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Caemnuo Vil O FATO VALORIZADO: MOMENTOS DECISIVOs ALUZ DA MEMORIA DO SENHOR |. Momentos decisivos: 0 mistério do cristiomno mistério de Cristo A vida humana decorre no tempo, isto é numa sucessio de momentos mensuraveis por objetos que se movem num mo- viento regular sempre repetido (0 sol, a lua, as estelas... 0s, diversos tipos de rel6gio). Quando se considera assim o tempo, adota-se uma perspectiva quantitativa perfeitamence legitima, (© tempo (em grego: chrénos) se sucede em horas, dias, anos, cessencialmente iguais em sua duraga ‘Mas o tempo no & mera sucessio cronolégica, monéto~ na e idéntica, O ser humano conhece ¢ experimenta momentos de especial densidade, qualitativamente mais importantes que ‘outros, porque decisivos para todo o rumo de uma vida. Séo ‘momentos propicios para a realizacio de determinadas taefas. Nio dependem do sujeito; sdo-lhe dados. Ocasides propicias que se Ihe oferecem para o agit. Tais momentos, quando o ser hhumano sabe aproveiticlos, si0 momentos criadores de vida (no sentido pleno da palavra), momentos de afirmacio de vida. ‘Mas justamente como momentos sobre os quais a pessoa no 19 pode dispor, mas aos quais pode ¢ deve responder em sua liber- dade, sao ricos de tensOes e de ameaca. Diz o provérbio popular: “A ocasido faz 0 ladrio”. Se hha o que roubar, nem afacilidade de o fazer impunemente, 0 la- dio nao se manifesta, mas também nao aparece se essa pessoa honesta. Uma pessoa, considerada muito honesta, assume um cargo piblicoe, diante da corrupgao generalizada no aparetho estatal, acaba também roubando, ov, pelo contrario, chega a perder © posto por néo permitr 0 trafco de influéncias. A si- tuagio foi o momento propicio que manifestou a firmeza da de- cisio da pessoa para o bem ou Sua fraqueza. Sem essa ocasido ninguém saberia (nem a prépria pessoa) se € ladrio ou nao. Esses momentos sio designados no Novo Testamento pela palavra grega kairds (plural: kari." Nao € 0 tempo como su- cessio de acontecimentos, mas 0 tempo como momento decisi- +o, inesperado e, no entanto, sempre desejado, que se aproveita ‘ou desperdica e perde para sempre, porque passou e nao volta mais. Corresponde as expresses modernas “dia D”, “hora H”. Kairés & chance, oportunidade impar. A concepsio do tempo qualtatiamentedeisivo esté muito presente na Biblia. Nao todos os dias e momentos so iguais. Um dia pode er diferente derodos os outros por oferecer uma port nidade inca de confronto entre Deus eo homem. E esses momen- tos decsivos sio graga de Deus. Deus, na sua bondade imens, sxatuitemente pode oferecer-nos, através dos acontecimentos ~ da linha monétona e rotinira da sucessio do tempo (chrénos)—mo- ‘mentos popicios para nosso agi, para cirmos em nds, momentos em que ele nos oferece vida, comunhio consigo com os irmios (aids). Sio momentos srios, graves, de gragae juizo, pois ma- nifestam nossa disponibilidade frente ao Senhoe. Sio momentos em que allra uma exigncia de Deus e que propciam a respos- 1 Se fi, Cana, na Crit od eZee woke Zt nd {Gin sot eS. eno cm Com 68 G1, 9923, {HS1S9 eas ht nce eae om Ex Ea) La po rd ehtr Ps AT, 1838 | | | | | | | iL ta do ser humano. Este pode aproveiti-los ou desperdigé-los.Séo oferecimentos de graca por pare de Deus. A ago do Espsito dé aos acontecimentos a condi de ards. Nees se fundamenta a historia da salvagéo. E 0 tempo favorsvel em que itrompe nova possibilidade de sec vivénia de ressureigio. 'Na vida humana hé muitas dessas horas decisvas, esses momentos que Deus nas oferece para dar rumo certo vida ‘Alguns desses momentos esto ligados & prépra cronologia da vida humana, 20 decoreer sucessivo dos anos e das fases da vida. O nascimento, a passagem para a idade adulea, a velhice so exemplos de “horas H”, de momentos decisivos na vida de cada um. De certa forma, todas as culturas souberam seco- nhecé-lo e rompem as ensées de tais momentos, celebrando-os com gestos simblicos. Mas ha infindos outros kairé, confor sme as circunstancase stuagSes, momentos de diferente inten- sidade, mas que nem por isso deixam de ser decisivos. Quando Deus itrompe na vida de uma pessoa em tai kai ‘i, vem para ctiar 0 novo, para dar vida e, por isso mesmo, chama a conversio, O kairds epocal na América Latina hoje € 0 encontro com 0 pobre, em cujo rosto se reconhece 0 £0sto softedor de Cristo. Kairs & essa experiéncia fundante da pri- xis histrica no Senhor que empurra a criagio de uma nova sociedade, em que se antecipe faga presente o Reino de Deus escatol6gico. Despertada e movida pela presenga da morte & pela esperanca de vida, a praxis histrica no Senhor est inser ‘da numa dialética de vida e morte. O surgimento de vida, num ‘mundo de morte, € sempre a grande novidade, a grande surpre- sa. Os hari podem, pois, ser chamados de situagdo-novidade, ‘momentos de afirmagdo de vida. Sdo também momentos de tensio. O ser humano € um ser de habitos. Acostuma-se a agit de certa maneirae & sempre facil seguie a velha tlha. Quando Deus ierompe na vida, traz novas perspectivas,descortina no- ‘0s horizontes que entram em tensio com os horizontes costu- ieiros. Acttar a oferta de Deus nio é simples, pois Deus € um Deus que desinstala, criando o novo e chamando para o futuro desconhecido. Basta olhar, num ripido sobrevoo, as tapas bi- sicas da historia da salvagio no Antigo e Novo Testamento. wt - - ‘Deus se manifesta na vida de Abraao, chamando-o & aven- tura de deixar sua cerra em busca do desconhecido. Sob a pro- tego de Deus, Abraio peregrina numa terra que no € sua, Sua seguranga nao € o que sempre foi, o conhecido, mas esse Deus ue desafa e desinstala. ‘Uma nova experiacia histrica das tribos némades des- cendentes de Abrado constitu’ um passo fundamental na re velagio de Deus e um kainds para 0 povo: 0 Deus de Abraio, de Isaac e de Jac liberta seu povo do Egito. Parece nlo haver desinstalagéo, quando um povo oprimido & liberto da opres- sd0, Mas a historia subsequente manifestaré a desinstalacio aque significow a iberdade: no desert, 0 povo tem saudades das cebolas do Egito e a mesma dificuldade de Moisés em conven- cer 0 povo a partir mostra quio acomodados estavam, mesmo que oprimidos. E melhor uma opressio que se conhece, do que tuma liberdade que nio sabe a que e aonde leva. Deus, no en- tanto, revela-se exigindo desinstalagio do povo: teri de i para co deserto, para a inseguranga,e a experienciara esse Deus, cujo nome define sua acio: Javé. Nome que significa: “Estarei pre sent, intervindo, como aquele que ha de estar sempre presente, intervindo”. Expressio de experiéncia histérica que promete prolongarse. Novamente a seguranga do povo deverd sera pre- senga atuante de Javé, e no a seguranga do homem em seu passado, em seus costumes. A revelagio de Deus, como o tnico, 0 Senhor da histéria « de todos of povos, fora do qual nio ha deus (monoteismo absoluo), se dé também por meio de uma experignca historica de desinstalagio. Os israeltas no exilio babildnico ja se hax viam acomodado as novascircunstincias: prosperam,tém seus negécios, estio seguros, instalados. Déutero-saias é enviado por Deus como profeta de libertagdo, Proclamaré que Javé € 0 Sinico Deus, capaz de servise de um pagio, Ciro, para libertar Israel Javé € Deus de todos 0s povos € para todos 0s povos, ¢ Israel € sua testemunha, 0 povo que testemunharé que Javé intervém na histéria. Ao assumir a histria a partir de Javé, 20 abandonar a seguranca relativa da Babildnia para se lancar na m aventura do retorno, atravessar deserto e empreender a re- construgio de uma cidade em ruinas ¢ o cultivo de terras aban- donadas, Israel se toma testemunba de Javé. A historia no é smudada “automaticamente”, mas entregue a0 povo por Javé, © Deus que desinstala, oferecendo novos kairéi. Deus & reconhe- ido Senhor da Hist6ria por aqueles que aproveitam o kairds ese deixam desinstalar. Nao € a confissio oral em Javé que ‘0 manifesta, mas aceitar o desafio de arremessar-se 20 novo, inaudito, ousar a vida que Deus esté querendo criar A experiéncia do Deus revelado é uma experiéncia histor ca, ndo 86 no sentido de que se dé na historia, considerada esta como 0 palco em que Deus aparece, mas no sentido de que se i por meio da historia, como criagao de historia por parte dos, ue o experienciam. E por isso mesmo significa desinstalacio, risco, cria tenses. A f€ em Deus, a busca de sua vontade no ‘os protege dos acontecimentos histéricos, endo que nos reme- te a eles. E também 0 que se mostra na revelacio plena de Deus em Jesus Cristo, ‘Também Cristo revela o Pai, 0 Deus do Reino, como 0 Deus que desinstala: aceité-lo € tomar © partido do fraco, do coprimido. A proclamagio do Reino de Deus por Jesus € por exceléncia o kairds (ef. Mc 1,15). Ele é traduzido em vida por Jesus até sua morte de cruz. A vida de Jesus, em fdelidade e obedincia a0 Pai, tem seus momentos crucias, entre os quais se destaca ~ resumindo-a toda ~ 0 mistério pascal de sua morte « ressurrcigao (cf. Mt 26,18) que Joio designa como “a hora” (ct. Jo 2,45 7,30; 13,1). S40 os momentos decisivos que o Pai apresenta a Jesus, ¢ nos quais se mostram sua disponibilidade,

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