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Fim do teto de gastos:

não se, mas como


Limite sinalizou entendimento contra o crescimento ininterrupto dos gastos a
partir dos anos 1990
29.ago.2020 às 23h15

A emenda constitucional nº 95 de dezembro de 2016 instituiu o teto de gastos públicos,


que congelou em termos reais os gastos do governo federal. O teto sinalizou um bem-
vindo entendimento quanto à necessidade de se lidar com o crescimento ininterrupto
dos gastos a partir dos anos 1990.

Foi parte de uma guinada na gestão macroeconômica do país em resposta ao colapso


fiscal que ocorreu a partir de 2014. A partir da guinada, as taxas de juros entraram em
trajetória de queda, chegando aos inéditos níveis que prevalecem hoje.

Parecia claro desde o primeiro momento que a manutenção do teto por mais do que
alguns anos seria difícil sem que se encarasse de frente a absoluta rigidez dos gastos
obrigatórios. Um exemplo pode ajudar aqui. Sob as regras da EC 95, se o PIB crescesse
a 2,5% por dez anos, o gasto federal cairia de 19% para 15% do PIB. Se todos os gastos
públicos ficassem congelados, em termos reais, teríamos uma queda de 35% para 27%.
Não faz muito sentido.

Havia esperança de que reformas mais profundas ocorreriam, o que permitiria em


algum momento uma flexibilização do teto, sem grandes estresses. Mas não foi o caso.
Algo se fez, como a reforma da Previdência aprovada no ano passado, mas não foi o
suficiente: o espaço para cortes nos gastos correntes discricionários praticamente se
esgotou e o investimento público está próximo de zero, o que é política e
economicamente insustentável.

Não surpreende, portanto, que um exame mais detalhado dos fatos sugira que não se
exagere o impacto causal do teto sobre as taxas de juros: a Selic (a taxa de curto prazo
fixada pelo BC) está em 2% e a taxa dos títulos do Tesouro de dez anos em torno de
7,5%.

Ambas caíram bastante desde 2016. Parece razoável atribuir parte relevante da queda
na Selic à enorme recessão que nos assola há sete anos. As taxas de longo prazo
embutidas na curva de juros estão em torno de 9%.

Ou seja, o prêmio de risco segue elevado, espelhando juros reais acima de 4% e ainda
algum medo de inflação. E isso num período em que as taxas de juros equivalentes para
as economias avançadas caíram em cerca de 1,5 p.p..

Conclusão: o futuro macroeconômico do país ainda está longe de ser confiável. Quem
vai investir em um país com indicadores tão incertos? O que fazer então com o teto?

Há quem acredite que um caminho seria abandonar o teto e seguir gastando e


acumulando dívida (presume-se que por mais algum tempo). Alguns cogitam prorrogar
o orçamento de guerra. Outros entendem que, no limite, seria possível reduzir a taxa de
juros de curto prazo a zero (se a inflação permitir) e encurtar ainda mais o perfil de
vencimento da dívida (na prática, "emitir moeda").
Acreditam também que haveria espaço para abrir novas frentes de investimento
público e privado de boa qualidade. Essa opção conta com o atraente apelo de
dispensar a definição de prioridades, bem como parece não impor custos.

Seria bom, mas não para de pé. Falta combinar com os russos. Não há confiança na
capacidade de o governo executar bons investimentos. Tampouco há confiança interna
e externa para financiar tal caminho. E não sem razão. Nas atuais condições, nem se
fala. Seria mais crise na certa. Já vimos esse filme. O Brasil não é uma economia
avançada. Os reais problemas seguiriam intocados.

Restam então duas alternativas: defender a ferro e fogo o teto ou buscar uma saída
mais equilibrada. Não creio que a defesa pura e simples do teto seja uma solução viável
por muito mais tempo, pelas razões que expus acima. Melhor planejar o quanto antes
uma saída organizada e crível. A operação é muito delicada. Flexibilizar o teto sem uma
nova âncora traria consequências dramáticas.

O quadro geral é bastante complexo. O país apresenta déficits primários há sete anos. O
Ministério da Economia sinaliza compromisso com o teto. O presidente da República,
pensando na reeleição, aposta suas fichas políticas no Renda Brasil e se opõe a cortes
em outros benefícios e aumentos de impostos.
A PEC Emergencial, que ganharia algum tempo para o teto, não parece contar com o
apoio do Executivo, pela mesma razão. Claramente a conta não fecha. O que fazer?

Tenho defendido uma estratégia de ajuste estrutural que começou com as reformas do
BNDES e da Previdência (3 p.p. do PIB) e que ao longo de dez anos liberaria recursos
crescentes, que poderiam chegar a mais 8 p.p. do PIB no décimo ano.

Perdoem-me a repetição, mas não vejo saída para o Brasil que não passe por alguma
redução simultânea do nível e das distorções de uma parcela relevante do gasto público.

A economia viria da eliminação de subsídios e brechas tributárias regressivas, de


ajustes na folha de pagamentos do setor público e de mais ajustes na Previdência. Boa
parte dos recursos ficaria livre para gastos e investimentos em áreas de alto retorno
social como saúde, assistência social, pesquisa básica, educação e infraestrutura,
sempre que possível alavancados por capital privado. Ficaria livre também para reduzir
a carga tributária.

Seria fundamental que a economia com o funcionalismo fosse obtida por meio de uma
reforma de recursos humanos do Estado, que promovesse um salto na qualidade nos
serviços públicos, seu principal objetivo e importante alavanca para o desenvolvimento.

O lobby do funcionalismo se opõe, mas se espera que o entendimento de que há muito


privilégio e desperdício a eliminar acabará prevalecendo. O Brasil é um ponto fora da
curva global no que tange ao peso do funcionalismo no gasto público. É prerrogativa do
Executivo federal encaminhar ao Congresso uma proposta, mas aqui também a
reeleição parece atrapalhar.

Parte do resultado da estratégia acima se destinaria à obtenção de um superávit


primário capaz de viabilizar uma queda gradual do endividamento público, hoje
elevado pelas barbeiragens, emergências e recessões dos últimos sete anos. O ajuste do
primário deveria ser gradual, atingindo cerca de 3 p.p. do PIB em três anos.
Notem que o espaço de manobra seria limitado. No curto prazo haveria um (pequeno)
aumento real no gasto público e um aumento da carga tributária. Com o correr dos
anos, na medida em que as reformas mostrassem resultado, seria possível aumentar os
gastos em termos reais, mas reduzi-los como proporção do PIB. O mesmo vale para a
carga. Seria uma decisão política.

Como o único caminho que enxergo é gradual e a nossa credibilidade, baixa, me parece
de todo essencial que se aprove o quanto antes uma versão da PEC Emergencial que
ofereça ao governo as ferramentas necessárias para se desenhar e executar um
orçamento plurianual crível.

Esse orçamento deveria indicar com clareza as metas mencionadas acima para o gasto
público e o superávit primário. Só assim seria possível uma flexibilização segura do
teto.

A bem-vinda discussão em curso sobre uma renda básica universal, que ampliaria e
consolidaria os programas de assistência social existentes, teria que obrigatoriamente
acontecer no bojo desse orçamento plurianual. Um igualmente desejável reforço do
SUS teria que fazer parte do processo, disputando espaço com outras prioridades. A
discussão de temas isolados é má prática econômica e política.

O tempo é curto e o espaço de manobra, ainda menor. Mas ainda temos a oportunidade
de reduzir privilégios, buscar a saúde fiscal do Estado e perseguir um crescimento
inclusivo. Isso requer metas claras e factíveis e um plano integrado como esboçado
aqui. Requer também liderança política com visão de longo prazo.

Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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