(Metafísica VII) para dizer que a ação do agente não produz apenas a forma, mas o composto de
matéria e forma. Por isso, a agência de Deus não poderia senão produzir uma alma composta de
matéria e forma. Há que se considerar, porém, o contexto da afirmação do sábio grego: o intuito
não era indicar que todo efeito de um agente deve possuir matéria e forma, mas que um agente
não produz uma realidade incompleta.
No entanto, reconhece-se, na réplica, que Aristóteles de fato não concebia transcender a
geração como modo de produzir algo (a criação não estava presente em seu pensamento, ou ao
menos não se pode indicá-la confiavelmente em suas obras) e, portanto, lhe era difícil explicar
o “vir a ser” de uma substância plenamente imaterial. Tomás, em sua réplica, indica que a alma
humana não é produzida mediante geração, mas mediante criação – o que, aliás, a confirma,
coerentemente, como efeito direto de Deus.
No caso da alma humana, em verdade, isso não poderia ser de outra forma, porque ela

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recebe o ser diretamente em si e o comunica ao composto. O “vir a ser” da alma humana não pode
originar-se de um “tornar-se” (ou seja, não pode ocorrer por geração): um princípio imaterial e
subsistente por si só pode ser produzido mediante criação.
Por fim, vale mencionar algo que é bastante comum nas disputas sobre a alma: o mestre
que as responde frequentemente recebe objeções teológicas. Na réplica 7, por exemplo, Tomás
tem de lidar com a posição bastante tradicional (e uma que ele próprio abraça) de que o fogo
do Inferno é de natureza física – onde quer que ele se encontre – e que, portanto, a alma de um
condenado precisaria de matéria para padecê-lo enquanto não se dá a ressurreição dos corpos.
O autor responde que, embora o fogo seja físico, a aflição que a alma padece é de tipo
espiritual. As maneiras em que ocorre essa aflição espiritual estão detalhadas na Questão XXI,
mas se pode resumi-las em duas: 1 - a aflição de estar, por ação da justiça divina, vinculada em
seu ser e em suas operações a um elemento inferior à sua própria natureza – o que equivale a um
cárcere, tanto em suas privações intrínsecas quanto na certeza de que ali se encontra para sempre
afastada de Deus; 2 - o tormento de antecipar o que sofrerá após a ressurreição do corpo.

Os conceitos aprendidos em um campo da filosofia são constantemente


empregados em outros. As noções de matéria e forma, que se aplicam aos entes
materiais e são inicialmente examinadas na Filosofia da Natureza, reaparecem na
Antropologia, o conhecimento filosófico acerca dos seres vivos.
A aplicação de uma noção a vários campos faz com que entendamos melhor o
significado dela e, ao mesmo tempo, nos mostra como realidades fundamentais
se encontram em um número considerável de entes. É o que se dá com o ato e a
potência, a matéria e a forma, a essência e as faculdades, e assim por diante.

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3 QUESTÃO XI: SE AS ALMAS RACIONAL, SENSÍVEL E VEGETATIVA SÃO


NO HOMEM UMA SÓ SUBSTÂNCIA

Na presente questão, busca-se estabelecer o pressuposto de que, no homem, há apenas


uma forma substancial, em consonância com a metafísica aristotélica e em contraste com o
neoplatonismo avicenista, que grande parte da Universidade de Paris via com bons olhos ao
defender a pluralidade das formas substanciais. Aqui, Tomás se detém em demonstrar que o
homem não pode ser um agregado de numerosas formas substanciais, sob pena de carecer ele
mesmo de unidade substancial. E o faz refutando algumas posições dentro da sua resposta central.
A primeira delas é o argumento platônico de que o homem teria várias almas, porque
a alma tem vários gêneros de operações e supostamente necessitaria de motores distintos para
cada um deles. Um motor seria subordinado a outro, e assim por diante, segundo a ordem que
vigora entre essas operações. O problema dessa tese é que motor e móvel não formam senão uma
unidade acidental. O homem (ou até mesmo o animal) careceria de unidade. Além disso, se a

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alma fosse apenas um motor, não haveria corrupção quando um corpo perde a alma, o que é falso
(como vimos na Questão I).
A segunda posição é que, ainda admitindo que a alma se une ao corpo como forma, não
como motor, os platônicos ainda poderiam postular que haveria várias almas num só homem (ou
animal). Admitindo que os universais fossem formas separadas que se predicariam das coisas à
medida que estas participam delas, uma seria forma pela qual se diz que uma pessoa é animal, e
outra pela qual ela se diz homem. Ou seja, a alma sensível e a racional difeririam em substância.
Ocorre que, novamente, a pessoa careceria de unidade per se. Se de um sujeito se predicam
vários atributos per se, cada um segundo uma forma, um dos atributos se predicará do outro
per accidens: quando falamos que “Sócrates é branco” e “Sócrates é músico”, é uma afirmação
meramente acidental dizer que “branco é músico”. E é isso que conseguiríamos com essa posição:
que a predicação “o homem é animal” fosse acidental.
Outro problema com essa posição é que, se a alma racional fosse substancialmente distinta
da sensível, as duas não produziriam algo concreto, nem lhe dariam ser em sentido absoluto
(simpliciter), pois não há como vincular entre si, como algo essencialmente uno, duas formas já
existentes em ato. As duas formas (da animalidade e da racionalidade) precisariam de algo que
as tornasse uma coisa apenas. E não há como designar isso. O resultado seria que o homem seria
uno apenas por agregação. E, assim, o homem tampouco seria ente simpliciter, pois uma coisa é
ente na medida em que é una.
Surge ainda outro inconveniente adicional. O gênero é um predicado essencial e só pode
fundamentar-se numa forma substancial. Assim, a alma sensível, pela qual se diz que um indivíduo
é animal, precisa ser uma forma substancial. E, como tal, ela necessariamente confere ao corpo o
ser simpliciter e produz algo concreto. Portanto, se a alma racional fosse distinta substancialmente
da sensível, ela agregaria ao indivíduo um ser de tipo apenas acidental, pois adviria a algo que já
subsiste: o ser subsistente sensível. E, assim, não poderia dar a espécie ao indivíduo que já tem o
gênero – já que a espécie é um predicado substancial.
Portanto, Tomás conclui que, no homem, só pode haver uma alma, uma só forma
substancial, que tem três potências essenciais: a vegetativa, a sensitiva e a racional. Ela dá ao
homem aquilo que os outros animais possuem, mais a racionalidade, que é o que especifica o
homem. E Santo Tomás chama atenção a um fato bastante perceptível, que aponta à unidade
da alma: o de que, sendo uma só a alma, se uma potência opera de maneira desordenada ou
excessiva, pode interferir ou até impedir a operação de outra. Há uma só alma, que comunica as
potências entre si.

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A esse ponto, nós poderíamos dizer que o conteúdo da Questão XI já atingiu seu objetivo
dentro da sequência principal desta unidade, que é o de dar a estrutura essencial e operativa
da alma enquanto forma do homem – cuja natureza individual e cuja imaterialidade já foram
estabelecidas nas partes anteriores dessa unidade – para que se possa apreciar melhor os
argumentos em prol da sua imortalidade. E é fato que o aluno poderia apenas consolidar o que
foi explicado na resposta central da questão com a leitura das réplicas aos argumentos 11 até 20.
E também é fato que as réplicas 1 a 10 poderiam ser deixadas de lado por lidarem com
noções de embriologia que hoje já não se sustentam: o conhecimento nessa área – é óbvio –
expandiu-se imensamente. Hoje, por exemplo, não se atribui mais às capacidades do gameta
masculino – muito menos apenas a elas – o poder que inicia o processo gerativo do embrião.
O próprio embrião é entendido adequadamente hoje, com os dados atuais da Biologia,
como um indivíduo próprio a partir do momento da concepção, em que o encontro dos gametas
propicia o instante do início de uma nova vida.
No entanto, a apreciação dessa questão nos seus argumentos 1 a 10 (e respectivas réplicas)
ainda pode ser muito útil ao aluno, e sua compreensão adequada pode inclusive dispersar certas
interpretações erradas que se tentaram fazer da posição de Santo Tomás.

LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO | UNIDADE 2


Isso porque, embora Tomás e os demais estudiosos da época tivessem à sua disposição
conceitos de Biologia muito limitados para lidar com entes microscópicos, as respostas de Tomás
eram perfeitas, ao menos em seu conteúdo metafísico: elas coerentemente exigiam que, em
algum ponto, houvesse uma intervenção divina criadora de uma alma singular, de cuja essência
emanem não apenas potências materiais (como as vegetativas e as sensitivas), mas também outras
que transcendem a matéria.
Ou seja: em algum momento, é necessária a infusão de uma alma racional, numa
mistura que, ainda que disposta à geração de um ente humano, ainda não é o ser humano, mas
está naturalmente direcionada a propiciá-lo; e, com a infusão dessa forma substancial num
determinado instante, tem-se o ser humano.
No tempo de Tomás, assim como no nosso, a formação do ser humano era objeto de
muito debate. Alguns diziam não só que não havia embrião até que o ente em formação recebesse
uma alma racional humana, mas que todos os processos formativos que se observavam no ente
em formação eram movidos por uma força extrínseca: o material reprodutivo do pai. Santo
Tomás discordava, porque claramente o ente em formação apresentava operações anímicas,
como crescimento, sensação etc.
Outros diziam que o ente em formação tinha inicialmente uma alma apenas vegetativa,
que, depois, produzia por si uma potência sensitiva e que, então, por origem extrínseca e divina,
recebia a potência racional, como se Deus a humanizasse por adição. Santo Tomás também
discordava dessa posição, porque não se pode obter uma transformação essencial de um mesmo
ente, numericamente falando, por mera adição.
Algo que é essencialmente racional tem de sê-lo de dentro para fora, isto é, a racionalidade,
assim como as outras potências, deve emanar de sua essência. Além disso, mesmo que adornada
de racionalidade, a alma humana continuaria sendo algo cuja essência seria efeito de virtudes
corpóreas originadas no material reprodutivo do pai; ela não poderia ser incorruptível.
A solução metafísica de Tomás conciliaria a noção da alma como forma e princípio
essencial do ente com a afirmação (também aristotélica) de que o intelecto, por ser imaterial,
necessariamente “vem de fora”: não só o intelecto, mas toda a alma humana, em sua unidade
inquebrável, tem que ser infundida “de fora”, substituindo inteiramente qualquer substrato propício
que o preceda, para que o novo ente (o ser humano) seja essencialmente uno, essencialmente
vegetativo, essencialmente sensitivo e essencialmente racional.

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No que tange aos elementos biológicos sugeridos para o processo e o contexto em que
aplica sua solução metafísica atemporal, é claro que eles hoje não vigoram. Não tendo à mão
dados mais detalhados, Tomás sugeria que várias formas substanciais colaborariam em sequência
no processo formativo, cada uma substituindo a outra, e que, num determinado momento, a
forma final humana, com todas as potências, seria individualmente criada e infusa naquele ente
em formação, em substituição à forma que lhe fosse imediatamente anterior.
Em certos momentos, Tomás admite chamar de “almas” às formas substanciais prévias à
infusão da alma humana, porém, entende-se que todas essas formas substanciais não eram entes
de outra espécie, mas etapas formativas do próprio processo reprodutivo da espécie humana,
que então culminavam no topo metafísico do processo: a criação e infusão da alma racional por
Deus, o único agente capaz de criar algo dotado de uma potência que opera de modo totalmente
imaterial.
Ou seja: Tomás enfatizou a necessidade de que a alma humana, por ser intelectiva, fosse
efeito de um ato criativo de Deus (o que é metafisicamente necessário), mas infundida sobre um
composto vivo e operante que estivesse propício para possuí-la. E o fez, por um lado, porque uma
virtude totalmente imaterial não poderia brotar das forças corpóreas do material reprodutivo; e,

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por outro lado, porque não é possível conceber a racionalidade como algo essencial ao homem,
mas dado por mera adição a um mesmo ente irracional já existente.
Que a infusão se desse sobre um composto vivo e operante, resultado de processos
gerativos sequenciais, isso se derivava do entendimento contemporâneo da Biologia. Tomás não
teve a possibilidade de observar que o zigoto é, desde o início, um indivíduo microscópico distinto
dos pais e do restante do material reprodutivo, propiciado pela união dos gametas masculinos e
femininos. Tampouco possuía outros dados empíricos que hoje damos por assentados.
Mas o que já se pode afastar, tendo-se tido um entendimento adequado da opinião de
Tomás e do seu contexto, é a inferência que alguns quiseram fazer: a de que, para Santo Tomás
de Aquino, Doutor Comum da Igreja, o embrião não seria humano até certo ponto da gestação,
portanto, a gestação poderia ser interrompida até um determinado ponto.
Tomás jamais haveria dito isso, porque o primeiro ente individuado que pudesse receber
alma humana já seria um ente humano, e isso já é possível no ente microscópico unicelular que
é o zigoto, um indivíduo uno e subsistente, dotado de processos morfogenéticos autônomos.
Segundo, porque, mesmo que Tomás ainda não tivesse à sua disposição esses dados biológicos,
jamais veria como justificada a violação de um processo natural cujo fim intrínseco é a realização
de uma natureza humana.
Em resumo: nesta aula, pudemos dar atenção a três pontos principais. Primeiro, que a
alma humana é uma só em número e substância, dotada de três potências (vegetativa, sensitiva e
racional) radicadas em sua essência e emanadas dela.
Segundo, que a existência de um ser humano exige a criação por Deus dessa alma em
algum composto propício a recebê-la; chamando-se atenção ao fato de que não se trata da
transformação de algo irracional em racional, mas do cessar de existir do que quer que antecedesse
a alma e do início da existência de um ente novo e plenamente humano em espécie, que apenas
ainda não se encontra maduro para manifestar todas as suas potências.
Terceiro, que hoje se pode observar suficientemente de perto o processo reprodutivo para
concluir que o momento propício para a infusão da nova forma substancial já é o encontro dos
gametas, para que surja o zigoto humano – uma observação que não estava à disposição de Santo
Tomás, que deferia ao consenso biológico então em vigor.

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A defesa da unicidade da forma substancial no ser humano, em contraposição com


os que sustentavam haver três formas – vegetal, animal e humana – coexistentes,
foi uma das teses mais controvertidas de Tomás de Aquino em época. Serve para
nos mostrar, como sucedeu em outras ocasiões, que esse pensador não temeu
expor teses minoritárias desde que estivesse convencido delas.
Essa é uma lição para a vida intelectual: sem buscar simplesmente contradizer ou
demonstrar uma independência artificial, o estudioso deve ser capaz de afirmar,
de modo claro e justificado, o que considera ser a posição verdadeira. O excessivo
receio de sofrer a reprovação dos pares é um perigo importante na vida acadêmica,
que pode esterilizar pessoas talentosas. E vejam que Tomás se colocou contra
pensadores de enorme influência, como Boaventura.

LEITURAS FILOSÓFICAS III: TOMÁS DE AQUINO | UNIDADE 2


4 QUESTÃO XIV: SE A ALMA HUMANA É IMORTAL

Ao aluno que ainda não houvesse iniciado seus estudos filosóficos sobre a alma, deparar-
se com uma questão em que se demonstra pela razão natural a sua imortalidade poderia causar
alguma surpresa. No entanto, considerando que já se tenham estudado previamente alguns
pressupostos metafísicos fundamentais e considerando que a presente Questão XIV é um ponto
desta obra ao qual se chega após diversas outras demonstrações (relativas à sua origem, natureza
e operações, por exemplo), o passo que aqui se dá é natural e esperado.
Como se anteviu parcialmente nas Questões I e VI, o argumento de Santo Tomás se
baseia na imaterialidade da operação intelectiva e, por isso, é tão antigo em sua essência quanto a
conhecida passagem do Fédon de Platão (79a-80b), em que o sábio grego conclui que, por captar
as Ideias, a alma (que possui ser próprio) é imaterial e imóvel. Santo Tomás, porém, constrói
esse argumento com maior precisão, valendo-se de desenvolvimentos conceituais posteriores
(sobretudo aristotélicos).
O aluno verá, logo no início da questão, muitos argumentos em contrário, alguns inclusive
retirados da Escritura. Ao chegar ao Sed contra, expõem-se quatro afirmações em favor de sua
tese. A primeira delas traz a autoridade da própria Escritura e afirma que Deus criou o homem
inexterminável. A segunda explica a incorruptibilidade da alma pela sua própria imaterialidade
visto que ela carece de princípios pelos quais possa corromper-se estruturalmente. A terceira nos
relembra diretamente o Fédon de Platão: a alma é absolutamente imaterial pelo fato de que recebe
imaterialmente as espécies das coisas. A quarta cita duas posições de Aristóteles no tratado Sobre
a Alma, já de certo modo sintetizando o argumento de Tomás: 1 - o intelecto é separado tal como
o perpétuo o é do corruptível; 2 - o intelecto é parte da alma. Logo, a alma é incorruptível.
Na resposta da questão, Tomás começa por delinear que as características essenciais de
algo não podem ser retiradas desse algo sem corrompê-lo, ou seja, sem destruí-lo. Não se pode,
por exemplo, remover a animalidade do homem, porque o homem é essencialmente animal. O
homem não é um vegetal com potências adicionadas. Onde está o homem, ali está sua animalidade,
ao menos no que diz respeito à sua natureza.

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Quanto às características essenciais, o mesmo vale para a forma: visto que a racionalidade
não é um adorno, mas uma característica essencial, a forma é per se vegetativa, sensitiva e racional.
E ela mesma, por ser imaterial, não pode se corromper per se: o que ocorre é a corrupção do
indivíduo corpóreo, ou seja, a corrupção do composto de matéria e forma. No caso dos animais
irracionais (cuja alma é sensitiva e vegetativa) ou das plantas (cuja alma é apenas vegetativa), a
alma cessa de existir, porque, embora ela seja um princípio imaterial, não possui o ser em si: o
ato de ser que o composto possui mediante a sua forma (a alma) é, não obstante o ato de ser do
composto. No caso do homem, é a alma que possui o ser em si e, instantânea e diretamente, o
comunica ao corpo. Porque o modo de ser de algo é determinado pela sua forma. O ser é dado
mediante a forma.
E por que o ser precisa, no homem, radicar-se primeiro na alma? Porque o modo de
operar segue o modo de ser, e o homem é o único animal que possui uma operação realizada
diretamente por uma potência da alma, sem o intermédio de um órgão corpóreo. As operações
das faculdades vegetativa e sensitiva são operações de órgãos, mas não as operações racionais
(a vontade e o intelecto): elas dependem de outras indiretamente – pois precisamos estar vivos
e precisamos dos sentidos para chegar ao entendimento, seja dos sentidos externos, seja dos

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internos, porque o intelecto se vale das imagens sensíveis que possuímos no cérebro –, mas as
operações racionais mesmas não são operações de órgãos. A operação de entender não é ato do
cérebro, pois é ato plenamente imaterial.
E é isso que Santo Tomás nos recorda em seguida:

Não se poderia encontrar nenhum órgão corporal que fosse receptivo a todas
as naturezas sensíveis; principalmente porque o recipiente deve estar despojado
do recebido. (...) Ora, todo órgão corporal possui alguma natureza sensível;
no entanto o intelecto – pelo qual nós inteligimos – é cognoscitivo de todas as
naturezas sensíveis (TOMÁS DE AQUINO, 2013).

Assim, é impossível que sua operação seja exercida por algum órgão corporal. E um
pouco mais abaixo, Tomás agrega mais um argumento: o de que o intelecto recebe os universais,
que justamente são considerados em abstração da matéria e das condições materiais.
Portanto, o princípio pelo qual se dá essa operação – o intelecto – necessita ser uma
forma, e uma forma cujo ser é independente da matéria. É por isso que Aristóteles mencionava
no Tratado da Alma que o intelecto é algo divino e perpétuo. E, visto que esse princípio é uma
parte da alma – até porque a intelecção é uma operação natural ao homem e, portanto, deve
competir-lhe por seus próprios recursos – e visto que o ser que mantém esse princípio é o ser
substancial da alma, conclui-se que a alma inteira possui ser imaterial.
Tomás, então, conclui sua resposta com dois indícios que confirmam sua conclusão.
Primeiro, o de que aquelas coisas que são corruptíveis na sua natureza – ou seja, em si
mesmas – são incorruptíveis ao serem recebidas no intelecto. Ao contrário da maçã, o conceito
de maçã é incorruptível. Porque o intelecto recebe o universal, sobre o qual não recai corrupção.
Segundo, o de que apetites naturais não são vãos, porque a natureza é obra de uma
inteligência perfeita. E o ser humano tem um apetite natural pela contemplação intelectiva,
ou seja, pela apreensão do ser das coisas. Ora, o ser é apetecível ao intelecto por si mesmo,
independentemente de quaisquer delimitações do aqui e do agora em que ele se apresente. Por
isso, é natural que o desejo do homem de contemplar o ser transcenda os limites do tempo.
Em outras palavras (e resumindo o argumento de maneira aproximada), o ser, em si, é
inesgotavelmente desejável de se contemplar; logo, é natural à criatura dotada de intelecto que ela
deseje contemplá-lo inesgotavelmente. Para fazê-lo, por natureza ela não pode ser perecível, ou
seja, não pode ser corruptível, ao menos no princípio pelo qual ela realiza essa operação.

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James Brent – Philosophy shows you have an immortal soul é uma


explicação, a partir de Tomás de Aquino, sobre a imortalidade da
alma.

Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NTSQPDOn0xc.

Outros vídeos sobre a alma são de Gregory Pine – Body and soul
e Powers of the soul. Como todos os vídeos do Thomistic Institute,
esses são simples e esclarecedores. Nos três, há legendas em
Português.

Disponíveis, respectivamente, em:


https://www.youtube.com/watch?v=mTzNGUCJkm4 e

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https://www.youtube.com/watch?v=UnpycBrUB3U.

Em seguida, Santo Tomás vai responder às diversas objeções da questão. E algumas são de
maior relevância. Numa delas, a segunda, faz-se uma observação interessante: Aristóteles ensina
que o corruptível e o incorruptível diferem em gênero. A objeção alega, então, que a alma do
homem e a do animal irracional não poderiam diferir em gênero, porque tampouco o homem e
o animal irracional diferem em gênero. Por isso, nossa alma deveria ser corruptível.
Na resposta, Tomás explica que, consideradas apenas logicamente, as duas almas até
poderiam pertencer a um mesmo gênero, porque se reduzem ao gênero da substância, uma vez
que são partes integrantes da essência, respectivamente, do homem e do animal irracional – já
que, tanto em um quanto em outro, a essência completa é alma e corpo. Mas, na ordem do ser,
não pertencem a um mesmo gênero, porque uma é incorruptível, e a outra, corruptível – ainda
que o composto de alma e corpo seja corruptível em ambos os casos, tanto no do homem quanto
no do animal.
No sétimo argumento, vem a objeção de que, se ela é incorruptível, deveria possuir a
virtude de existir sempre. Mas, considerando que, segundo a fé, ela deve ter começado a existir
(pelo ato criativo de Deus), e o começar a existir implica que em algum momento anterior ela
não existia, a alma não deveria ser corruptível. A resposta é que, de fato, a alma possui o poder
de existir para sempre, mas não possuiu sempre esse poder, somente a partir de quando começou
a existir – assim, justamente em razão dessa capacidade, dura para sempre uma vez que tem ser.
Com isso, Santo Tomás está respondendo ao argumento de origem aristotélica segundo
o qual a alma, sendo uma substância imaterial, não deveria começar a existir no tempo, porque
não pode ser gerada por nenhum processo que envolva movimento. De fato, para Tomás não há
nenhum impedimento para que uma substância imaterial (e, portanto, incorruptível) comece a
existir, porque Deus a produz mediante criação, e não geração.

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Prosseguindo nas réplicas às objeções, a décima primeira serve como um resumo excelente
da própria resposta de Tomás no corpo da questão: a unidade do ser do homem não conflita com
a subsistência da alma, porque o ser pertence a essa natureza humana concreta a partir da alma,
que não é ela mesma uma natureza completa e, por isso, não é sozinho o ente humano. Embora
subsistente e redutível à categoria da substância, ela não é a substância, mas parte essencial sua.
Só que, no caso da alma humana, ela não é só aquilo pelo qual o composto tem ser, mas aquilo
que dá ao composto um ser que é, primeira e efetivamente, seu.
Na décima segunda réplica, vê-se a recompensa de haver-se estudado previamente a
Questão XI. O argumento contrário parte da premissa (correta) de que o homem na verdade
possui apenas uma alma, dotada de três potências fundamentais: vegetativa, sensitiva e racional
— e que, quando dizemos que num mesmo indivíduo há uma “alma vegetativa”, uma “alma
sensitiva” e uma “alma racional”, o que se está significando é que há ali três potências de uma
mesma alma.
Pois bem: o argumento quer concluir que, sendo corruptível a alma sensível (ou seja, as
potências sensíveis), e sendo ela una em seu ser com a alma racional, a racional também deveria
corromper-se.

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A réplica trata de que, sendo racional, a alma humana é incorruptível e, portanto, são
incorruptíveis no homem também as almas sensitiva e vegetativa, pois, na verdade, são três
potências de uma alma só. É uma só a natureza humana que a alma traz, e ela é, ao mesmo tempo,
vegetativa, sensitiva e racional. O que deixa de existir com a corrupção do corpo humano são
os órgãos necessários para realizar as operações das potências vegetativas e sensitivas (porque
as operações dessas potências são operações de órgãos), mas isso não chega a alterar a natureza
da alma humana, que continua sendo essencialmente vegetativa e sensitiva (além de racional)
e voltará a exercer as operações dessas potências quando for reunida ao corpo — assim como a
visão volta ao homem quando um olho corrompido é substituído por outro sadio.
Quanto às operações racionais (ou seja, intelectivas), elas não são operações de um órgão.
Porém, visto que nosso modo natural de entender exige as imagens guardadas nos sentidos
internos, na alma separada não se dá a intelecção pelo nosso modo natural de entender. Mas isso
não significa que a operação intelectiva esteja impedida absolutamente, pois ela poderia operar de
algum outro modo (aliás, causaria estranhamento se a faculdade por cuja operação nós deduzimos
que a alma resiste à separação do corpo não pudesse operar de nenhum modo após a separação
do corpo). Em seguida, Tomás aponta dois indícios de que isso precisa acontecer de algum modo:
o fato de que uma substância não deve ser totalmente ociosa (um argumento de razão natural) e
o de que a alma separada precisa compreender as circunstâncias de seu julgamento por parte de
Deus (um argumento de fé).
Sobre como a alma entenderia separada do corpo um tema que escapa ao objetivo
específico dessa questão, o aluno pode verificar as Questões XV e XX dessa mesma obra. Nelas,
Tomás explica que a alma é capaz de usar as espécies que estão no intelecto – abstraídas em vida
– para entender os universais, mas, debilmente e de modo pouco preciso, pois esse não é seu
modo natural de entender; e poderia até entender os singulares caso lhe fossem infusas espécies
do mesmo tipo das que residem no intelecto angélico, as quais não poderiam ser adquiridas
por abstração das coisas. Tomás explica, ademais, que, para qualquer uma dessas operações, a
alma precisa de auxílio que intensifique sua luz intelectiva, seja de Deus, seja dos anjos. E esse,
ainda assim, não seria um conhecimento perfeito e detalhado, exceto acerca das realidades que
receberam em vida uma relevância e atenção especial daquela alma, e às quais ela está mais
habituada e inclinada. E, finalmente, observa que esse não seria propriamente um conhecimento
sobrenatural (como é o conhecimento que se tem na visão beatífica de Deus); ele é, antes, um
auxílio à nossa natureza para um modo de conhecimento que não lhe é o “natural”, mas apenas
no sentido de que não é o mais adequado à sua natureza.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta segunda unidade, fez-se um itinerário em quatro etapas: na Questão I, argumentou-


se que a alma é forma do homem e, ao mesmo tempo, algo concreto e subsistente. Mostra-se que
o princípio que permite ao homem predicar-se universalmente, colocando-o sob um gênero e
uma espécie, é o mesmo princípio uno e subsistente que, por meio da sua união com o corpo, o
realiza como indivíduo.
Na Questão VI, vê-se como a alma não pode ser composta de matéria e forma e como o
hilemorfismo universal que costuma acompanhar essa posição carece de uma distinção adequada
entre matéria e potência. Se a alma fosse composta de matéria e forma, “matéria” seria um termo
equívoco, a alma já constituiria uma natureza completa e – como consequência disso – o homem
careceria de verdadeira unidade. Sua união com o corpo seria acidental. Adicionalmente, quando
se fala de “padecer” no intelecto, deve-se entendê-lo de maneira equívoca, porque não há nele

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movimento local.
Na Questão XI, viram-se argumentos que coerentemente foram ao encontro da teoria
da pluralidade das formas substanciais, que costuma acompanhar a da materialidade da alma.
A questão divide-se em dois conjuntos temáticos: um em que se mostra como a real unidade
do ente humano depende da unidade da forma substancial, e outro que responde a objeções da
Biologia da época, que procuravam inferir do processo gerativo do embrião humano o fato de
que haveria uma sobreposição de formas substanciais que culminariam no ser humano.
Na Questão XIV, demonstra-se a imortalidade da alma humana pelo caminho mais
claro e seguro: pela imaterialidade da operação do intelecto, uma potência que carece de órgão
corpóreo. Para que possa existir uma potência dessa ordem, o ser sobre o qual essa potência se
assenta (e do qual ela emana) não pode ser o resultado de processos materiais, senão que exige
que o ser convenha, primeira e independentemente, à alma, que o comunica imediatamente ao
corpo. Perecido o corpo, a alma perdura, embora não se deva ver nisso a noção platônica de que
a alma é a natureza humana. Ela é o princípio mais nobre e mais atual da natureza humana, mas
não opera segundo sua natureza se não se encontra unida ao corpo, formando a essência humana
completa e operando em seu estado natural. É por isso que a alma separada do corpo não está
liberta, como sugeriam os platônicos, mas anseia por sua reunião com o corpo.

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REFERÊNCIAS
THOMAS AQUINAS. Disputed questions on the soul. Edição bilíngue inglês – latim. Disponível
em: https://aquinas.cc/la/en/~QDeAn. Acesso em: 27 out. 2022.

THOMAS AQUINAS. Summa contra gentiles. Edição bilíngue inglês – latim. Disponível em:
https://aquinas.cc/la/en/~SCG1. Acesso em: 27 out. 2022.

TOMÁS DE AQUINO. Questões disputadas sobre a alma. Tradução de Luiz Astorga. São Paulo:
É Realizações, 2013.

TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Tradução de D. Odilão Moura. Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1990. v. 2.

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