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CAPITULO 14 A epfstola a Filémon Frangois Vouga O corpo epistolar da epistola a Filémon se apresenta, quanto a for- ma, as dimensdes e ao contetido, como uma tipica carta de recomen- dagao. Em Epistola 1,9 Horacio oferece uma parédia espiritual desse género literario e, ao mesmo tempo, revela seus elementos constitu- tivos: uma pessoa, que goza de certo prestigio, faz valer as qualidades dela que lhe permitem intervir junto a uma autoridade, para interceder por um protegido do qual faz 0 elogio ou toma a defesa. Em nossa epistola, Paulo se dirige a Filémon, que lhe deve sua converséo ao cris- tianismo (Fm 19); escreve-Ihe a respeito de seu escravo Onésimo, que, em busca de ajuda e apoio, se refiugiou junto ao apdstolo (Fm 10). 1. APRESENTAGAO Se 0 corpo da carta é 0 classico de uma carta de recomendagao, 0 formuldrio epistolar que o envolve e o contexto de comunicagao que estabelece sao os das grandes epistolas apostdlicas. Os signatarios da carta sio Paulo e Timéteo (Fm I, cf 2 Cor 1,1; FL LI). Seria de esperar que ela fosse dirigida a Filémon; entretanto, © circulo de seus destinatarios compreende Apia, Arquipo e toda a ler ne em casa de Filémon (Fm I-2). As saudagoes, 1° inicio e no fim da carta, sao substituidas pelas béngaos tipicas das cartas do apéstolo (w. 3 e 25); todo um grupo de colaboradores se associa @ Sua ini- eja que se reti- 329 wiyreeeee CI | As epistolas de Paulo 330 ciativa: Epafras, seu companheiro de cativeiro, e Marcos + Atistarce Dermas e Lucas, seus colaboradores. Estrutura e conteudo A carta comeca por uma impressionante agio de BAGS, cx, fungdo argumentativa aparece claramente a Partir do pedidg de Filémon 8-10: tanto a lembranga do amor e da fé de Filémon, de que 2 apéstolo no cessa de ouvir falar e pelos quais da eragasa Dex, 5), como a exortagao apostélica a dar a conhecer todo o bern que os crentes podem realizar em Jesus Cristo (v. 6) constituem a base sobre a qual Paulo apresenta, a seguir, seus pedidos. Sao trés os pedidos do apdstolo. Em primeiro lugar, Filémon ¢ solicitado a receber Onésimo como um itmao bem-amado Isso sig nifica que a relagdo mestre-escravo deve ser transformada em uma relacao simétrica e fraterna (v. 16a-17). Em segundo lugar, Paulo lhe roga que o receba como um irmao bem-amado “segundo a carne e segundo 0 Senhor”. A fraternidade no Senhor determina a qualida- de da relacao fraterna; a fraternidade na carne nao pode, provavel- mente, significar outra coisa que a ordem social: Filémon libertara seu escravo. Em terceiro lugar, Filémon faré, sem duivida, ainda mais (v. 2b) e pensaré em enviar de volta seu irmao Onésimo para junto do apéstolo (v. 13-14). Plano da epistola a Filémon 1-3 Enderego e saudacao 47 Acao de gragas: 0 amor ea fé de Filémon Os pedidos do apéstolo (8-21) 3.9 A autoridade do apéstolo 10-12 O beneficidrio do pedido: Onésimo 13-14 A sugestéo do apéstolo: que Filémon envie de volta Onésimo para junto dele 15-17 © pedido do apéstolo: que Filémon receba Oné SIMO Como irmaAo. Paulo fica como fiador de Onésimo Acconfianga do apéstolo na decisdo de Fil&mon 18-19 20-21 wryreneund C Aeepistola a Filémon go epistolar (22-25) cont Antincio de uma visita 33.24 Saudacées 2, M10 £ CIRCUNSTANCIAS HISTORICAS DE PRODUGAO Aocasiao da carta ol E dificil reconstituir a sequéncia dos acontecimentos que prece- deram e ocasionaram a carta sem sobrecarregar de sentido as alu- pes que ela contém. Os personagens em cena Os fatos evidentes so os seguintes: Filémon, que recebeu de Paulo o Evangelho e se converteu ao cristianismo (Fm 19), acolhe desde ent&io uma Igreja em sua casa (v. 2). De seu lado, o apéstolo se encontra momentaneamente na prisdo (wv. I, 10 e 13) e af recebeua visita de Onésimo, 0 escravo de Filémon (w. Il e 15). Ora, Onésimo, porsua vez, durante sua estada junto de Paulo, converteu-se ao Evan- gelho (v. 10). Paulo, que desejava conservar Onésimo junto de si (v. 13), decidiu, entretanto, nada fazer sem o consentimento de Filémon (v. 14). Vai, ento, enviar Onésimo de volta a Filémon, munido da epistola a Filémon como carta de recomendagao. As razdes pelas quais Onésimo se encontra junto de Paulo nao Sio claras. Tem-se frequentemente interpretado Filémon 18 como indicio de que Onésimo teria cometido um furto em casa de Filémon, ou que fugiu, ou que, combinando os dois, fugit com o dinheiro. Ao Propor a Filémon que debite em sua conta as faltas ou as dividas 4 Onésimo, o apdstolo se comprometeria a reparar os prejuizos tausados ao senhor pelo escravo fugido. Mas pode-se muito bem Pensar, ainda, em uma situagao muito mais banal. Era, com efeito, Corrente legal, no primeiro século de nossa er ‘emendo a célera de seu amo, buscasse protegdo em casa’ de um Tigo deste, Nesse caso, 0 escravo nao era considerado fugitive Sde-se imaginar, portanto, que Onésimo mu ‘a, que um escravo, tito simplesmente bu mwrrygreus 331 ound Ci As epiatols be Pranks cou refiigio junto a0 apdstolo apos uma discussie com F émon, , que Paulo prometea este dltimo pagar uma compensagia pen po que Onésimo passou junto de si! Oareumento A estraté tr \ argumentativa da epistola consiste ern Opor, un As outr 's hierarquias que presidem as rela Ges entre Filérnon Paulo e Onésimo, Segundo a ordem juridica, Onésimo nao 56 é eseravo de Filémen mas também seu devedor pelo tempo passado junto de Paulo. Quan- toa Paulo, ele é, em principio, o igual de Filémon, mas € co-respon. sdvel pela auséncia de Onésimo (Fm 18). Segundo a ordem eclesidstica, Paulo gerou Onésimo na prisio (Fm 10); mas Filémon the deve, também, a fé (v. 9b), de sorte que © apdstolo tem autoridade sobre o senhor (v. 8) assim como sobre o escravo, que sao seus filhos (v. 9). Segundo a ordem cristolégica, enfim, Paulo e Filamon (Fm I7e 20) sao irm&os, tanto quanto Paulo e Onésimo, bem como Filémon e Onésimo (v. 16). A argumentagao da epistola funciona em diversos niveis. Por um lado, dé a compreender a Filémon que Paulo esta Pronto, se necessa- rio, a pagar-Ihe o que ele e Onésimo Ihe devem (Fm 18-19). Por outro lado, empreende uma dupla reestruturagao de valores. De um lado, Paulo sugere a Filémon que, em razao de sua autoridade de apéstolo, poderia Ihe ordenar que deixasse Onésimo a seu servigo (vw. 8 e I3- 14); assim ele opde a hierarquia eclesidstica A ordem juridica, e em nome da primeira suspende a segunda. De outro lado, Paulo se apre Senta como irmao de Filémon e, como tal, renuncia A sua autoridade apostdlica (vv. 8-9) para lhe pedir que receba Onésimo, convertido ne ®Se entremeio, como irmao € nao mais como escravo (w.. 16-17) “ssim ele ope a hierarquia eclesidstica uma outra hierarquia, ue & i LAMPE, Der Brief an Philemon, in Nikolaus WALTER, Eekatt REINMU TH, Peter LAMPE, Die Brief an die Philipper, Thessalonicher wt an Philemon, Gott igen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1998, wr aggyrenr) Ci Aepistola a Filémon adament2r segundo a qual tanto Paulo e Filémon « 59 05 servidores de Cristo; segundo essa hierarquia, 4 . oe ; 3° wel entre Paulo, Filgmon e Onésimo é a de irma 0 oMo Onésimo a Gnica relagdo ios? 2.2. 0s destinatdrios Curiosamente, os nomes de Filémon e Onésimo constituem, como os de Evédia e Sintique, em Filipenses 4,2, e eventualmente o de Sizigo (se € que € um nome préprio) em Filipenses 4,3, um pro- grama em si mesmos: Filémon significa “amavel” e Onésimo, “til”, De Filémon, nao se sabe nada além das informagées fornecidas pela epistola. Em compensagio, tanto os nomes de Onésimo (Cl 4,9) e Arquipo (Fm 2 // Cl 4,17) como os de Epafras (Fm 23 // Cl 1,7; 4,12), Lucas e Demas (Fm 24 // Cl 4,15) se encontram de novo naepistola aos Colossenses. Segundo as informagées dadas por Co- lossenses 4,17, Arquipo faz, novamente, parte dos destinatdrios de Colossenses, ao passo que, conforme Colossenses 4,9, Onésimo ¢ também de Colossos e se reuniu ao apéstolo e seus colaboradores no lugar de seu cativeire estes so, em grande parte, os mesmos que 0 cercavam por ocasiao da redacao de Filémon. Conforme o enredo proposto por Colossenses, Filémon acolhe em sua casa a Igreja ou uma comunidade da Igreja de Colossos. Ten- do recebido bem a carta do apéstolo trazida por Onésimo, enviou este de volta a Paulo, como lhe fora sugerido. 2.3. Lugar e data da composigao Em razao das repetidas mengées do cativeiro do apéstolo (Fm 19.13.22), a carta pode ter sido escrita, como a epistola aos Fili- Penses, em Efeso, ou na Cesareia, ou em Roma. A tradigao ma- Muscrita pleiteia Roma (subscriptio dos manuscritos P ¢ 048), mas a Proximidade geogrdfica necessdria para que Onésimo pudesse, sem Aficuldade, ir buscar refiigio junto a Paulo torna Efeso mais plausi- ~ Norman R. PETERSEN, Rediscovering eu of Paul's, Narrative World, Philadelphia, Fortress Press, Paul. Philemon and the Sociology 1985. 333 weigineund CI Asepistolas de Paulo vel. Filémon provavelmente data, portanto, da estada do APSstolo, na Asia, entre 51/52 e 54/55. 3. INTENGAO TEOLOGICA 3.1. Casa crista e escravatura O pedido da carta, que se refere ao reconhecimento fraterno de Onésimo por Filémon e a libertagao do escravo, é coerente com 5 principio paulino de Galatas 3,28, segundo o qual nao ha mais, em Cristo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, ners homem nem mulher. A comunidade que vive sob 0 senhorio do Cru. cificado distingue-se do mundo que o cerca pelo fato de que, nela, as diferencas so constatadas e nomeadas, mas cada um é reconhecido e.amado como uma pessoa, independentemente de sua condigio ou de suas qualidades. O reconhecimento e 0 amor muituos nao sao, entretanto, compativeis com as relagdes senhor—escravo; o batismo de Onésimo acarreta, portanto, sua libertagao por Filémon. A argumentagao que conduz a alforria de Onésimo € a idéntica & que convida os escravos cristaos a viver a liberdade cristé em sua condigao de escravos (ICor 7,17-24). E necessario, com efeito, distin- guir dois problemas éticos fundamentalmente diferentes: nao se trata, em | Corintios 7,17-24, de relagdes entre batizados no interior da co- munidade e de uma casa crista, como é 0 caso em Galatas 3,26-29 e Filémon; | Corintios 7 trata, antes, do comportamento que os escra- Vos cristéos hao de adotar no mundo pagao. Confessando Jesus Cristo como Senhor, sao todos escravos de Cristo: é a pertenga a Cristo que, No interior da comunidade, estabelece, entre os membros, relagdes de irmaos e irmas, e que no exterior da comunidade permite viver, na liberdade, as obrigagées da vida cotidiana. A fé leva os cristdos a inven tar novos comportamentos em sua existéncia e constin,s no espago de liberdade Onstituido pela Igreja; ela nao lhes permite trar nsformar a sociedad [ discussdo ética im ~ Paradoxo formal se manifesta no cor a »to da a ntraste entre o objeto Pistola, que requer uma decis, a0 pessoal de Filémon, ¢ o context 334 wiyiencuue C ° comunicacdo que oe estabelece. Os autores da carta sao Paulo eTimdteo, Mas também, indiretamente, Epafras, Marcos, Aristarco, pemas & Lucas. O circulo de destinatarios engloba, a volta de Fi- jamon, Apia, Arquipo toda a Igreja que se retine em casa dele. Esse duplo alargamento do circulo de autores e de leitores nio é, em simesm0, surpreendente: é, ao contrdrio, caracteristico do género dacarta apostdlica tal como inventada por Paulo. Aqui, entretanto, causa espanto, em virtude do objeto particular, e aparentemente li- mitado, do pedido do apéstolo. Esse pedido necessitava ser oficiali- zado por uma carta apostdlica? Ora, 0 género literdrio da carta apostdlica institui a comunidade em lugar de discussao e de decisao ética de seus membros. A relagao de Filémon com Onésimo nao é um assunto privado; implica um re- conhecimento que define a identidade da Igreja cristé como corpo, ou como lugar do senhorio de Cristo. Depois, a oficializagio do pe- dido — assim como 0 nome programatico dos principais protagonis- tas — mostra que seu objeto nao se restringe a sorte particular de Onésimo, mas concerne a atitude tomada em relagao a escravidaio no interior das comunidades cristas. Esta ultima observagao obri- ga, enfim, a perguntar se convém considerar Filémon um bilhete do apdstolo ou se a redaciio da carta deve ser compreendida como uma forma de fixar a posigao geral de Paulo a respeito da escravidao em uma carta apostdlica, forma tipica da expressao de sua autoridade. 4. Novas PERSPECTIVAS jas opostas umas as outras; adquiridos. la realidade material dos a epistola. Esforga-se Asnovas perspectivas sao de tendénci Poem em questo consensos que pareciam Uma primeira tendéncia se interessa pel aontecimentos que servem de ocasido para ‘ Por precisar as condigdes histdricas e juridicas da argumentagao de Paulo, eas implicagdes sociais, simbélicas e teolSgicas de seu pedido aFilemon, Uma segunda tendéncia se concent ta pistola a Filémon ra na carta considerada em mn iri & encarada, “8 dimenséio puramente literdria. A €' Dn A epistola a Filémon 335 | ‘As epistolas de Paulo 336 entao, como a formalizacao programatica, a Partir de um caso real, ou talvez mesmo ficticio, da posigao Paulina sobre o Problema da escravidao: as relagdes fraternas que existem, em Cristo, NO interior da comunidade crista s4o incompativeis com relacées entre senhor e escravo. 5. BiBLiOGRAFIA Comentarios Jean-Francois COLLANGE. L’ épitre de saint Paul & Philémon. Geneve, Labor et Fides, 1987 (CNT 10c). Peter LAMPE, Der Brief an Philemon. In: WALTER, Nikolaus, REIN. MUTH, Eckart, LAMPE, Peter. Die Brief an die Philipper, Thessa- lonicher und an Philemon. Géttingen, Vandenhoeck und Ruprecht 1998, p. 205-232 (NTD 8/2) LEHMANN, Richard. Epitre Philémon. Le christianisme primitif et |’ es- clavage. Geneve, Labor et Fides, 1978 (Commentaires bibliques). STUHLMACHER, Peter. Der Brief an Philemon. Zurich/Neukirchen, Benziger/Neukirchener Verlag, 71981 (EKK 18) Leitura prioritdria LEGASSE, Simon. L’épitre aux Philippiens. L’épitre & Philémon. Cahiers Evangile, Paris, Cerf, 33 (1980) 51-62 PREISS, Théo, Vie en Christ et éthique sociale dans l'épitre & Philémon. In: Aux sources de la tradition chrétienne (Mélanges M. Goguel). Neu- chatel, Delachaux et Niestlé, 1950, p, 171-179; ou La vie en Christ. Neuchatel, Delachaux et Niestlé, 1951, p. 65-73 (Bibliothéque théo- logique) Estudos Particulares BARCLAY, John M.G. Paul, PI mma of Christiat f, -G. Paul, Philemon id the Dil none and the Dile: f Christian Sla 1991) 161- PETERSEN, Norman R, Redis ul of Pauls Neva covering Paul. Philemon and the Sociology ‘Ye World. Philadelphia, Fortress Prose, 1985,

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