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Algumas reflexões a propósito do


Acórdão n.º 123/2021 do Tribunal
Constitucional. Constitucionalidade da
eutanásia ativa direta? Mundividência,
conceções de pessoa humana e de «ato
médico» subjacentes aos Decretos da
Assembleia da República n.os 109/XIV
e 199/XIV*

Teresa Quintela de Brito**


Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e jurisconsulta
http://orcid.org/0000-0002-4924-8803

Dedico este texto ao Senhor Professor Doutor Américo Taipa de Carvalho, em cujos Estudos
em Homenagem (Porto: Universidade Católica Editora, 2022) não consegui participar, apesar do
amável e honroso convite que me foi endereçado pela respetiva Comissão Organizadora.

* Texto que serviu de base à conferência proferida no IV Seminário da Associação dos Assessores do
Tribunal Constitucional (AATRIC). Jurisprudência constitucional recente, Lisboa, 15 de dezembro de 2021.
Agradeço ao Senhor Dr. António Manuel Abrantes, Presidente da Direção da AATRIC, o desafio de voltar
a pensar e escrever sobre este tema.
** Ac. = Acórdão; al. = alínea; als. = alíneas; AR = Assembleia da República; art. = artigo; arts. = artigos;
CP = Código Penal; CRP = Constituição da República Portuguesa; GG = Grundgesetz (Lei Fundamen-
tal); IVG = interrupção voluntária da gravidez; PR = Presidente da República; SNS = Serviço Nacional de
Saúde; StGB = Strafgesetzbuch (Código Penal); TC = Tribunal Constitucional; TEDH = Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos.

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152. https://doi.org/10.34632/catolicalawreview.2022.11751 95


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SUMÁRIO
1. Introdução
2. Acórdão n.º 123/2021 do TC: pontos de concordância
2.1. Delimitação do objeto do pedido de apreciação da constitucionalidade
e de parte do «horizonte problemático da antecipação da morte
medicamente assistida»
2.2. Não neutralidade do Estado no que respeita à vida humana e diretriz
da regulação legal da morte «medicamente assistida»
2.3. Rejeição pelo TC português de algumas teses sufragadas pelo
TC austríaco e pelo TC Federal alemão
3. Pontos de divergência do Acórdão n.º 123/2021 do TC
3.1. Direito a uma morte «medicamente assistida»?
3.2. «Direito a morrer ou a ser morto» alicerçado no direito à
autodeterminação à luz do respetivo projeto de vida?
4. «Morte a pedido» e sua (difícil) inserção no ordenamento jurídico
4.1. Liberdade negativa de suicídio: não direito ao suicídio, muito menos
direito ao homicídio a pedido
4.2. Direitos à autodeterminação e à livre realização da personalidade:
fontes possíveis de um «direito» à morte «medicamente assistida»?
4.3. Indistinção entre autolesão e heterolesão da vida
4.4. Aceção de vidas, mundividência e conceção de pessoa subjacente
aos Decretos da AR n.os 109/XIV e 199/XIV
5. Morte «medicamente assistida»: violação de deveres ético-deontológicos,
repercussão no modelo de medicina, na relação médico-doente e na
conceção da morte
6. Verdadeira liberdade e autonomia no pedido de morte de pessoas em
situações-limite e no atual quadro de funcionamento do SNS?
7. Morte «medicamente assistida»: um novo conceito jurídico-penal de ato
médico?
8. Conclusões e propostas de lege ferenda
Bibliografia

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

1. Introdução

Este não é, nem pretende (de todo) ser um texto de dogmática jurídico-
-constitucional e jurídico-penal sobre o estado da arte na questão do chamado
«auxílio médico à morte», com apresentação e discussão de teses doutrinárias
a favor e contra a sua legalização, seguidas de uma tomada de posição neste
debate.
Convocando diversas perspetivas (Ética e Deontologia médicas, Política
Criminal e Política de Saúde, Direito Constitucional e Direito Penal), leva-se a
cabo uma reflexão pessoal e fundamentada sobre:
(i) Algumas posições assumidas pelo TC no Ac. n.º 123/2021, apresentando
as razões de concordância ou discordância relativamente às mesmas;
(ii) Aspetos nucleares (à luz das perspetivas e nódulos problemáticos con-
vocados) do regime dos Decretos da AR n.os 109/XIV e 199/XIV, dos Projetos
de Lei apresentados na atual XV Legislatura (aspetos para os quais chamaram a
atenção os Pareceres de diversas ordens profissionais e do Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida, os quais igualmente se consideram de forma
detida) e, ainda, da Lei Orgânica n.º 3/2021 (Lei da Eutanásia espanhola). Lei
que tanta influência teve e terá certamente no processo legislativo português
sobre a morte «medicamente assistida», como logo salientou o PR quando de-
volveu à AR, sem ratificação, o Decreto n.º 199/XIV.
O Decreto da AR n.º 199/XIV, pretendendo alegadamente ir ao encontro das
objeções suscitadas pelo Ac. n.º 123/2021 ao Decreto n.º 109/XIV, foi para além
do quadro delimitado pelo TC para a invocada cessação do dever, imposto ao
Estado pelo art. 24.º/1 da CRP, de proteção da vida humana, ao prescindir do
carácter fatal (i.e., irreversivelmente determinante da morte1) e/ou da fase ter-
minal (iminência irreversível do desfecho fatal) da doença grave e incurável e da

1 O que se não confunde com «doença grave que ameace a vida, em fase avançada e progressiva,
incurável e irreversível» [cfr. art. 2.º, al. d), do Decreto n.º 199/XIV, definindo «doença grave ou incurável»].
Sucede que a ameaça à vida não significa necessariamente doença determinante da morte, de modo a
falar-se, legitimamente, de mera «antecipação da morte». Há doenças em fase avançada, progressiva,
incurável e irreversível (justificando a prestação de cuidados paliativos) que ameaçam a vida, sem serem
irreversivelmente determinantes da morte.
Em sentido contrário, porém, André Dias Pereira (Declaração ao Parecer do CNECV n.º 116/2022, p. 16)
identificando «fatalidade» com (mera) «incurabilidade» que «ameaça a vida», mas admitindo na mesma
página um outro significado de «fatalidade» (aquele para que se aponta neste texto), ao afirmar: «nem
nestas Propostas [do BE e do PS], nem nos diplomas anteriormente aprovados [Decretos da AR. n.os
109/XIV e 199/XIV], se exigia que esta “lesão definitiva” fosse “fatal”». Ou seja, agora, o adjetivo «fatal» é
implicitamente usado como sinónimo de inelutavelmente determinante da morte. Assim se evidencia que,
na plasticidade destes conceitos e fórmulas, não se trata de um «“fetiche” linguístico», mas da impossibi-
lidade de delimitar o (exato, claro e preciso) campo de alegada cessação do dever estatal de proteger a
vida humana, cuja inviolabilidade proclama a Constituição portuguesa.

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lesão definitiva de gravidade extrema. Na definição desta, o Decreto n.º 199/XIV


coloca o acento tónico no carácter «amplamente incapacitante» da lesão e na
situação de dependência em que deixa a pessoa, relativamente a terceiro ou a
apoio tecnológico, «para a realização das atividades elementares da vida diária,
existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham
a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa» [cfr.
art. 2.º, al. e)]. Portanto, decisivamente, o que torna atendível o pedido de morte
não é o carácter fatal e/ou terminal da «lesão», mas a ampla incapacitação que
determina, colocando quem dela padece numa situação de dependência para
a realização de «atividades elementares da vida diária».
No Ac. n.º 123/2021, o TC só não se pronunciou expressamente sobre
a necessidade do carácter fatal e/ou terminal da lesão definitiva de gravidade
extrema (todavia pressuposto pela noção de «antecipação da morte» em que
assenta esta iniciativa legislativa – cfr. art. 1.º, dos Decretos n.os 109 e 199/XIV),
porque ab initio considerou insuficientemente densificado tal conceito pelo art.
2.º/1, do Decreto n.º 109/XIV, no que respeita à natureza definitiva da lesão, à
sua «gravidade extrema» e à exigência de um «consenso científico» sobre estas
duas características. Em consequência, o TC afirmou a inconstitucionalidade
desse segmento normativo, por violação do princípio da determinalidade da lei,
decorrente dos princípios do Estado de Direito democrático (art. 2.º da CRP)
e da reserva de lei parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias
[art. 165.º/1, al. b), da CRP], quando conjugados com a inviolabilidade da vida
humana consagrada no art. 24.º/1 da CRP (cfr. pontos 44-48 do Ac. e decisão).

Empreende-se a análise de alguns nódulos problemáticos suscitados pelo


processo legislativo relativo à morte «medicamente assistida», no estado em
que atualmente se encontra em Portugal, tendo em conta o Decreto da AR n.º
199/XIV; os Projetos de Lei apresentados já durante a presente legislatura; as
reflexões, alertas e críticas vertidas nos Pareceres de diversas ordens profissio-
nais (Ordem dos Médicos, dos Enfermeiros, dos Advogados), no Parecer n.º
116/2022 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, em textos
médicos e doutrinários mais recentes (quase todos de 2022). De entre estes,
além da razão já apontada, optou-se ainda por destacar a doutrina espanhola
crítica da legalização da eutanásia e da Lei Orgânica n.º 3/2021, pois crítica é a
postura que aqui se assume.
Uma postura que resulta do desvelamento:

(a) Da mundividência, da conceção de pessoa humana, de


sofrimento e morte, simultaneamente subjacentes e impulsiona-
das pelos Decretos da AR n.os 109/XIV e 199/XIV e pelos Projetos

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de Lei sobre a morte «medicamente assistida» apresentados na


XV Legislatura;
(b) Da evidente contrariedade do respetivo regime ao sistema
e ao ordenamento jurídico-penal, aos deveres legalmente assu-
midos pelo Estado português em matéria de prestação de cuida-
dos de saúde, maxime cuidados paliativos e em fim de vida, bem
como à ética e à deontologia médicas. Violação esta amplamente
denunciada pelas ordens profissionais ligadas à prestação de cui-
dados de saúde, que se negam a convertê-los numa pura técnica
ao serviço de (hetero)determinações normativas de uma (contin-
gente) maioria parlamentar. Tanto mais quando tais determinações
normativas, invocando o respeito pelo pluralismo de mundivisões
sobre as decisões de fim de vida, são, na realidade, também am-
plamente motivadas por considerações economicistas, de des-
solidarização com as pessoas mais débeis e (irremediavelmente)
improdutivas, mas geradoras de custos elevados2;
(c) Das repercussões da legalização da eutanásia sobre o sen-
tido da profissão médica e o modelo de medicina, a relação mé-
dico-paciente, a conceção de morte, o conceito de ato médico,
a liberdade e autonomia de doentes em situações-limites, previa-
mente abandonados à sua sorte, mas face aos quais se admite a
formulação e se aceita a execução do pedido de morte no atual
contexto de (não) funcionamento do SNS, submergido numa crise
estrutural e exaurido pela pandemia de Covid-193.

Uma última nota metodológica: a opção pelo amplo recurso a citações


diretas apenas pretende expressar respeito, lisura e lealdade na identificação
completa e rigorosa das fontes e fazer-lhes justiça, dando o merecido desta-
que àqueles que, anteriormente, pensaram e escreveram sobre estas questões,
sobretudo os que o fizeram na óptica aqui adotada, contrária ao mainstream.

2 Lapidares Campos/Costa (2020), p. 636: «As causas do renascimento do debate sobre a eutanásia
entre nós são ideológicas, é certo, mas ele ressurge neste preciso momento também porque os recursos
escasseiam e o financiamento do Serviço Nacional de Saúde está em risco. (…) O debate tem, pois, um
contexto económico – a inversão da pirâmide demográfica, as externalidades negativas da evolução da
ciência e da técnica médicas, o aumento do tempo de vida, o preço dos cuidados paliativos, sobretudo
quando avaliado em quality adjusted life years.»
3 Campos/Costa (2020), pp. 629-649, chamam igualmente a atenção para alguns destes aspetos, que
serão mais bem explicitados ao longo do texto.

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2. Acórdão n.º 123/2021 do TC: pontos de concordância

Este Acórdão ficará, sem dúvida, para a história como um dos mais im-
portantes prolatados pelo TC, pela complexidade e extraordinária relevância
ética, filosófica, política, jurídico-constitucional e jurídico-penal das temáticas
abordadas.

2.1. Delimitação do objeto do pedido de apreciação da constitucio-


nalidade e de parte do «horizonte problemático da antecipação da
morte medicamente assistida»4

Lê-se no ponto 12 do Acórdão:

«O objeto material do pedido enunciado pelo requerente [tem]


de ser recortado, para que (…) adquira sentido no quadro com-
preensivo em que se integra e justifica, na sua conjugação com
os demais elementos da previsão da norma. Assim, a norma sin-
dicada a título principal, tal como compreendida pelo Tribunal, é a
que consta do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, com todo o
seu conteúdo prescritivo (designadamente [o] que lhe é projetado
a partir do número 3), enquanto norma completa, ao considerar
antecipação da morte medicamente assistida não punível a que
ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja
atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofri-
mento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de
acordo com o consenso científico5 ou doença incurável e fatal 6,

4 Para uma crítica da expressão «morte medicamente assistida», Carneiro/Carneiro/Simões (2022), p.


65: «A “morte (…) por decisão da própria pessoa” não pode ser confundida com a “morte medicamente
assistida”, como se escreve no artigo 2.º do Decreto n.º 199/XIV. A “morte medicamente assistida” aconte-
ce com todos os que têm assistência médica nos últimos dias ou horas de vida, o que é boa prática.»
Itálico no original.
5 O art. 2.º, al. e), do Decreto n.º 199/XIV da AR, prescinde da referência ao «consenso científico»
na definição da «lesão definitiva de gravidade extrema», na sequência das dúvidas suscitadas pelo Ac.
n.º 123/2021 do TC quanto à capacidade de tal exigência dotar de suficiente determinação o (impreciso)
conceito de lesão definitiva de gravidade extrema, à luz do Decreto n.º 109/XIV da AR (pontos 45-48).
6 O pressuposto da existência de «doença incurável e fatal» foi substituído, no Decreto n.º 199/XIV,
pela referência ora a «doença grave ou incurável» ([arts. 2.º, al. d), e 3.º/1, al. b), e 3, e 6.º/1], ora a doença
«incurável e fatal» (arts. 3.º/1 e 6.º/5). Esta flutuação terminológica (em questão fundamental) constituiu um
dos motivos da devolução à AR deste Decreto pelo PR, sem promulgação, a 29.11.2021, pedindo o PR
à AR que clarificasse «se é exigível “doença fatal”, se só “incurável”, se apenas “grave”» (cfr. https://www.
presidencia.pt/atualidade/toda-a-atualidade/2021/11/presidente-da-republica-devolve-sem-promulga-
cao-decreto-da-assembleia-da-republica-sobre-morte-medicamente-assistida/ [27.08.2022]).

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quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde e con-


cretizada mediante pedido que obedece a procedimento clínico e
legal [itálico no original].
Este recorte ou entendimento permite ao Tribunal analisar
a conformidade de tal norma com a Constituição, incluindo o
parâmetro do direito à vida, consagrado no respetivo artigo 24.º,
n.º 1.»

A ideia do TC é mais bem concretizada no ponto 14 do Acórdão, inserido


no título dedicado ao «horizonte problemático da antecipação da morte medi-
camente assistida»:

«atendendo ao significado objetivo de tal prática – matar al-


guém a seu pedido ou ajudar alguém a suicidar-se – a discussão
das condições concretas ou dos pressupostos da mesma prática
só tem sentido – e só tem utilidade –, caso a mesma não seja,
desde logo, per se, incompatível com a Constituição, nomeada-
mente com o disposto no seu artigo 24.º, n.º 1. A antecipação da
morte medicamente assistida, pela sua própria natureza, contende
obviamente com o valor da vida humana afirmado nesse preceito,
pelo que tal questão, além de incontornável, é prévia a todas as
demais expressamente colocadas pelo requerente».

2.2. Não neutralidade do Estado no que respeita à vida humana e


diretriz da regulação legal da morte «medicamente assistida»

Concorda-se ainda, totalmente, com o que se lê no ponto 33 do Ac.


n.º 123/2021 do TC:

«o Estado, nas suas diversas expressões institucionais e fun-


cionais, não pode ser neutro no que à vida humana diz respei-
to: tem de a proteger e promover. No caso do acesso à morte

Na sequência deste pedido, os Projetos de Lei n.os 5/XV/1.ª (Bloco de Esquerda – BE), 74/XV (Partido
Socialista – PS) e 111/XV/1.ª (Iniciativa Liberal – IL) vieram esclarecer que a doença tinha de ser grave e
incurável [art. 2.º, al. d)]. Já o Projeto de Lei n.º 83/XV/1.ª (PAN) alude a doença grave ou incurável que,
porém, define do mesmo modo que os demais Projetos de Lei como «doença incurável e irreversível».
De notar que, em Espanha, o art. 3.º, al. c), da Lei Orgânica n.º 3/2021, de 25.03, define doença grave
e incurável como la que por su naturaleza origina sufrimientos físicos o psíquicos constantes e insopor-
tables sin posibilidad de alivio que la persona considere tolerable, con un pronóstico de vida limitado, en
un contexto de fragilidad progresiva. Portanto, associa a doença grave e incurável ao conceito de doença
fatal (porventura, até, terminal: «prognóstico de vida limitado») e à fragilização progressiva de quem a sofre.

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medicamente assistida, esse esforço de proteção tem de partir da


consideração da situação de vulnerabilidade e de sofrimento das
pessoas que se decidem por tal prática. Além disso, do ponto de
vista constitucional, a morte voluntária não é uma solução satis-
fatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida.
O que deve promover-se é antes a vida e a sua qualidade, até
ao fim. Daqui decorre, com fundamento na dimensão objetiva do
direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, a
imposição de adotar um sistema legal de proteção orientado para
a vida» [itálico no original].

Lê-se mais adiante no mesmo ponto 33:

«Como linha de princípio orientadora – como diretriz – para a


determinação [das] situações [de admissibilidade da morte “medi-
camente assistida”], dir-se-á que não está em causa uma escolha
entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação
da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um
processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tran-
quila.»

Neste segundo extrato destaca-se a inequívoca associação e limitação, por


parte do TC, da legitimação da «morte a pedido» a um contexto de doença
grave, incurável e fatal e de mera «antecipação da morte» relativamente a um
doente já incurso num processo natural (e irreversível) de morte. O que corro-
bora o bem fundamentado da correspondente razão invocada pelo PR para
a devolução à AR, sem promulgação, do Decreto n.º 199/XIV, na medida em
que a respetiva norma definitória [art. 2.º, al. d)] prescinde do carácter fatal (i.e.,
irreversivelmente determinante da morte) da doença grave e/ou incurável, consi-
derando suficiente que esta ameace a vida e se encontre em estado avançado,
progressivo e irreversível.
Também o Parecer da Ordem dos Médicos sobre os Projetos de Lei n.os
74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 9.06.2022, adverte: a «antecipação da mor-
te» pressupõe a proximidade da morte natural e, portanto, a existência de um
doente em fase terminal, i.e., com «um prognóstico de até seis meses do exitus
natural»7. O mesmo Parecer dá conta da ausência, naqueles Projetos de Lei

7 Já o art. 2.º, da Lei n.º 31/2008, de 18.07 (Direitos das pessoas em contexto de doença avançada e
em fim de vida) define «pessoa em contexto de doença avançada e em fim de vida» como aquela que pa-
dece de doença grave, que ameace a vida, em fase avançada, incurável e irreversível e exista prognóstico
vital estimado de 6 a 12 meses.

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humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

(e em todos os apresentados na XV Legislatura), da restrição da «morte a pedido»


aos doentes em fase terminal. Limitação necessária para obstar ao uso indevido
da lei, pois, numa «doença grave e incurável», «a “antecipação” é indeterminada,
podendo corresponder a muitos anos, caso não haja esta delimitação».

2.3. Rejeição pelo TC português de algumas teses sufragadas pelo


TC austríaco e pelo TC Federal alemão

Ao extrair do art. 24.º da CRP uma vertente objetiva do direito à vida [corres-
pondente ao «interesse da sociedade em manter o valor da vida», à «dimensão
social da pessoa» e à «obrigação do Estado social de a promover» – Mapelli
(2022), p. 212, ao afirmar o dever do Estado de «promover a vida e a sua qua-
lidade até ao fim» e ao restringir a despenalização da morte a pedido à «pos-
sibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um
processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila», o TC
português, no Ac. n.º 123/2021, afastou-se – com toda a razão – da tese preco-
nizada no Acórdão do TC austríaco de 11.12.20208. Refiro-me à tese, segundo
a qual, «a livre autodeterminação também inclui a decisão [sobre o] se e por que
razões um indivíduo quer terminar a sua vida (…). Tudo isto depende [somente]
das convicções e ideias de cada indivíduo e reside na sua autonomia» (n.m. 73).
Esta tese levou o TC austríaco a revogar, por inconstitucionalidade, a incri-
minação da ajuda ao suicídio, prevista no § 78 do CP austríaco, deixando ape-
nas subsistir a do incitamento ao suicídio (n.m. 116). Assim decidiu por entender
que: «a proibição do suicídio com a assistência de terceiros pode constituir uma
intromissão particularmente intensa no direito do indivíduo (…) [levando-o] a
cometer uma forma de suicídio desumana, [encontrando-se, segundo a sua]
decisão livre numa situação que já não garante uma vida autodeterminada na
integridade e identidade pessoais e, portanto, com dignidade» (n.m. 80).
Pelos mesmos motivos, o TC português, no Ac. n.º 123/2021, distanciou-
-se igualmente – e com toda a razão – da tese expendida no Acórdão do TC
Federal alemão, de 26.02.20209, segundo a qual:

8 Verfassungsgerichtshof, G 139/2019-71, 11. Dezember 2020, disponível em https://www.vfgh.gv.at/


downloads/VfGH-Erkenntnis_G_139_2019_vom_11.12.2020.pdf [27.08.2022].
9 BVerfG, Urteil des Zweiten Senats vom 26. Februar 2020, disponível em https://www.bundesver-
fassungsgericht.de/SharedDocs/Downloads/DE/2020/02/rs20200226_2bvr234715.pdf?__blob=publica-
tionFile&v=4 [27.08.2022]. Para uma análise deste Ac., veja-se Coca Vila (2020), pp. 501-513.

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«o direito à morte autodeterminada não se limita a situações


definidas por outros. O direito de dispor da própria vida, que toca
na esfera mais íntima da autodeterminação individual, não se limi-
ta especialmente a estados de doença graves ou incuráveis ou a
certas fases da vida e da doença. Restringir o âmbito da proteção
[deste direito à morte autodeterminada] a determinadas causas e
motivos equivaleria a uma avaliação dos motivos da pessoa que
decidiu cometer suicídio e a uma predeterminarão do [seu] con-
teúdo, o que é alheio ao conceito de liberdade da Lei Fundamen-
tal. (…) O artigo 1(1) da GG protege a dignidade do ser humano tal
como ele [a] compreende e se torna consciente de si mesmo na
sua individualidade (…). Decisiv[a] é a vontade do titular do direi-
to fundamental, que não pode ser avaliada com base em valores
gerais, preceitos religiosos, modelos sociais para lidar com a vida
e a morte ou considerações de razoabilidade objetiva» (n.m. 210).

Esta tese conduziu o TC Federal alemão a considerar que a «proibição da


promoção comercial do suicídio, pelo § 217 (1) do StGB, reduz as possibilida-
des de suicídio assistido de tal forma que o indivíduo fica de facto sem espaço
para exercer a sua liberdade constitucionalmente protegida». Isso por entender
que o «direito à morte autodeterminada» – alicerçado no direito ao desenvol-
vimento da personalidade enquanto direito geral de personalidade (art. 2/1 da
GG) e na garantia da dignidade humana (art. 1/ 1 da GG) – implica o reconheci-
mento tanto da «liberdade de tirar a própria vida», como da «liberdade de pro-
curar ajuda de terceiros e de fazer uso dessa ajuda, na medida em que ela seja
oferecida» [Sumário, pontos 1, als. a) e c), e 5; cfr., ainda, n.m. 211-212 do Ac.].
Esta liberdade de procurar ajuda de terceiros e de fazer uso da ajuda oferecida
impõe que o «direito à morte autodeterminada» também seja protegido «contra
a restrição por uma proibição [penal] contra terceiros que oferecem assistência
no âmbito da sua liberdade10» (n.m. 213).
Porém, esta última tese (de que liberdade de procurar ajuda de tercei-
ros e de fazer uso da ajuda oferecida impõe que o «direito à morte autode-
terminada» também seja protegido «contra a restrição por uma proibição
[penal] contra terceiros que oferecem assistência no âmbito da sua liber-
dade») já foi acolhida pelo Ac. n.º 123/2021 do TC. Porventura, procurando
ignorar que tal tese foi afirmada, tanto pelo TC austríaco, como pelo TC fe-
deral alemão, exclusivamente, no âmbito do auxílio ao suicídio, já não no

10 Considerando-se, assim, que qualquer pessoa (singular ou coletiva) tem a correspondente liberdade
de oferecer ajuda ao suicídio, podendo mesmo exercer comercialmente essa atividade.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

da eutanásia ativa direta11. Âmbito ao qual o TC português pretende esten-


der a referida tese, por considerar irrelevante, na linha do Decreto n.º 109/
/XIV da AR, a distinção entre auto e heterolesão da vida por parte do paciente
que pede a «antecipação da morte»12.
Aqui começam os pontos de divergência face à jurisprudência do Ac.
n.º 123/2021 do TC.

3. Pontos de divergência do Acórdão n.º 123/2021 do TC

3.1. Direito a uma morte «medicamente assistida»?

À luz do Acórdão este direito do doente libertaria os médicos, «sem proble-


mas de consciência em intervir na antecipação da morte», do dever deontoló-
gico de não matar, nem auxiliar ao suicídio de qualquer paciente, no final de um
procedimento administrativo especial que autoriza a prestação do «serviço de
morte» (cfr. pontos 18-19 do Ac. n.º 123/2021 do TC)13.
Lê-se no ponto 14 do Acórdão:

«O fim precípuo do legislador, pelo menos no tocante à norma


do artigo 2.º, n.º 1, do citado Decreto, foi o de deixar de punir tal
colaboração, desde que realizada por profissionais de saúde com
observância de determinadas condições materiais e procedimen-
tais, libertando-os, desse modo, do dever de não matar ou de não
ajudar ao suicídio de terceiros. Ou seja, (…) na perspetiva de quem
deseja morrer: o direito a uma morte medicamente assistida nas

11 Assim acontece, porque o TC Federal alemão fundamenta o «direito à morte autodeterminada» no


direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no art. 2.º/1 da GG e entendido como direito
geral à liberdade de ação. O que significa que o seu âmbito de aplicação se limita, por um lado, às ações
do titular desse direito, protegendo, inclusive, situações e posições jurídicas deste na medida em que as in-
tervenções estatais nestas últimas afetam indiretamente a liberdade de ação, e, por outro, às intervenções
do Estado nas condutas, situações e posições do titular do direito. Assim, Castro (2020), p. 66, citando
Alexy (2008), pp. 343-344. Voltar-se-á a esta questão.
12 Concordantes Carneiro/Carneiro/Simões (2022), pp. 65-66: «Não se percebe a necessidade de atri-
buir duas designações diferentes (“morte” e “suicídio”) ao processo de “morte que ocorre por decisão da
própria pessoa”. O que legitima e despenaliza a ação é a “decisão da própria pessoa”, o seu “sofrimen-
to percebido como intolerável”» [itálico no original]; «a dicotomização do procedimento perfila-se como
preconceito ideológico e não como um preceito ético ou jurídico». Adiante, no ponto 4.3., tentar-se-á
demonstrar que assim não sucede; bem pelo contrário.
13 Em Espanha, a Ley Orgânica n.º 3/2021 valoriza a ideia de um «serviço de morte» ao ponto de en-
tregar ao contencioso administrativo a decisão última dos diferendos relativos ao procedimento da morte
a pedido ante o indeferimento da pretensão [arts. 10.º/5, 18.º, al. a), e disposição adicional quinta]. Crítica,
com toda a razão, Mapelli (2022), pp. 216-217. Para uma análise do regime espanhol, veja-se, ainda, entre
outros, Jericó (2022), pp. 1195-1211.

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condições legalmente previstas – direito esse que também é con-


ferido pelo diploma em análise – implica excluir a punibilidade dos
profissionais de saúde que, nessas mesmas condições, matem ou
colaborem na morte da pessoa que exerceu tal direito.»

No ponto 19 volta a referir-se a um «direito [da] pessoa [de] obter a colabo-


ração de profissionais de saúde na antecipação da sua própria morte».

3.2. «Direito a morrer ou a ser morto» alicerçado no direito à autode-


terminação à luz do respetivo projeto de vida?

No ponto 28 do Ac. n.º 123/2021, o TC começa por afirmar, na linha do


Ac. do TEDH, de 29.04.2002, Pretty v. UK14 (§§ 39-40): «o teor da consagração
do direito à vida na Constituição portuguesa – a vida humana é inviolável – tor-
na facilmente apreensível que aquele direito não tem uma dimensão negativa»,
enquanto «direito a morrer ou a ser morto (por um terceiro ou com o apoio da
autoridade pública)»15. Logo a seguir, tal como o referido Ac. do TEDH (§§ 65 e
67), o TC, no Ac. n.º 123/2021, pretende fundamentar tal «direito a morrer ou a
ser morto (por um terceiro ou com o apoio da autoridade pública)» na «liberdade
de cada um se autodeterminar, em função do seu projeto de vida (…), impondo
um limite ao próprio dever estatal de proteção da vida decorrente do art. 24.º
da CRP».

14 Queixa n.º 2346/02, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/fre#{%22itemid%22:[%22002-


5380%22]} [30.08.2022].
15 Na mesma linha de pensamento, Carbonell (2021), p. 58: o direito fundamental à eutanásia não é
«um direito a morrer», o qual «implicaria uma valoração positiva da morte e, por conseguinte, negativa da
vida. Não é a morrer que se tem “direito”, mas a escolher na medida do possível o momento e a forma pela
qual deixamos de viver».
Canotilho/Moreira (2007), VII ao art. 24.º, depois de colocarem a questão de saber se o direito à vida inclui
o «direito de organização da própria morte», concluem: «a Constituição não reconhece qualquer “vida sem
valor de vida”, nem garante decisões sobre a própria vida».
No mesmo sentido, Otero (2020), pp. 46 e 81: ao proclamar a inviolabilidade da vida humana, o art. 24.º/1
da Constituição não está a reconhecer um «direito sobre a vida», «susceptível de conduzir à própria viola-
bilidade, (…) [mas] um “direito à vida”, pautado pelos limites decorrentes da sua própria inviolabilidade e
dos parâmetros emergentes da dignidade humana»; «extrair do direito à vida um direito à morte assistida
é desnaturar o próprio direito à vida, consagrando a violabilidade da vida humana e habilitando um terceiro
a executar essa violação».
Também Castro (2020), p. 59, sublinha: a liberdade de dispor da própria vida não tem respaldo constitu-
cional no art. 24.º da CRP, porque, sendo os conceitos de vida e de morte incompatíveis, «o exercício do
direito à vida não [pode] comporta[r] a sua vertente negativa: o direito a morrer». Direito cujo reconheci-
mento implicaria, ademais, a afirmação de obrigações positivas de matar ou auxiliar ao suicídio o respetivo
titular.

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humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

O Acórdão retoma esta ideia no ponto 31, no qual se afirma:

«um dos objetivos subjacentes [ao art. 2.º/1 do Decreto n.º


109/XIV] é, claramente, o de, em condições controladas e mate-
rialmente justificadas na ótica da pessoa em sofrimento, conferir-
-lhe a liberdade de escolher morrer com a assistência qualificada
de terceiros sem os sujeitar a uma ação penal». Do mesmo passo,
confere-se «a certeza de que não serão punidos os profissionais
de saúde que não tenham problemas de consciência em intervi-
rem na antecipação da morte de uma pessoa que se encontre em
determinadas situações (…) e a pedido da mesma».

No ponto 32 do Acórdão assevera-se: «só por via de tal exclusão [da punibi-
lidade dos profissionais de saúde] é possível assegurar uma efetiva possibilidade
de escolha a quem pretende decidir como e quando termina a sua vida». Adian-
te, no mesmo ponto 32, explica-se: o Decreto n.º 109/XIV afastou a punibilidade
dos profissionais de saúde por auxílio ao suicídio e homicídio a pedido, por estar
ciente do conflito «entre o dever de proteção da vida e o respeito da autono-
mia pessoal em situações-limite de sofrimento», fundando-se tal opção «numa
conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos
pontos de vista ético, moral e filosófico». Conceção à luz da qual «o direito de
viver não pode transformar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias»,
incompatíveis com a conceção pessoal de dignidade do doente em causa16.

4. «Morte a pedido» e sua (difícil) inserção no ordenamento


jurídico

4.1. Liberdade negativa de suicídio: não direito ao suicídio, muito


menos direito ao homicídio a pedido

Fora dos casos previstos nos Decretos n.os 109/XIV e 199/XIV, o Código
Penal português alicerça-se na livre disponibilidade da vida por parte do respe-
tivo titular, considerando o suicídio um espaço livre de Direito e, portanto, não
punindo o suicida frustrado.

16 Contra uma conceção pessoal de dignidade manifestam-se Campos/Costa (2020), p. 646: a digni-
dade universal da pessoa reside nela própria, «em igualdade e cuidado», pois, «cada indivíduo representa,
é, toda a classe» “pessoa”. «A pessoa “é” digna. Pessoa é nome de dignidade». No entender dos Autores,
a dignidade universal da pessoa, simplesmente por o ser, impõe-se para evitar que outros, ainda que a
coberto de um pedido do próprio (pelo menos num primeiro estádio de legalização da eutanásia), venham
a julgar e avaliar a dignidade e qualidade de vida de outros [Campos/Costa (2020), pp. 644-645].

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Diz-se que um facto se situa num espaço livre de Direito, quando, não sendo
ilícito, também não é verdadeiramente aprovado pelo Direito. Este mantém-se
neutro face à conduta em causa, não a valorando jurídico-objetivamente e en-
tregando essa tarefa, em exclusivo, «à consciência ética do agente». O suicídio
pertenceria, assim, a um espaço livre de Direito: nem proibido, nem aprovado
[Dias (2019), 14.º Cap., § 35].
A propósito do suicídio, Dias (2007), p. 67, explica: «o suicídio com um mí-
nimo de liberdade, decidido em solidão existencial, representa (…) um acto de
disposição da vida pelo e para o próprio suicida, um comportamento da pessoa
sobre si mesma». Logo, falta ao suicídio «a relação intersubjectiva (…) carac-
terística da juridicidade e da anti-juridicidade num sistema jurídico de matriz
liberal», configurando-se como um «comportamento juridicamente indiferente»,
pertencente a um «espaço isento de Direito»17 (itálico acrescentado). O mesmo
já não sucede com «as interferências de terceiros no suicídio, incitando[-o] ou
auxiliando[-o]», as quais implicam «uma relação intersubjectiva, pressuposto de
todo o ilícito», e são «socialmente desvaliosas, desde que e na medida em que
promovam ou favoreçam uma decisão de auto-colocação em perigo»18.
Próximo Andrade (2012), § 11 ao art. 135.º: «O suicídio esgota o sentido
no desempenho auto-referente e autopoiético da pessoa, não pertencendo ao
sistema social (…). Já a interferência de terceiro [incitando ou auxiliando ao sui-
cídio] converte o facto num facto pertinente ao sistema social, [expondo-o] aos
seus códigos e valorações.»

17 O Autor (2007), pp. 59-60, esclarece ainda que no espaço livre ou isento de direito se incluem «ac-
ções que estão para lá do proibido e do permitido em sentido forte», mas não se trata de um âmbito alheio
a valorações jurídicas, «mais que não seja porque a sua constituição é precedida de considerações de
valor acerca das fronteiras da juridicidade».
Também Otero (2020), pp. 79-80, vê o suicídio como uma mera liberdade de facto, pertencente a um
«espaço de incoercibilidade jurídica» ou a um «espaço livre de Direito».
18 O que leva o Autor (2007), p. 68, a sustentar que a comprovação da falta de perigosidade do in-
citamento ou auxílio ao suicídio por o suicida estar «inabalavelmente decidido a pôr termo à vida, tendo
ponderado [de modo] livre e auto-responsável o significado e as consequências da sua decisão», conduz
à respetiva atipicidade criminal, por tais condutas, nessa situação, não envolverem qualquer «interferência
na decisão de suicídio».
Com todo o respeito, esta conclusão não pode – de todo – ser acompanhada quanto ao incitamento ao
suicídio. O carácter inabalável da posterior decisão de suicidar-se não intenta apagar o prévio desvalor da
determinação ao suicídio por parte de terceiro, numa clara e grave intromissão deste na livre disponibili-
dade da vida pelo seu titular. Entender de outra forma é inutilizar a incriminação do incitamento ao suicídio.
Daí que Andrade (2012), §12 ao art. 135.º, só admita a legitimidade do auxílio ao suicídio, incluindo o «sui-
cídio medicamente assistido», quando «o perigo de uma decisão apressada ou precipitada pelo termo da
vida [perde plausibilidade], à vista da perda irreversível de sentido da continuação da vida, pela iminência
irreversível da morte e pelo carácter incontrolável e insuportável do sofrimento». Nesses casos, «o exercício
da autodeterminação no sentido de pôr termo à vida afigura[-se] objectivamente razoável», postulando «o
respeito pela dignidade pessoal o respeito pela decisão compreensível do paciente». Contudo, o Autor
preconiza esta solução para o auxílio ao suicídio, com independência daqueloutra que, a este propósito,
venha a ser adoptada em sede de homicídio a pedido da vítima. Voltar-se-á a esta questão.

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Das incriminações do homicídio a pedido sério, instante e expresso do titular


da vida, e do incitamento e ajuda ao suicídio (arts. 134.º e 135.º do CP) resulta:

(i) A irrelevância do consentimento do ofendido para a exclu-


são da ilicitude do homicídio (cfr., ainda, art. 149.º/1 e 2 do CP); e
(ii) A proibição de qualquer interferência de terceiro na livre dis-
ponibilidade da vida pelo suicida.

O suicídio configura-se como uma liberdade do suicida19, mas uma liberda-


de em sentido negativo, na medida em que ao titular da vida não estão vedadas
alternativas de ação quanto ao suicídio (pôr termo à vida ou vivê-la), graças a
uma omissão do Estado em proibir o suicídio e em punir o suicida. Não está em
causa um direito a prestações positivas do Estado20. Por essa liberdade negati-
va se situar num espaço livre de direito, implica a inexistência de direitos e deve-
res jurídicos de terceiros relativamente à livre disposição da vida pelo seu titular.
A esta conclusão parecem igualmente chegar Canotilho/Moreira (2007), VII
ao art. 24.º, quando, referindo-se à eutanásia passiva (direito a opor-se ao pro-
longamento artificial da própria vida em caso de doença incurável ou «direito
de viver a morte»), sustentam: a existência de «regras especiais quanto à orga-
nização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal [v.g.
admissibilidade legal do testamento biológico] (…) não confere aos médicos ou
pessoal de saúde qualquer direito de abstenção de cuidados em relação aos
pacientes».
Numa linha de pensamento próxima, argumenta Mapelli (2022), pp. 210
e 213, a disponibilidade da própria vida pelo seu titular não se alicerça num
direito que possa ser oposto ao Estado, sob a forma de um dever de atender à
vontade livre e esclarecida de quem deseja morrer21; antes corresponde a «uma
situação de aggere licere, enquanto manifestação externa da esfera íntima das

19 Neste sentido, por exemplo, Montero (2010), p. 134, La posibilidad de suicidarse resulta del dominio
natural que tiene cada uno sobre su propio cuerpo y que le permite disponer de su vida. En nuestros sis-
temas jurídicos, el suicidio es una libertad y no un derecho subjetivo: de hecho – y no de derecho – puedo
quitarme la vida. El ejercicio de esa libertad interpela fuertemente la sociedad, pero no es avalado por ella
y no compromete al cuerpo médico.
20 Assim, Alexy (2008), pp. 222-223, distinguindo liberdade positiva e negativa nos seguintes termos: na
primeira, o objeto da liberdade é uma única ação; na segunda, o objeto da liberdade constitui uma alterna-
tiva de ação (v.g., emigrar ou não emigrar). O Autor esclarece ainda que «para a garantia de uma liberdade
não é necessário um direito a prestações, apenas um direito de defesa». Concordante Castro (2020), pp.
61-62 e passim, adaptando a construção de Alexy à liberdade de dispor da própria vida.
21 Também Medeiros/Silva (2017), XXXV ao art. 24.º, reconduzem o suicídio a um espaço livre de Direito,
«avesso à dicotomia redutora lícito/ilícito», rejeitando a possibilidade de extrair da conjugação do direito à
vida com a autonomia individual um direito ao suicídio, menos ainda um «direito à colaboração impune de
terceiros na consumação do suicídio».

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pessoas», sendo esta a razão pela qual se não pune a tentativa de suicídio22.
Em seu entender, é o dever de neutralidade ética do Estado que lhe impõe a
aceitação da conduta suicida. Contudo, logo alerta: o suicídio «nada tem a ver
com a eutanásia», por constituir «um comportamento pessoal sem ingerência
de terceiras pessoas», notando ser «a necessidade de explicar os serviços pú-
blicos eutanásicos», portanto, a participação de terceiros, que conduz à afirma-
ção de «um direito subjectivo do qual surge um dever para a Administração»
(itálico acrescentado), embora «a tese do direito subjectivo suscite problemas
de coerência com o ordenamento jurídico» [Mapelli (2022), p. 211].
Em sentido não inteiramente coincidente, Castro (2020), pp. 61-64 e 69-
-70, vê a disponibilidade da vida pelo seu titular como uma liberdade, que afirma
ser jurídica, porque para isso bastaria uma omissão do Estado, consistente na
não punição da tentativa de suicídio. Não se trataria, porém, de uma liberdade
jurídica não protegida (mera permissão de fazer ou omitir algo), e sim de uma
liberdade jurídica protegida por um direito contra o Estado de não ser impedido
no gozo dessa liberdade (direito a uma ação negativa, ao qual corresponde a
proibição da ação negativa de impedimento do exercício da liberdade). Com
efeito, explica a Autora, existem normas que garantem ao titular do direito à vida
«a possibilidade de realizar as acções permitidas [pôr termo à vida ou vivê-la],
sem que os outros o possam impedir». Aludindo especificamente à liberdade de
pôr termo à vida, a Autora aponta como exemplos de normas que converteriam
a liberdade de suicídio numa liberdade juridicamente protegida por um direito
ao não impedimento do suicídio, os arts. 156.º/1 e 154.º/3, al. b), ambos do CP.
Isto por entender que o art. 156.º/1 «estabelece uma relação de prevalência do
bem liberdade sobre o bem vida, entendido em sentido objectivo» (i.e., como

22 A Autora (2022), p. 213, n. 13, dá conta de que esta é a tese sufragada pelo TC espanhol nas SSTS
120/1990, de 27.06, e 137/1990, de 19.07. De acordo com estas decisões, configurando-se a vida como
um bem da pessoa, pertencente ao seu círculo de liberdade, aquela pode «dispor facticamente da sua
vida». Este ato de disposição, porém, configura somente «um acto que a lei não proíbe», não «um direito
subjectivo que implique a possibilidade de mobilizar o apoio do poder público para vencer a resistência que
se oponha à vontade de morrer, muito menos um direito subjectivo de carácter fundamental em que essa
possibilidade se estenda inclusive frente à resistência do legislador», proibindo-o de «reduzir o conteúdo
essencial [desse] direito».
Aqui se evidencia a [irreprimível] força expansiva de um «direito fundamental» a escolher como e quando
se morre, supostamente alicerçado no direito à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da persona-
lidade [cfr. arts. 2.º, al. a), dos Projetos de Lei n.os 5/XV/1.ª (BE), 74/XV (PS), 83/XV/1.ª (PAN) e 111/XV/1.ª
(IL)]. A força expansiva e a proibição de restrição do «direito fundamental à morte autodeterminada» foram
claramente afirmadas pelo Ac. do TC Federal alemão, de 26.02.2020, como fundamento da declaração de
inconstitucionalidade do § 217 StGB (incriminação da promoção comercial do suicídio).

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valor23), permitindo ao doente fazer valer judicialmente esse direito por via da
responsabilização criminal do médico. No caso do art. 154.º/3, al. b), considera
que a coação exercida para impedir o suicídio permanece ilícita, sendo apenas
não punível.
Ainda assim, na opinião da Autora, a liberdade de dispor da própria vida
configurar-se-ia como um «direito de liberdade negativo perfeito»: (i) por ser uma
liberdade jurídica, (ii) que implica «um direito [ao] não impedimento», (iii) direito
este que pode ser feito valer judicialmente, em caso de violação. Porém, e isto
é fundamental, enquanto «direito de liberdade negativo perfeito» não integra no
seu âmbito de proteção «um direito a acções positivas: maxime o direito à aju-
da médica à morte», sob a forma de (a) «obrigação do Estado fornecer meios,
humanos ou técnicos», e (b) de um «direito à intervenção de terceiros, em es-
pecial dos médicos». Ou seja, estaria arredada uma «protecção positiva [de tal
liberdade] frente ao Estado (…), através da combinação de uma liberdade com
um direito a uma acção positiva».
Se bem se interpreta, Castro não situa a livre disponibilidade da vida pelo
seu titular num âmbito livre ou isento de Direito. Antes sustenta que se está
perante uma liberdade jurídica protegida por um direito ao não impedimento
da ação suicida. Direito este que, em caso de violação, pode ser feito valer
judicialmente por via da responsabilização criminal do médico que pratica um
tratamento arbitrário, ou de quem recorra à coação para impedir o suicida [arts.
156.º/1 e 154.º/3, al. b), do CP].
Contudo, como se explicitará de seguida, o alegado direito ao não impedi-
mento do suicídio, alicerçado na incriminação do tratamento médico arbitrário,
apenas impõe ao médico um dever de abstenção (i.e., de omissão). Isto, ad-
mitindo-se que comete suicídio («passivo») o paciente «normal» que recusa o
tratamento salvador24. Além disso, a violação do dever de abstenção não torna
irremediavelmente ilícito o tratamento médico arbitrário, tendo em conta a even-
tual justificação por conflito de deveres (art. 36.º do CP). Sucede que, apesar da
recusa de tratamento, subsiste, da parte do médico, o dever jurídico e pessoal
de garante da vida do paciente em perigo de morte, que acorre ao hospital onde
aquele está de serviço25.

23 Assim, Canotilho/Moreira (2007), III, IV, VI e VII ao art. 24.º: a Constituição, além do direito à vida
enquanto direito fundamental das pessoas, garante a vida como «valor ou bem objectivo, independen-
temente dos seus titulares», pois protege a vida como «existência vivente, físico-biológica», em ordem a
assegurar «a igual dignidade constitucional de todas as vidas».
24 Em sentido contrário, por exemplo, Dias (2007), p. 63, invocando o caso da Testemunha de Jeová
que recusa o tratamento por razões religiosas; e Andrade (2012), § 15 ao art. 135.º
25 Assim, já antes, Brito (2002), pp. 403-404, embora com uma fundamentação não inteiramente coin-
cidente com a que aqui se apresenta.
De outra opinião, Dias (2007), pp. 60-61 e 64, para quem o sentido da proibição de tratamentos médicos

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A possibilidade de justificação por conflito de deveres do tratamento mé-


dico arbitrário evidencia a não resolução definitiva do problema, pelo sistema
jurídico-penal, com a afirmação de um eventual direito do suicida ao não impe-
dimento do suicídio. O que, bem vistas as coisas, e a aceitar que a recusa de
tratamento pelo paciente constitui suicídio «passivo», confirma o que começou
por afirmar-se (e melhor se explicará a seguir): configurando-se o suicídio como
uma liberdade negativa situada num espaço livre de Direito, traduz-se numa
ausência de direitos e de deveres jurídicos de terceiros (pelo menos de deveres
jurídicos «definitivos») relativamente à livre disposição da vida pelo seu titular.
A comprovar que assim é, aí está o art. 154.º/3, al. b), do CP, que consi-
dera justificada26 a coação destinada a impedir suicídio, desde que necessária,
adequada e proporcional para atingir o fim visado. Portanto, permite-se – sem
impor – o impedimento de suicídios, através de uma autorização legal nesse
sentido27. Tal autorização, porém, poderá não excluir um direito de defesa do
suicida coagido a não se suicidar, embora se trate, necessariamente, de uma
defesa moderada ante a existência daquela permissão legal, não permitindo
justificar a morte ou uma lesão grave da integridade física do coator.
A autorização vertida no art. 154.º/3, al. b), significa inexistência para a so-
ciedade em geral de um dever de respeitar a autodeterminação do suicida, de
modo que, afinal, à liberdade de pôr termo à vida não corresponde um direito
absoluto do suicida ao não impedimento do suicídio.
Todavia, afigura-se que o médico já não pode beneficiar da causa de justi-
ficação prevista no art. 154.º/3, al. b), do CP, se administrar tratamentos contra
a vontade do paciente, porque a proibição penal de intervenções e tratamen-
tos médico-cirúrgicos arbitrários, i.e., sem ou contra a vontade o paciente (art.
156.º/1 do CP), lhe impõe o dever de respeitar a autodeterminação do paciente,

arbitrários é o de «fazer cessar a posição de garante do médico perante a oposição do paciente», deixando
aquele de se encontrar numa situação de conflito de deveres e passando os riscos para a vida e a saúde
do paciente, que recusa tratamento, a correr por sua conta e a ser da sua responsabilidade. De contrário,
assevera o Autor, assistir-se-ia a uma «objectivação total dos bens jurídicos pessoalíssimos, desvinculan-
do-os da unidade ética relativamente à qual adquirem todo o sentido».
26 No sentido da justificação pronunciam-se, por exemplo, Andrade (2012), § 34 ao art. 156.º, Dias
(2007), pp. 62-64, e Carvalho (2012), §§ 26, 34-35 ao art. 154.º Este último Autor considera, inclusive, que,
na situação prevista no art. 154.º/3, al. b), nem sequer se estaria perante uma causa especial de exclusão
da ilicitude do tipo de coação, mas diante de uma manifestação da causa geral de justificação do direito
de necessidade (art. 34.º), atenta a indisponibilidade do bem vida (pelos vistos para o próprio titular). Para
uma crítica à invocação do direito de necessidade neste âmbito, veja-se Dias (2007), p. 61.
27 Andrade (2012), §§ 34 e 38 ao art. 156.º, qualifica explicitamente o disposto neste preceito como
autorização legal para impedir suicídios «ativos». Autorização que, logo explica o Autor, não teria como
reverso um dever de agir para impedir suicídios, sob pena de responsabilidade penal por omissão. O
que, uma vez mais, reforça a veracidade da asserção de que à liberdade de pôr termo à própria vida não
correspondem quaisquer deveres (ou direitos) jurídicos de terceiros relativamente à livre disposição da vida
pelo seu titular.

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humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
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por mais desrazoável que lhe possa parecer28. Dever jurídico que, como se viu,
já não recai sobre o cidadão em geral.
Contudo, o afastamento do médico do âmbito de aplicação do art. 154.º/3,
al. b), do CP, não obsta à eventual justificação do tratamento médico-cirúrgico
arbitrário pelo conflito de deveres (art. 36.º do CP). O médico, além do dever
jurídico-penal de respeitar a manifestação de vontade do doente, continua a ser
garante da vida do suicida frustrado (tal como do paciente «normal»), pois este
dever não tem a sua fonte na vontade de viver do paciente e sim na assunção
de funções de assistência por parte do médico e na situação de perigo para a
vida em que aquele se encontre29. Tanto mais que, como se viu, o direito consti-
tucional à vida (substrato do bem jurídico-penal da vida) não inclui uma vertente
de autodeterminação relativamente à morte, correspondente ao desinteresse
do seu titular em seguir vivendo, e capaz de se projetar num dever (definitivo)
de abstenção do médico30. A isto acresce o facto de a ratio do art. 156.º/1 não
ser, de todo, a de solucionar o conflito entre a vida e a saúde, por um lado, e

28 Neste sentido, com razão, Dias (2007), pp. 63-64, para quem, sendo não ilícito o ato suicida, a per-
missão de impedimento do suicídio mediante coação, ao abrigo do art. 154.º/3, al. b), configura-se como
excecional, não devendo, por isso, «ser estendida a outros contextos, designadamente por via da sua apli-
cação analógica» ao médico que pratica um tratamento médico arbitrário, violando a proibição emergente
do artigo 156.º/1 do CP.
Esta, porém, a solução defendida por Morão (2006), pp. 70-74, o art. 156.º/1 do CP determinaria a ces-
sação do dever médico de tratar ou salvar o doente consciente que, de forma livre e consciente, recusa o
tratamento. Porém, a situação de perigo para a vida ou de perigo grave para a saúde em que aquele se
encontra justificaria a permissão de tratamento médico arbitrário por via de uma aplicação analógica do
art. 154.º/3, al. b).
Também Andrade (2012), §§ 34 e 38 ao art. 156.º, aceita que, perante o suicida frustrado e consciente que
recusa tratamento («suicida-paciente»), o médico possa beneficiar do disposto no art. 154.º/3, al. b). O que
já não sucederia, em seu entender, perante o paciente «normal» que rejeita tratar-se, numa assumida
diferenciação de tratamento entre o suicida «ativo» e o doente «normal» («suicida passivo»). Diferenciação
recusada, com razão, por Castro (2020), p. 85, por o art. 156.º/1 do CP estabelecer um princípio geral,
sem distinguir (nem dever distinguir, acrescenta-se) entre o paciente-suicida frustrado e o «doente normal».
Já Dias (2012), § 39 antes do art. 131.º, rejeita a possibilidade de aplicação ao médico da permissão ver-
tida no art. 154.º/3, al. b), se o suicida frustrado, de forma lúcida e consciente, recusar o tratamento ou a
sua continuação. Assim sucederia, porque o sentido do art. 156.º/1 é o de fazer cessar o dever de ação
e tratamento do médico em caso de oposição, real ou presumida (cfr. art. 156.º/2, in fine), do paciente.
29 À mesma conclusão, referindo-se especificamente aos deveres do médico, chegam Carneiro/Car-
neiro/Simões(2022), p. 66; e Mapelli (2022), p. 212: «O Estado (…) está obrigado a assegur[ar a vida] com
independência da vontade do seu titular. (…) desaparecida a vontade de viver ainda resta um interesse da
sociedade em manter o valor da vida. (…) Por esta razão a atenção médica continua a ser uma obrigação
deontológica (…).»
30 Próximo Otero (2020), p. 45: o valor da vida não depende de um «juízo de vontade do próprio»,
que permita ao seu titular renunciar a si próprio, anulando-se como sujeito, «servindo-se da sua liberdade
[pretensamente absoluta] para destruir a própria liberdade, a sua humanidade e a inerente dignidade».
Em sentido contrário, conclui Godinho (2015), p. 374: «o bem jurídico vida humana não deve confundir-se
com o substrato que o sustenta» (vida humana em sentido biofisiológico); trata-se de um conceito norma-
tivo ao qual se associam «princípios vectores de todo o ordenamento jurídico, em especial, a dignidade
[subjectiva?] da pessoa humana». A esta luz, «o bem jurídico vida humana torna-se emanação da liberdade
que deve ser assegurada a cada um».

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 113


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a autonomia do paciente, por outro, dando prevalência ao último e, ademais,


fazendo cessar a posição de garante e o dever médico de tratar e salvar. O seu
objetivo é bem mais modesto: o de preservar a auto-determinação e a auto-
nomia do doente, em nome da sua integridade física e moral, fazendo dele
um verdadeiro sujeito do tratamento médico, negando-se a tratá-lo, mesmo
quando esteja em causa a opção entre viver ou morrer, como mero objeto do
ato médico por causa da relevância social-objetiva deste, e por àquele faltar o
conhecimento da ciência e da arte da medicina. Mas, atenção, sem conferir ao
doente o poder de definir o conteúdo do ato médico, contrariamente ao estado
dos conhecimentos e da experiência da medicina e às normas éticas e deonto-
lógicas que regem o exercício da profissão. Sendo este o sentido do preceito,
as referidas conclusões (ponderação de interesses a favor da autonomia mes-
mo que conflitue com a vida, cessação da posição de garante e do dever médi-
co de salvar e tratar) vão muito para lá da premissa que o mesmo pode fornecer.

Em suma, fora dos casos previstos nos Decretos n.os 109/XIV e 199/XIV:

(i) Não há um dever de respeitar a autodeterminação do titu-


lar da vida, relativamente à autodisposição da mesma, exceto no
caso dos médicos perante pacientes conscientes que de forma
livre e responsável se opõem ao tratamento médico salvador.
Porém, este dever de respeito cumpre-se omitindo o trata-
mento médico31, não mediante um comportamento ativo de auxílio
material ao suicídio do doente, pois a liberdade de dispor da pró-
pria vida tem um conteúdo exclusivamente negativo, não incluindo
na sua esfera de proteção «um direito a acções positivas: maxime,
o direito à ajuda médica à morte» [Castro (2020), pp. 61 e 70; no
mesmo sentido, já antes, Canotilho/Moreira, VII ao art. 24.º];
(ii) Menos ainda existe um dever de respeitar a vontade do
titular da vida que deseja que o matem;
(iii) Também não existe um qualquer «direito» do titular da vida
a uma «morte autodeterminada», que possa fundar: (a) a permis-
são estatal de matar ou auxiliar ao suicídio aquele que em certas
condições pede a morte, (b) a atribuição aos médicos e enfermei-
ros de um «direito de consciência» contrário aos respetivos deve-
res deontológicos, e (c) a consequente imposição a estes de um

31 Omissão igualmente justificada por conflito de deveres (art. 36.º do CP), dada a igualdade axiológica
e vinculativa dos deveres ético-deontológicos e jurídicos em colisão. Igualdade que se respalda justamente
no art. 156.º/1 do CP e na respetiva ratio de fazer do doente um verdadeiro sujeito do tratamento médico,
mesmo quando esteja em causa a sua vida ou um perigo grave para a sua saúde.

114 VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152


Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

dever jurídico de eutanásia ativa direta ou de auxílio material ao


suicídio [cfr. arts. 10.º/1 dos Projetos de Lei n.os 5/XV/1.ª (BE), 74/
/XV (PS), 83/XV/1.ª (PAN) e 111/XV/1.ª (IL): «o médico orientador
e outro profissional de saúde, [estão] obrigatoriamente presentes
aquando da administração dos fármacos letais»].

Mais, a antecipação da morte fora dos casos e/ou condições previstos na-
queles Decretos e Projetos de Lei determina a aplicação de todo o referido qua-
dro normativo jurídico-penal e das correspondentes (e fundamentais) distinções
entre intervenção de terceiros numa autolesão ou, antes, numa heterolesão da
vida (arts. 135.º e 134.º do CP). Veja-se, justamente neste sentido, os arts.
26.º/3 e 28.º dos mencionados Projetos de Lei.

4.2. Direitos à autodeterminação e à livre realização da personalida-


de: fontes possíveis de um «direito» à morte «medicamente assisti-
da»?

Já se viu que tanto o Ac. n.º 123/2021 do TC como todos os Projetos de


Lei apresentados na XV Legislatura respaldam o «direito» a uma morte «medi-
camente assistida» nos direitos à autodeterminação (em função do respetivo
projeto de vida, segundo aquele Ac.) e à livre realização da personalidade32.
Contudo, a fundamentação de tal «direito» na autonomia e na autodetermi-
nação do titular da vida relativamente ao momento e modo da respetiva morte
«prova demais», ao tornar ilegítima a limitação do «direito» à morte «medica-
mente assistida» aos «contextos eutanásicos»33 previstos nos arts. 2.º, als. d),
e) e f), daqueles Projetos de Lei, tendo em conta o dever de neutralidade ética
do Estado e o direito de cada cidadão ao livre desenvolvimento da sua perso-
nalidade. Conclusão a que logo chegaram o TC austríaco (Ac. de 11.12.2020)
e o TC Federal alemão (Ac. de 26.02.2020), a propósito, respetivamente, da
incriminação da ajuda ao suicídio e da promoção comercial do suicídio.
Conclusão que, em última análise, acaba sendo sufragada entre nós por
Carneiro/Carneiro/Simões (2022), p. 66, para quem o verdadeiro fundamento do

32 Em Espanha, segundo o ponto I do Preâmbulo da Lei Orgânica n.º 3/2021, o novo «direito à eutaná-
sia» alicerça-se na «integridade física e moral da pessoa, na dignidade humana, no valor superior da liber-
dade, na liberdade ideológica e de consciência ou direito à intimidade», os quais prevalecem, em «contexto
eutanásico» (esta a terminologia assumida), sobre o direito à vida, pois no existe un deber constitucional de
imponer o tutelar la vida a toda costa y en contra de la voluntad del titular del derecho a la vida.
33 À mesma conclusão chega Otero (2020), p. 46: «a limitação da morte medicamente assistida a si-
tuações de doença ou sofrimento [evidencia] que não há um princípio geral de soberania ou de liberdade
sobre a própria vida, habilitando um pretenso direito a escolher o momento da morte».

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 115


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pedido de morte, à luz do Decreto n.º 199/XIV, é o sofrimento tido por intolerável
pela pessoa em razão das suas circunstâncias e do seu «sentido de vida», e não
tanto a doença ou lesão.
Segundo estes Autores: «o Decreto n.º 199/XIV (…) incorre nos mesmos
erros que fazem com que os princípios de atuação da Medicina pós-moderna
empurrem muitas pessoas doentes e suas famílias para cenários de sofrimento
vivido de forma solitária, sem possibilidade de autodeterminação no percurso
da doença e nas decisões terapêuticas e sem beneficiar de modelos de com-
paixão. Estes são alguns dos determinantes do sofrimento humano decorrente
da doença. É a perceção de sofrimento intolerável (não o estádio ou gravidade
da doença) que no Decreto n.º 199/XIV legitima o pedido de «morte por deci-
são da pessoa».34 (…) Este documento seria inovador se determinasse que se
criassem condições para a profilaxia do sofrimento intolerável com o fomento
da integração de elementos do cuidar que mitigam, sanam e abordam científica
e frontalmente as causas de sofrimento humano decorrentes da doença e dos
[próprios modos e tipos de] cuidados de saúde35. (…) As circunstâncias e o sen-
tido da vida são sempre mais importantes e determinantes do que as doenças»
(itálicos acrescentados).
Além disso, é impossível e ilegítimo fundar o «direito à eutanásia» no direito
ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º/1 da CRP).
Nas palavras de Otero (2020), p. 66: «o desenvolvimento da personalidade
(…) pressupõe a vida para se desenvolver e não a sua supressão – a morte não
consubstancia uma forma de desenvolvimento da personalidade, mas sim o
seu termo».

34 O Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) n.º 116/2022 (pp. 7-8)
chama a atenção para: (i) as «fortíssimas implicações éticas do conceito de sofrimento»; (ii) a sua «ines-
capável subjetividade», tornando imprescindível a consideração da perspetiva do doente; (iii) a necessi-
dade da sua avaliação «numa perspetiva diacrónica e global, não sendo suficiente uma avaliação, decisiva,
instantânea ou única da sua existência»; (iv) o seu carácter indefinível, a desnecessidade e complexidade
da respetiva definição legal. Tanto que, em Espanha, a Lei Orgânica n.º 3/2021 não define este conceito
no respetivo art. 3.º, que tanto inspira os arts. 2.º dos Projetos de Lei da XV Legislatura sobre a «morte a
pedido». No mesmo Parecer, o CNECV adverte para a não coincidência entre, por um lado, as definições
de «sofrimento» (Projetos de Lei do BE e do PAN) ou «grande sofrimento» (Projetos de Lei do PS e da IL) e
das respetivas causas («doença grave e/ou incurável» ou «lesão definitiva de gravidade extrema»), vertidas
no art. 2.º, al. f), de todos os Projetos, e, por outro, a referência feita no respetivo art. 3.º/1 («sofrimento
intolerável»).
Também o Parecer da Ordem dos Médicos sobre os Projetos de Lei n.os 74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN),
de 9.06.2022, alerta para o carácter muito subjetivo e pessoal do diagnóstico de «sofrimento intolerável»,
tanto da parte do doente («se a [sua] intenção é morrer, vai queixar-se até ao fim»), como do pessoal de
saúde (o qual, se aceita a incumbência de participar num procedimento de «morte a pedido», «est[á] pre-
dispost[o], subconscientemente, a esse desiderato»).
35 Sobretudo num contexto de despersonalização, desumanização e grave carência de recursos huma-
nos e materiais que há muito caracteriza o SNS. Voltar-se-á a esta questão quando se abordar o problema
da liberdade e seriedade do pedido de morte, problema agudizado pelo atual quadro de pandemia que,
tendo exaurido o SNS, agravou ainda mais a respetiva crise estrutural.

116 VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152


Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

Também Mapelli (2022), p. 211, dá conta da impossibilidade de respal-


dar no direito ao livre desenvolvimento da personalidade um «direito positivo a
morrer». Sucede, explica a Autora, que do direito ao livre desenvolvimento da
personalidade derivam outros direitos pessoais «na medida em que exista per-
sonalidade». Ora, «a morte não permite em absoluto desenvolver a personalida-
de», antes acaba com a personalidade, configurando-se «a não-personalidade
[como] negação de qualquer desenvolvimento». Em seu entender, tal derivação
perfila-se tão «surpreendente» quanto a de «reconhecer no direito à educação
a opção de não se educar».
Referindo-se em geral ao conteúdo e alcance do direito ao desenvolvimen-
to da personalidade, Canotilho/Moreira (2007), III e IV ao art. 26.º, apontam
no mesmo sentido. Para os Autores, este direito comporta tanto uma vertente
estática, de proteção da integridade da pessoa, i.e., da sua «esfera jurídico-
-pessoal no processo de desenvolvimento», como uma vertente dinâmica, de
promoção da «“pessoa em devir” [enriquecendo-a na sua dignidade] em termos
de capacidade de prestação, no plano pessoal, social e cultural». Assim, o direi-
to ao livre desenvolvimento da personalidade envolveria, entre outros, o «direito
à criação ou aperfeiçoamento de pressupostos indispensáveis ao desenvolvi-
mento da personalidade (ex. direito à educação e cultura, a condições indispen-
sáveis de ressocialização, ao conhecimento da paternidade e [à] maternidade
biológica)» [(2007), IV ao art. 26.º].
Ora, quando o Estado auxilia à morte de cidadãos que se encontrem em
certas situações ou «contextos eutanásicos», não está, decididamente, a pro-
teger e garantir a «esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento»,
nem a promover a «pessoa em devir». Para que dúvidas não restem, Canotilho/
/Moreira (2007), IV ao art. 26.º, consideram insustentável reconduzir ao «âmbito
normativo constitucional do desenvolvimento da personalidade» certas «liber-
dades» como as de consumir drogas, fumar, poluir o ambiente, recusar seguro
obrigatório, cinto de segurança ou capacete de proteção.
Assim acontece porque o direito ao livre desenvolvimento da personalidade
não aponta para uma liberdade ilimitada do indivíduo de fazer ou omitir o que
quiser, pois sempre se trata da liberdade de um indivíduo que «vive em socieda-
de», admitindo assim restrições justificadas por «direitos de terceiros e interes-
ses colectivos» [Castro (2020), p. 68]36.
No mesmo sentido, Campos/Costa (2020), p. 644: «a autonomia individual
tem limites, que se prendem com o custo para o próximo e para a sociedade
em geral». Quanto ao invocado «direito» à morte «medicamente assistida», os

36 Também Godinho (2015), pp. 108, 349-350 e 375, aceita que a autodeterminação seja limitada pela
necessidade de assegurar a proteção de outros bens jurídicos, maxime direitos fundamentais e interesses
de terceiros. Necessidade que, em seu entender, fundamenta a incriminação do homicídio a pedido.

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Autores alertam: «o respeito pela autonomia tem uma dupla face: a autono-
mia daqueles que querem a morte contra a de seres humanos vulneráveis que
podem querer viver, mas cuja morte é decidida por eles, ainda que com fins
caridosos e na base [d]aqueles que seriam os seus melhores interesses [aos]
olhos dos outros».
Numa outra perspetiva, Otero (2020), p. 44, começa por considerar etica-
mente inadmissível uma noção absoluta de liberdade que permita ao ser huma-
no renunciar à sua humanidade, deixando de constituir um fim em si mesmo e
autodegradando-se à condição de mero instrumento, coisa ou objeto. A seguir
o autor (2020), pp. 66-71, chama a atenção para um outro aspeto importante:
o da limitação da liberdade e autodeterminação individuais (i) pela inviolabilidade
da vida humana por parte do Estado, e (ii) pela igual dignidade de todas e cada
uma das pessoas humanas, simplesmente por o serem, não podendo existir
«autodeterminação de vontade válida que seja contrária à dignidade». O que su-
cede quando o Estado, em nome do direito à autodeterminação relativamente
à morte, aceita executar o pedido de morte formulado por pessoas padecendo
de «lesão definitiva de gravidade extrema» ou «doença grave e/ou incurável e/ou
fatal e/ou terminal», pois, então, está a descartar vidas humanas que considera
«destituídas de valor vital».
Ademais, não é pretendendo fundar o «direito» a uma morte «medicamente
assistida» no direito à autodeterminação e ao livre desenvolvimento da perso-
nalidade que tal direito deixa na prática de se traduzir num autêntico «direito a
morrer», embora limitado a cidadãos em «contexto eutanásico». Assim aconte-
ce, na medida em que aquele «direito» envolve um dever de matar ou auxiliar
ao suicídio por parte do Estado37, mas a cumprir por médicos e enfermeiros
em violação das regras éticas e deontológicas da sua profissão38. Porém, não
é mudando o nome ou o invólucro às coisas e situações que estas perdem a
respetiva substância e verdade intrínseca.

37 Lapidar, Presno (2022), p. 39: «o direito à integridade física e moral [em que se funda o «direito à
eutanásia»] (…) compreende não só a faculdade de exigir o dever de abstenção por parte dos poderes
públicos ou de terceiros relativamente à pessoa que não quer que a ajudem a seguir vivendo, mas também
a exigência de comportamentos positivos por parte dos poderes públicos».
38 Chamam amplamente à atenção para este aspeto o Parecer da Ordem dos Médicos relativo aos
Projetos de Lei n.os 74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 9.06.2022, pp. 3-6, e o Parecer da Ordem dos
Enfermeiros relativo aos mesmos Projetos de Lei, de 8.06.2022, pp. 2-7, disponível em https://www.orde-
menfermeiros.pt/media/26441/sai-oe-2022-5263.pdf [30.08.2022].
Otero (2020), pp. 81-82, chega à mesma conclusão (a permissão legal da eutanásia envolve o reconhe-
cimento de um direito a morrer), embora com outros argumentos. Admitindo-se que por via legislativa se
derrogue a norma constitucional que consagra a inviolabilidade da vida humana por mero efeito da vontade
do doente, logo a cláusula aberta de direitos fundamentais (art. 16.º/1 da CRP) servirá de suporte «para
construir dogmaticamente um “direito fundamental atípico” a morrer (…), vinculando o Estado, no limite, a
prestar um serviço de morte assistida gratuito e universal».

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Aqui chegados, deparamos com um outro obstáculo à fundamentação, no


direito ao livre desenvolvimento da personalidade, do «direito» à morte «medica-
mente assistida», sob a forma de auxílio médico ativo ao suicídio e de eutanásia
ativa direta.
Obstáculo que é apontado mesmo por aqueles que, como Castro (2020),
p. 76-77, alicerçam a liberdade de dispor da própria vida «diretamente» na dig-
nidade da pessoa humana e veem no art. 26.º/1 da CRP e na consagração do
direito ao desenvolvimento da personalidade uma «norma [constitucional] per-
missiva expressa» daquela liberdade. Estar-se-ia, segundo a Autora, diante de
uma «liberdade jurídica fundamental a que corresponde, pelo menos, um direito
de igual conteúdo a que o Estado não impeça o seu titular de fazer o que [esta]
liberdade lhe permite» (pôr termo à vida ou seguir vivendo).
O obstáculo em causa prende-se com a já assinalada configuração da li-
berdade de dispor da própria vida como «direito de liberdade negativo frente
ao Estado», a que apenas corresponde um «direito a acções negativas» (i.e., a
ações de impedimento do exercício da liberdade em causa) – e não «um direito
a acções positivas», i.e., ao fornecimento de meios humanos, científicos ou
técnicos ao titular da liberdade sub judice. Daí que Castro conclua, com toda a
razão: «a liberdade de dispor da própria vida não constitui credencial constitu-
cional habilitante de um direito à ajuda médica à morte».
A este obstáculo acresce o já antes referido (cfr. ponto 2.3), que se prende
com o âmbito de aplicação do direito ao desenvolvimento da personalidade:
só ações, posições ou situações jurídicas do titular do Direito contra atuações
estatais impeditivas ou ilegitimamente restritivas do exercício da corresponden-
te liberdade geral de ação por parte do respectivo titular [Castro (2020) p. 66;
e Alexy (2008), pp. 343-344]. O que, evidentemente, exclui o direito à morte
«medicamente assistida», a exercer através de prestações de terceiro (auxílio
médico material ao suicídio ou eutanásia ativa direta), do âmbito de aplicação e
da esfera de proteção normativa do direito à autodeterminação e ao desenvol-
vimento da personalidade do titular desse direito.

4.3. Indistinção entre autolesão e heterolesão da vida

Todos os Projetos de Lei apresentados na XV Legislatura regulam o «sui-


cídio» e a «eutanásia» como simples métodos de concretização ou execução
da decisão de morrer do doente [cfr. arts. 9.º/1 e 2, 16.º/1, al. e), e 19.º, al.
c)], depois de sufragada pelo parecer do médico orientador (art. 5.º), confir-
mada pelo médico especialista (art. 6.º) e, porventura, também por um psi-
quiatra (art. 7.º) e, finalmente, chancelada pela Comissão de Verificação e

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 119


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Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (arts.


8.º e 24.º-26.º).
Estando alegadamente em causa o exercício do «direito» do doente «em
contexto eutanásico» à morte autodeterminada, pretende-se que tudo se passe
como se de um «suicídio» se tratasse, ainda que executado por «mão alheia»39.
Segundo o Parecer da Ordem dos Médicos, de 9.06.2022, relativo aos Proje-
tos de Lei do PS e do PAN (p. 5), sujeito do ato de «antecipação da morte» «é
o requerente, verdadeiro agente responsável e capacitado para o pedido de
execução. É a incapacidade do próprio em executar o suicídio que justifica a lei
para suprir essa insuficiência».
No entanto, o mesmo Parecer alerta (p. 3): «o suicídio assistido deve obrigar
a um distanciamento de quem fornece a droga letal. “Assistido” não significa
“presenciado”». O que não acontece com todos os Projetos de Lei relativos à
morte “medicamente assistida”, apresentados na XV Legislatura, cujo art. 2.º,
al. b), define suicídio medicamente assistido como «autoadministração de fár-
macos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica». Ora, lê-se naquele
Parecer, «se estiver presente o “assistente”, é mais provável a sua consumação
por indução». Conclusão que, segundo o mesmo Parecer, se funda na verifica-
ção de que, em países em que se autoriza o auxílio médico ao suicídio, uma
percentagem significativa dos requerentes aos quais se entrega «o kit para a
morte autónoma, acabam por não a executar».
Neste ponto, joga-se a diferença ética e deontológica entre auxílio médico
ao suicídio e eutanásia ativa direta. Nesta, cabendo ao médico a prática do
último e irreversível ato de provocação da morte, o mesmo acaba por superar
as inibições à autodestruição, emergentes do instinto de autoconservação, que
subsiste mesmo num doente em «contexto eutanásico». O que já não se passa
no auxílio médico ao suicídio: agora, o último e irreversível ato de provocação
da morte cabe ao próprio doente, que terá de vencer por si as respetivas inibi-
ções à autodestruição. Contudo, como bem notou o referido Parecer da Ordem
dos Médicos, a supervisão médica da autoadministração dos fármacos letais
poderá incentivar à superação do instinto de preservação por parte do doente,
mais que não seja para «não ficar mal» diante do médico a quem pediu que o
ajudasse a morrer.
Também Andrade (2012), §§ 14-16 ao art. 134.º, alude à existência, no plano
normativo e axiológico, de uma descontinuidade entre autolesão e heterolesão
consentida. Descontinuidade que se revela «bastante para justificar um diferente
tratamento normativo» entre o homicídio a pedido e as demais formas de ajuda
à morte («passiva, activa indirecta, suicídio medicamente assistido»). Com efeito,

39 Lapidar, Demetrio (2022), p. 120: «o suicídio medicamente assistido e a eutanásia são formas dife-
rentes de [o doente] pôr fim à vida em determinadas circunstâncias».

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humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
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esclarece Andrade: «a verdade e autenticidade da decisão de morrer [estão], em


princípio, asseguradas quando a pessoa executa a morte por sua própria mão,
mas não necessariamente quando se comete a outro o último acto».
Próxima, Castro (2020), p. 106, salientando: «o bem vida só é disponível
para o próprio, quando é o próprio que tem o domínio do facto que vai causar
directa e irreversivelmente a morte». Se o titular da vida tem o domínio do facto,
pode «voltar a atrás até ao último momento em que isso é possível».
Godinho (2015), pp. 123-124, começa por aceitar a posição de Andrade re-
lativa à descontinuidade entre autolesão e heterolesão consentida, concluindo
que «a heterolesão consentida tem limites de aceitação sistémicos (…), nos ca-
sos em que se [confronta] com princípios (valores) fundantes da ordem jurídica,
como o princípio da intangibilidade da vida humana alheia». Por isso a Autora
(2015), pp. 349 e 375: (i) rejeita que a ratio da incriminação do homicídio a pedi-
do da vítima resida na prevenção de perigos de um «consentimento viciado ou
irreflectido, pois (…) a própria formulação da norma a isso mesmo obsta»; e (ii)
insiste em que a delimitação entre homicídio a pedido da vítima e incitamento
ou auxílio ao suicídio se faça, não recorrendo a «critérios subjectivos», mas com
base no «critério do domínio do facto irreversivelmente conducente à morte».
Apesar disso, Godinho admite duas exceções à aplicação do art. 134.º do CP.
Uma, constituída pela situação-limite de impossibilidade de o doente pôr
termo à própria vida, obrigando-o a recorrer ao homicídio a pedido, fora do con-
texto da relação médico-paciente. Godinho (2015), pp. 371 e 376, pretende que
este caso seja tratado como um «suicídio mediato (por mão alheia)», situado
num espaço livre de direito, e não como uma heterolesão, «pois a vítima usa o
agente como instrumento para supressão da sua (…) impossibilidade de exer-
cer o seu direito à autodeterminação». Em seu entender, nesta hipótese, deve
ocorrer o «cancelamento da norma (do artigo 134.º do Código Penal)». Explica
a Autora: fundando-se esta incriminação «no interesse, partilhado pela comu-
nidade, (…) de que a vida humana (de outras pessoas) se mantenha intangível,
devendo este bem ser protegido por forma a também assegurar aquele interes-
se», nas situações de impossibilidade de o doente executar o próprio suicídio, a
aplicação do art. 134.º representaria «uma compressão intolerável da autodeter-
minação e da liberdade» do titular da vida e redundaria na «instrumentalização
do doente» ao interesse geral que fundamenta o art. 134.º do CP. Além disso,
assevera, inexiste qualquer heterodeterminação, «pois a vítima não abdica dos
seus fins» [Godinho (2015) pp. 350 e 376], se bem que a realização destes fins
implique a coisificação de outra pessoa humana, convertida em mero «instru-
mento» ou «mão» do doente «cansado da vida».
A esta objeção acrescem outras. Desde logo, afigura-se que o poder de
facto que cada um tem sobre a própria vida não pode ser transferido, em nome

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 121


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de outros valores, para outrem, ao ponto de converter [normativa e dogmati-


camente – Godinho (2015), p. 371] uma inequívoca heterolesão da vida num
«suicídio mediato por mão alheia». Esta conversão normativo-dogmática não
pode ser produzida por um poder de facto sobre a vida, o qual só pode ser
exercido, por definição, através de uma «acção da própria pessoalidade». Esta
uma questão colocada por Costa (2003), p. 777, a propósito da disponibilidade
da vida pelo seu titular40.
Ademais, pergunta-se: o que impede a extensão da figura do «suicídio me-
diato» ou «por mão alheia» (com o consequente «cancelamento da norma» do
art. 134.º do CP) a qualquer pessoa fisicamente impossibilitada de executar a
própria morte, mesmo que se não trate de «antecipar-lhe a morte»?
Por último, se o doente impossibilitado de executar a própria morte padece
de «doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal», tem à sua disposição
outras vias de libertação do sofrimento – que não o homicídio a pedido: cui-
dados paliativos, recusa de tratamento, ou sedação paliativa (art. 8.º da Lei n.º
31/2018). Assim Mapelli (2022), p. 214. Por isso, não se justifica a preterição,
em nome da autodeterminação individual, do interesse geral na preservação do
«dogma da intangibilidade da vida humana» de terceiros, legitimador da incrimi-
nação do homicídio a pedido [Godinho (2015), pp. 349-350 e 375].
A segunda situação em que, na opinião de Godinho (2015), pp. 374-376,
deve ser afastada a incriminação do homicídio a pedido corresponde à eutaná-
sia ativa direta, praticada por médico a pedido do doente. Assim sucede porque
a eutanásia ativa direta a pedido do doente é elevada à categoria de ato médico,
graças à conversão deste, para lá da definição do art. 150.º/1 do CP (que «não
esgota o seu âmbito de aplicação»), numa «relação dialógica entre o médico e
o doente».
Porém, se a eutanásia ativa direta, em certas situações legalmente defi-
nidas, se transformar num ato médico, a consequência não deverá ser a da
atipicidade da conduta, em lugar da mera justificação da atuação do médico
em virtude do princípio Volenti non fit iniuria, como pretende Godinho (2015),
pp.371-372 e 374? Voltar-se-á a esta questão.
Além disso, fora dos casos e condições previstos nos Projetos de Lei relati-
vos à «morte a pedido», o Código Penal continua a distinguir e a incriminar au-
tonomamente o homicídio a pedido da vítima e o auxílio ao suicídio (arts. 134.º

40 Medeiros/Silva (2017), XXXI ao art. 24.º, afirmam a existência de «pesadas dúvidas (…) sobre a admis-
sibilidade de trespassar para um terceiro, ainda que médico, o poder sobre a vida de um doente que não
dispõe do “domínio do facto”». Segundo os Autores, uma coisa é «renunciar à vida, outra, bem diferente, é
a possibilidade de envolver de uma forma determinante terceiros na concretização dessa decisão, conce-
dendo-lhes imunidade pelas suas atuações (e outra coisa ainda será a faculdade de exigir a disponibilidade
de meios públicos para o efeito)».

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

e 135.º), evidenciando assim a diferença (também) jurídica entre heterolesão


consentida da vida e participação numa autolesão da vida.
Andrade (2012), § 14 ao art. 134.º, sublinha que a descontinuidade (nor-
mativa e axiológica) entre autolesão e heterolesão consentida da vida também
é reconhecida pelo ordenamento jurídico-penal, ao não punir a autolesão nem
quem consente na heterolesão, mas restringindo a eficácia justificativa do con-
sentimento (arts. 38.º e 149.º/1 e 2, do CP) e punindo o homicídio a pedido da
vítima.

4.4. Aceção de vidas, mundividência e conceção de pessoa subja-


cente aos Decretos n.os 109/XIV e 199/XIV

A invocação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade para le-


gitimar a morte a pedido, justamente de doentes em «contexto eutanásico»,
além de implicar uma desvalorização estatal do respetivo direito à vida numa
inequívoca aceção de vidas humanas, tem algo de cinismo trocista, pois, afinal,
trata-se da «morte de pessoas que já não são capazes de produzir, mas sim de
gerar gastos» [Mapelli (2022), p. 214].
Nas duras mas certeiras palavras de Campos/Costa (2020), p. 637, a pro-
pósito da utilidade como paradigma da permissão legal da eutanásia: «a au-
tonomia da vontade do doente que vai morrer (…) releva apenas quando seja
para alívio dos que vão viver. O moribundo já não tem status porque não tem
mais préstimo social e, consequentemente, não tem dignidade. O poder sobre
a própria morte só lhe é devolvido para que deixe de perturbar os vivos: aí recu-
pera-se (…) o respeito pela vontade do paciente e fala-se em morte digna, que,
neste contexto, significa rápida e barata. (…) O esquema é perfeito: a poupança
é conseguida sem, aparentemente, sacrificar princípios morais, porque a morte
é justificada pela vontade do paciente e pelo respeito pelo direito à autodetermi-
nação. Compreende-se a atração do legislador» (itálicos no original).
Também Otero (2020), pp. 85-86, sublinha que a legalização da eutanásia
pode sempre ser interpretada como: (i) «via utilitarista de o Estado reduzir des-
pesas de saúde, ante situações de onerosidade terapêutica»; (ii) «contributo
legal para a resolução do problema do financiamento da segurança social»,
graças à cessação dos encargos prestacionais relativamente àqueles que re-
correm à «solução final»; (iii) «meio de minimizar o trauma da família (…), numa
sociedade onde a morte deixou de ser um fenómeno natural» vivido em família
e se transformou num «tabu social e cultural», de modo que a família é tentada
ou, mesmo, incentivada a «esconder o sofrimento terminal», a fugir e libertar-se
dele. Tanto mais, acrescenta-se, que o cuidado dos enfermos e dependentes se

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 123


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revela (muito) dificilmente compatível com as (desumanas) exigências laborais,


profissionais e com o ritmo alucinante dos dias que «fogem» sem serem verda-
deiramente vividos.
O Parecer da Ordem de Advogados sobre o Projeto de Lei n.º 83/XV/1.ª
PAN, de 7.06.2022, relembra que, tanto na perspetiva jurídica como no plano
ético e sociológico, «a vida merece especial protecção perante o morituros, ou
seja, perante os mais débeis e indefesos».
Além disso, nesse Parecer, associando-se a inviolabilidade da vida humana
à respetiva indisponibilidade (apenas relativamente a terceiros, na perspetiva
aqui sustentada), considera-se, com razão, a despenalização da «morte a pedi-
do», em certos casos e condições, como «uma alteração estruturante no qua-
dro dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos». A este propósito bem
notam Campos/Costa (2020), pp. 630 e 642: nas propostas de lei discutidas
não se trata apenas de despenalização, mas da «regulamentação da morte a
pedido. (…) A opção regulatória, que se concentra no modus operandi, tem (…)
um efeito de banalização da conduta: com a regulamentação da eutanásia, esta
passa de uma prática discreta e de ultima ratio a política pública. (…) A regula-
mentação e processualização [da morte “medicamente assistida”] comportam o
sério risco de uma política pública de abuso e discriminação contra os membros
mais frágeis da nossa sociedade (idosos, pessoas com deficiência, doentes
crónicos)»41 (itálicos no original).
No mesmo sentido alerta Montero (2010), p. 136: adjudicar aos médicos
o direito de dar a morte a outros homens «danifica gravemente o valor social
da pessoa», rompendo-se completamente com o princípio fundamental do or-
denamento jurídico, segundo o qual «nenhum homem pode dispor da vida de
outro».
Neste ponto convém recordar que, em sentido normativo, o direito à vida
implica o «direito a não ser morto ou privado da vida» e, ainda, o «direito à pro-
tecção e ao auxílio contra a ameaça ou o perigo de morte», impondo-se, em
ambos os aspetos, ao Estado e aos outros indivíduos (art. 18.º/1 da CRP).

41 Otero (2020), pp. 86-87, recorda que a administrativização e processualização da morte a pedido se ins-
piram na decisão do TEDH, tomada no caso Haas vs. Switzerland (Application n.º 31322/07, de 20.01.2011,
§§ 54 e 58, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/fre#%7B%22itemid%22:[%22001-102940%22]%7D
[1.10.2022]), visando, exclusivamente, garantir uma vontade livre e esclarecida a favor da morte. Contudo,
esta opção não impedirá o surgimento de clínicas privadas destinadas a prestar «serviços de morte», nas
quais a lógica do mercado tenderá a aligeirar os procedimentos destinados a assegurar a livre autodeter-
minação do requerente-cliente, em ordem a assegurar «um serviço rápido e de qualidade», próprio de um
«liberalismo desumano». A comprovar que assim será, eis o disposto no art. 13.º/2 de todos os Projetos de
Lei apresentados na XV Legislatura: «O procedimento de morte medicamente assistida pode ser praticado
nos estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e dos setores privado e social que estejam
devidamente licenciados e autorizados para a prática de cuidados de saúde, disponham de internamento
e de local adequado e com acesso reservado.»

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

No que concerne ao Estado e aos poderes públicos em geral, o direito à


vida traduz-se: em «não poder dispor da vida das pessoas, a qualquer título
que seja [mesmo a pedido daquelas que o Estado define como estando em
“contexto eutanásico”42]; [na] obrigação de proteger a vida das pessoas contra
ataques ou ameaças de terceiros [e, por maioria de razão, do próprio Estado,
incapaz de e pouco interessado em assegurar a todos os cuidados de saúde
de que necessitam]; [e] no dever de abster-se de acções ou da utilização de
meios [incluindo a legalização da eutanásia] que criem perigo desnecessário ou
desproporcionado para a vida das pessoas» [Canotilho/Moreira (2007), III ao
art. 24.º].
Todas estas proibições e deveres do Estado e dos poderes públicos são
violados com a legalização da morte «medicamente assistida» de doentes com
«doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal» ou, simplesmente, pade-
cendo de «lesão definitiva de gravidade extrema» que provoque dependência
(humana ou tecnológica) para as atividades básicas da vida quotidiana. A (ilegí-
tima e inadmissível) invocação do direito à autodeterminação e ao livre desen-
volvimento da personalidade como (alegado) respaldo constitucional do direito
à morte «medicamente assistida» não intenta apagar a inequívoca violação de
todas as proibições e imposições emergentes da consagração constitucional
do direito à vida. Muito menos quando a legalização da eutanásia surge num
contexto de crise estrutural, grave carência de recursos (materiais e humanos),
desnorte e evidente incapacidade do SNS para assegurar cuidados de saúde
com qualidade a todas as pessoas que deles carecem e, ainda menos, cuida-
dos paliativos e em fim de vida.
Acutilante Montero (2010), p. 136: es falso presentar el «derecho a la eu-
tanasia» como un corolario del derecho a la autodeterminación, a disponer de
uno mismo. (…) no se trata de reivindicar un derecho sobre la propia vida, sino
(…) del derecho concedido al cuerpo médico de dar la muerte a otros hombres.
Com efeito, a afirmação de um «direito» à morte autodeterminada em certos
casos e condições faz (supostamente) cessar o dever estatal de proteger a vida
em nome da «autonomia» e «dignidade» de pessoas que, justamente, se encon-
tram em situações-limite de especial vulnerabilidade e necessidade de apoio e
solidariedade, por parte do Estado e da sociedade. Como se a dignidade huma-
na, além do respeito pela autonomia, não implicasse «também preocupação em

42 Otero (2020), p. 81, deixa claro que a consagração constitucional da inviolabilidade da vida humana
(face ao Estado e a todos os particulares) gera uma «situação de dever ou vinculação universal» que obsta
à permissão por via legislativa de uma derrogação da vida no alegado exercício do direito à autodetermi-
nação individual. Explica o Autor: «a lei não pode conferir à vontade individual de um doente o poder de
permitir a violação da sua vida por terceiro – o direito à vida não pode ser absorvido ou consumido pela
subjetividade da vontade, nem o terceiro usado como simples meio ou instrumento ao serviço da vontade
do doente atentatória da inviolabilidade da vida humana».

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 125


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face da vulnerabilidade»43. Para Montero (2010), p. 135-136, a preocupação em


assegurar a proteção das pessoas mais vulneráveis constitui mesmo a primeira
função do Direito.
Aliás, é grande a suspeita de que tão grande sensibilidade à morte auto-
determinada de pessoas com «lesão definitiva de gravidade extrema» ou com
«doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal» corresponda antes a uma
forma mais ou menos subtil de o Estado se declarar «alheio à trágica decisão»
de morrer e de se «exonerar da sua própria responsabilidade» face àquelas
pessoas [Montero (2010), p. 135].
O Parecer da Ordem dos Enfermeiros sobre os Projetos de Lei n.os 74/XV
(PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 8.06.2022 (p. 3), vê a consagração legal da antecipa-
ção da morte como um modo de o Estado se isentar do cumprimento da sua
obrigação de «disponibilizar e garantir o acesso aos cuidados de saúde adequa-
dos à situação de cada cidadão “com prontidão e no tempo considerado clini-
camente aceitável, de forma digna, de acordo com a melhor evidência científica
disponível e seguindo as boas práticas de qualidade e segurança em saúde”»
[Base II, n.º 1, al. b), da Lei de Bases da Saúde – Lei n.º 95/2019, de 4.09].
De igual modo, Campos/Costa (2020), pp. 635-636: «O Estado (…) tem o
dever de prestar cuidados de saúde, mesmo quando são apenas paliativos44.
(…) O mesmo Estado que falha nos seus deveres quando lhe faltam dezenas de
camas para cuidados paliativos é o que decide, aproveitando o desespero do
doente, libertar uma antes de tempo.»
As pessoas, nas circunstâncias legalmente previstas, são vistas pelo Estado
como candidatas «elegíveis» à antecipação da morte, por aquele considerar que
as respetivas vidas já não merecerem a pena ser vividas [Mapelli (2022), pp.
215-216]. Lapidar, nesta direção, Montero (2010), p. 137: La decisión de prac-
ticar la eutanasia no se apoya nunca en la única voluntad del enfermo, (…) es
siempre el resultado de un juicio de valor sobre la calidad de la vida. (…) el fun-
damento no reconocido de la eutanasia se basa en la idea de que algunas vidas
no merecen (ya) la pena ser vividas. E não o merecem, designadamente, porque
a sua vida acarreta mais prejuízos, gastos e incómodos, do que vantagens, be-
nesses e ganhos para a sociedade e o Estado, ante a incapacidade produtiva e
de retorno do «investimento» por parte dos candidatos legais à eutanásia.

43 Nesta linha de argumentação, veja-se a Declaração conjunta M.ª José Rangel Mesquita, M.ª de Fáti-
ma Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro, José António Teles Pereira ao Ac. n.º 123/2021 do TC (pontos
2.4. e 2.5.), concluindo: a legalização da eutanásia direta além de violar o art. 24.º/1 da CRP desvirtua o
princípio da dignidade da pessoa humana, por referência aos arts. 1.º e 13.º/1 da CRP.
44 Otero (2020), pp. 80-81, entende que o direito à vida em situações de doença terminal implica o direi-
to a não padecer de sofrimentos insuportáveis. Por isso, o Estado está vinculado a proporcionar cuidados
paliativos e os cidadãos têm o direito fundamental a beneficiar deles.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

Consequentemente, o Estado afasta a proibição ou a punibilidade do ato de


matar ou ajudar ao suicídio, posto que realizado por médico. O que vai reper-
cutir-se – também, mas não só – no modelo de medicina, na função e missão
do médico, na relação médico-paciente e na prestação de cuidados de saúde
em geral45.
Tendo em conta a função simbólica e de transmissão de valores do Direito,
a lei da eutanásia expressa, ainda, un juicio colectivo de tipo axiológico sobre
el modelo de vida, de solidaridad, de humanidad y de medicina que se quiere
promover [Montero (2010), p. 140].
Nesta sua função, a lei da eutanásia exprime desde logo «uma dúvida co-
lectiva sobre o valor e a dignidade de algumas vidas humanas». Por seu turno,
a relativização da dignidade de algumas vidas torna previsível a «evolução para
eutanásias praticadas sem consentimento do paciente, por piedade ou por ra-
zões sócio-económicas» [Montero (2010), p. 137]46.
«Evolução» a que já se assiste em Espanha. O art. 5.º/2, da Lei Orgânica
n.º 3/2021, permite a eutanásia de doente padecendo de enfermedad grave
e incurable o padecimiento grave, crónico e imposibilitante, sem prestar con-
sentimiento informado previamente a recibir la prestación de ayuda para morir,
quando el médico responsable certifique que el paciente no se encuentra en el
pleno uso de sus facultades ni puede prestar su conformidad libre, voluntaria y
consciente para realizar las solicitudes, mas haya suscrito con anterioridad un
documento de instrucciones previas, testamento vital, voluntades anticipadas
o documentos equivalentes legalmente reconocidos, en cuyo caso se podrá
facilitar la prestación de ayuda para morir conforme a lo dispuesto en dicho
documento47.

45 Sublinham estas consequências, Montero (2010), pp. 134-135; Mapelli (2022), pp. 215-220; o Pare-
cer do CNECV n.º 116/2022, p. 12; o Parecer da Ordem dos Médicos sobre os Projetos de Lei n.os 74/XV
(PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 9.06.2022, pp. 4-6; e o Parecer da Ordem dos Enfermeiros sobre os mesmos
Projetos de Lei, de 8.06.2022, pp. 2-5 e 6-7. No ponto seguinte abordar-se-á esta questão.
46 Campos/Costa (2020), pp. 642 e 644-645, chamam igualmente à atenção para o impacto da legaliza-
ção da eutanásia «noutros, menos livres e mais vulneráveis (idosos, minorias, pessoas economicamente
desfavorecidas para quem a continuação do tratamento representa um encargo insuportável e põe em
risco a sobrevivência ou o futuro da sua família)». E ainda para o risco de tal permissão «resvalar para situa-
ções em que o consentimento não é explícito, é presumido, é dado por terceiros, ou não existe de todo».
Os Autores apontam como exemplo deste risco o Protocolo de Groningen que, na Holanda, permite aos
médicos eutanasiar recém-nascidos com graves problemas de saúde ou deficiências profundas. Sobre
este Protocolo, por exemplo, Alves/Costa (2019), pp. 185-190.
47 Muito crítica desta solução, que pretende elevar a «execução do doente» incapaz de consentir a
«dever médico no exercício das suas funções, só excepcionado pela objecção de consciência», com base
em «documentos que não cumpririam os requisitos mínimos para valer como consentimento, ainda menos
em situações tão extremas», Mapelli (2022), pp. 215-216 e 220.
Entre nós, o Parecer do Conselho Superior do Ministério Público relativo ao Projeto de Lei n.º 5/XV/1.ª (BE),
de 27.05.2022, dá conta da opção do legislador português de afastar a morte «medicamente assistida»

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DOUTRINA

A lei da eutanásia, simultaneamente, expressa uma visão da morte como fe-


nómeno não natural, motivo de vergonha e «objeto de interdição» [Campos/Cos-
ta (2020), p. 636,] e difunde na comunidade (a começar pelos próprios doentes
em «contexto eutanásico») a ideia de que só as pessoas saudáveis, produtivas,
não dependentes, não enfermando de «lesão definitiva de gravidade extrema»,
nem de «doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal» são verdadei-
ramente dignas, e que o sofrimento e a morte são indignos e degradantes da
pessoa humana, como se o sofrimento e a morte não fossem inerentes à e
inseparáveis da condição humana48.
O que suscita desde logo o risco de o «direito à eutanásia» se transformar,
em muitos casos, num «cruel dever» para aqueles que, padecendo de «lesão
definitiva de gravidade extrema» ou de «doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/
ou terminal», se sentem culpados «pela carga que representam para os demais,
por onerarem financeiramente a sociedade [e a família] e por se obstinarem em
viver negando exercer o seu direito à eutanásia» [Montero (2010), p. 135]49.
Por detrás da ideia de que só as pessoas saudáveis, produtivas, não de-
pendentes, não enfermando de «lesão definitiva de gravidade extrema», nem
de «doença grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal» são verdadeiramente
dignas está a conceção da pessoa humana como uma espécie de semideus50,
estranho e adverso à dor e ao sofrimento, com poder absoluto sobre a sua vida
e a sua morte, como se a vida fosse um bem material de que é proprietário, de
que pode dispor e, até, destruir, com a colaboração do Estado e de terceiros51.
Um poder sobre a vida e a morte tão forte e amplo que algumas pessoas
o podem exercer para lá dos limites do seu corpo, da sua psique, das suas
emoções, inibições, possibilidades e capacidades pessoais, impondo aos ou-
tros, desde logo ao Estado, o dever de respeitarem a sua autodeterminação
relativamente à morte, dando-lhes a morte ou ajudando-as ao suicídio52.
Mapelli (2022), p. 212, depois de criticar a equiparação da vida a qualquer
outro bem material de que se pode dispor a seu bel-prazer, alerta: «a autonomia

do âmbito de aplicação das declarações antecipadas da vontade e do testamento vital, regulando-a em


exclusivo na lei da eutanásia (p. 27).
48 Campos/Costa (2020), p. 634: apesar de ser objetivo de todos evitar o sofrimento, a vida implica
sofrimento. O sofrimento, os desapontamentos, os obstáculos, os medos e as angústias fazem parte da
condição humana.
49 Medeiros/Silva (2017), XXXI ao art. 24.º, chamam igualmente a atenção para este risco, criado pelo
reconhecimento legal de um direito a decidir da própria morte, sobretudo no caso de doentes terminais em
meio hospitalar, que se encontram «em condições de isolamento e de carência afetiva».
50 Campos/Costa (2020), p. 634: «A pessoa, colocada acima da natureza, está cerca de Deus.»
51 Campos/Costa (2020), p. 634: «Direitos da pessoa (…) não são direitos sobre o próprio, como seria
um direito patrimonial. Nem sobre os outros, iguais e livres.»
52 Sobre os limites éticos e jurídicos à autonomia individual, Brito (2004), pp. 573-579.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

da pessoa não deve conduzir-nos a um individualismo radical (…) contrário à


ideia de desenvolvimento da personalidade em um Estado Social». Já antes
Montero (2010), p. 135, escrevia: so capa de benevolencia, semejante ley con-
forta la ideología del individualismo que encierra a cada sujeto en su propia
suerte.
Esta asserção conduz à outra conceção de pessoa subjacente aos Decre-
tos n.os 109/XIV e 199/XIV: a de um ser autocentrado (na realidade abandonado
à sua sorte pelo Estado e pela sociedade) e, por isso, legitimado a impor aos
outros as suas conceções e valorações pessoais sobre a vida, o sofrimento e a
dignidade, sem que, supostamente, o Estado possa ou deva exercer qualquer
controlo sobre essas conceções e valorações em nome do pluralismo demo-
crático, como se este fosse sinónimo de relativismo moral, absoluta impossibili-
dade de valoração, ilimitada tolerância (ou mera indiferença?) perante quaisquer
mundividências.
A neutralidade do Estado não pode conduzir ao relativismo moral, «nem
permitir (…) decisões (…) baseadas unicamente nos desejos e preferências dos
cidadãos». Do mesmo modo, o Direito não deve «legislar em função de casos
individuais, esquecendo as consequências para a comunidade (…) [e] os riscos
sistémicos [da] permissão da morte a pedido». Com efeito, «uma pessoa não é
uma ilha. Não somos só eu, somos nós» [Campos/Costa (2020), p. 645]. (Itálicos
no original).
Otero (2020), pp. 83-85, recorda que, verdadeiramente, o Estado nunca
é ou pode ser neutro: «pela simples circunstância de existir e se encontrar vin-
culado a uma ordem de valores constitucionais comporta uma dimensão ética
conformadora da sociedade», sendo, nessa medida, forçosamente paternalista.
O Autor chama ainda a atenção para o facto de o Estado estar a intervir na
sociedade e a impor a todos uma certa conceção de pessoa quando, por via
legislativa, permite (e impõe aos demais) «tudo aquilo que a vontade individual
quiser». Não uma qualquer vontade individual, mas uma vontade individual li-
bertada de todas as «referências comunitárias e sociais», elevada a «princípio
nuclear do ordenamento jurídico» e prevalecendo sobre a dignidade humana e
a inviolabilidade da vida humana. Esta, porém, «uma nova forma de totalitaris-
mo proveniente de um individualismo libertário e radical, (…) marginalizador da
componente social ou comunitária da natureza humana – cada ser humano é
um simples “eu”, uma ilha sem arquipélago, nem continente».
Tal conceção de «pessoa-ilha», fechada nas e abandonada às suas circuns-
tâncias, conceções e valorações, evidencia-se na possibilidade de eterno re-
torno ao início do procedimento de pedido de «antecipação da morte», apesar
dos sucessivos pareceres desfavoráveis dos vários intervenientes do processo:
médico orientador, médico especialista, médico psiquiatra e, até, da comissão

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 129


DOUTRINA

de verificação e avaliação dos procedimentos clínicos de morte «medicamente


assistida» [arts. 5.º/4, 6.º/3, 7.º/2 e 8.º/3 dos Projetos de Lei n.os 5/XV/1.ª (BE),
74/XV (PS), 83/XV/1.ª (PAN) e 111/XV/1.ª (IL)]. Assim, permite-se ao doente
teimar no seu propósito até encontrar um «médico da morte», disposto a matar
ou auxiliar ao suicídio qualquer doente.
A propósito de uma questão paralela, o Parecer da CNECV n.º 116/2022
(pp. 9-10) adverte: o facto de o médico-orientador [que coordena toda a infor-
mação e assistência ao doente, como principal interlocutor deste durante todo
o procedimento – art. 2.º, al. g)], apesar de indicado pelo paciente, não precisar
de ser da confiança deste (ignorando a sua história pessoal e clínica), nem espe-
cialista na patologia que o atinge, além de corresponder a «um completo aban-
dono do doente» e à renúncia ao «princípio ético da compaixão», representado
pela figura do «médico amigo (…) que conhece a pessoa doente e em quem
esta confia para a acompanhar na derradeira decisão fatal», induz à criação de
listas de médicos orientadores não objetores de consciência, abrindo «portas a
uma mercantilização da morte medicamente assistida [que] fragiliza, para lá do
eticamente aceitável, o valor primeiro da vida».
Por seu turno, bem nota o Parecer da Ordem dos Enfermeiros sobre os
Projetos de Lei do PS e do PAN, de 8.06.2022, p. 7: a possibilidade de eterno
retorno ao início do procedimento, exigindo permanente alocação de recursos
humanos e materiais já (muito) escassos, suscita a questão de saber «quem
[serão no final] os profissionais que vão assegurar a prestação de cuidados de
saúde aos doentes que não pretendem ser abrangidos» pela lei da eutanásia.
Em sintonia com a referida conceção «individualista» e «libertária» de pessoa
humana, a intervenção no procedimento de «antecipação da morte» dos profis-
sionais de saúde é tratada como mera questão de consciência individual, que
os liberta do respeito pelas respetivas regras deontológicas e da corresponden-
te responsabilidade disciplinar, numa autêntica usurpação, pelo Estado, de po-
deres e funções das respetivas ordens profissionais53. Como se o procedimento
de morte «medicamente assistida» fosse questão resolúvel no plano individual
do paciente (abandonado à sua sorte) e do profissional de saúde. Também
este transformado numa «pessoa-ilha» que decide soberana e impunemente
sem qualquer tipo de limites, responsabilidades ou vínculos, inclusive, às regras
éticas e deontológicas que regulam o exercício da respetiva atividade54. O que

53 Chama amplamente a atenção para este aspeto o Parecer da Ordem dos Enfermeiros sobre os Pro-
jetos de Lei n.º 74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 8.06.2022, pp. 6-7.
54 Apesar disso, se a posteriori a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de
Morte Medicamente Assistida verificar que houve incumprimento das condições e procedimentos legais
da morte «medicamente assistida», as ordens dos profissionais envolvidos na execução do pedido de
morte são notificadas para efeitos de eventual processo disciplinar (cfr. art. 26.º/3, de todos os Projetos

130 VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152


Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

não sucede: a morte «medicamente assistida» influi necessariamente sobre «a


compreensão do ato médico, da profissão médica e da própria relação médi-
co-paciente» (Parecer da CNECV n.º 116/2022, p. 12). A esta questão dedicar-
-se-á o ponto seguinte.

5. Morte «medicamente assistida»: violação de deveres ético-


-deontológicos, repercussão no modelo de medicina, na relação
médico-doente e na conceção da morte

Nas sábias palavras de Montero (2010), p. 134:

la discusión en torno a la legalización de la eutanasia va mucho


más allá de la cuestión de los derechos individuales. (…) la eutana-
sia y el suicidio asistido médicamente comprometen directamente
a la medicina y atañen a los fundamentos del estado de derecho.
(…) Lo que está en juego es (…) (1) el modelo de medicina que
se quiere, (2) la consideración de la sociedad hacia los enfermos
y moribundos55, así como (3) los mismos fundamentos del orden
jurídico.

Numa linha próxima, o Parecer da Ordem dos Médicos sobre os Projetos de


Lei n.os 74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de 9.06.2022, refere-se à eutanásia e ao
suicídio «medicamente assistido» como «procedimentos de morte provocada,
instrumentalizada medicamente». Aí se assevera:

a «medicalização forçada da “morte assistida” visa a sua cre-


dibilização, mas não altera a sua essência»56 (p. 3), pois a «a eu-
tanásia e o suicídio assistido (…) não pertencem à medicina, nem

de Lei apresentados na XV Legislatura). Como se todo o procedimento da morte «medicamente assistida»


não fosse ele próprio contrário às regras éticas e deontológicas definidas por essas ordens profissionais.
Sublinha este contrassenso o referido Parecer da Ordem dos Enfermeiros, p. 7.
55 Da mesma opinião, Campos/Costa (2020), p. 644: a permissão legal da eutanásia pode «ter o efeito
de diminuir o empenho social na prestação de cuidados aos enfermos e idosos. (…) numa era em que os
recursos para a saúde escasseiam, a sociedade não devia estar a fazer ajustes a normas morais, [os quais]
podem acabar por transformar a eutanásia numa forma de reduzir custos». E também Otero (2020), pp.
85-86: a legalização da eutanásia constitui «instrumento de edificação de uma sociedade mais desumana,
mais injusta e menos solidária», pressupõe uma perspetiva utilitarista e de coisificação da pessoa humana,
e viola o comando constitucional de o Estado português, enquanto República baseada na dignidade da
pessoa humana, construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 1.º da CRP).
56 Próxima Mapelli (2022), pp. 217-218: a lei pretende «elevar a execução do paciente a um acto deon-
tológico, não porque o acto de matar – ao contrário do que ocorre com curar – exija conhecimentos

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 131


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são actos médicos. (…) A execução da morte (…) por intervenção


médica não deixa de ser uma violação dos valores ético-jurídicos
que regem a profissão, e não institui uma nova ética e deontologia
médica. (…) é reduzir a medicina a uma técnica, a um instrumento
para a execução de uma determinação jurídica» (p. 5). Ora, «a
medicina não pode desprover-se do que garante a sua identidade,
educando os seus membros segundo a sua ética e a deontologia
da arte e da ciência da medicina. O Código Deontológico da Medi-
cina não é um simples regulamento administrativo. Se a lei da eu-
tanásia vigorar, não se pode obrigar a adulterar os princípios éticos
e deontológicos da Medicina [que são princípios ético-jurídicos,
suprapositivos, enraizados na consciência da comunidade médica
e cujo carácter vinculativo e normativo é inquestionável], através
de uma alteração do código de conduta dos médicos» (p. 6).

Também o Parecer da Ordem dos Enfermeiros, de 8.06.2022, relativo aos


mesmos Projetos de Lei, começa logo por verificar «a ausência de condições
éticas, deontológicas e jurídicas», para a consagração normativa da morte «me-
dicamente assistida», pois «o reconhecimento da autonomia e [da] participação
activa dos doentes nos processos clínicos que lhes respeitam alter[a] a dinâmi-
ca da relação terapêutica estabelecida [com os] profissionais de saúde, [mas]
não implic[a] o seu desvirtuar, nem pod[e] legitimar condutas que se encontram
vedadas de uma perspectiva ética e deontológica» (p. 2).
No atinente às condições éticas e deontológicas da implementação nor-
mativa da morte «medicamente assistida», o referido Parecer da Ordem dos
Enfermeiros sublinha:

«o acompanhamento e [a] assistência clínica no final de vida,


pelos profissionais de saúde, encontra[m]-se devidamente regula-
do[s], distinguindo-se a assistência, vinculada à praxis profissional
e às leges artis, da “antecipação da morte”»; «a paliação do sofri-
mento, ao contrário da antecipação intencional da morte, [constitui]
um dever ético dos profissionais de saúde e um direito fundamen-
tal dos destinatários de cuidados [de saúde]» (p. 4); «não se pode
concordar ou admitir a “obrigatoriedade” da presença de qualquer

especiais, mas porque quer amparar-se na santidade do exercício médico para transmitir a ideia de que
tudo fica nas mãos de profissionais que garantem a desejada neutralidade». O que não sucede, porque
«hoje pratica-se uma medicina hospitalar muito condicionada por circunstâncias económicas».

132 VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152


Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

profissional de saúde aquando da administração [ou autoadminis-


tração] dos fármacos letais, prevista em ambos os artigos 10.º, n.º
1, (…) por contrariar o direito à objecção de consciência» e por
implicar uma violação ética e deontológica (p. 5); «os presentes
projectos pretendem, à revelia dos reguladores profissionais, obri-
gar (artigos 2.º, [als. a) a c), e] g), e 10.º) e legitimar actos e inter-
venções como próprios de profissões que, pela sua importância
e interesse público, se encontram legalmente regulamentad[os]».
Contudo, «[n]o quadro normativo vigente, a regulação do exercício
profissional, (…) a determinação dos actos próprios de uma profis-
são regulamentada, porque de natureza técnica e científica, assim
como o exercício do [inerente] poder disciplinar encontram-se atri-
buídos a entidades administrativas autónomas com competência
própria» (p. 6).

Aos obstáculos éticos e deontológicos, acresce, segundo o mesmo Pare-


cer, o total desconhecimento do «impacto funcional, organizacional e financeiro»
que a implementação da morte «medicamente assistida» «terá no SNS e no
próprio sistema de saúde». Aduz com toda a razão: o estudo e a divulgação
pública deste impacto constituem «elemento fundamental (…) no processo de
decisão social», por força dos «princípios da boa governação, da responsabili-
dade social e da transparência, em particular quando os recursos afectos são
escassos e o SNS enfrenta graves constrangimentos e fragilidades que afectam
negativamente a (…) prestação de cuidados seguros, adequados, atempados e
de qualidade a todos aqueles que deles necessitam» (p. 2)57.
Mapelli (2022), p. 215, duvida que o legislador esteja a propor «um compro-
misso derivado do direito a dispor da própria vida» [pois] a sua proposta, mais
ou menos encoberta, é uma nova conceção da medicina, da relação médico-
-paciente e da própria morte».
A legalização da morte a pedido de doentes em «contexto eutanásico»
implica uma nova conceção da medicina, pois: (i) leva a subestimar «os pro-
gressos médicos na atenuação do sofrimento»; (ii) desincentiva o «necessário
reforço da solidariedade humana e dos cuidados paliativos»; (iii) «ficcion[a] uma
absolutização da vontade individual para uma morte decretada abruptamente»;

57 Permita-se recordar que, apesar da consagração legal do aborto por opção da mulher nas primei-
ras dez semanas de gestação, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido [artigo
142.º/1, al. e), do CP], desde 2007, em Portugal, em junho de 2022, apenas 13 num total de 45 hospitais
garantiam o acesso à IVG, obrigando as grávidas a deslocar-se, com os consequentes transtornos e
despesas que, evidentemente, ficam por sua conta. Veja-se a notícia do jornal Público, de 9.06.2022,
disponível em https://www.publico.pt/2022/06/09/sociedade/noticia/terco-hospitais-publicos-portu-
gueses-nao-faz-interrupcoes-voluntarias-gravidez-2009507 [8.09.2022].

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(iv) desvia para a «antecipação da morte» «o investimento essencial da medi-


cina e da saúde nos cuidados paliativos» (Parecer da Ordem dos Médicos, de
8.06.2022, pp. 3 e 5); (v) converte a medicina numa pura técnica, que a torna
incapaz de acompanhar o doente, «oferecendo-lhe consolo e calor humano»
[próximo, Montero (2022), p. 135].
Além disso, a legalização da morte «medicamente assistida» pressupõe um
modelo de medicina que tende a priorizar as opções eutanásicas sobre a pa-
liativas. As últimas orientam-se para uma morte em paz, através de um acom-
panhamento personalizado do doente até ao fim da sua vida, exigem tempo,
respeito pelo processo de morrer e implicam custos; tudo aspetos desarmóni-
cos «com uma sociedade [pós-]industrial e capitalista na qual a morte se rege
pelos mesmos critérios do negócio». Em contrapartida, as medidas eutanásicas
são «mais fáceis de aplicar e mais em sintonia com a gestão e organização dos
sistemas de saúde de carácter hospitalar», nos quais se pratica uma «medicina
muito condicionada por circunstâncias económicas», de modo que a seu favor
militam «poderosas razões políticas, sociais e económicas» [Mapelli (2022), pp.
209, 214 e 218]58.
Por outro lado, a legalização da eutanásia confere aos médicos a «nova
função [e o novo poder] de administrar a morte, ainda que a pedido do paciente,
(…) em contradição com a missão que caracteriza a medicina desde as suas
origens, na linha da ética hipocrática, [afectando] a estrutura moral da medicina
[e] a integridade da profissão médica» [Montero (2010), p. 134]59.
A outorga da função e do poder de dar a morte a pacientes, legalmente «em
contexto eutanásico», atinge o âmago da relação médico-paciente, pois: (i) os
médicos deixam de ser incentivados (também pela proibição penal de matar a
pedido do doente ou de o auxiliar ao suicídio60) a recorrer à imaginação, com-
paixão e humanidade para acompanhar o doente terminal; (ii) não se sentem
estimulados a arranjar tempo para escutar o doente e aliviar-lhe o sofrimento,
diante da fácil «solução do seu silêncio definitivo»; (iv) «diminui o nível de delica-
deza moral do entorno e desgasta as suas reservas de paciência relativamente
ao doente que sofre os seus últimos momentos».

58 Também Otero (2020), p. 82, adverte: «as razões economicistas e utilitaristas de gestão de custos e
de infraestruturas farão [os serviços eutanásicos] ganhar progressiva relevância».
59 No mesmo sentido, Campos/Costa (2020), pp. 642-643: a eutanásia ativa direta e o suicídio me-
dicamente assistido violam o «comando fundamental da bioética primum non nocere e o juramento de
Hipócrates». A respetiva legalização comporta «riscos de quebra da confiança na relação terapêutica e da
sociedade nos médicos e no papel da medicina».
60 Montero (2010), p. 135: La Ley penal ayuda al paciente y a su entorno a no confundir su disminución
física o psíquica con una pérdida de dignidad, inalienable por esencia (…) [y] protege, de igual manera, a
todos los enfermos y a las personas más frágiles de la sociedad. Segundo o Autor (p. 136), a proibição
desempenha «um papel estruturante a nível ético e jurídico». Ao não determinar o que se deve fazer, mas
sim aquilo que não se deve fazer, funciona como «aguilhão fundamental da criatividade moral».

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

Em suma: a legalização da eutanásia põe em causa a «integridade moral


da profissão médica e ameaça arruinar a relação de confiança e diálogo entre
médico e paciente» [Montero (2010), p. 135].
Num autêntico efeito em espiral, a alteração da missão e das funções do
médico, a conversão da medicina numa pura técnica (usada, por determinação
legal, para antecipar a morte), a adoção de um modelo de exercício da medicina
que prioriza a gestão económica de recursos humanos e materiais (cada vez
mais escassos) sobre o tratar, cuidar e acompanhar e a consequente deteriora-
ção da relação médico-doente induzem e multiplicam pedidos de morte, vindos
das pessoas mais vulneráveis (idosos, doentes crónicos, com doenças graves
e incuráveis, ou em fase terminal) – justamente aquelas pessoas que o Direito
mais se deveria preocupar em proteger.
Bem nota Montero (2010), pp. 135-136, que o pedido de eutanásia não
tem habitualmente origem numa dor física insuportável (em regra dominável),
mas em «sofrimento, verdadeira angústia, frequentemente associados a uma
carência de atenção ou cuidado». Uma vez que o olhar do outro nos constitui,
«a imagem, que o doente forja da sua dignidade ou decaimento, depende muito
do olhar do entorno».
Afigura-se ética e juridicamente inaceitável aceder a um pedido de eutaná-
sia determinado por «um tratamento inadequado da dor ou [por] uma resposta
inapropriada ao sofrimento. Não se trataria de uma eutanásia por compaixão ou
respeito pela autonomia do paciente, mas de uma eutanásia por incompetên-
cia», ademais, determinada pelo desinvestimento estatal em cuidados paliativos
e de longa duração (muito mais dispendiosos).
Mas a legalização da eutanásia modifica também a conceção da morte.
Esta:

(i) Desaparece como processo natural, mais ou menos longo,


inevitável e inerente à fragilidade da condição humana;
(ii) Passa a ser (aparentemente) controlada e determinada pelo
próprio61;

61 Só aparentemente controlada pelo contrário porque: (i) «a vontade do doente (…) passa pelo crivo
[e juízo] de médicos» quanto à verificação in casu dos pressupostos e requisitos da eutanásia; (ii) no seu
próprio procedimento de morte, «o doente não tem uma palavra a dizer sobre a presença de outros profis-
sionais de saúde [além do médico orientador], nem (…) das pessoas por si indicadas», ficando todas estas
decisões nas mãos do médico orientador (cfr. art. 10.º/1 dos Projetos de Lei apresentados na XV Legis-
latura); (iii) «é o médico orientador que certifica as condições de conforto do local escolhido pelo doente»
para morrer, quando se não trate de estabelecimento de saúde do SNS ou dos sectores privado e social
(cfr. art. 13.º/3 dos Projetos de Lei), transmudando o doente em «objeto da sua própria decisão [numa]
visão paternalista inaceitável da [sua] decisão»; (iv) mesmo a autoadministração de fármacos letais é feita
sob supervisão médica [art. 2.º, al. b), dos Projetos de Lei], sendo que a simples presença dos médicos
e outros profissionais de saúde pode induzir o doente a ultrapassar o seu instinto de autopreservação;

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 135


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(iii) É imposta pelo doente ao Estado, mas somente quando a


este mais lhe convém para diminuir os gastos com a saúde;
(iv) Surge artificializada ao ponto de se transmudar num pro-
cedimento administrativo, com múltiplas etapas e intervenientes,
todos pontuais, à exceção do médico orientador, que, porém, não
precisa de ser o médico assistente nem especialista na patologia
do requerente. O que, tudo ponderado, obsta ao surgimento de
uma relação de diálogo e confiança entre o requerente da morte e
os intervenientes no procedimento respetivo;
(v) Limita a intervenção médica à mera verificação dos pres-
supostos e requisitos da eutanásia62 e converte a medicina numa
pura técnica de matar ou auxiliar ao suicídio, deixando de ser a
arte e a ciência de curar (se possível) ou de cuidar, acompanhar e
aliviar a dor e o sofrimento (na impossibilidade de cura), tal como
gizada por Hipócrates.

6. Verdadeira liberdade e autonomia no pedido de morte


de pessoas em situações-limite e no atual quadro de
funcionamento do SNS?

As potenciais repercussões da legalização da eutanásia no modelo de me-


dicina, na relação médico-paciente e na conceção de morte colocam no centro
a questão da verdadeira liberdade e autonomia do pedido de morte efetuado
por doente padecendo de «lesão definitiva de gravidade extrema» ou «doença
grave e/ou incurável e/ou fatal e /ou terminal».
Já se explicou de que modo estes fatores tendem a induzir e multiplicar
pedidos de morte por parte de doentes legalmente eutanasiáveis.
Mas, agora, importa considerar a atual inexistência, em Portugal, de verda-
deiras alternativas ao pedido de morte no âmbito dos serviços de saúde, sendo
certo que apenas existe «verdadeira escolha quando há um número suficiente
de opções com resultados diferentes» [Campos/Costa (2020), pp. 644-645].
Portugal é um dos países da OCDE que menos investe em cuidados conti-
nuados e de fim de vida e cuja capacidade de resposta às necessidades de cui-
dados paliativos vem diminuindo. Ninguém questionará que a impossibilidade

(v) o acesso do requerente ao Registo Clínico Especial não é livre, estando condicionado à solicitação ao
(e autorização do) médico orientador (art. 16.º/4 dos Projetos de Lei), em desrespeito do princípio de livre
acesso aos dados pessoais e de saúde (Parecer do CNECV n.º 116/2022, pp. 9-11).
62 Assim, o referido Parecer da Ordem dos Médicos, de 9.06.2022, p. 6: «O processo é orientado por
um médico, cuja missão não é clínica, mas (…) a de verificar, como legista, se o candidato se enquadra
nos quesitos (…), isto é, se pode ser eutanasiado ou não.»

136 VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152


Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

ou dificuldade de acesso atempado a cuidados de longa duração, paliativos e


sociais, por parte dos doentes legalmente eutanasiáveis, não disponibilizados
nem garantidos pelo sistema de saúde a todos aqueles que dele necessitam,
«prejudica, de forma grave, o processo de tomada de decisão (…) por não ser
vislumbrada alternativa no âmbito dos serviços de saúde» [Parecer da Ordem
dos Enfermeiros sobre os Projetos de Lei n.os 74/XV (PS) e 83/XV/1.ª (PAN), de
8.06.2022, pp. 2-3].
Sem cuidados paliativos63, existentes e de qualidade, são sérias e graves
as dúvidas sobre a liberdade da decisão de morrer em face da real inexistência
de alternativas64. Com efeito, cerca de 80% dos doentes que deles necessitam
não têm acesso a cuidados paliativos (Parecer da CNECV n.º 116/2022, p. 12),
apesar da consagração legal desse direito e da responsabilidade do Estado em
os assegurar (Base 1 da Lei n.º 52/2012, de 5.09).
Se à partida as limitações da Rede Nacional de Cuidados Paliativos impedem
a prestação de cuidados paliativos a 80% dos doentes que deles necessitam,
a garantia de acesso, querendo, a cuidados paliativos ao doente eutanasiável
que pede a morte (art. 4.º/5 dos Projetos de Lei apresentados na XV Legislatura)
acaba por discriminar, «em termos de garantia de acesso, entre os doentes que
formulem o pedido e aqueles que o não formulem», numa flagrante violação do
princípio da igualdade (Parecer da CNECV n.º 116/2022, p. 12).
O mencionado Parecer da Ordem de Enfermeiros (p. 3) coloca inclusive em
dúvida a existência, em todo o território nacional, de «capacidade instalada de
resposta» às necessidades de acesso a cuidados paliativos para, sequer, cum-
prir o disposto no art. 4.º/5 dos Projetos de Lei.
Com razão, o Parecer da CNECV n.º 116/2022 (p. 12) dá conta da falta de
explicitação da garantia de acesso a cuidados paliativos aos doentes, legalmen-
te eutanasiáveis, que requeiram a morte.

63 Definidos na al. a) da Base II da Lei n.º 59/2012 como: «cuidados ativos, coordenados e globais,
prestados por unidades e equipas específicas, em internamento ou no domicílio, a doentes em situação
em sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, assim como às
suas famílias, com o principal objetivo de promover o seu bem-estar e a sua qualidade de vida, através da
prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, com base na identificação precoce
e do tratamento rigoroso da dor e outros problemas físicos, mas também psicossociais e espirituais».
Gawande (2015), pp. 161-162, num livro memorável, explica assim a diferença entre cuidados médicos
comuns e cuidados paliativos: não se trata da escolha entre tratar ou nada fazer; a distinção reside nas
prioridades. «Na medicina normal, o objetivo é prolongar a vida, [sacrifica-se] a qualidade de vida no
momento (…) para termos a possibilidade de ganhar tempo mais tarde. Os cuidados paliativos mobilizam
enfermeiros, médicos, capelães e assistentes sociais para ajudar as pessoas com doença fatal a viver
a sua vida, com o máximo de plenitude possível no presente (…). Numa doença terminal isso significa
concentrarmo-nos em objetivos como aliviar a dor, o desconforto, preservar a lucidez o máximo de tempo
possível, ou levar [os doentes] a sair com a família de vez em quando.»
64 Campos/Costa (2020), p. 643, dão nota de que os pedidos de «morte assistida» «têm frequentemente
na base uma ausência ou deficiência de cuidados paliativos – físicos e psicológicos», correspondendo tais
pedidos bastas vezes a «mero desabafo relativo à dor, ao sofrimento e isolamento».

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 137


DOUTRINA

Garantia cuja densificação é essencial, tendo em conta que:

(i) A morte a pedido de pessoa em situação de especial vul-


nerabilidade deve ser sempre solução de ultima ratio, num Estado
cuja Constituição afirma categoricamente a inviolabilidade da vida
humana, seja qual for a sua «dignidade» aos olhos da sociedade e
a capacidade produtiva do seu titular65;
(ii) «É a perceção de sofrimento intolerável (não o estádio ou a
gravidade da doença) que (…) legitima o pedido de “morte”» [Car-
neiro/Carneiro/Simões (2022), p. 68];
(iii) Para que se não pratique uma «eutanásia por incompetên-
cia» para debelar a dor e o sofrimento, antes da execução do pe-
dido de morte, o Estado deve assegurar ao requerente a efetiva e
real prestação de cuidados paliativos de qualidade, com base num
plano individual que tenha em conta as suas opções e conceções
pessoais sobre o sentido e a qualidade de vida. Por isso, impõe-
-se a análise individualizada das «fontes de sofrimento aliviáveis»,
com envolvimento de profissionais especialistas nos determinan-
tes do sofrimento (incluindo psicólogos, psiquiatras e assistentes
espirituais), a fim de «maximizar», relativamente ao requerente, as
«oportunidades de alívio do seu sofrimento» [Carneiro/Carneiro/
Simões (2022), p. 68]66. Sofrimento, que, muitas vezes, mais do que
físico, é psicológico, emocional e espiritual, fruto do abandono, da
solidão e da falta de solidariedade e compaixão do entorno;
(iv) Se assim não se proceder, deixando persistir um sofrimen-
to que o doente considera intolerável e que o leva a pedir a morte,
o Estado estará a ser hipócrita ao afirmar que satisfaz o pedido
livre de uma pessoa autónoma [Montero (2010), p. 136]. Tanto
mais que acabam frequentemente por ser revertidos os pedidos
de eutanásia e/ou suicídio assistido, depois de prestados cuida-

65 Campos/Costa (2020), p. 635: «ainda que a pessoa esteja em condições de expressar a sua vontade
no momento em que decide que a existência é insuportável, uma vontade formada num tal estado, de
profundo sofrimento, em que a vida parece nada mais ter para oferecer, muitas vezes hospitalizada, longe
de casa e da família, sentindo que pesa emocional e financeiramente nos familiares, é a definição jurídica
de vontade viciada».
66 Da mesma opinião, Otero (2020), p. 87: a obrigação constitucionalmente imposta ao Estado de
proteção da vida e a prevalência do direito à vida sobre o direito à autodeterminação deveriam determinar
que o procedimento de «morte a pedido» começasse pela «aferição dos meios terapêuticos tendentes
a aliviar a dor e o sofrimento da pessoa», em vez de se orientar, exclusivamente, para a averiguação da
liberdade e autonomia da decisão de morrer.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

dos paliativos adequados que atenuam o sofrimento físico e moral


[Campos/Costa (2020), pp. 643-644], invocando as conclusões da
Ethics Task Force da Associação Europeia de Cuidados Paliativos,
apontadas por Materstvedt et alii. (2003).

Aliás, a medicina bem conhece a «pouca qualidade da vontade do pacien-


te»: falta-lhe estabilidade; altera-se de um dia para o outro em função de cir-
cunstâncias familiares, dos recursos hospitalares, das mutações do seu estado
de saúde; e também «por ser muito difícil ensinar ao ser humano a sua própria
execução para que decida sobre ela»67 [Mapelli (2022), p. 220, citando W. For-
ssmann (1975), pp. 69-91].
A pouca qualidade da vontade do paciente «eutanasiável», a situação de
abandono, solidão, falta de solidariedade e compaixão do entorno em que tan-
tas vezes se encontra, a constatação da escassez de recursos humanos e ma-
teriais e do carácter economicista da medicina hospitalar tornam a decisão de
morrer facilmente manipulável por terceiros, incluindo profissionais de saúde.
O que constitui outro fator determinante da falta de liberdade e autonomia da
decisão de morrer, que o Estado não pode ignorar ao legalizar a eutanásia ativa
direta de certo tipo de doentes.

7. Morte «medicamente assistida»: um novo conceito jurídico-


-penal de ato médico?

O conceito jurídico-penal de ato médico vertido no art. 150.º/1 do CP conti-


nuará a ser válido fora do âmbito de aplicação de uma eventual lei da eutanásia.
Tal conceito, além da adequação técnica ao estado dos conhecimentos e
da experiência da medicina e da realização da intervenção ou tratamento de
acordo com as leges artis (as quais incluem regras éticas, deontológicas e jurídi-
cas), identifica o ato médico por referência à «intenção de prevenir, diagnosticar,
debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão, fadiga corporal ou perturbação
mental».
Portanto, o respeito pelas leges artis e a finalidade terapêutica (ainda que
amplamente entendida) integram o conteúdo essencial do conceito jurídico-
-penal de ato médico, para efeitos de exclusão da tipicidade relativamente às
ofensas à integridade física e, até, ao homicídio. Neste último caso, perante

67 Também o mencionado Parecer da Ordem dos Médicos, de 9.06.2022, dá conta de que a «artificia-
lização da morte», resultante da legalização da eutanásia, suscita uma «difícil ponderação para o próprio
[requerente], os técnicos intervenientes e os avalistas» (p. 5).

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DOUTRINA

situações de «eutanásia ativa indireta», a qual busca imediatamente aliviar as


dores do doente terminal (v.g., administrando-lhe sedativos), ainda que isso
conduza à antecipação da morte [Demetrio (2022), p. 12068].
No caso da «morte a pedido», executada com intervenção de profissionais
de saúde, o desrespeito pelas leges artis (regras éticas, deontológicas e jurídi-
cas do exercício da profissão) e a ausência de finalidade terapêutica (matar ou
auxiliar o doente ao suicídio não minora a doença, nem o sofrimento ou a lesão,
antes «põe fim» ao paciente) obstam à sua recondução ao conceito jurídico-pe-
nal de ato médico, consagrado no art. 150.º/1 do CP [para mais desenvolvi-
mentos sobre este conceito, Brito (2004), pp. 571-573 e 581-588].
Em sentido contrário Costa (2003), pp. 791-792. O Autor pretende ver na
eutanásia ativa direta, sustentada em pedido sério, instante e expresso e neces-
sariamente levada a cabo por médico, um ato de cuidar (que deixou de consistir
numa «exasperada conservação da vida») e, assim, um ato médico, à luz de
um «modelo de autonomia» que coloca a pessoa doente no centro da «relação
dialógica e complexa que é a relação médico/doente». Isso, não obstante tal
relação ser «praxiologicamente dialógica e não cientificamente dialógica».
Portanto, Costa associa a provocação intencional da morte a um ato mé-
dico de cuidar, por desejo e definição do doente que pede a morte para deixar
de sofrer e acordo do médico. Deste modo, a decisão do paciente de morrer às
mãos do médico para se liberar do sofrimento e a decisão de consciência do
médico (liberto de todos os vínculos institucionais à respetiva ordem profissio-
nal e de todas as amarras normativo-deontológicas) determinam o conteúdo e
sentido do ato médico e do exercício da medicina.
Na mesma linha de pensamento, num estudo posterior, Costa (2013), pp.
206-207 e 214-216, reconduz o ato médico, simplesmente, ao ato «funcional-
mente praticado por médico» enquanto representante do «segmento social a
que se creditou o poder-dever de curar» (pratique ou não a chamada «medicina
convencional»?). Assim sucede, esclarece o Autor, porque a «intercepção e o
cruzamento dos saberes e das práticas que possibilitam actos de cuidado e de
cura associados à inarredável autodeterminação da pessoa humana» inviabili-
zam uma definição material de ato médico.
No mesmo sentido se pronuncia Godinho (2015), p. 374, para quem a au-
todeterminação do paciente passou a ser «elemento fundamental de qualquer

68 Há quem pretenda legitimar a eutanásia ativa indireta através da doutrina do duplo efeito, à luz da
qual será eticamente admissível a conduta que se possa qualificar como «boa», apesar de criar um risco de
consequências adversas (encurtamento da vida), quando quem atua prossiga uma finalidade «boa» (aliviar
a dor), que globalmente possa ter-se por mais relevante do que o «efeito mau», produzindo-se, ademais, o
efeito «bom» antes do «mau». Outros propõem-se legitimá-la através da ponderação de benefícios (não se
estaria a encurtar a vida, mas a abreviar a morte aliviando o sofrimento) ou do conflito de deveres (aliviar o
sofrimento vs. não encurtar a vida). Sobre isto, Demetrio (2022), pp. 124-125.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

intervenção ou tratamento médico-cirúrgico», por força da incriminação vertida


no art. 156.º/1 do CP. A Autora entende que «a definição de acto médico conti-
da no artigo 150.º do Código Penal não esgota o seu âmbito», uma vez que im-
porta repensar o ato médico a partir da «sua raiz onto-antropológica, enquanto
relação dialógica entre o médico e o paciente».
Resta saber se:

(i) O art. 156.º/1, do CP, ao prever um crime contra a liberdade


do paciente, pretendeu alguma vez elevar a autodeterminação do
doente a elemento definidor do conceito jurídico-penal de ato mé-
dico, tal como definido pelo art. 150.º/1, i.e., moldado pelo estado
dos conhecimentos e da experiência da medicina, pelas respetivas
leges artis e pela finalidade terapêutica (por óbvio ausente do auxí-
lio médico ativo à morte e da eutanásia ativa direta)69.
(ii) Aceitando-se a hipótese de ter sido este o objetivo e efeito
da incriminação dos tratamentos médicos arbitrários, então, qual a
necessidade de uma definição de ato médico que vá para além do
âmbito do art. 150.º/1, já alegadamente integrado por uma ilimita-
da autodeterminação do médico e do doente na determinação do
conteúdo do ato médico?
(iii) Por detrás da afirmação da necessidade dessoutro concei-
to de ato médico, que transcenda o delimitado pelo art. 150.º/1 do
CP para efeitos de atipicidade criminal da atuação médica, não es-
tará o reconhecimento de que tal conceito de ato médico, alicerça-
do na definição do cuidar e tratar a partir da relação dialógica entre
médico e paciente, apenas poderá implicar a eventual justificação,
por consentimento do ofendido (art. 38.º do CP), da atuação do
médico de matar ou auxiliar ao suicídio aquele que se encontre nas
situações legalmente definidas70?

Importa refletir sobre um outro tópico. Poderá uma maioria parlamentar


contingente impor às ordens profissionais e à comunidade em geral um concei-
to puramente técnico-economicista de ato médico e de prestação de cuidados
de saúde, exclusivamente destinado à execução das opções ideológicas e das

69 Responde negativamente Andrade (2012), § 11 ao art. 150.º: para a atipicidade das intervenções mé-
dico-cirúrgicas é irrelevante a existência ou não de consentimento. A realização de um tratamento médico
sem ou contra a vontade do doente apenas pode ser típico enquanto atentado à liberdade.
70 Assim, claramente, Godinho (2015), p. 374, ao afirmar: a autodeterminação do doente, que integra
o conceito de intervenção médico-cirúrgica, «expressa-se, no patamar jurídico-penal, através da figura
do consentimento»; a «vontade da vítima influi na valoração jurídico-penal da conduta, excluindo a sua
ilicitude, em obediência ao princípio Volenti non fit iniuria».

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 141


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políticas de saúde de dado governo, mas por completo dissociado de qualquer


finalidade terapêutica, de cuidado ou acompanhamento em final de vida?
Já se viu que um dos objetivos da lei da morte «medicamente assistida» é o
que forçar as ordens profissionais (e a comunidade em geral) a aceitarem uma
definição estatal (determinada por maioria parlamentar contingente) de ato mé-
dico e de prestação de cuidados de saúde, que contraria abertamente regras
constitucionais e jurídicas fundantes do Estado de Direito democrático e, ainda,
regras éticas e deontológicas reguladoras do exercício das profissões relacio-
nadas com a saúde.
Regras que, ao abrigo da liberdade de associação e atento o interesse pú-
blico de que se revestem essas profissões, foram autonomamente definidas
pelas respetivas ordens profissionais para regerem a correspondente atividade,
sem promoverem a violência nem contrariarem a lei penal, encontrando-se ade-
mais o Estado constitucionalmente proibido de interferir na prossecução dos
respetivos fins (art. 46.º/1 e 2 da CRP).
Também Otero (2020), pp. 113 e 121, conclui: existem «limites materiais e
institucionais à intervenção legislativa do Estado [na] esfera dos deveres deon-
tológicos dos médicos». O Autor explica que a Ordem dos Médicos, como qual-
quer outra associação pública profissional, beneficia, em virtude da garantia
constitucional de autonomia, de uma «reserva deontológica de decisão», que
comporta duas faculdades. Primeira: a de «normação deontológica», i.e., «de
definição dos parâmetros ou pautas normativas de atuação deontológica». Se-
gunda: «a reserva de controlo concreto de condutas deontológicas dos seus
membros», ou «reserva de aplicação individual de normas deontológicas (…),
sem prejuízo do controlo formal pelos tribunais»71. Por isso, «um Estado não to-
talitário encontra-se impedido, sob pena de inconstitucionalidade, de reconfigu-
rar os parâmetros deontológicos do exercício da atividade médica ou de alargar
o conceito de ato médio no sentido de permitir a intervenção médica em actos
de eutanásia». Paralelamente, «a Ordem dos Médicos não pode ser compelida
a alterar ou a aceitar a alteração legislativa dos deveres deontológicos ou do
conceito de ato médico, passando a tornar lícita a intervenção médica em atos
de eutanásia». Assim sucede, porque «a matéria deontológica é limite material
à intervenção legislativa do Estado, [tal] como a reserva de normação deonto-
lógica integra a garantia constitucional da autonomia das associações públicas
profissionais».
Como se anteviu, a definição e imposição estatal de um conceito puramente
técnico-economicista de ato médico e de cuidados de saúde, exclusivamente
orientado para a execução de políticas (desumanas e não solidárias) de saúde,

71 Sobre a autorregulação profissional dos médicos, veja-se, ainda, Oliveira (2001), pp. 34-40.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
humana e de «ato médico» subjacentes aos Decretos da Assembleia da República
n.os 109/XIV e 199/XIV \ Teresa Quintela de Brito

ideologicamente definidas por certa maioria parlamentar, viola, ainda, os direitos


à educação e à cultura democratizadas e plurais, bem como à fruição e criação
culturais (arts. 73.º/1 e 3 e 78.º/1, da CRP).
Por todas estas razões e pela ausência de qualquer orientação e signifi-
cação objetivas da conduta como minoração de doença, sofrimento ou lesão,
a morte «medicamente assistida» (que põe fim ao doente e não à doença ou
sofrimento) não pode corresponder a um ato médico, nem a uma prestação de
cuidados de saúde capazes de legitimar a atipicidade criminal da conduta em
causa como homicídio a pedido do paciente ou auxílio médico ativo ao seu sui-
cídio. Tanto mais que tal atipicidade implicaria a negação estatal de toda a pro-
teção da vida dos doentes eutanasiáveis que requereram a morte, cumpridos
os pressupostos e requisitos legalmente definidos, numa inequívoca violação
da igual dignidade de todas e cada umas das pessoas e da inviolabilidade de
todas e cada uma das vidas humanas, independentemente da capacidade de
prestação social e de retorno do «investimento» por parte do respetivo titular.
Se a lei da eutanásia determinasse a atipicidade criminal do homicídio a
pedido ou do auxílio ativo ao suicídio, realizados por médico ou sob sua super-
visão, nos termos e condições nela estabelecidos, iria mais longe do que o art.
142.º/1, al. e), do CP, que veio despenalizar o aborto por livre opção da mulher
nas primeiras dez semanas de gestação. Neste caso, a proteção constitucio-
nalmente imposta à vida intrauterina obsta à atipicidade criminal da IVG como
aborto, estando-se somente perante uma causa de exclusão da ilicitude de um
facto típico de aborto consentido (art. 140.º/2 e 3 do CP).
Poderá argumentar-se que a situação prevista no art. 142.º/1, al. e), do CP,
difere da morte «medicamente assistida», em termos tais que neste último caso
seria admissível a exclusão da tipicidade, e não somente a justificação da con-
duta do profissional de saúde.
Verdade que no caso da IVG se destrói um bem jurídico (a vida intrauterina)
de que a grávida não é titular, e sim mera portadora. O que inviabilizaria à partida
a atipicidade da conduta em causa.
Em contrapartida, insistir-se-á, na morte «medicamente assistida» colidem
bens jurídicos ou interesses do mesmo titular (vida vs. ausência de dor e sofri-
mento «insuportáveis»). Contudo, mesmo nesta hipótese, a vertente objetiva do
direito à vida (o seu valor social e juridicamente fundante do Estado de Direito
para que não haja acessão de vidas humanas) – expresso na afirmação consti-
tucional da respetiva inviolabilidade – e a consequente exclusão, da constituição
desse bem jurídico ou interesse, de uma vertente de autodeterminação do titu-
lar, conduzem, também aqui, à ilegitimidade jurídico-constitucional (e também
ética e deontológica) de uma atipicidade criminal da eutanásia ou suicídio me-
dicamente assistidos.

VOLUME VI \ n.º 3 \ novembro 2022 \ 95-152 143


DOUTRINA

A este resultado chega, igualmente, o Parecer do CNECV n.º 116/2022


(pp. 4-5), sublinhando que os Projetos de Lei optaram pela solução da despe-
nalização (ou justificação) e não da descriminalização da morte medicamente
assistida. Despenalização, aliás, expressa por via da referência à «não punição»
nos novos n.os 3 dos arts. 134.º e 135.º e no n.º 2 do art. 139.º (cfr. art. 28.º dos
Projetos de Lei em análise).
De acordo com o Parecer, a escolha deste modelo significa que, mesmo
nestas hipóteses, subsistem as incriminações do homicídio a pedido e do auxí-
lio ao suicídio. Subsistência que se explica pela «manutenção da proteção pe-
nal da vida em sentido tendencialmente absoluto», admitindo-se, porém, uma
concreta ponderação com outros interesses jurídicos (a autonomia do doente),
mas somente em certas circunstâncias (sofrimento intolerável causado por «le-
são definitiva de gravidade extrema» ou «doença grave e/ou incurável e/ou fatal
e/ou terminal»), por força do princípio da proporcionalidade das restrições aos
direitos, liberdades e garantias (art. 18.º/1 da CRP). Deste modo, o Parecer do
CNECV n.º 116/2022 reconhece que a permissão legal da morte «medicamente
assistida» se traduz numa restrição do direito à vida daquele que pede a morte
e numa exceção à proibição da interferência de terceiros na livre disposição da
vida pelo seu titular.
Daí que, no entender do CNECV, seja crucial a determinação clara e precisa
pelo legislador das circunstâncias em que a autonomia do paciente pode pre-
ponderar sobre a proteção (tendencialmente absoluta) da vida humana.

8. Conclusões e propostas de lege ferenda

I – A inviolabilidade da vida humana por terceiros (art. 134.º do CP), exceto


para preservação de outra/s vida/s (por exemplo em legítima defesa ou conflito
de deveres – arts. 32.º e 36.º do CP), fere de inconstitucionalidade material a
legalização da administração de fármacos letais por médico ou profissional de
saúde devidamente habilitado, ainda que a pedido de doentes padecendo de
«lesão definitiva de gravidade extrema» ou de «doença grave e/ou incurável e/ou
fatal e/ou terminal». Essa inconstitucionalidade material resulta desde logo da
violação do art. 24.º/1, da CRP, que consagra a inviolabilidade da vida humana
pelo Estado e por quaisquer terceiros.
A este fundamento acresce o decorrente do disposto no art. 1.º da Lei Fun-
damental, pelo qual Portugal se assume como uma República baseada na dig-
nidade da pessoa humana, simplesmente por o ser, com independência da sua
condição de saúde, da sua esperança de vida e da sua capacidade de pres-
tação social. Consequentemente, esse preceito impõe ao Estado português o

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dever de construir uma sociedade justa e solidária. Sociedade que, definitiva-


mente, nada tem de justa e solidária quando, impossibilitada e/ou desinteres-
sada em prestar a todos os cuidados de saúde de que necessitam, oferece a
certo tipo de doentes a rápida e mais barata «solução final», garantindo então
àqueles que pedem a morte, querendo, o acesso a cuidados paliativos (cfr. art.
4.º/5 de todos os Projetos de Lei apresentados na XV Legislatura sobre a morte
«medicamente assistida»). Justamente os cuidados paliativos que já deveriam
ter sido proporcionados para prevenir que o doente se veja e sinta numa situa-
ção de sofrimento intolerável.
Ao permitir a eutanásia ativa direta de doentes legalmente selecionados
como «eutanasiáveis», o Estado português está a violar os arts. 2.º e 9.º da
Lei Fundamental, pois incumpre a tarefa fundamental de um Estado de Direito
democrático de respeitar e garantir os direitos e liberdades fundamentais (ma-
xime o direito à vida, à saúde e à prestação de cuidados de saúde). Direitos e
liberdades fundamentais, não apenas daqueles cuja morte aceita executar, mas
de todos os outros, igualmente vulneráveis e desprotegidos, que, pela incapa-
cidade e/ou desinteresse da sociedade e do Estado em deles cuidar, se veem
compelidos e estimulados (pela permissão legal da eutanásia) a pedir a morte
para não sobrecarregar financeiramente o Estado e as famílias, para poupar es-
tas do «trauma» e do sofrimento provocados por um processo natural de morte.
Ao fazer relevar a autodeterminação quanto ao momento e modo da morte
apenas em relação a pessoas que se encontrem em contextos legalmente defi-
nidos como «eutanásicos», o Estado português estará a negar-lhes a proteção
devida à sua vida e a fazer aceção de vidas humanas, reconhecendo que al-
gumas carecem de «valor vital» e da «dignidade» associada (ou restringida?) às
pessoas saudáveis, socialmente recuperáveis, produtivas e autónomas. Conse-
quentemente, ao lado da inviolabilidade da vida humana, o Estado desrespei-
tará a igual dignidade social e a igualdade perante a lei de todos os cidadãos,
privando alguns de direitos em razão da sua condição social (inconstitucionali-
dade material por violação dos arts. 24.º/1 e 13.º da CRP).
Reconhecendo a certo tipo de doentes (especialmente onerosos para o
Estado, a sociedade e as famílias), em nome da autodeterminação quanto à
própria morte, um «direito» à eutanásia ativa direta e ao auxílio médico ao suicí-
dio – direito ao qual corresponde o dever dos médicos e de outros profissionais
de saúde (não objetores de consciência e legalmente libertados dos vínculos às
respetivas ordens profissionais e às normas éticas, deontológicas e jurídicas que
regem o exercício da sua atividade) de estar presentes, de administrar fármacos
letais e/ou supervisionar a autoadministração dos mesmos pelos doente [arts.
2.º, als. a) a c), e g), e 10.º/1, de todos os Projetos de Lei] – o Estado português
está a impor à comunidade e às ordens profissionais, por razões ideológicas,

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uma conceção do doente e do médico como «pessoas-ilha». Conceção que,


sendo própria de um «individualismo radical e libertário», implica violação do
pluralismo de expressão e organização política democráticas, da democracia
social, cultural e participativa inerentes ao Estado de Direito democrático, que o
art. 2.º da CRP vincula o Estado português a ser.
II – Quando muito, tendo em conta a disponibilidade da vida pelo próprio
titular e o menor desvalor da intervenção de terceiros no exercício dessa liber-
dade quando revista a forma de auxílio ao suicídio, admitir-se-ia, com base num
«consentimento» qualificado do ofendido (aferido nos termos dos arts. 38.º e
149.º/2, do CP), a permissão legal expressa de auxílio médico ativo ao suicí-
dio, se prestado a pessoa com doença grave, incurável e fatal, cujo sofrimento
já não intenta minorar-se mediante cuidados paliativos, preferencialmente pelo
seu médico assistente e a pedido sério, instante e expresso do próprio. Note-se
que se estaria perante uma mera permissão, nunca uma imposição dirigida aos
médicos e outros profissionais de saúde para que intervenham, usando os seus
conhecimentos técnicos, na execução do pedido de morte.
III – O pedido de auxílio médico ao suicídio, à semelhança da interrupção
voluntária da gravidez (art. 142.º/1 do CP), deveria ser dirigido ao estabeleci-
mento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, onde exerça funções o
médico assistente do doente em causa.
A esse estabelecimento de saúde caberia assegurar o procedimento ten-
dente a comprovar os pressupostos e requisitos do auxílio e o fornecimento do
meio mais eficaz, rápido e humano de o doente pôr fim à vida.
Esse procedimento envolveria a certificação das circunstâncias que tornam
não punível a ajuda médica ao suicídio, mediante atestado médico, escrito e
assinado antes da prestação do auxílio, por médico diferente daquele que a vai
realizar (o médico assistente).
O pedido de auxílio médico ao suicídio deve constar de documento assina-
do pelo doente, sempre que possível com a antecedência mínima de 24 horas
relativamente à prestação do auxílio72.
O médico assistente que presta auxílio, através do fornecimento do meio
mais eficaz, rápido e humano de pôr fim à vida, não deve estar presente no
momento do suicídio, para que o doente se não sinta compelido à respetiva
execução «para não ficar mal» perante aquele. Só assim poderá não suceder,
caso o doente de forma séria, instante e expressa solicite a presença do médico
assistente durante a execução do suicídio.

72 Uma proposta neste sentido, de inserção de novos números ao art. 135.º do CP, apesar de entender
que a solução já resultava da aplicação dos arts. 38.º e 149.º do CP, foi apresentada por Brito (2004), pp.
600-610.

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IV – O suicídio do doente poderia, mas não teria obrigatoriamente de ocor-


rer no estabelecimento de saúde onde presta serviço o seu médico assistente,
em ordem a preservar a privacidade e profunda intimidade do ato de pôr termo
à própria vida.
V – Os doentes aos quais poderia ser prestada ajuda médica ativa ao sui-
cídio deveriam ser delimitados por referência ao universo restrito de pessoas
com acesso a sedação paliativa73, nos termos do art. 8.º/1, da Lei n.º 31/201874.
Esta aliás a proposta vertida no Parecer da CNECV n.º 116/2022 (p. 7), no
que concerne à delimitação das pessoas que, nas situações-limite de colisão
da autonomia com a vida, poderiam solicitar e obter a morte «medicamente
assistida».
VI – A verdadeira questão reside em saber se é mesmo necessária e be-
néfica a regulação da morte «medicamente assistida» num diploma autónomo
que não toma devidamente em consideração conceitos, critérios e garantias já
sedimentados noutros diplomas [v.g., direito a não sofrer de forma mantida, dis-
ruptiva e desproporcionada, pessoa em contexto de doença avançada e em fim
de vida ou com prognóstico vital breve – arts. 1.º, 2.º e 8.º da Lei n.º 31/2018;
direito de acesso aos cuidados paliativos e responsabilidade do Estado nessa
matéria, dependência e sofrimento – Bases I, II, al. i), III, n.º 1, e IX, n.º 1, da Lei
n.º 52/2012].
O referido Parecer da Ordem de Enfermeiros, de 8.06.2022, responde nega-
tivamente: «o [verdadeiro] acompanhamento e assistência clínica no final de vida,
pelos profissionais de saúde, encontra-se devida [e suficientemente] regulado».
Também Mapelli (2022), pp. 209 e 214, em nome da coerência do sistema
e, sobretudo, para minorar o risco de priorização da opção eutanásica sobre a
paliativa, sugere que ambas as questões sejam reguladas na mesma lei, per-
mitindo assim aos profissionais de saúde «trabalhar com unidade de objeto, de
garantias e de critérios» e que as duas opções sejam apresentadas ao doente e
aos seus familiares em igualdade de condições.

73 Demetrio (2022), pp. 118 e 125, esclarece que a sedação paliativa consiste na administração de
fármacos com o objetivo de diminuir a consciência e aliviar a dor, sendo, porém, reversível o estado de
diminuição da consciência e não se verificando necessariamente um encurtamento da vida. Hipótese em
que a sedação paliativa poderá ser considerada uma intervenção médica e não uma hipótese de eutanásia
ativa indireta.
Ao invés, a sedação agónica ou terminal apenas se aplica a doentes cuja morte se prevê muito próxima,
não existindo outra forma de aliviar o sofrimento físico ou psicológico, e, neste caso, a diminuição da
consciência é irreversível.
74 Que estabelece: «As pessoas com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que apresentem
sintomas de sofrimento não controlado pelas medidas de primeira linha previstas no n.º 1 do artigo 6.º,
têm direito a receber sedação paliativa com fármacos sedativos devidamente titulados e ajustados exclu-
sivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os princípios da boa prática clínica e
das leges artis.»

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DOUTRINA

Esta Autora recorda que aqueles para quem continuar a viver se tornou
insuportável dispõem de várias saídas: o suicídio, os cuidados paliativos e a
solicitação da eutanásia passiva (interrupção de medidas que prolonguem arti-
ficialmente a vida).
VII – Em suma, a lei da eutanásia não é verdadeiramente necessária para
salvaguardar a dignidade e autonomia dos doentes, nem para pôr fim ou mi-
norar o sofrimento de pessoas com «lesão definitiva de gravidade extrema» ou
«doença grave, incurável e fatal».
Para isso, basta aplicar e implementar, com seriedade e empenho, a le-
gislação já existente, com especial destaque para as Leis n.os 52/2012 (Lei de
Bases dos Cuidados Paliativos), 31/2018 (Lei dos Cuidados em Fim de Vida),
91/2019 (Lei de Bases da Saúde) e 15/2014 (Direitos e Deveres dos Utentes
dos Serviços de Saúde).
VIII – A lei da eutanásia provocará muito mais danos do que benefícios, pois:

(i) Banaliza e normaliza a «antecipação da morte» por pessoas


com «lesão definitiva de gravidade extrema» ou «doença
grave e/ou incurável e/ou fatal e/ou terminal»;
(ii) Desprotege as pessoas mais vulneráveis, negando-lhes a
solidariedade, a compaixão e o acompanhamento que lhes
são especialmente devidos;
(iii) Abandona-as a uma medicina hospitalar «muito condicio-
nada por circunstância económicas»;
(iv) Modifica a compreensão da profissão médica e do ato mé-
dico, destruindo a sua estrutura e integridade moral;
(v) Altera o próprio modelo de medicina: esta deixa de ser a
arte e a ciência de tratar, cuidar e acompanhar para se con-
verter em mera técnica de execução de objetivos (ideológi-
cos) de dada política governamental de saúde;
(vi) Quebra a relação de confiança e diálogo entre profissionais
de saúde e doentes.

Todos estes danos se agudizam no atual contexto de desnorte, crise estru-


tural, gravíssima carência de recursos materiais e humanos e exaurimento do
SNS pela situação de pandemia.

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Constitucionalidade da eutanásia ativa direta? Mundividência, conceções de pessoa
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