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18 DE ABRIL DE 2011 EPISTEMOLOGIA

O que é a crença
justificada?
Alvin I. Goldman
Tradução de Luiz Helvécio Marques, Sérgio R. N. Miranda e Desidério Murcho
O objetivo deste artigo é esboçar uma teoria da crença justificada. O que
tenho em mente é uma teoria explicativa, uma teoria que explique de
modo geral por que se considera que certas crenças são justificadas e
outras injustificadas. Diferentemente de algumas das abordagens
tradicionais, não tento prescrever padrões para a justificação que diferem
ou aperfeiçoam os nossos padrões comuns. Tento explicar apenas os
padrões comuns que, creio, são bem diferentes dos padrões de muitas
explicações clássicas, e.g., “cartesianas”.
Muitos epistemólogos têm-se interessado pela justificação por causa da
sua presumida relação íntima com o conhecimento. Pretendo preservar
esta relação na concepção de crença justificada que aqui apresento. Em
artigos anteriores neguei que a justificação fosse necessária para o
conhecimento, embora neles eu tivesse em mente as explicações
“cartesianas” da justificação.1 Na explicação da crença justificada que é
aqui sugerida, a justificação é necessária para o conhecimento, estando
intimamente relacionada com este.
O termo “justificado”, presumo, é usado para atribuir valor, é um termo
apreciativo. Em qualquer definição correta ou em qualquer sinônimo seu
apareceriam termos avaliativos. Presumo que tais definições ou
sinônimos poderiam ser oferecidos, mas não estou interessado neles.
Quero um conjunto de condições substanciais que especifiquem quando
uma crença é justificada. Compare-se com o termo moral “correto”. Este
poderia ser definido por meio de outros termos ou expressões éticas, uma
tarefa apropriada para a metaética. Em contraste, a tarefa de uma ética
normativa é estabelecer condições substanciais para a correção das ações.
A ética normativa tenta especificar as condições não éticas que
determinam quando uma ação é correta. Um exemplo bem conhecido é
o utilitarismo dos atos, que afirma que uma ação é correta se, e somente
se, produz ou produziria pelo menos o mesmo saldo de felicidade que
produziria qualquer alternativa aberta ao agente. Estas condições
necessárias e suficientes claramente não envolvem noções éticas.
Analogamente, quero uma teoria da crença justificada que especifique
em termos não epistêmicos quando uma crença é justificada. Este não é
o único tipo de teoria do que é estar justificado que se poderia procurar,
mas é um tipo importante de teoria e o tipo que aqui buscamos.
Para evitar termos epistêmicos na nossa teoria, temos de saber que
termos são epistêmicos. É óbvio que não se pode oferecer uma lista
exaustiva, mas eis alguns exemplos: “justificado”, “fundamentado”, “tem
(bons) fundamentos”, “tem razão (para acreditar)”, “sabe que”, “vê que”,
“apreende que”, “é provável” (num sentido epistêmico ou indutivo),
“mostra que”, “estabelece que”, e “determina que”. Por contraste, eis
alguns exemplos de expressões não epistêmicas: “acredita que”, “é
verdade”, “causa”, “é necessário que”, “implica”, “é dedutível de”, “é
provável” (no sentido de freqüência ou no sentido de propensão). Em
geral, expressões (puramente) doxásticas, metafísicas, modais,
semânticas, ou sintáticas não são epistêmicas.
Além da exigência de que seja formulada em linguagem não
epistêmica, há outra exigência que desejaria impor à teoria da crença
justificada. Visto que procuro uma teoria explicativa, i.e., uma teoria que
clarifique a fonte subjacente do estatuto de estar justificado, não basta
que uma teoria estipule condições necessárias e suficientes. As suas
condições também têm de ser apropriadamente profundas ou
reveladoras. Suponha-se, por exemplo, que se oferece a seguinte
condição suficiente para a crença justificada: “Se S percepciona o
vermelho no tempo t e S crê que está percepcionando o vermelho, então
a crença de S no tempo t de que ele está percepcionando o vermelho está
justificada”. Este não é o tipo de princípio que procuro; pois, ainda que
seja correto, não explica por que uma pessoa que percepciona o
vermelho, e crê percepcionar o vermelho, crê nisso justificadamente.
Nem todo o estado é tal que, se uma pessoa nele se encontra e crê nele
se encontrar, a sua crença estará justificada. Qual é a marca distintiva do
estado de percepcionar o vermelho, ou dos estados “fenomênicos” em
geral? Uma teoria da crença justificada do tipo que procuro tem de
responder a esta pergunta, e por isso tem de ser formulada num nível
apropriadamente profundo, geral, ou abstrato.
Neste ponto, é apropriado dizer algo introdutório sobre o
meu explicandum. Presume-se freqüentemente que sempre que uma
pessoa tem uma crença justificada, ela sabe que a sua crença é justificada
e sabe qual é a justificação. Além disso, presume-se que ela pode
apresentar ou explicar qual é a sua justificação. Nessa perspectiva, uma
justificação é um argumento, defesa, ou conjunto de razões que se pode
oferecer para apoiar uma crença. Assim, estuda-se a natureza da crença
justificada considerando-se o que uma pessoa diria se lhe fosse pedido
que defendesse ou justificasse a sua crença. Aqui não aceito este tipo de
pressuposto. Deixo em aberto se, quando uma crença está justificada,
quem crê sabe que é justificada. Deixo também em aberto se, quando
uma crença está justificada, o crente pode apresentar ou oferecer uma
justificação para ela. Nem mesmo presumo que quando uma crença está
justificada há algo que o crente “tem” e a que se pode chamar
“justificação”. Presumo que uma crença justificada recebe o seu estatuto
de estar justificada de alguns processos ou propriedades que a tornam
justificada. Em suma, têm de existir alguns processos ou propriedades
que confiram justificação. Mas isso não implica que tem de haver um
argumento, ou razão, ou qualquer coisa assim, que quem crê “tem”
quando acredita em algo.

I
Uma teoria da crença justificada será um conjunto de princípios que
especifiquem as condições de verdade para o esquema <A crença
de S em p no momento t está justificada>, i.e., condições para a
satisfação desse esquema em todos os casos possíveis. Será conveniente
formular as teorias candidatas num formato recursivo ou indutivo, que
incluiria a) uma ou mais cláusulas de base, b) um conjunto de cláusulas
de recursão (possivelmente nulo), e c) uma cláusula de oclusão. Neste
formato, é admissível que o predicado “é uma crença justificada” apareça
em cláusulas de recursão. Mas nem este nem qualquer outro predicado
epistêmico pode aparecer em (na antecedente de) qualquer cláusula de
base.2
Antes de me voltar para a minha teoria, quero passar em revista
algumas outras abordagens à crença justificada. A identificação de
problemas associados às outras tentativas fornecerá alguma motivação
para a teoria que irei oferecer. Obviamente, não posso examiná-las todas,
nem sequer muitas das tentativas alternativas. Mas algumas amostras
serão esclarecedoras.
Concentremo-nos na tentativa de formular um ou mais princípios
adequados da cláusula de base.3 Eis um candidato clássico:
1) Se S crê que p no momento t, e p é indubitável para S (em t), então a crença
de S em p em t está justificada.
Para avaliar este princípio precisamos de saber o que quer dizer
“indubitável”. Pode ser entendido pelo menos de duas maneiras.
Primeiro, “p é indubitável para S” poderá significar “S não tem
qualquer fundamento para duvidar de p”. Contudo, dado que
“fundamento” é um termo epistêmico, o princípio 1 seria inadmissível
nesta leitura, pois os termos epistêmicos não podem aparecer
legitimamente na antecedente de uma cláusula de base. Uma segunda
interpretação evitaria esta dificuldade. Poder-se-ia interpretar “p é
indubitável para S” psicologicamente, i.e., como querendo dizer “S é
psicologicamente incapaz de duvidar de p.” Isto tornaria o princípio 1
admissível, mas seria correto? Certamente que não. Um fanático religioso
pode ser psicologicamente incapaz de duvidar dos princípios da sua fé,
mas isso não justifica a sua crença neles. De modo semelhante, durante
o caso de Watergate, uma pessoa poderia estar tão cega com a aura da
presidência que, mesmo depois de os mais fortes indícios contra Nixon
terem vindo à luz, seria incapaz de duvidar da veracidade de Nixon. Não
se segue que a sua crença na veracidade de Nixon estava justificada.
Um segundo princípio candidato a cláusula de base é este:
2) Se S crê que p em t, e p é auto-evidente, então a crença de S em p em t está justificada.
Para avaliar este princípio, precisamos uma vez mais de uma
interpretação do seu termo crucial, neste caso “auto-evidente”. Numa
leitura comum, “evidente” é sinônimo de “justificado”. “Auto-evidente”
quereria então dizer algo como “diretamente justificado”,
“intuitivamente justificado” ou “não derivadamente justificado”. Nesta
leitura, “auto-evidente” é uma expressão epistêmica, e o princípio 2 seria
excluído como princípio da cláusula de base.
Contudo, há outras leituras possíveis de “p é auto-evidente” em que
esta não é uma expressão epistêmica. Uma delas é: “É impossível
compreender p sem crer em p.”4 Segundo esta interpretação, as verdades
analíticas e lógicas triviais são auto-evidentes. Assim, qualquer crença
numa dessas verdades seria uma crença justificada, segundo 2.
O que quer dizer “é impossível compreender p sem crer em p”? Quer
dizer “humanamente impossível”? Essa leitura tornaria provavelmente 2
um princípio inaceitável. Poderá muito bem haver proposições que os
seres humanos têm uma disposição inata e irresistível para acreditar, e.g.,
“Alguns acontecimentos têm causas”. Mas parece implausível que a
incapacidade das pessoas para evitar crer em tal proposição faça toda a
crença nela ser justificada.
Devemos então entender “impossível” no sentido de “impossível em
princípio”, ou “logicamente impossível”? Se essa for a leitura dada,
suspeito que 2 é um princípio vácuo. Duvido que até mesmo verdades
lógicas ou analíticas triviais satisfaçam esta definição de “auto-evidente”.
Qualquer proposição, podemos presumir, tem duas ou mais componentes
que se organizam ou justapõem de algum modo. Para entender a
proposição temos de “apreender” as componentes e a sua justaposição.
Ora, no caso de verdades lógicas complexas, há operações psicológicas
(humanas) que são suficientes para apreender as componentes e a sua
justaposição, mas não são suficientes para produzir uma crença de que a
proposição é verdadeira. Mas não podemos pelo menos conceber um
conjunto análogo de operações psicológicas mesmo para verdades lógicas
simples, operações que talvez não pertençam ao repertório dos agentes
cognitivos humanos mas que possam pertencer ao repertório de alguns
seres concebíveis? Isto é, não poderemos conceber operações
psicológicas que seriam suficientes para apreender as componentes e
justaposição de componentes destas proposições simples, mas não seriam
suficientes para produzir crença nas proposições? Penso que podemos
conceber tais operações. Logo, para qualquer proposição que
escolhamos, será possível que seja entendida sem ser objeto de crença.
Finalmente, mesmo que ponhamos de lado estas duas objeções, temos
de fazer notar que a auto-evidência pode, na melhor das hipóteses,
conferir estatuto justificativo a relativamente poucas crenças, e o único
grupo plausível são as crenças em verdades necessárias. Assim, serão
necessários outros princípios da cláusula de base para explicar o estatuto
justificativo das crenças em proposições contingentes.
A noção de um princípio da cláusula de base está naturalmente
associada à idéia da justificabilidade “direta”, e no domínio das
proposições contingentes foi muitas vezes atribuído este estatuto às
proposições de primeira pessoa sobre estados mentais correntes. Na
terminologia de Chisholm, esta concepção exprime-se na noção de um
estado ou proposição que se “auto-apresenta.” A frase “Estou a pensar”,
por exemplo, exprime uma proposição que se auto-apresenta. (Pelo
menos, chamarei “proposição”a este gênero de conteúdo, apesar de só ter
um valor de verdade dada uma atribuição de um sujeito que profere ou
considera o conteúdo e um momento no tempo em que o faz.) Quando
tal proposição é verdadeira para uma pessoa S num momento t, S está
justificado em crer nela em t: na terminologia de Chisholm, a proposição
é “evidente” para S em t. Isto sugere o seguinte princípio da cláusula de
base:
3) Se p for uma proposição que se auto-apresenta, e p for verdadeira para S em t, e S crê
que p em t, então a crença de S em p em t está justificada.
O que quer dizer, exatamente, “auto-apresenta”? Na segunda edição
de Theory of Knowledge, Chisholm oferece esta definição: “h auto-
apresenta-se a S em t =df h é verdadeira em t; e necessariamente,
se h for verdadeira em t, então h é evidente para S em t.”5 Infelizmente,
dado que “evidente” é um termo epistêmico, “auto-apresenta-se” torna-
se também um termo epistêmico nesta definição, excluindo assim 3 como
uma cláusula de base legítima. Tem de se oferecer outra definição
qualquer de auto-apresentação para que 3 seja adequada como princípio
da cláusula de base.
Ocorre-nos imediatamente outra definição de auto-apresentação.
“Auto-apresentação” é um sinônimo aproximado de “auto-intimação”, e
pode-se dizer que uma proposição se auto-intimida se, e só se, sempre
que é verdadeira para uma pessoa, essa pessoa acredita nela. Mais
precisamente, podemos dar a seguinte definição:
SP) Uma proposição p auto-apresenta-se se, e só se: necessariamente, para qualquer S e
qualquer t, se p é verdadeiro para S em t, então S acredita que p em t.
Nesta definição, é claro que “auto-apresentação” não é um predicado
epistêmico, de modo que 3 seria um princípio adequado. Além disso, há
uma plausibilidade inicial na sugestão de que é esta característica das
proposições de estados mentais correntes de primeira pessoa — viz., a
sua verdade garante que sejam objeto de crença — que faz as crenças
nelas serem justificadas.
Usando esta definição de auto-apresentação, é o princípio 3 correto?
Isto não se pode decidir até definirmos com maior precisão a auto-
apresentação. Dado que o operador “necessariamente” pode ser lido de
diferentes modos, há diferentes formas de auto-apresentação, e
correspondentemente diferentes versões do princípio 3. Centremo-nos
em duas dessas leituras: uma leitura “nomológica” e uma “lógica.”
Considere-se primeiro a leitura nomológica. Nesta definição, uma
proposição auto-apresenta-se apenas se for nomologicamente necessário
que se p for verdadeira para S em t, então S crê em p em t.6
É a versão nomológica do princípio 3 — chamemos-lhe “3N” — correta?
De modo nenhum. Podemos imaginar casos em que a antecedente de 3N é
satisfeita mas não diríamos que a crença está justificada. Suponha-se, por
exemplo, que p é a proposição expressa pela frase “Estou no estado
cerebral B” em que “B” é uma abreviatura de uma certa descrição
muitíssimo específica de um estado neuronal. Suponha-se além disso que
é uma verdade nomológica que qualquer pessoa num estado
cerebral B irá ipso facto acreditar que está no estado cerebral B. Por
outras palavras, imagine-se que uma crença ocorrente com o conteúdo
“Estou no estado cerebral B” se realiza sempre que alguém está no estado
cerebral B.7 Segundo 3N, qualquer crença dessas está justificada. Mas isto
é claramente falso. Podemos facilmente imaginar circunstâncias em que
uma pessoa fica no estado cerebral B e portanto tem a crença em
questão, apesar de a sua crença não estar de modo algum justificada. Por
exemplo, podemos imaginar que um cirurgião faz uma operação a S e
induz artificialmente o estado cerebral B. Isto resulta,
fenomenologicamente, na crença súbita de S — vinda do nada — de que
está no estado cerebral B, sem quaisquer crenças anteriores relevantes.
Dificilmente diríamos, em tal caso, que a crença de S de que está no
estado cerebral B está justificada.
Voltemo-nos agora para a versão lógica de 3 — chamemos-lhe “3L” —
em que uma proposição se definida como auto-apresentada apenas no
caso de ser logicamente necessário que se p for verdadeira para S em t,
então S acredita que p em t. Esta versão mais forte do princípio 3 poderia
parecer mais promissora. No entanto, não é, de fato, mais bem-sucedida
do que 3N. Seja p a proposição “Estou acordado” e pressuponha-se que é
logicamente necessário que se esta proposição for verdadeira para uma
pessoa S num momento t, então S acredita em p em t. Este pressuposto
é consistente com o pressuposto complementar de que S acredita
freqüentemente que p quando esta é falsa, e.g., quando está a sonhar.
Nestas circunstâncias, dificilmente aceitaríamos a asserção de que a
crença de S nesta proposição está sempre justificada. Mas não devemos
também aceitar a asserção de que a crença está justificada quando
é verdadeira. A verdade da proposição garante logicamente que a
crença existe, mas por que haveria de garantir que a crença é justificada?
A discussão anterior sugere que as coisas estão ao contrário. A idéia de
auto-apresentação é que a verdade garante a crença. Isto não confere
justificação porque é compatível com a existência de crença sem verdade.
Assim, o que parece necessário — ou pelo menos suficiente — para a
justificação é que a crença deve garantir a verdade. Tal noção tem
habitualmente recebido a denominação de “infalibilidade” ou
“incorrigibilidade”.Pode ser definida como se segue:
INC) A proposição p é incorrigível se e só se: necessariamente, para qualquer S e
qualquer t, se S acredita em p em t, então p é verdadeira para S em t.
Usando a noção de incorrigibilidade, podemos propor o princípio 4:
4) Se p for uma proposição incorrigível, e S acredita em p em t, então a crença
de S em p em t está justificada.
Como no caso da auto-apresentação, há diferentes tipos de
incorrigibilidade, correspondendo a diferentes interpretações de
“necessariamente”. Temos por isso diferentes versões do princípio 4. Uma
vez mais, concentremo-nos numa versão nomológica e lógica, 4N e 4L,
respectivamente.
Podemos facilmente construir um contra-exemplo na linha do contra-
exemplo do estado mental/estado cerebral que refutou 3N. Suponha-se
que é nomologicamente necessário que se alguém acredita que está no
estado cerebral B, então é verdadeiro que está no estado cerebral B, pois
a única maneira deste estado cerebral se efetivar é por meio do próprio
estado cerebral B. Segue-se que “Estou no estado cerebral B” é uma
proposição nomologicamente incorrigível. Logo, segundo 4N¬, sempre
que alguém crê nesta proposição em qualquer momento, essa crença está
justificada. Mas podemos uma vez mais construir um exemplo do
cirurgião em que alguém passa a ter tal crença mas a crença não é
justificada.
À parte este contra-exemplo, o que está em causa em geral é o seguinte:
Por que haveria o fato de a crença de S em p garantir a verdade
de p implicar que a crença de S está justificada? A natureza da garantia
poderá ser totalmente fortuita, como o exemplo do estado de
crença/estado cerebral visa ilustrar. Para ficarmos cientes do que está em
causa, considere-se a seguinte possibilidade relacionada: A estrutura
mental de uma pessoa poderia ser tal que sempre que ela acreditasse
que p seria verdadeiro (dela) uma fracção de segundo depois, então p é
verdadeira (dela) uma fracção de segundo depois. Isto porque,
suponhamos, a sua crença nisso faz isso ocorrer. Mas certamente não nos
sentiríamos obrigados em tal circunstância a dizer que uma crença deste
gênero estaria justificada. Então por que haveria o fato de a crença
de S em p garantir a verdade de p precisamente no momento da
crença implicar que a crença está justificada? Não há qualquer
plausibilidade intuitiva neste pressuposto.
A noção de incorrigibilidade lógica tem um lugar de honra mais
proeminente na história das concepções da justificação. Mas mesmo o
princípio 4L, creio, sofre de deficiências similares às de 4N. O mero facto
de a crença em p garantir logicamente a sua verdade não confere
estatuto justificativo a tal crença.
A primeira dificuldade de 4L surge com as verdades lógicas ou
matemáticas. Qualquer proposição verdadeira da lógica ou da
matemática é logicamente necessária. Logo, qualquer dessas
proposições p é logicamente incorrigível, dado ser logicamente
necessário que, para qualquer S e qualquer t, se S crê
que p em t, então p é verdadeira (para S em t). Suponha-se agora que
Nelson acredita numa certa verdade matemática muito complexa no
momento t. Dado que tal proposição é logicamente incorrigível,
4L implica que a crença de Nelson nesta verdade em t está justificada.
Mas podemos facilmente supor que esta crença de Nelson não é de modo
algum o resultado de raciocínio matemático apropriado, ou mesmo o
resultado do apelo a uma autoridade de confiança. Talvez Nelson
acredite nesta verdade complexa devido a um raciocínio totalmente
confuso, ou devido a uma conjectura apressada e mal fundamentada.
Então, a sua crença não está justificada, ao contrário do que 4L implica.
O caso das verdades lógicas ou matemáticas é admitidamente peculiar,
dado que a verdade destas proposições é asseguradamente independente
de quaisquer crenças. Poderia parecer, portanto, que podemos captar
melhor a idéia de “crença que garante logicamente a verdade” nos casos
em que as proposições em questão são contingentes. Com isto em mente,
podemos restringir 4L a proposições contingentes incorrigíveis. Mas nem
mesmo esta adenda pode salvar 4L, contudo, dado haver contra-exemplos
que envolvem proposições puramente contingentes.
Suponha-se que Humperdinck está estudando lógica — ou, antes,
pseudológica — com Elmer Fraude, que Humperdinck tem razão para
confiar na sua qualidade de lógico. Fraude enunciou o princípio de que
qualquer proposição disjuntiva consistindo de pelo menos 40 disjuntos
distintos é muito provavelmente verdadeira. Humperdinck encontra
agora a proposição p, uma proposição contingente com 40 disjuntos,
sendo o sétimo “Eu existo”. Apesar de Humperdinck apreender
completamente a proposição, não se dá conta de que esta é implicada
por “Eu existo”. Ao invés, fica surpreendido pelo facto de pertencer à
regra da disjunção que Fraude enunciou (uma regra que suponho
Humperdinck não tem justificação para crer). Tendo esta regra em
mente, Humperdinck forma uma crença em p. Repare-se agora que p é
logicamente incorrigível. É logicamente necessário que se alguém
acredita que p, então p é verdadeira (com respeito a essa pessoa, nesse
momento). Isto segue-se simplesmente do fato de que, primeiro, quando
uma pessoa acredita seja no que for, isso implica que ela existe e,
segundo, “Eu existo” implica p. Dado p ser logicamente incorrigível,
4L implica que a crença de Humperdinck em p está justificada. Mas, dado
o nosso exemplo, certamente que essa conclusão é falsa. A crença de
Humperdinck em p não está de modo algum justificada.
Uma coisa que corre mal neste exemplo é que ao passo que a crença de
Humperdinck em p implica logicamente a sua verdade, Humperdinck
não reconhece que a sua crença nela implica a sua verdade. Isto poderá
levar um teorizador a rever 4L, acrescentando o requisito de
que S “reconheça” que p é logicamente incorrigível. Mas isto, é claro, não
serve. O termo “reconhecer” é obviamente epistêmico, de modo que a
revisão sugerida de 4L resultaria numa cláusula de base inadmissível.

II
Procuremos diagnosticar o que correu mal nestas tentativas de fornecer
um princípio aceitável da cláusula de base. Note-se que cada uma das
tentativas anteriores confere o estatuto de “justificada” a uma crença sem
restrição quanto a por que se tem a crença, i.e., quanto ao que dá
causalmente início à crença ou a sustém causalmente. As versões lógicas
dos princípios 3 e 4, por exemplo, não impõem qualquer restrição às
causas da crença. O mesmo acontece nas versões nomológicas de 3 e 4,
dado que as exigências nomológicas podem ser satisfeitas por leis da
simultaneidade ou transversais, como é ilustrado pelos nossos exemplos
do estado cerebral/estado de crença. Sugiro que a ausência de exigências
causais explica o fracasso dos princípios anteriores. Em muitos dos nossos
contra-exemplos, a crença é causada de um modo estranho ou
inaceitável, e.g., pelo movimento acidental da mão de um cirurgião,
porque alguém se apóia num princípio pseudológico ilícito, ou devido à
cegueira provocada pela aura da presidência. Em geral, uma estratégia
para derrotar um princípio não causal da justificabilidade consiste em
encontrar um caso em que a antecedente do princípio é satisfeita mas a
crença é causada por um qualquer processo deficiente de formação de
crenças. A deficiência do processo de formação de crenças levar-nos-á,
intuitivamente, a considerar que a crença está injustificada. Assim, os
princípios corretos da crença justificada têm de ser princípios que fazem
exigências causais, em que “causa” é entendida de modo lato, incluindo
tanto o que sustém uma crença como o que lhe dá início (i.e., processos
que determinam, ou ajudam a sobredeterminar, a continuidade da
adesão a uma crença.)8
A necessidade de exigências causais não se restringe aos princípios das
cláusulas de base. Os princípios recursivos também precisarão de uma
componente causal. Poder-se-ia inicialmente supor que este é um bom
princípio recursivo: “Se S justificadamente acredita que q em t,
e q implica p, e S acredita que p em t, então a crença de S em p no
tempo t está justificada”. Mas este princípio é inaceitável. A crença
de S em p não recebe o estatuto de estar justificada simplesmente do fato
de que p é implicada por q e S acredita justificadamente que q. Se o que
leva S a acreditar que p no tempo t for algo inteiramente diferente, a
crença de S em p pode muito bem não ser justificada. E a situação não
pode ser remediada se acrescentarmos à antecedente a condição de
que S acredita justificadamente que q implica p. Ainda que ele acredite
nisso, bem como acredite que q, ele poderia ainda não relacionar essas
crenças. Poderia vir a acreditar que p em resultado de algumas outras
considerações bem diferentes. Portanto, uma vez mais, as condições que
não exigem causas apropriadas para uma crença não garantem a
justificabilidade.
Admitindo que os princípios da crença justificada têm de fazer
referência às causas da crença, que tipos de causas conferem
justificabilidade? Podemos ver com mais perspicácia este problema
examinando alguns processos deficientes de formação de crenças, i.e.,
processos que gerariam crenças que seriam classificadas como
injustificadas. Eis alguns exemplos: raciocínio confuso, sonhar alto, apoio
em ligações emocionais, mero pressentimento ou palpite e generalização
apressada. O que têm estes processos deficientes em comum? Partilham
o caráter de não serem confiáveis: tendem a produzir o erro grande parte
das vezes. Pelo contrário, intuitivamente, que espécies de processos de
formação (ou preservação) de crenças conferem justificação? Incluem os
processos perceptivos normais, a recordação, o bom raciocínio e a
introspecção. O que estes processos parecem ter em comum é
a confiabilidade: as crenças que produzem são geralmente verdadeiras.
Portanto, a minha proposta positiva é a seguinte. O estatuto de
justificabilidade de uma crença é uma função da confiabilidade do
processo ou dos processos que a causam, onde (numa primeira
aproximação) a confiabilidade consiste na tendência de um processo
para produzir crenças que são verdadeiras ao invés de falsas.
Para testar melhor esta tese, note-se que a justificabilidade não é um
conceito puramente categórico, embora eu o trate aqui como categórico,
em nome da simplicidade. Podemos encarar, e de fato encaramos, certas
crenças como mais justificadas do que outras. Além disso, as nossas
intuições sobre a justificabilidade comparativa harmonizam-se com as
nossas crenças sobre a confiabilidade comparativa dos processos
formadores de crenças.
Considere-se as crenças perceptivas. Suponha-se que Jones acredita ter
visto à pouco uma cabra montês. A nossa avaliação da justificabilidade
da crença depende de ele ter tido um breve vislumbre da criatura a uma
grande distância ou de lhe der dado uma boa olhada a uma distância de
trinta metros. A sua crença no último tipo de caso está (ceteris paribus)
mais justificada do que no primeiro. E se a sua crença for verdadeira,
estamos mais dispostos a dizer, no último caso, que sabe, do que no
primeiro. A diferença entre os dois casos é aparentemente a seguinte. As
crenças visuais formadas por uma varredura breve e rápida, ou em
situações nas quais o objeto se encontra a grande distância, tendem a ser
erradas com mais freqüência do que as crenças visuais formadas a partir
de uma varredura detalhada e lenta, ou em situações nas quais o objeto
está a uma proximidade razoável. Em suma, os processos visuais da
primeira categoria são menos confiáveis do que os da última. Algo similar
ocorre quanto às crenças de memória. Uma crença que resulta de uma
impressão de memória vaga e indistinta conta como menos justificada do
que uma crença com origem numa impressão distinta de memória, e a
nossa inclinação para classificar essas crenças como “conhecimento” varia
do mesmo modo. Uma vez mais, a razão está associada à confiabilidade
comparativa dos processos. As impressões obscuras e indistintas de
memória são geralmente indicadores menos confiáveis do que realmente
se passou; portanto, as crenças formadas a partir dessas impressões têm
a probabilidade menor de serem verdadeiras do que as crenças formadas
a partir de impressões distintas. Considere-se ainda as crenças baseadas
em inferências a partir de amostras observáveis. Uma crença sobre uma
população, baseada numa amostragem aleatória, ou numa grande
diversidade de amostras, está intuitivamente mais justificada do que uma
crença baseada numa amostra tendenciosa ou em amostras de um setor
específico da população. Uma vez mais, o grau de justificabilidade é
aparentemente uma função da confiabilidade. As inferências baseadas
em amostras aleatórias e diversificadas tendem a produzir menos erro ou
inexatidão do que as inferências baseadas em amostras que não são
aleatórias nem diversificadas.
Regressando a um conceito categorial de justificabilidade, poderíamos
perguntar como um processo confiável de formação de crenças tem de
ser para que as crenças que dele resultem estejam justificadas. Não é de
esperar uma resposta precisa a esta questão. A nossa concepção de
justificação é vaga neste aspecto. No entanto, parece claro que não se
exige uma confiabilidade perfeita. Um processo de formação de crenças
que algumas vezes produza erro ainda confere justificação. Segue-se que
pode haver crenças justificadas falsas.
Caracterizei os processos que conferem justificação como processos
que têm a “tendência” para produzir crenças que são verdadeiras ao invés
de falsas. O termo “tendência” poderia se referir ou à freqüência efetiva a
longo prazo ou à “propensão”, i.e., a resultados que ocorreriam em
realizações meramente possíveis dos processos. Qual deles visamos?
Infelizmente, penso que a nossa concepção comum de justificabilidade é
vaga também nesse aspecto. Na maioria das vezes, pressupomos
simplesmente que a freqüência “observada” da verdade em contraste com
o erro seria aproximadamente reproduzida no longo prazo efetivo e
também em situações contrafactuais relevantes, i.e., as que são
muitíssimo “realistas” ou que se conformam de perto com as
circunstâncias do mundo efetivo. Visto que comumente presumimos que
essas freqüências são aproximadamente as mesmas, não fazemos
qualquer esforço concertado para distingui-las. Visto que o propósito
desta teorização é captar a nossa concepção comum de justificabilidade,
e visto que a nossa concepção comum é vaga quanto a isso, é apropriado
deixar a teoria vaga nesse mesmo aspecto.
Precisamos dizer algo mais sobre a noção de “processo” formador de
crenças. Seja um “processo” uma operação ou processo funcional, i.e., algo
que gera um mapeamento de certos estados — “dados de entrada” —
noutros estados — “dados de saída”. Os dados de saída, neste caso, são
estados de crer nesta ou naquela proposição num dado momento. Nesta
interpretação, um processo é um tipo e não um exemplar. Isto é
perfeitamente apropriado, visto que só os tipos têm propriedades
estatísticas, como a de produzir a verdade 80% das vezes; e são
exatamente essas propriedades que determinam a confiabilidade do
processo. Obviamente, também queremos dizer que os
processos causam crenças, e parece que os tipos são incapazes de ser
causas. Mas quando dizemos que uma crença é causada por um dado
processo, entendido como um processo funcional, podemos considerar
que isto quer dizer que essa crença foi causada pelos dados de entrada
particulares do processo (e pelos eventos intervenientes “por meio dos
quais” o processo funcional leva dos dados de entrada aos dados de
saída) na ocasião em questão.
Quais são os exemplos de “processos” de formação de crença
entendidos como operações funcionais? Um exemplo são os processos de
raciocínio, nos quais os dados de entrada incluem crenças anteriores e
hipóteses cogitadas. Outro exemplo são os processos funcionais, cujos
dados de entrada incluem crenças, expectativas ou estados emocionais
de vários tipos (juntamente com crenças anteriores). Um terceiro
exemplo é o processo de memória, que toma como dados de entrada as
crenças ou experiências de um tempo anterior e gera como dados de
saída crenças, num tempo posterior. Por exemplo, um processo de
memória poderia tomar como dado de entrada a crença em t1 de que
Lincoln nasceu em 1809 e gerar como dado de saída a crença em tn de
que Lincoln nasceu em 1809. Um quarto exemplo são os processos
perceptuais. Aqui não é claro se os dados de entrada deveriam incluir
estados do contexto, como a distância entre o estímulo e o agente
cognitivo, ou apenas eventos no interior ou na superfície do organismo,
e.g., a estimulação dos receptores. Voltarei em breve a esse ponto.
Um problema crítico a respeito da nossa análise é o grau de
generalidade dos tipos de processo em questão. As relações entre dados
de entrada e de saída podem ser especificadas de maneira muito ampla
ou muito restrita, e o grau de generalidade determinará parcialmente o
grau de confiabilidade. Um tipo de processo poderia ser selecionado de
modo tão restrito que só um exemplar dele ocorre e, por isso, esse tipo
será ou completamente confiável ou completamente não confiável. (Isto
supõe que a confiabilidade é apenas uma função da freqüência efetiva.)
Se estes tipos de processos restritos fossem selecionados, crenças que
intuitivamente não são justificadas poderiam ser entendidas como o
resultado de processos perfeitamente confiáveis; e crenças que
intuitivamente são justificadas poderiam ser entendidas como resultados
de processos perfeitamente não confiáveis.
É claro que o nosso pensamento comum sobre tipos de processos os
divide de modo amplo, mas não posso dar agora uma explicação precisa
dos nossos princípios intuitivos. Mas uma sugestão plausível é que os
processos relevantes são neutros quanto ao conteúdo. Poder-se-ia
argumentar, por exemplo, que o processo de inferir p sempre que o Papa
afirmar p poderia colocar problemas para a nossa teoria. Se o Papa for
infalível, esse processo será perfeitamente confiável; contudo, não
consideraríamos justificadas as crenças resultantes desse processo. A
restrição da neutralidade do conteúdo evitaria essa dificuldade. Se
exigirmos dos processos relevantes que admitam como dados de entrada
crenças (ou outros estados) com qualquer conteúdo, o processo
mencionado acima não conta, pois os seus dados de entrada são crenças
que têm um conteúdo proposicional restrito, i.e., “o Papa afirma que p”.
Além do problema da “generalidade” ou caráter “abstrato” há o
problema mencionado sobre o “abrangência” dos processos de formação
de crenças. Claramente, o ancestral causal das crenças inclui geralmente
eventos exteriores ao organismo. Devem esses eventos ser incluídos entre
os “dados de entrada” dos processos de formação de crenças? Ou
devemos restringir a abrangência dos processos de formação de crenças
aos eventos “cognitivos”, i.e., aos eventos no interior do sistema nervoso
do organismo? Fico com a última opção, embora com alguma hesitação.
As minhas razões gerais para esta decisão são, grosso modo, as seguintes.
A justificabilidade parece uma função de como um agente cognitivo lida
com os dados de entrada do seu meio, i.e., com a boa ou má qualidade
das operações que registram e transformam os estímulos que lhe chegam.
(“Lida com”, obviamente, não quer dizer ação intencional; nem se
restringe à atividade consciente). Uma crença justificada é, grosso modo,
a que resulta de operações cognitivas que são, em geral, de boa qualidade
ou bem-sucedidas. Mas o modo mais plausível de entender as operações
“cognitivas” é como operações das faculdades cognitivas, i.e., dos
equipamentos de “processamento de informação” internos ao organismo.
Com estes aspectos em mente, podemos agora avançar a seguinte
cláusula de base como princípio para a crença justificada:
5) Se a crença de S em p no momento t resultar de um processo cognitivo (ou conjunto
de processos) de formação de crenças que seja confiável, então a crença de S em p no
momento t está justificada.
Visto que “processo confiável de formação de crenças” foi definido em
termos das noções de crença, verdade, freqüência estatística, etc., não é
um termo epistêmico. Por isso, 5 é uma cláusula de base admissível.
Pode parecer que 5 promete ser não só uma cláusula de base bem-
sucedida, mas o único princípio que precisamos, além de uma cláusula
de oclusão. Por outras palavras, pode parecer que tanto é uma condição
necessária como suficiente da justificabilidade que a crença seja
produzida por processos cognitivos confiáveis de formação de crenças.
Mas isto não é totalmente correto, dada a nossa definição provisória de
“confiabilidade”.
A nossa definição provisória implica que um processo de raciocínio é
confiável somente se geralmente produzir crenças verdadeiras e,
similarmente, que um processo de memória é confiável somente se
produz geralmente crenças verdadeiras. Mas estas exigências são
demasiado fortes. Não se pode esperar que um processo de raciocínio
produza crenças verdadeiras se for aplicado a premissas falsas. E não se
pode esperar que a memória produza crenças verdadeiras se a crença
original que tenta reter for falsa. O que precisamos para o raciocínio e a
memória é, portanto, uma noção de “confiabilidade condicional”. Um
processo é condicionalmente confiável se uma proporção suficiente das
crenças que gera como dados de saída são verdadeiras caso as crenças que
recebe como dados de entrada sejam verdadeiras.
Com isto em mente, distingamos os processos cognitivos que dependem
da crença dos processos cognitivos independentes da crença. Os primeiros
são processos em que alguns dos seus dados de entrada são estados de
crença.9 Os últimos são processos em que nenhum dos seus dados de
entrada é um estado de crença. Podemos então substituir o princípio 5
pelos dois princípios seguintes, sendo o primeiro um princípio de cláusula
de base e o segundo um princípio de cláusula de recursão:
6A) Se a crença de S em p no momento t resulta (“imediatamente”) de um processo
independente de crenças (incondicionalmente) confiável, então a crença de S em p no
momento t está justificada.
6B) Se a crença de S em p no momento t resulta (“imediatamente”) de um processo
dependente de crenças (pelo menos) condicionalmente confiável, e se as crenças sobre as
quais esse processo opera ao produzir a crença de S em p no momento t (se as houver)
estão elas mesmas justificadas, então a crença de S em p no momento t está justificada.10
Se acrescentarmos a 6A e 6B a cláusula de oclusão comum, teremos uma
teoria completa da crença justificada. Com efeito, a teoria afirma que
uma crença está justificada se, e somente se, for “bem formada”, i.e., se
tiver um ancestral de operações cognitivas confiáveis e/ou
condicionalmente confiáveis. (Visto que uma crença anterior pode estar
sobredeterminada, pode ter várias de árvores ancestrais diferentes. Estas
não precisam de ser todas constituídas por processos confiáveis ou
condicionalmente confiáveis. Mas pelo menos uma árvore ancestral tem
de ter processos confiáveis ou condicionalmente confiáveis em todo o seu
percurso.)
Portanto, a teoria da crença justificada aqui proposta
é histórica ou genética. Contrasta com a abordagem dominante da crença
justificada, uma abordagem que gera o que podemos chamar (tomando
de empréstimo uma expressão de Robert Nozick) teorias “do momento
presente do tempo”. Uma teoria do momento presente do tempo faz do
estatuto justificativo de uma crença uma função do que é verdadeiro do
agente cognitivo no momento da crença. Uma teoria histórica faz o
estatuto justificativo de uma crença depender da sua história prévia.
Visto que a minha teoria histórica enfatiza a confiabilidade dos processos
de formação de crenças, pode ser denominada “confiabilismo histórico.
Os exemplos mais óbvios de teorias do momento presente do tempo
são as “cartesianas”, que fazem remontar todo o estatuto justificativo
(pelo menos das proposições contingentes) a estados mentais correntes.
Os tipos habituais de teorias da coerência, contudo, são igualmente
perspectivas do momento presente do tempo, dado que também elas
tornam o estatuto justificativo de uma crença uma função exclusiva de
estados correntes de coisas. Para as teorias da coerência, contudo, estes
estados incluem outras crenças do agente cognitivo, crenças que não
seriam consideradas relevantes pelo fundacionismo cartesiano. Terão
existido outras teorias históricas da crença justificada? Entre os escritores
contemporâneos, Quine e Popper têm epistemologias históricas, apesar
de a noção de “justificação” não constituir o seu explicandum manifesto.
Entre os autores históricos, poderá parecer que Locke e Hume tinham
algo como teorias genéticas. Mas penso que as suas teorias genéticas
eram apenas teorias das idéias, e não do conhecimento ou da justificação.
A teoria da reminiscência de Platão, contudo, é um bom exemplo de uma
teoria genética do conhecimento.11 E pode-se argumentar que Hegel e
Dewey tinham epistemologias genéticas (se é que se pode dizer que
Hegel tinha, de todo, uma epistemologia definida).
A teoria articulada por 6A e 6B poderá ser vista como um tipo de
“fundacionismo”, devido à sua estrutura recursiva. Não tenho objeção a
essa designação, desde que se considere quão diferente esta forma
“diacrônica” de fundacionismo é do fundacionismo “cartesiano” ou de
outros tipos “sincrônicos” de fundacionismo.
As teorias do momento presente do tempo presumem
caracteristicamente que o estatuto justificativo de uma crença é algo que
o agente cognitivo é capaz de saber ou de determinar no momento da
sua crença. Isso é explicitado, por exemplo, por Chisholm.12 A teoria
histórica que endosso não presume tal coisa. A respeito do agente
cognitivo, há muitos fatos a que ele não tem “acesso privilegiado”, e eu
encaro o estatuto justificativo das suas crenças como uma dessas coisas.
Isto não significa que um agente ignora necessariamente, num dado
momento, o estatuto de justificação das suas crenças correntes. Nega-se
apenas que tenha necessariamente, ou que possa ter, conhecimento, ou
crença verdadeira, desse estatuto. Assim como uma pessoa pode saber
sem saber que sabe, o agente cognitivo pode ter uma crença justificada
sem saber que é justificada (ou acreditar justificadamente que é
justificada).
Um caso característico no qual uma crença está justificada sem que o
agente o saiba é aquele no qual os indícios originais para a sua crença já
tenham sido há muito esquecidos. Se os indícios originais eram muito
fortes, a crença original do agente cognitivo pode ter sido justificada; e
esse estatuto justificativo pode ter sido preservado pela memória. Mas
visto que o agente cognitivo não se lembra já como veio a acreditar, ou
porquê, pode não saber que a crença é justificada. Se questionado agora
sobre a justificação da sua crença, pode ficar sem saber o que dizer. Mas
a crença está justificada, embora o agente cognitivo não possa
demonstrar ou estabelecer isso.
A teoria histórica da crença justificada que advogo está ligada, em
espírito, à teoria causal do conhecimento que apresentei alhures.13 Tinha
isto em mente quando comentei, perto do início deste artigo, que a minha
teoria da crença justificada faz a justificação algo intimamente
relacionado com o conhecimento. As crenças justificadas, como os
fragmentos de conhecimento, têm histórias apropriadas; mas podem não
constituir conhecimento quer porque são falsas ou porque não
contemplam outro requisito do conhecimento, do tipo discutido na
indústria do conhecimento pós-Gettier.
Há uma variante da concepção histórica da crença justificada que vale
a pena mencionar neste contexto. Pode ser introduzida como se segue:
suponha-se que S tem um conjunto B de crenças no momento t0, e que
algumas destas crenças são injustificadas. Entre t0 e t1 ele raciocina
partindo da totalidade do conjunto B e concluindo p, que aceita então
em t1. O processo de raciocínio é muito sólido, i.e., é condicionalmente
confiável. Há um sentido ou aspecto em que temos a tentação de dizer
que a crença de S em p em t1 está “justificada”. Em qualquer caso, é
tentador dizer que a pessoa está justificada ao acreditar que p em t.
Relativamente ao seu estado cognitivo anterior, fez o melhor que se
podia esperar: a transição do seu estado cognitivo em t0 para o seu estado
cognitivo em t1 foi inteiramente sólida. Apesar de podermos reconhecer
este gênero de justificabilidade — poderíamos chamar-lhe “Confiabilismo
do Estado Terminal” — não é um tipo de justificabilidade muito
intimamente relacionada com o conhecer. Para que uma pessoa conheça
uma proposição p, não é suficiente que a fase final do processo que
conduz à sua crença em p seja sólida. É também necessário que exista
uma história completa do processo que seja sólida (i.e., confiável ou
condicionalmente confiável).
Regressemos agora à teoria histórica. Na próxima secção deste artigo,
aduzirei razões para a fortalecer um pouco. Antes de ver essas razões,
contudo, quero rever duas objeções muito diferentes à teoria.
Primeiro, um crítico poderia argumentar que algumas crenças
justificadas não derivam o seu estatuto justificativo da sua ascendência
causal. Em particular, poder-se-ia argumentar que as crenças sobre os
nossos próprios estados fenomênicos correntes e as crenças sobre
relações lógicas ou conceptuais elementares não derivam o seu estatuto
justificativo deste modo. Não estou persuadido por qualquer destes
exemplos. A introspecção, creio bem, deve ser encarada como uma forma
de retrospecção. Assim, uma crença justificada de que estou “agora” com
dores obtém o seu estatuto justificativo de uma história causal relevante,
ainda que breve.14 A apreensão de relações lógicas ou conceptuais é
também um processo cognitivo que ocupa tempo. O processo psicológico
de “ver” ou “intuir” uma verdade lógica simples é muito rápido, e não
podemos introspectivamente dissecá-lo em partes constituintes. Apesar
disso, há operações mentais em curso, tal como há operações mentais
que ocorrem nos idiots savants, que são incapazes de descrever os
processos computacionais que de fato usam.
Uma segunda objeção ao confiabilismo histórico centra-se no elemento
da confiabilidade, e não no elemento causal ou histórico. Dado que a
teoria visa abranger todos os casos possíveis, parece implicar que para
qualquer processo cognitivo C, se C for confiável no mundo possível M,
então qualquer crença em M que resulte de C está justificada. Mas não
permite isto contra-exemplos fáceis? Certamente podemos imaginar um
mundo possível em que sonhar alto é confiável. Podemos imaginar um
mundo possível em que um demônio benevolente dispõe as coisas de tal
modo que as crenças formadas ao sonhar alto se tornam habitualmente
verdadeiras. Isto tornaria o sonhar alto um processo confiável nesse
mundo possível, mas certamente não queremos considerar que as crenças
que resultam de sonhar alto estão justificadas.
Há várias maneiras possíveis de responder a este caso e não sei bem
qual delas é melhor, em parte porque as minhas intuições (e as de outras
pessoas com quem me aconselhei) não são inteiramente claras. Uma
possibilidade é dizer que no mundo possível imaginado, as crenças que
resultam de sonhar alto estão justificadas. Por outras palavras, rejeitamos
a idéia de que sonhar alto nunca poderia, intuitivamente, conferir
justificabilidade.15
Contudo, quem sente que sonhar alto não poderia conferir
justificabilidade, nem mesmo no mundo imaginado, há duas saídas.
Primeiro, pode-se sugerir que o critério próprio de justificabilidade é a
propensão de um processo para gerar crenças que são verdadeiras num
meio não manipulado, i.e., um meio em que não se dispõe
propositadamente o mundo quer para se conformar quer para entrar em
conflito com as crenças que se formam. Por outras palavras, a
adequabilidade de um processo de formação de crenças é apenas uma
função do seu sucesso em situações “naturais,” e não em situações do
gênero que envolve demônios benevolentes ou malévolos, ou quaisquer
outras criaturas manipuladoras. Se reformularmos a teoria para incluir
esta restrição, o contra-exemplo em questão será afastado.
Alternativamente, podemos reformular a nossa teoria, ou reinterpretá-
la, como se segue: em vez de considerar que a teoria afirma que uma
crença num mundo possível M está justificada se, e só se, resulta de um
processo cognitivo que é confiável em M, podemos considerar que afirma
que uma crença num mundo possível M está justificada se, e só se, resulta
de um processo cognitivo que é confiável no nosso mundo. Em suma, a
nossa concepção de justificabilidade é derivada como se segue: damo-
nos conta de certos processos cognitivos no mundo efetivo, e formamos
crenças sobre quais delas são confiáveis. As que cremos serem confiáveis
são então encaradas como processos que conferem justificação. Ao
refletir sobre crenças hipotéticas, consideramo-las justificadas se, e só se,
resultam de processos que já consideramos que conferem justificação, ou
processos muito semelhantes a estes. Dado que sonhar alto não é um
desses processos, uma crença formada num mundo possível M por meio
de sonhar alto não seria considerada justificada, ainda que sonhar alto
seja confiável em M. Não estou certo de que esta seja uma reconstrução
correta do nosso esquema conceptual intuitivo, mas acomodaria o caso
do demônio benevolente, pelo menos se o que for adequado dizer nesse
caso é que as crenças causadas pelo sonhar alto carecem de justificação.
Mesmo que adotemos esta estratégia, contudo, persiste um problema.
Suponha-se que sonhar alto se revela afinal confiável no mundo
efetivo!16 Isto poderia ocorrer porque, sem que presentemente o
saibamos, há um demônio benevolente, que até agora tem estado com
preguiça, mas começará em breve a dispor as coisas de modo a que os
nossos desejos se tornem verdadeiros. O desempenho a longo prazo do
sonhar alto será muito bom, e portanto, mesmo a nova interpretação da
teoria irá implicar que as crenças que resultam de sonhar alto
(no nosso mundo) estão justificadas. Contudo, isto viola certamente o
nosso juízo intuitivo sobre a questão.
Talvez a moral da história seja que o formato comum de uma “análise
conceptual” tem as suas limitações. Seja-me permitido afastar-me desse
formato, para tentar fornecer uma interpretação melhor do que visamos
e da teoria que procura alcançá-lo. O que realmente queremos é
uma explicação da razão pela qual consideramos, ou consideraríamos,
que certas crenças estão justificadas e outras não. Tal explicação tem de
se referir às nossas crenças sobre a confiabilidade, e não a fatos efetivos.
A razão pela qual consideramos que as crenças estão justificadas é que
foram formadas pelo que cremos serem processos confiáveis de formação
de crenças. As nossas crenças sobre que processos de formação de crenças
são confiáveis podem ser errôneas, mas isso não afeta a adequação da
explicação. Dado que cremos que sonhar alto é um processo não confiável
de formação de crenças, consideramos que as crenças formadas ao
sonhar alto não estão justificadas. O que conta, pois, é o
que cremos quanto ao sonhar alto, e não o que é verdadeiro (a longo
prazo) quanto ao sonhar alto. Não tenho a certeza de como exprimir isto
no formato normalizado da análise conceptual, mas é algo que identifica
um aspecto importante para a compreensão da nossa teoria.

III
Voltemos, contudo, ao formato normalizado de análise conceitual e
consideremos uma nova objeção que exigirá algumas revisões na teoria
que até agora foi proposta. Segundo a nossa teoria, uma crença está
justificada se for causada por um processo que é de fato confiável, ou por
um processo que geralmente cremos ser confiável. Mas suponha-se que,
embora a crença de S satisfaça essa condição, S não tem razão para
acreditar que a satisfaz. Pior ainda, suponha-se que S tem razão para
acreditar que a sua crença é causada por um processo inconfiável
(embora de fato o seu ancestral causal seja plenamente confiável). Nessas
circunstâncias, não negaríamos que a crença de S está justificada? Isso
parece mostrar que a nossa análise, tal como foi formulada, está errada.
Suponha-se que, com base numa autoridade plenamente confiável,
alguém conta a Jones que certa parte das suas crenças de memória é
falsa. Os seus pais inventam uma história totalmente falsa de que Jones
sofreu amnésia quando tinha 7 anos, mas depois
desenvolveu pseudomemórias daquele período. Embora Jones ouça o que
os seus pais dizem e tenha excelentes razões para acreditar neles, insiste
em acreditar nas memórias aparentes do seu passado de 7 anos de idade.
Essas crenças de memória estão justificadas? Intuitivamente, não estão
justificadas. Mas visto que resultam de percepções genuínas de memória
e de percepções originais, que são processos adequadamente confiáveis,
a nossa teoria diz que essas crenças estão justificadas.
Pode a teoria ser revisada para enfrentar esta dificuldade? Uma
sugestão natural é que a confiabilidade efetiva de uma crença ancestral
não é suficiente para a justificação; além disso, o agente cognitivo tem
de estar justificado em acreditar que o ancestral da sua crença é confiável.
Assim, poder-se-ia substituir 6A, por exemplo, por 7. (Para simplificar,
desconsidero alguns detalhes da análise anterior).
7) Se a crença de S em p no momento t for causada por um processo cognitivo confiável,
e S acreditar justificadamente no momento t que a sua crença em p é causada desse
modo, então a crença de S em p no momento t está justificada.
É evidente, no entanto, que 7 não serve como cláusula de base, pois
contém o termo epistêmico “justificadamente” na sua antecedente.
Uma sugestão levemente mais fraca, sem essa característica
problemática, poderia então ser sugerida, viz.:
8) Se a crença de S em p no momento t for causada por um processo cognitivo confiável,
e S acreditar no momento t que a sua crença em p é causada desse modo, então a crença
de S em p no momento t está justificada.
Mas isto não funciona. Suponha-se que Jones acredita que as suas
crenças de memória são causadas de maneira confiável a despeito de
todos os testemunhos contrários (fidedignos) dos seus pais. O princípio
8 seria satisfeito, mas não diríamos que essas crenças estão justificadas.
A seguir, poderíamos tentar 9, que é mais forte do que 8 e,
diferentemente de 7, é formalmente admissível como cláusula de base.
9) Se a crença de S em p no momento t for causada por um processo cognitivo confiável,
e S acreditar no momento t que a sua crença em p é causada desse modo, e essa
metacrença for causada por um processo cognitivo confiável, então a crença de S em p no
momento t está justificada.
Uma primeira objeção a 9 é que impede erradamente criaturas
irreflexivas — criaturas como os animais ou as crianças muito pequenas,
que não têm crenças sobre a gênese das suas crenças — de ter crenças
justificadas. Quem partilhar a minha perspectiva de que a crença
justificada é, grosso modo, uma crença bem formada, seguramente aceita
que os animais e as crianças muito pequenas podem ter crenças
justificadas.
Um segundo problema com 9 diz respeito à sua fundamentação lógica
subjacente. Visto que 9 é proposta como substituta de 6A, sugere que a
confiabilidade da própria ancestral cognitiva de uma crença não a torna
justificada. Mas, ao que parece, a sugestão é que a confiabilidade da
ancestralidade de uma metacrença confere justificação à crença de
primeira ordem. Por que há de ser assim? Talvez nos sintamos atraídos
pela idéia de um efeito de transmissão de cima para baixo: e assim, se
uma crença de nível n+1 estiver justificada, a sua justificação seria
transmitida a uma crença de nível n. Mas mesmo que a teoria da
transmissão de cima para baixo esteja correta, não é aqui de grande
ajuda. Não há garantia, partindo da satisfação da antecedente de 9, de
que a própria metacrença esteja justificada.
Para obter uma revisão melhor da nossa teoria, reexaminemos o caso
de Jones. Este tem fortes indícios contra algumas proposições a respeito
do seu passado. Não usa estes indícios, mas se os usasse de maneira
apropriada, deixaria de acreditar naquelas proposições. Ora, o uso
apropriado de indícios seria um caso de um processo (condicionalmente)
confiável. Assim, o que podemos dizer de Jones é que ele não usa certos
processos (condicionalmente) confiáveis que poderia e deveria ter usado.
É inegável que se tivesse usado esse processo, teria “piorado” os seus
estados doxásticos: teria trocado algumas crenças verdadeiras pela
suspensão do juízo. Mas não poderia saber disso no caso em questão.
Portanto, não fez algo que, epistemicamente, deveria ter feito. Este
diagnóstico sugere uma mudança fundamental na nossa teoria. O
estatuto justificacional de uma crença não é só uma função dos processos
cognitivos que efetivamente são empregados na sua produção; é também
uma função de processos que poderiam e deveriam ser empregados.
Tendo estes aspectos em mente, podemos, a título experimental,
propor a seguinte revisão da nossa teoria, centrando-nos novamente num
princípio de cláusula de base, mas omitindo certos detalhes, no interesse
da clareza:
10) Se a crença de S em p no momento t for o resultado de um processo cognitivo
confiável, e não houver um processo confiável ou condicionalmente confiável disponível
a S que, caso tivesse sido usado por S, além do processo realmente usado, levaria S a não
acreditar em p em t, então a crença de S em p no momento t está justificada.
Há vários problemas com esta proposta. Primeiramente, há um problema
técnico. Não se pode usar um processo de formação de crenças (ou de
formação de estados doxásticos) adicional bem como o processo original
se o adicional levar a um estado doxástico diferente. Não se estaria
usando o processo original de modo algum. Portanto, precisamos de uma
formulação um pouco diferente da contrafactual relevante. Porém, visto
que a idéia básica é razoavelmente clara, não tentarei aprimorar a
formulação agora. Um segundo problema diz respeito à noção de
processos de formação de crenças (ou de estados doxásticos)
“disponíveis”. O que é isso de um processo estar “disponível” para o agente
cognitivo? Os procedimentos científicos estavam “disponíveis” para as
pessoas que viviam em eras pré-científicas? Além disso, parece
implausível dizer que todos os processos “disponíveis” devem ser usados,
pelo menos se incluímos processos como a coleta de novos indícios.
Certamente que uma crença pode por vezes estar justificada ainda que a
coleta de indícios adicionais produziria uma atitude doxástica diferente.
O que penso que devemos ter em mente aqui são processos adicionais
como trazer à mente indícios adquiridos previamente, avaliar as suas
implicações, etc. Isso é certamente algo vago, mas aqui novamente a
nossa noção comum de justificação é vaga, sendo conseqüentemente
apropriado que o nosso analisans tenha o mesmo tipo de vagueza.
Isto completa o esboço da minha concepção de crença justificada.
Antes de concluir, contudo, é essencial fazer notar que há um uso
importante de “justificado” que não é captado nesta concepção, mas pode
ser captado por uma concepção intimamente relacionada com esta.
Há um uso de “justificado” que não implica ou pressupõe que há
uma crença que é justificada. Por exemplo, se S está a tentar decidir
acreditar ou não em p e pede o nosso conselho, podemos dizer-lhe que
tem “justificação” para o fazer. Não queremos com isso sugerir que
ele tem uma crença justificada, dado sabermos que está ainda a
suspender o juízo. O que queremos dizer, aproximadamente, é
que estaria ou poderia estar justificado caso acreditasse que p. O estatuto
justificacional que atribuímos neste caso não pode ser uma função das
causas que fazem S acreditar em p, pois não há qualquer crença, da parte
de S, em p. Assim, a concepção de justificação que demos até agora não
pode explicar este uso de “justificado”. (Não se segue que este uso de
“justificado” não tem conexão com ancestrais causais. O seu uso
apropriado pode depender do ancestral causal do estado cognitivo do
agente, ainda que não do ancestral causal da sua crença em p.)
Distingamos dois usos de “justificado”: um uso ex post e um uso ex
ante. O uso ex post ocorre quando há uma crença, e dizemos dessa
crença que está justificada (ou não). O uso ex ante ocorre quando não há
tal crença, ou quando queremos ignorar a questão de haver tal crença.
Neste caso, dizemos, quanto à pessoa, independentemente do seu estado
doxástico relativo a p, que p é (ou não) adequada para ser objeto da sua
crença.17
Dado que oferecemos uma concepção da justificação ex post, será
suficiente se analisarmos a justificação ex ante nos termos daquela. Tal
análise, creio, é fácil de obter. S está justificado ex ante em crer
que p em t apenas no caso de o seu estado cognitivo total em t ser tal que
desse estado ele poderia vir a crer que p de tal modo que a sua crença
estaria justificada ex post. Mais precisamente, ele está justificado ex
ante em crer que p em t apenas no caso de lhe estar disponível uma
operação confiável de formação de crenças tal que a aplicação dessa
operação ao seu estado cognitivo total em t resultaria, mais ou menos
imediatamente, na sua crença de que p e esta crença estaria justificada ex
post. Formulando formalmente, temos o seguinte:
11) A pessoa S está justificada ex ante em acreditar que p em t se, e só se, há uma
operação confiável de formação de crenças disponível para S tal que se S a aplicasse ao
seu estado cognitivo total em t¸S acreditaria em p em t-mais delta (para um pequeno
delta adequado) e essa crença estaria justificada ex post.
Para que o analysans de 11 seja satisfeito, o estado cognitivo total
em t tem de ter uma ancestral causal adequada. Logo, 11 é
implicitamente uma concepção histórica da justificação ex ante.
Como indiquei, a maior parte deste artigo visou a justificação ex
post. Este é o analysandum apropriado se estivermos interessados na
conexão entre a justificação e o conhecimento, dado que o que é crucial
para que uma pessoa conheça ou não uma proposição é se ela tem
uma crença efetiva na proposição que é justificada. Contudo, dado o
interesse de muitos epistemólogos na justificação ex ante, é apropriado
que uma teoria geral da justificação tente fornecer uma explicação
também desse conceito. A nossa teoria fá-lo muito naturalmente, pois a
explicação da justificação ex ante resulta diretamente da nossa
explicação da justificação ex post.18
Alvin Goldman
Justification and Knowledge, org. G. S. Pappas (Dordrecht: D. Reidel, 1979), pp. 1–23.

Notas
1. “A causal Theory of Knowing”, The Journal of Philosophy 64, 12 (22 de
Junho de 1967): 357-372; “Innate Knowledge”, In Stich, org. Innate
Ideas (Berkeley: University of California Press, 1975); e “Discrimination
and Perceptual Knowledge”, The Journal of Philosophy 73, 20 (18 de
Novembro de 1976): 771–791.
2. Note-se que a escolha de um formato recursivo não é tendenciosa,
favorecendo esta ou aquela teoria. Um formato recursivo é perfeitamente
geral. Especificamente, um conjunto explícito de condições necessárias e
suficientes é apenas um caso especial de um formato recursivo, i.e., um
caso em que não há cláusula recursiva.
3. Muita das tentativas que terei em consideração são sugeridas pelo que está
presente em William P. Alston, “Varieties of Privileged Access”, American
Philosophical Quarterly 8 (1971), 223–241.
4. Tal definição (ainda que sem o termo modal) é dada, por exemplo, por W.
V. Quine e J. S. Ullian em The Web of Belief (Nova Iorque: Random House,
1970), p. 21. Diz-se que as afirmações são auto-evidentes apenas no caso
em que “entendê-las é acreditar nelas”.
5. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, Inc., 1977, p. 22.
6. Presumo, é claro, que “nomologicamente necessário” é de re com respeito
a “S” e “t” nesta interpretação. Não irei deter-me em problemas que possam
surgir a este respeito, dado que viso principalmente questões diferentes.
7. Este pressuposto viola a tese a que Davidson chama “o anomalia do
mental”. Cf. “Mental Events”, in L. Foster e J. W. Swanson, orgs., Experience
and Theory (Amherst: University of Massachusetts Press, 1970). Mas não é
claro que esta tese seja uma verdade necessária. Assim, parece correto
pressupor a sua falsidade para fornecer um contra-exemplo. O exemplo não
implica nem impede a teoria da identidade mental-físico.
8. O exemplo de Keith Lehrer do advogado cigano visa mostrar que uma
exigência causal é inapropriada. (Veja-se Knowledge, Oxford: University
Press, 1974, pp. 124-125.) Mas considero que o seu exemplo não é
convincente. Na medida em que imagino claramente que o advogado fixa
a sua crença unicamente em resultado das cartas, parece-me intuitivamente
incorreto dizer que ele sabe — ou que tem uma crença justificada — que o
seu cliente está inocente.
9. Esta definição não é exatamente o que precisamos para os propósitos em
mãos. Como Ernest Sosa faz notar, a introspecção revelar-se-á um processo
que depende das crenças dado que por vezes os dados de entrada do
processo será uma crença (quando o conteúdo da introspecção é uma
crença). Intuitivamente, contudo, a introspecção não é o gênero de
processo que possa ser apenas condicionalmente confiável. Não sei como
aprimorar a definição de modo a evitar esta dificuldade, mas trata-se de
um aspecto menor e isolado.
10. Pode-se objetar que os princípios 6A e 6B estão conjuntamente abertos a
análogos do paradoxo da lotaria. Uma série de processos compostos de
processos confiáveis mas não perfeitamente confiáveis pode ser
extremamente não confiável. Contudo, aplicar 6A e 6B conferiria justificação
a uma crença que é causada por tal série. Em resposta a esta objeção
podemos indicar simplesmente que a teoria visa captar a nossa noção
comum de justificação, e esta noção comum formou-se sem reconhecer este
tipo de problema. A teoria não está errada enquanto teoria da concepção
corrente (ingênua) de justificação. Por outro lado, se queremos que uma
teoria faça mais do que captar a concepção comum de justificação, poderá
ser possível fortalecer os princípios para evitar análogos do paradoxo da
lotaria.
11. Devo a Mark Pastin este aspecto.
12. Cf. Theory of Knowledge (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice Hall, 1977),
segunda edição, pp. 17, 114-116.
13. Cf. “A Causal Theory of Knowing”, op. cit. O aspecto da confiabilidade da
minha teoria também tem precursores em artigos meus anteriores sobre o
conhecimento: “Innate Knowledge”, op. cit. e “Discrimination and
Perceptual Knowledge”, op. cit.
14. A perspectiva de que a introspecção é retrospecção foi assumida por Ryle,
e antes dele (como Charles Hartshorne me fez notar) por Hobbes,
Whitehead e possivelmente Husserl.
15. Claro que, se as pessoas no mundo M descobrirem indutivamente que o
sonhar alto é confiável, e se basearem regularmente as suas crenças nesta
inferência indutiva, é bastante não problemático e evidente que as suas
crenças estão justificadas. O único caso interessante é quando as suas
crenças são formadas puramente pelo sonhar alto, sem usar inferência
indutiva. A sugestão contemplada neste parágrafo do texto é que, no
mundo imaginado, mesmo o sonhar alto puro conferiria justificação.
16. Estou aqui em dívida para com Mark Kaplan.
17. A distinção entre justificação ex post e ex ante é similar à distinção de
Roderick Firth entre garantia doxástica e proposicional. Veja-se o seu “Are
Epistemic Concepts Reducible to Ethical Concepts?”, in Alvin I. Goldman e
Jaegwon Kim, orgs., Values and Morals, Essays in Honor of William
Frankena, Charles Stevenson, and Richard Brandt (Dordrecht: D. Reidel,
1978).
18. A investigação para este artigo começou quando o autor era membro da
Fundação de Homenagem a John Simon Guggenheim e do Centro de
Estudos Avançados em Ciências do Comportamento. Estou grato pelo apoio
que me foi concedido. Recebi críticas e comentários proveitosos de Holly S.
Goldman, Mark Kaplan, Fred Schmitt, Stephen P. Stich e muitos outros em
várias universidades onde apresentei versões anteriores deste artigo.
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ISSN 1749-8457

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