Você está na página 1de 17
ROSE MARIE REiS GARCIA A trova e a décima no Rio Grande do Sul * O tema da presente comunicagao vem sendo por nés pesquisado de maneira sistemética, desde 1984. Por essa época, dirigimos a Fundacdo Instituto Gaticho de Tradiggo e Folclore e contamos com o apoio de dois membros da equipe dessa instituigGo, professoras Lilian Argentina Braga Marques e Sénia Siqueira Campos, que nos acompanharam em coletas de campo. Em 1985, 0 projeto foi remontado e executado em cooperagao técnica com 0 grupo de pesquisadores do Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folclore, da OBA, dirigido pela Dr? Isabel Aretz de Ramén y Rivera e integrado pelos professores Maria Tereza Melfi (coordenadora), Maria Josefina Fornaro e Antonio Diaz, que atuaram em trabalho de campo e precessamento de material recolhido, incorporando-o aos arquivos da Organizacdo. Desde 1986, o Gabinete de Pesquisas Folcléricas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pela professora Ika d’Almeida Santos Herrmann, assumiu a continuidade desse projeto que representa uma primeira etapa de estudos sobre a musica folclérica do sul e sudoeste brasileiro, inserido na 4rea cultural latino-americana conformada também pelo Uruguai, norte da Argentina e este do Paraguai. Esto previstos novos projetos que sero desencadeados em seqiiéncia para a realizagao total do estudo. As razSes que nos levaram a pesquisar a Trova e a Décima estdo ligadas, principalmente, A importancia dos trovadores no contexto sul-rio-grandense, quer como autores de letras (as vezes também de miisicas). como de intérpretes, instrumentistas e comunicadores, tendo seu talento desenvolvido em forma de improviso num desempenho conjunto, que segue estruturas tradicionais. Apesar de sua presenga constante no cendrio artfstico popular sulino, verificase que a Comunicagdo apresentada no 1 Congresso Brasileiro de Musicologic, promovido pela Sociedade Brasileira de Musicologia, Sdo Paulo, SP, 1987. Porto Arte, Porto Alegre, | (1) maio 1990 66 bibliografia técnica sobre essas manifestagdes Iitero-musicais folcléricas ¢ muito escassa, tendo merecido até o momento, pequenas referencias e excertos de letras nas obras existentes sobre assuntos mais abrangentes. Assim, ao desenvolvermos essa pesquisa, pretendemos registrar numa futura publicago, a realidade do trovador do Rio Grande do Sul, suas peculiaridades de vida, 0 contetido das mensagens que canta, sua expressfo artistica poética e musical, e sua aceitago pelo pablico. Apesar das miltiplas contribugbes étnicas existentes no Rio Grande, no que se refere a cantoria em desafio, ali conhecida popularmente como trova, e a via narrativa, designada por décima, constata-se os marcantes trages europeus que, via Portugal (continentino e insular) influenciaram basicamente esse Estado do Brasil, desde sua ocupago. Certamente, podem ser percebidas ovtras contribuigdes de cantadores de outras regides brasileiras, nordestinos = paulistas, e também intluéncias dos pajadores do Prata (Argentina e Uruguai). Esses aspectos esto sendo alvo de estudo mais detalhado na pesquisa. Os cantadores populares so to vigentes hoje no Rio Grande do Sul como 0 foram no passado na Europa, os “trouvéres” franceses e o “minnesingers” alemaes. Na espontaneidade que les € peculiar, quaiquer ambiente & propicio a sua cantoria: rodeios, bailes, festivais, carreiras, festas em casa de amigos, reunides familiares, bares, bolichos, galpdes, ramadas e até mesmo durante a festa do Camaval, cantam em tendinhas. Seu piblico simples, é sempre interessado, nunca se afastando antes do término do desempenho do cantador, entusiasmando, aplaudindo, incenti- vando 0 artista. Nossa metodologia de trabalho levou-nos a essa série de locais, geralmente e, a zonas rurais e suburbanas, para colher “in situ” as informagdes que foram gravadas em fitas cassete e em apontamentos no cademo de campo. Abrangeuse cerca de trinta (30) municipios de diferentes pontos do Estado, buscando uma amostragem significativa. Vamos a seguir, fazer uma breve abordagem sobre alguns pontos de nosso estudo. canto em desafio, predominante, € 0 conhecido atvalmente como “Trova em Mi Maior de Gaveto”, que consiste numa cantoria alternada entre dois” desafiantes, intercalada por um interlddio instrumental, executado em gaita (de teclado ou de botdo) e/ou violfo. As estrofes, geralmente em sextilhas, com versos em redondilna maior, apresentam rima alternada no 20, 49 e 62 versos. Musicalmen- te, so assim constituidas: quatro (4) compassos para a Introdugdo, que depois ven a ser o proprio Interlédio; doze (12) compassos, quase sempre, para acompanhar cada estrofe cantada. O esquema é invariavelmente: A ~ B — A —B . . . Sdo encontradas também estrofes de quatro linhas, correspondendo a oito (8) compassos musicais. Quando 0 desafio ocorre entre mais de dois cantadores, denomina- se “toda de trova’’. 67 ‘Antigamente, 0s trovadores entoavam seus versos sobre as “polqui- nhas de cantar”, “queromanas” e “toadas”, das quais recolhemos alguns exemplos com gaiteiros mais velhos. Hoje essas formas de acompanhamento sic menos utilizadas. Dao preferéncia ao “Mi Maior de Gavetdo”, talvez porque a linha melédica adotada facilite a pros6dia musical mais adequada ao cantor. © nome “Mi Maior de Gavetdo” advém, segundo depoimentos de vérios informantes, da tonalidade que mais utilizam para 0 acompanhamento do canto em desafio. Ainda que fagam transposigao para outros tons continuam a dizer que estdo tocafido “Mi Maior de Gavetdo” em sol, em ré, ete. A denominagao “Gaveto” estd associada, para muitos, a0 acorde arpejado inicial de Mi Maior, com que iniciam a execugdo instrumental. Em termos de género musical, o “Mi Maior de Gavetdo” tanto pode ser um xote em compasso quartenério, ou uma polca em compasso bindrio, aparecendo também sob outras espécies. Com mesma estrutura letristica da “trova de gavetdo”, o cantador gaiicho ainda trova em ritmo de valsa e também de vaneira Todas em tonalidades maiores. Assim, depreende-se que o género musical esté na dependéncia das possibilidades e escolha dos gaiteiros. 0 andamento costuma ser moderado e é bastante flexivel, conforme a solicitaggo dos cantadores para tocar mais ou menos devagar. EXEMPLO N° 1: TROVA EM Mi MAIOR DEGAY (fragmento) Recolhido em Santana do Livramento, RS Data: 16-03-85 Trovadores: Sueli Xavier Mendes Nerley Maciel da Silva ‘AO © tntrodugio Musical 19 cantador ~ Sueli: “Mandaram eu sair cantando Eu vou mostrar minha poténcia P’ra cantar p'ra este povo Eu conservo a experiéncia P’ra saudar o meu Rio Grande E também minha queréncia” Interlidio Musical 20 cantador — Nerley: “E também minha queréncia Até fico emocionado Quando “aibro este peito P’ra fazer verso rimado Saudando este Rio Grande Que € meu bergo e meu Estado. b cacegs “(abro) 68 “Interlidio Musical 19 cantador —Sueli: “Que é teu bergo e teu Estado Tens sentimentos de artista Tens voz por todos os cantos E és tradicionalista Es cantor e trovador E és um grande repentista” Interlidio Musical 29 cantador — Nerley: ““*Sisou um grande repentis! Porque trouxe “evocagao Porque Deus me dew a ordem E eu *cumpli com esta missio De defender o que é nosso Em *nomem da tradig@o.” caccoges (Se) “(vocacao) *(cumpri) vacoer “(nome) Observagoes: — Ambos os travadores nfo entosm a mesma linha melédica exata da primeira estrofe para as subseqientes; fazer ajustamentos de acordo com as palavras © pequenas variantes mel6dicas. — 03 ornamentos mordente ¢ apogiatura so usados com freqiténcia pelo gaiteiro no decorrer da trova, principalmente na Introdugdo ¢ Interlidio (colocados a vontade), —O portamento é observado na entoagdo de ambos os cantadores ¢ foi indicado nesta transcrigdo pelo sinal J que representa portamento descendente. TranscrigGo Musical: Rose Garcia Aokeio Mmdez inno, + Te. to em- terest po- vo: Eu cone 69 wre vo gate fe dan Sle. Pra wat dar meso ‘A “Trova por Milonga” apresenta-se com estrofes de oito (8) versos ou também seis (6), com rimas alternadas e interlidio. O tom é menor; ritmo de milonga. EXEMPLO N° 2: TROVA POR MILONGA (fragmento) Recolhida em Santana do Livramento Data: 16-03-85 Trovadores: Lécio Vargas da Rosa Nerley Maciel da Silva Introdugao musical (em ritmo de milonga) 19 cantador — Lécio: | “Jé “qui mudou p’ra miionga Eu volto novamente P'ra cantar de improviso E para alegrar esta gente P'ra transmitir alegria P'ra 0 povo que esté contente.” *(que) cacece 70 Interlidio Musical 20 cantador — Nerley: “P’ra 0 povo que est contente Eu canto no teu costado Jé que € em tom de milonga “Vam fazer verso rimado Sei que tens inteligéncia Ento teu versos “sai rimado.” Interhidio Musical 1° cantador — Lécio: “Se meu verso sai rimado Eu concordo com o *sinhor Se nascemos p'ra cantar Coin este dom Je cantador Pois eu ndo sou milongueiro E sim sou um trovador.” Interladio Musical 29 cantador —Nerley: ““E assim és um trovador E eusigo na mesma pista Pois fazer verso na hora E nao € tem p'ra sambista Sei que nao és milongueiro “Mais € grande repentista.” *(vamos) cacoce *(saem) on *(senhor) vace cacogces “(mas) Transcrigo Musical: Rose Garcia MILONGA AOANTE M.u.igk 80) INTRODUGEO (23 ee ‘canto E.e-qul mu- dave mi-ton- fo Leu vo- SSS [= ==: = =—s| PT SS aaa 10 Ge neo de- mane Tes cra cmtor So IM. prowvis sQ¢ pa-rae- le Gur we- we Pro po- vo tix car con a= ‘Além do “Mi Maior de Gavetfo” e da “Trova por Milonga”, 0s cantadores também fazem “Trova por Martel”. Nao possuindo interhidios entre as estrofes, é um tipo de trova seqlienciada do principio ao fim. O primeiro cantador entoa cinco (5) versos, deixando a idéia incompleta. O segundo cantador entoa 0 sexto verso, completando a idéia e fectiando a sextilha. A seguir, este mesmo contador inicia a segunda estrofe, repetindo 0 sexto verso e, apés, 0 quinto verso da primeira estrofe; improvisa, entio mais trés (3) linhas, deixando a idéia incompleta. E dessa forma, vo alternando o desafio continuo. Esquema de rimas: a-b-c-b-d-b. EXEMPLO N° 3: TROVA DE MARTELO (fragmento) Recolhido em Santana do Livramento Data: 16.03.85 Trovadores: Lécio Vargas da Rosa Nerley Maciei da Silva Introduggo musical (a melodia pode ser a mesma da Trova em Mi Meior de Gavetio) 1 19 cantador — Lécio: “Com licenga. meus amigos Bu quero voltar de novo Que aqui nés somos gatichos E nunca “usemos retovo £ um prazere € bonito” 29 cantador —Nerley: “Vir cantar para este povo n Vir cantar para este povo £ um prazer e é bonito Onde tem trés *trovador Ninguém se assusta de grito ‘Que fazem versos rimados” 19 cantador — Lécio:“E nenhum cantar solito ur E nenhum cantar solito ‘Que fazem versos rimados Mostra tudo 0 que € bom Que cultivam nesse Estado E churrasco e chimarrao” 29 cantador —Nerley: “E ninguém fica magoado, *(usamos) cacces “(trovadores) gacoge cacoce Vv E ninguém fica magoado Com churrasco chimarrdo De cultura na fronteira Esta é a nossa distragdo, Cantar para gente amiga” 19 cantador — Lécio: “Que honrar a tradicao. gacogs Quando o desafio se torna muito acirrado e agressivo, diz-se que os cantadores entraram numa “trova de puago” EXEMPLO N° 4 TROVA EM MI MAIOR DE GAVETAO (de puago) (Eragmentado) Recolhida em Santo Antér Data: 8.03-85 Trovadores: Jouo Evangelista Rodriguez Protésio Barros Fragoso (Tazinho) das Missdes Introdugdo Musical 19 cantador — Evangelista: “Eu volto de novamente E cantando bem debochado E um amigo que eu tenho Que mora do outro lado Te agarra com a tuas “unha “(unhas) Porque é laco dos dois “lado.” *(lados) Interhidio Musical 29 cantador —Tazinho: “Porque é lago de dois “lado *(lados) E eu sou galo competente Eu sou li de Sao Luiz Quero bem a minha gente Mas vocé é galo *véio *(velho) Que j4 perdeu até os “dente.” *(dentes) Interhidio Musical 19 cantador ~ Evangelista: “Que jé perdeu até os “dente *(dentes) Mas é galo bem charrua Tu “sabe que eu canto bem *(sabes) A minha carne é muito crua P’ra vocé eu nffo quero dente Que hoje eu te quebro a pua.” B . Interlidio Musical 29 cantador —Tazinho: “Que hoje tu me quebra a pua Eu nao vou dizer que ndo Eu nao canto por cobiga Eu canto por tradiga0 Mas vocé “falasse em pua *(falaste) Como vai tua situagao.” Interliidio Musical 19 cantador — Evangelista: ‘Como vai tua situagdo Muito bem vai meu companheiro Tu “sabe que eu me orgulho *(sabes) Em ser um galo missioneiro Mas frango assim despilchado Nao forma no meu terreiro.” Interlidio Musical 29 cantador —Tazinho: “Nao forma no teu terreiro Mas de ti ndo tenho medo Eu nasci p'ra cantar verso E tenho até um segredo Galo da tua qualidade Eu dou de chinelo de dedo.” TROVA DE PUACO Transcrigdo Musical: Rose Garcia iwrRoouGho - @ ten ge tee cos Ge Eum c- fea- ml- a> ugg te ako. Ge moe Tas go doe dole (en Pors ques le- go dow dole ts 0 aw 18 pare ow a ho Meme (Os critérios para avaliar 0 desempenho de um trovador sio fornecidos por eles mesiaos. O improviso tem de apresentar fluéncia, seguir a estrutura de construgao tradicional, ser enriquecido por argumento satisfat6rio, conforme o tema da trova (se referir-se a dados hist6ricos, deve haver precisio de dados; se tender & comicidade, deve primar por um humor leve, etc.). C cantador deve ter gesticulacdo harmonicsa e pronunciar com poténcia de voz seus versos. A dicgo é também importante, embora muitas vezes as palavras sejam ditas de forma incorreta. O uso de palavras de baixo calfo por um cantador, num tomeio, desqualifica-o perante. os demais; é considerado apelagao. s trovadores, via de regra, além de fazerem canto em desafio, sfo também excelentes improvisadores individuais, versando sobre qualquer tema que conhegam, comunicando em suas criagBes os costumes da regio, os critérios de moral de ética, suas ambig6es para o futuro, a valorizagao do pasado. & assim, 0 repentista do sul. EXEMPLO N95: — IMPROVISO EM RITMO DE VALSA (fragmento) Recolhido em Uruguaiana Data: 22-3-85 Repentistas: Ciro Corréa Medeiros Francisco Madruga Céspedes (Bagé) Introdugdo Musical Ciro: “Enquanto a cordeona chora Eu vou “improvisa um bocado *(improvisar) Para este povo querido Para os de pée os “sentado *(sentados) Que vem me presenciar bis Nesta hora dedicado Ciro fae aqui do Correia Bagé Jm forte abraco apertado” cocacoce Interiadio Musical Ciro: Um forte abrago apertado De todo meu coraggo Para saudar esta “genti Que eu quero como uns *ermao Que no Patrulha do Oeste O centro de tradigao bis Onde fomos *recebido Ciro Por este grande patro” Bagé “(gente) “(irmaos) *(recebidos) cocaceces IMPROVISO Transcrigdo Musical: Rose Garcia wrgooucio a Po rqye te We gym to- co we el ee meet lee 16 A capacidade de improvisar versos é exercitada desde crianga, individualmente e em competigdes amistosas, imitando os adultos. O surgimento de um bom trovador é algo natura! no grupo. Ele sobressai entre seus pares; os versos que improvisa tem mensagens com fundamento nas vivéncias do cotidiano. Cativam pelo valor do contetido e da tradigao de que sfo portadores, bem como pelo gosto com que so elaborados. £ sempre um orgulho para os adultos assistir a um “guri trovador”, “que promete”, como dizem. Ha também mulheres trovadoras mas em pequeno némero. “Sao téo boas quanio os homens”, segundo eles mesmos. No entanto, quase nfo tem incentivo e oportunidade de mostrar seus dotes nesse carzpo. Em nossa pesquisa, gravamos canto em desafio improvisado por trovadoras solteiras e casadas, em rodeios € reunides familiares, podendo constatar a qualidade de suas apresentagSes. cantador adulto canta com voz esganigada, tendendo ao agudo, as vezes forcando bastante até engrossar as veias do pescogo, num desgaste vocal que, no entanto, Ihe € caracteristico. Nao hd grandes preocupag®es com a afinagdo. Importante é “nao perder-se na letra”. Nossa pesquisa faz ainda uma abordagem comparativa entre a trova gaticha brasileira e a pajada argentina, enfocando também o que chamam atualmente de pajada no RS e que nada tem a ver com aquela forma de canto platino. Jé a décima deve ser vista de maneira especial, pois tratase dos romances regionais. Esta tiltima denominagao nao é empregada entre 0 povo, apenas entre os estudiosos da matéria. O termo que prevalece no RS € décima. Para o cantador popular, nomeia uma cantoria narrativa de um fato realmente acontecido. Nao necessita ter exatamente dez (10) versos em cada estrofe. Pode até télos mas nao € 0 comum. Predominam décimas/romances com estrofes de seis linhes ou de quatro. : A décima pode ser cantada ou recitada, com ou sem acompanhamento instrumental. Suas letras so sempre longas, havendo algumas de até 230 estrofes. Muitas pessoas possuem cadernos manuscritos para ndo esquecerem a seqiiéncia das mesmas. Alguns cantadores fazem folhas soltas ou livrinhos com a letra das décimas que siio vendidas aos interessados. O mais importante na décima € seu contetido, o enredo que prende a atengdo dos ouvintes, a forca de aco dos personagens na descrigdo bem pronunciada do cantador. Recolhemos cerca de cento e dez (110) décimas até o presente momento, que nos foram transmitidas por diferentes tipos de informantes: trovadores, cantadores, poetas € outras pessoas que apreciam este tipo de literatura. Organizamios 0 material coletado de acordo com 0 assunto ou espécie. Encontramos: ABCs, Décimas biogréficas (algumas do prdprio cantador e outra em homenagem a amigos ou pessoas que admira), Décimas de Hist6rias Dramaticas (sobre acidentes automobilfsticos, enchentes, incéndios, tragédias passionais, desditas de individuos), Décimas de Festas e Saudagdes, Décimas de Criticas, Décimas de Politica e Movimentos Revolucionarios (so as mais numerosas, contendo narrativas pormenorizadas desde o tempo do Império até a Repiiblica. por volta de 1950), Décimas de Profissdes (descritivas, discutindo vantagens e desvantagens), Décimas de Lamentages (muites enfocando 0 gaticho que se desloca do meio rural para cidade e 6 encontra desilusdo e privagdes), Décimas de Banditismo (numerosas), Décimas Humoristicas, Décimas de Desafio, Décimas sobre Animais, Décimas sobre Faganhas € Mentiras, Décimas de Amor, Décimas Ecolégicas, Décimas Religiosas EXEMPLO N26: DECIMA DO SORRO Recolhida em Uruguaiana Data: 22-03-85 Cantador: Francisco Madruga Céspedes Décima composta de 14 estrofes, contendo 84 versos Resumo: Esta décima conta a histéria de uma cagada ao sorro, dizendo da esperteza do bicho e da habilidade do cagador. Faz referéncia a figura do cachorro como preciso auxiliar da cagada. Observase na letra © uso de expressdes interessantes como “apeei da minha cama . ..” “me chamam de Sorro Manso . “Bem assim 0 Sorro Velho . . .” A décimna encerrase com um “fundo moral”: . . . “todo ladrdo de respeito sb rouba gente rica.” Introdugiio Musical 1 Na “tar de boca da noite Eu inventei uma cagada Na costa de uma restinga Deixei uma trampa armada Para ver se ali caia *(tal) caceges Um sorro nesta emboscada Interlidio u E 0 tal Sorro que eu quena Jame era desafio Richo pequeno que havia Ele passava no fio Leito, borrego e galinha Roubava do pobrerio Interladio Vv Tinha caido sereno *Tava molhado o capim “(estava) E apanhar aquele sorro Era uma honra p'ra mim P’ra quem “roba da pobreza *(rouba) ‘A gente tem que dar fim Interladio VI *Mais 0 sorro € bicho esperto *(mas) Raga de dicho “latino *(ladino) Quebrou as garras da trampa Decerto o arame era fino Embora de pa a renga Fugiu do triste destino Interlédio Vil E eu larguei o meu cachorro Um Pitoquinho coleira E 0 sorro jé fa longe Passando numa porteira P’ra se pegar este bicho S6 a tiro de boleadeira Interlidio ~ Deu volta e fez contra-volta Veio e entrou num buraco De tanto correr o bicho Eu jé me sentia fraco Quando chegou meu pitoco Ja fui tirando 0 casaco Interlidio mM No outro dia bem cedo Primeiro cantar do galo ‘Apeet de minha cama E *muntei no meu cavalo “(mon' Pui ver se tinha cafdo Na trampa 0 sorro 0» ‘alo Interlidio Me chamam Sorro Manso Que devalde ndo se arrisca De longe eu vi o bicho Meio “ingasgado na isca "(e1 vasgado) Quando se sentiu das-* pata “ patas) Chegava a *solta faisca *(soltar) Interhidio Vil Mas eu como fui soldado Me vali da *deciplina * (disciplina) Fiz um *calco aproximado *(célculo) Fui lhe esperar numa esquina L4 vinha saindo um sorro Do meio d’uma faxina Interlidio Ix Quando 0 Pitoco chegava Quase na cola do sorro Vendo o bicho “apersiguido *(perseguido) Deu um grito de socorro Livrai-nos Senhor dos *Mato “{matos) Dos *dente deste cachorro “(dentes) Interlidio xI Metendo a mio pela toca Tirei ele pela orelha: “Quantos crime tu “tem feito *(:ens) Entre galinhas e “ovelha *(ovethas) Néo € por nada que Cristo Nao te botou sobrancelha Interlidio 0 xi Xu Bem assim 0 sorro velho Dei-the uma sova de lago ‘Nas ‘garras de minha mo Com a tala de meu relho Entregou a rapadura Dizendo: “E p’ra que aprendas Chorou e pediu perdio A no roubar o alheio Apelou p’ro sentimento *Come criagdo dos “pobre *(comer, pobres) E eu tive bom coragao E um pecado dos mais “feio.*(feios) Interlidio Interlidio xIV Larguei 0 sorro riscado Mesmo que ‘um jaguatirica "(que uma) Ele ouviti meus “consclho *(conselhos) E p’ros demais aqui fica Todo ladrao de respeito S6 "roba de gente rica *(rouba) (Para finalizar) Todo ladrao de respeito S6 “robs de gente rica *(rouba) ‘Transcrigo Musical: Rose Garcia MODERATO M.M (g=1:2} ol tegu in = ven Gena na coe ta ay me Rees Hinge deh me wma fam gr , vee) co- da. TE te ri~ coe Nao encontramos, até o momento, romances que, nz integra, tenham sido registrados por outros folcloristas brasileiros, e tampouco encontramos a presenga de personagens de historias medievais nesse tipo de narrativa cantada/recita- da. 80 Embora com funggo similar a da literatura de cordel para o nordestino, as décimas no RS ndo tem hoje a mesma forga de antigamente. Ao que tudo indica, essa forma Iitero-musical derivou nesse Estado para a criagdo de relatos Jocais e regionais que se fixaram nessas comunidades, difundindo-se num pequeno raio de abrangéncia. Virios trovadores entrevistados dizem que as décimas por serem longas, exigem que as letras sejam bem decoradas por eles para nfo perderem os detalhes da seqiiéncia narrada que é © que prende a ateng3o dos ouvintes. Como alguns cantadores sfo semi-analfabetos, tem dificuldade em ler e reter na meméria todos os versos, preferem ento o improviso e nao a décima decorada em suas reuniGes. Muitos informantes detem-se no enredo da dé simplesmente sem recité-la ou canté-la, Do ponto de vista musical, a melodia desses romances, en tom Maior ou menor, é repetitiva para cada estrofe, correspondendo a doze (12) ou dezesseis (16) compassos para 0 canto. Quando acompanhada de instrumento musical (gaita ou violdo), os tocadores executam pequena introdugdo que serve também de interlidio. narrando-a De acordo com as entrevistas que realizamos, sem diivida alguma, os cantadores populares consideram-se imensamente felizes por terem este “dom de fazer verso improvisado” e so de opiniio que quem domina esta técnica “nfo pode fugir ao destino de trovador” ¢ levar sua arte e sua mensagem a todos os lugares a que puder comparecer. Sentem, no entanto, que muitas camadas da sociedade ndo dao 0 devido valor a seus méritos por puro preconceito. Da mesma forma, varios cantadores tem Sido alvo de individuos inescrupulosos que esto gravando em disco e fitas cassete, seus improvisos e décimas como se deles fora, sem a minima consulta e retomo financeito ao verdadeiro autor. Com a advento dos festivais de Misica Nativista no Rio Grande do Sul, instalouse um crescente interesse cultural em promover o cantor popular regional gaticho, veiculando as miisicas através de discos e de “shows”. Grande parcela de piblico passou a consumir essa diversificada produgao letristica e musical, muito representativa do momento social e politico que vivemos em termos regionais. O trovador espontineo, ao mesmo tempo autor- improvisador e intérprete, é bastante arisco a esse tipo de engrenagem, ndo se deixando geralmente envolver. Por isso, ndo Tecebe 0 mesmo tratamento sua arte um piblico mais numeroso, ficando seu desempenho restrito ao locai dos acontecimentos. Acreditar que os resultados de nossas pesquisas a seu término, com a publicagdo de um livro contendo texto e transcrigdes musicais dos documentos fonogréficos recolhidos, representardo um bom subsidio para compreender melhor o folclore musical sul-rio-grandense. 81 BIBLIOGRAFIA ALVAR, Carlos. Poesia de trovadores, trouvéres y minnesinger Madrid. Alianza. 1981. AMARAL, Amadeu. TradigGes populares. Sao Paulo, Hucitec, 1976 BAJTIN, Mijail. La cultura popular en la Edad Media y en el Renascimento. Barcelona, Barral, 1971 BRAGA, Tefilo. Romanceiro geral Portugués. Lisboa, Vega, 1982. v.1. CASCUDO, Luis da Camara. Vaqueiros ¢ cantadores, Belo Horizonte, Itatiaia, Sao Paulo, Editora da Universidade de Sao Paulo, 1984 —-—. Literatura oral no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro, José Olympio, Brasilia, MEC/INL, 1978. CASTELNAU, Jacques. Les troubadores. Revista Historia (305):84-99, 1972. FUNDAGAO Casa Rui Barbosa. Literatura popular em verso. Rio de Janeiro, MEC. 1973, v.1. LAMAS, Dulce Martins. Cantos de troveiros. In: ——-. Relagdes dos discos gravados no Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Centro de Pesquisas Folcléricas, Escola Nacional de Musica, 1959. p.65-91. LIMA, Rossini Tavares de. Romanceiro Folclérico do Brasil, S8 Paulo, Vitale, 1971 ==. et alii, O folclore do litoral norte de So Paulo. Rio de Janeiro, FUNARTE, Secretaria de Estado de Cultura, Univ. de Taubaté, 1981 LUGONES, Leopoldo. £! payador. Caracas, Ayacucho, 1979 MEYER, Augusto. Cancioneiro Gaiicho. Porto Alegre, Globo, 1959 . Guia do folclore Gaticho. Rio de Janeiro, Presenga, 1975 MOTA, Leonardo. Violeiros do norte. 3.ed. Fortaleza, Imprensa Universitaria do Ceard,1962 PIDAL, Rémon Menendez. Poesia juglaresca y juglares. 2.ed. Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1945. SUBERO, Efrain. La decima popular en Venezuela. Montalban, Caracas, (5), 1975. ROSE MARIE REIS GARCIA Etnomusicdloga, Folclorista, Mestre em Educagdo pela PUC/RS; Prof. Adjunto de Folclore Brasileiro do Departamento de Miisica do Instituto We Artes da UFRGS; atualmente cursando Doutorado em Musicologia na Universidade dle Grenoble, Franca.

Você também pode gostar