Você está na página 1de 42

1

Psicose 4h48 (Psychosis 4.48)


Sarah Kane
Tradução Laerte Mello

Estreou no Brasil em 19 de outubro de 2003


Foi dirigido por Nelson de Sá
Elenco: Luciana Vendramini e Luiz Paetow

Nova montagem estreou em abril de 2013


Foi dirigida por Laerte Mello
Elenco: Claudia Piassi, Daniela Theller, Elisa Porto, Erika Máximo, Felipe
Schermann, Leandro D’Errico, Renata Aspesi e Thomas Basso
2

(Um silêncio muito longo.)


3

Mas você tem amigos.

(Um silêncio longo.)

Você tem muitos amigos.


O que é que você dá aos seus amigos que faz com que eles te apoiem tanto?

(Um silêncio longo.)

O que é que você dá aos seus amigos que faz com que eles te apoiem tanto?

(Um silêncio longo.)

O que é que você dá?

(Silêncio.)

-----

uma consciência consolidada reside em um salão de jantar escurecido perto do


teto de uma mente onde o chão se desloca como dez mil baratas quando um
feixe de luz penetra como todos os pensamentos unidos em um instante de
harmonia do corpo não tão repelente como as baratas compreendem uma
verdade que ninguém nunca fala

Tive uma noite em que tudo foi revelado.


Como posso voltar a falar?

a hermafrodita destruída que confiou só confiou nela encontra a sala em


prolífica realidade e implora nunca acordar do pesadelo

e estavam todos lá
cada um deles
e sabiam meu nome
e sabiam como escapei feito um besouro ao longo das costas de suas
cadeiras
4

Lembre da luz e acredite na luz

Um instante de claridade antes da noite eterna

Não me deixe esquecer

-----

estou triste

vejo o futuro sem esperança e que as coisas não vão melhorar

estou chateada e insatisfeita com tudo

sou um completo fracasso como pessoa

sou culpada, estou sendo punida

gostaria de me matar

costumo conseguir chorar mas agora estou além das lágrimas

perdi o interesse em outras pessoas

não consigo tomar decisões

não consigo comer

não consigo dormir

não consigo pensar

não consigo ir além da minha solidão, do meu medo, do meu desgosto

estou gorda
não consigo escrever
não consigo amar
5

meu irmão está morrendo, meu amor está morrendo, estou matando os dois

me desloco rapidamente em direção à minha morte

Tenho pavor de medicação

não consigo fazer amor

não consigo foder

não consigo ficar sozinha

não consigo ficar com os outros

meus quadrís estão muito grandes

não gosto dos meus órgãos genitais

Às 4h48
quando o desespero me visita
posso me enforcar
com o som da respiração de meu amante
não quero mesmo morrer
me tornei tão depressiva por causa da minha mortalidade que decidi cometer
suicídio
não quero mesmo viver

tenho ciúmes de meu amor adormecido e cobiço sua inconsciência induzida

Quando ele acordar vai ter inveja da minha insone noite de pensamentos e
discursos que não foram fruto dos medicamentos

Este ano renunciei a mim mesma pela minha morte

Alguns vão chamar isso de autossatisfação


(eles têm sorte de não saber a verdade)
6

Alguns vão conhecer simplesmente a dor

Isso está se tornando minha rotina

-----

100
91
84
81
72
69
58
44
38
42
28
12
7
-----

Não foi por muito tempo, eu não estava lá por tanto tempo. Mas bebendo café
amargo senti aquele cheiro medicinal em uma nuvem antiga de tabaco e algo
me tocou naquele lugar ainda soluçante e um ferimento de dois anos atrás se
abriu como um cadáver e uma vergonha enterrada há muito tempo brandiu sua
dor decadente e abominável.

Um quarto com faces inexpressivas encarando com indiferença a minha


dor, faces tão desprovidas de significado que devem ter intenção
diabólica.

Dr. Isso e Dr. Aquilo e Dr. Oqueéisso estavam apenas de passagem e


resolveram aparecer para tirar uma com minha cara também.
Queimando em um túnel quente de desalento, minha humilhação se
completa por eu tremer sem razão e por tropeçar nas palavras e por não
ter nada a dizer sobre minha “doença” que de qualquer maneira só vale
para saber que não há significado em coisa nenhuma porque vou morrer.
E estou em um beco sem saída levada por aquela voz psiquiátrica suave
da razão que me diz que há uma realidade objetiva na qual meu corpo e
7

minha mente são uma coisa só. Mas não estou aqui nem nunca estive.
Dr. Isso escreve e Dr. Aquilo tenta um murmúrio simpático. Me
assistindo, me julgando, cheirando o fracasso e a paralisia que escorrem
da minha pele, meu desespero me rasgando e o pânico me consumindo
me encharcando enquanto eu no mundo boquiaberta de horror pensando
por que todos estão sorrindo e me olhando com um conhecimento
secreto da minha dolorosa vergonha.

Vergonha vergonha vergonha.


Se afogue na sua vergonha de merda.

Médicos misteriosos, médicos sensatos, médicos excêntricos, médicos


que você pensaria que estavam fodendo pacientes se não lhe
mostrassem provas do contrário, fazem as mesmas perguntas, põem
palavras na minha boca, oferecem curas químicas para angústias
congênitas e cobrem os rabos um dos outros até eu querer gritar por
você, o único médico que me tocou voluntariamente, que olhou nos
meus olhos, que riu do meu humor mórbido dito com voz de túmulo
recém-aberto, que tirou um sarro da minha cara quando raspei minha
cabeça, que mentiu e disse que era legal me ver. Que mentiu. E disse
que era legal me ver. Confiei em você, amei você, e não é perder você
que me machuca, mas sim sua falsidade de merda e descarada
disfarçada em notas médicas.

Sua verdade, suas mentiras, não as minhas.

E enquanto eu acreditava que você era diferente e que você talvez até
sentisse a aflição que às vezes oscilava pela sua face e ameaçava
irromper, você estava cobrindo seu rabo também. Como qualquer outro
mortal cuzão estúpido.

Na minha cabeça isso é traição. E minha cabeça é o tema desses


fragmentos desorientados.

Nada pode extinguir meu ódio.

E nada pode restaurar minha fé.

Esse não é um mundo em que eu deseje viver.


-----
8

- Você planejou alguma coisa?

- Tomar uma overdose, cortar meus pulsos depois me enforcar.

- Tudo isso de uma vez?

- E sem que fosse interpretado como um grito por socorro.

(Silêncio.)

- Não daria certo.

- Claro que daria.

- Não daria certo. Você se sentiria sonolenta por causa da overdose e não teria
forças para cortar os pulsos.

(Silêncio.)

- Eu estaria em pé numa cadeira com uma corda enrolada no pescoço.

(Silêncio.)

- Se você estivesse sozinha você acha que você faria mal a você mesma?

- Me assusta o tanto que eu acho que faria.

- Seria uma defesa?

- Sim. É o medo que me mantém longe dos trilhos dos trens. Só espero de
Deus que a morte seja mesmo a porra do fim. Me sinto como se tivesse oitenta
anos de idade. Estou cansada da vida e minha mente quer morrer.

- Isso é uma metáfora, não é realidade.

- É como se fosse.

- Isso não é realidade.


9

- Não é uma metáfora, é como se fosse, mas ainda que fosse uma metáfora, a
definição característica de uma metáfora é que ela é real.

(Um longo silêncio.)

- Você não tem oitenta anos de idade.

(Silêncio.)

Tem?

(Silêncio.)

Tem?

(Silêncio.)

Ou tem?

(Um longo silêncio.)

- Você despreza todas as pessoas infelizes ou só especificamente a mim?

- Eu não desprezo você. A culpa não é sua. Você está doente.

- Eu não acho.

- Não?

- Não. Estou deprimida. Depressão é ódio. É o que você fez, é quem estava lá
e a quem você está culpando.

- E quem você está culpando?

- A mim mesma.

-----
10

Corpo e alma nunca podem se casar.

Preciso me tornar quem já sou e bradarei para sempre nesta incongruência que
me colocou no inferno

A esperança insolúvel não me mantém de pé.

Eu me afogarei na disforia
em uma lagoa negra fria de mim mesma
o fosso da minha mente irrelevante

Como posso voltar à forma


Agora que meu pensamento formal se foi?

Não é uma vida que eu possa aceitar.

Eles me amarão por aquilo que me destrói


a espada nos meus sonhos
a poeira dos meus pensamentos
a doença que se reproduz nos cantos da minha mente

Todo elogio tira um pedaço da minha alma

Uma crítica expressionista


Sentada na melhor poltrona entre dois bobos
Eles não sabem nada –
Sempre andei livre

A última em uma longa fila de cleptomaníacos literários


(tradição de uma época honrada)

Roubo é um ato sagrado


Sobre uma trilha destorcida para expressar

Uma superabundância de pontos de exclamação escreve um iminente colapso


nervoso
Uma única palavra na página e aí está o teatro
11

Eu escrevo pelos mortos


pelos que estão por vir

Depois das 4h48 eu não devo falar mais


Alcancei o fim desse conto triste e repugnante de um sentido
internado em uma carcaça alienígena e
inchada pelo espírito maligno da moral da maioria
Estive morta por um longo tempo

De volta às minhas raízes

Eu canto sem esperança no meu limite


12

RSVP ASAP

-----

Às vezes me viro e sinto seu cheiro e não posso seguir é uma porra e não
posso seguir sem expressar essa terrível dor física terrível horrorosa pra
caralho e interminável que sinto por você. E não posso acreditar que posso
sentir isso por você e você não sente nada. Você não sente nada?

(Silêncio.)

Você não sente nada?

(Silêncio.)

E saio às seis da manhã e começo minha procura por você. Se sonhei com uma
rua ou com um bar ou com uma estação vou lá. E espero por você.

(Silêncio.)

Sabe, me sinto mesmo como se estivesse sendo manipulada.

(Silêncio.)

Nunca tive problemas na vida dando a outras pessoas o que elas querem. Mas
ninguém ainda foi capaz de fazer isso por mim. Ninguém me toca, ninguém se
aproxima de mim. Mas agora você me tocou em algum lugar profundo pra
caralho que não consigo acreditar e não consigo fazer isso por você. Porque
não consigo te achar.

(Silêncio.)

Como ela é?
E como vou saber que é ela quando eu encontra-la?
Ela vai morrer, ela vai morrer, ela vai morrer mesmo.

(Silêncio.)

Você acha que é possível uma pessoa nascer em um corpo errado?


13

(Silêncio.)

Você acha que é possível uma pessoa nascer em uma época errada?

(Silêncio.)

Foda-se. Foda-se. Foda-se por me rejeitar nunca estando lá, foda-se por me
fazer sentir que sou uma merda, foda-se por sangrar a porra do amor e da vida,
foda-se meu pai por ter fodido minha vida para sempre e foda-se minha mãe
por não o ter deixado, mas acima de tudo, foda-se Deus por ter me feito amar
alguém que não existe,
FODA-SE FODA-SE FODA-SE

-----

- Ah querida, o que aconteceu com seu braço?

- Me cortei.

- Foi muito imaturo, procurar chamar a atenção desse jeito.


Te aliviou?

- Não.

- Aliviou sua tensão?

- Não.

- Te aliviou?

(Silêncio.)

- Te aliviou?

- Não.

- Não entendo por que você fez isso.

- Então pergunte.
14

- Aliviou sua tensão?

(Um longo silêncio.)

Posso ver?

- Não.

- Queria olhar, para ver se infeccionou.

- Não.

(Silêncio.)

- Achei que você faria isso. Muita gente faz isso. Alivia a tensão.

- Você já fez?

- ...

- Não. É um porra pra lá de são e sensato. Não sei onde você leu isso, mas não
alivia a tensão.

(Silêncio.)

Por que você não me pergunta por quê?


Por que cortei meu braço?

- Você quer me falar?

- Sim.

- Então fale.

- PERGUNTE
ME
POR QUÊ
15

(Um longo silêncio.)

- Por que você cortou seu braço?

- Porque me faz me sentir bem pra caralho. Porque é bom pra caralho.

- Posso ver?

- Pode ver. Mas não toque.

- (Olha) E você acha que não está doente?

- Não.

- Eu acho. A culpa não é sua. Mas você tem que assumir a responsabilidade
pelos seus atos. Por favor não faça isso de novo.

-----

temo perdê-la sem nunca tê-la tocado

o amor me mantém escrava em uma gaiola de lágrimas


eu rôo minha língua de forma que não posso mais falar
sinto falta de uma mulher que nunca nasceu
beijo uma mulher por anos que diz que nunca nos conhecemos

Tudo passa
Tudo perece
Tudo se torna enfadonho

meu pensamento se vai com um sorriso assassino


deixando uma ansiedade discordante
que grita na minha alma

Sem esperança Sem esperança Sem esperança Sem esperança Sem esperança
Sem esperança Sem esperança

Uma canção para minha amada, tocando sua ausência


o fluxo do seu coração, o respingar do seu sorriso
16

Daqui há dez anos ela ainda estará morta. Quando eu estiver vivendo com
isso, lidando com isso, quando alguns dias se passarem e quando eu nem
sequer pensar mais nisso, ela ainda estará morta. Quando eu for uma velha
vivendo nas ruas esquecendo meu nome ela ainda estará morta, ela ainda
estará morta, está
tudo
acabado

e tenho que seguir sozinha

Meu amor, meu amor, por que me abandonaste?

Ela é o conforto com quem nunca deitarei e não tem sentido viver na luz da
minha perda

Feita para ser sozinha


para amar a ausência

Me encontre
me liberte
dessa

dúvida corrosiva
desse desespero fútil

desse horror em repouso

Eu posso ocupar meu espaço


ocupar meu tempo
mas nada pode ocupar o vazio do meu coração

A necessidade vital pela qual eu morreria

Esgotamento nervoso

-----
17

- Nada de se ou mas

- Eu não disse se ou mas, eu disse não.

- Não poder dever nunca ter-quê sempre não será não deveria não
deverá
Os inegociáveis
Hoje não.

(Silêncio.)

- Por favor. Não desligue minha mente na tentativa de me curar. Ouça e


entenda, e quando sentir desprezo não expresse esse sentimento, pelo menos
não verbalmente, pelo menos não para mim.

(Silêncio.)

- Não sinto desprezo.

- Não?

- Não. A culpa não é sua.

- A culpa não é sua, é tudo que eu ouço, a culpa não é sua, é uma doença, a
culpa não é sua, eu sei que a culpa não é minha. Você me diz isso com tanta
freqüência que estou começando a pensar que a culpa é minha.

- A culpa não é sua.

- EU SEI.

- Mas você se deixa.

(Silêncio.)

- Não se deixa?

- Não há uma droga sobre a terra que possa fazer a vida significar algo.
- Você se deixa levar por este estado de absurdo desespero.
18

(Silêncio.)

Não se deixa?.

(Silêncio.)

- Não serei capaz de pensar. Não serei capaz de trabalhar.

- Nada interferirá mais em seu trabalho do que o suicídio.

(Silêncio.)

- Sonhei que tinha ido à médica e que ela tinha me dado oito minutos de vida.
E ela tinha me deixado sentada na porra da sala de espera durante meia hora.

(Um longo silêncio.)

Tudo bem, vamos lá, vamos às drogas, vamos preparar a lobotomia química,
vamos estancar as funções mais importantes do meu cérebro e talvez eu me
torne um pouco mais capaz de viver.

Vamos lá.

-----

abstração até o limite do

desagradável
inaceitável
desinspirador
impenetrável

irrelevante
irreverente
incrédulo
impenitente

antipatia
deslocamento
19

desencarnado
desconstruído

Não imagino
(claramente)
que uma simples alma
podia
poderia
deveria
ou deverá

e se eles fizessem
não acho
(claramente)
que outra alma
uma alma como a minha
podia
poderia
deveria
ou deverá

inafetável

Eu sei o que estou fazendo


sei muito bem

No native speakers

irracional
irredutível
irremediável
irreconhecível

descarrilhado
transtornado
deformado
livre de forma

obscuro ao limite do
20

Verdadeiro Certo Correto


Qualquer um ou Qualquer pessoa
Cada tudo todos

afogando esse monstruoso estado de paralisia


em um mar de lógica

ainda doente

Sintomas: sem comer, sem dormir, sem falar, sem desejo sexual, em
desespero, quer morrer.

Diagnóstico: Dor patológica

Sertraline, 50 mg. Insônia acentuada, forte ansiedade, anorexia, (perda de 17


kilos) aumento de intenções, planos e pensamentos suicidas. Interrompido
seguido de hospitalização.

Zopiclone, 7,5 mg. Sonolência. Interrompido provoca falas sem sentido e


movimentos desconexos. Paciente tentou deixar o hospital sem alta médica.
Foi detida por três enfermeiros duas vezes maiores do que ela. Paciente
ameaçadora e não cooperadora. Idéias paranóicas – acredita que os
funcionários do hospital querem envenená-la.

Melleril, 50 mg. Cooperadora.

Lofepramine, 70 mg, dobrada para 140 mg, depois 210 mg. Ganhou doze
kilos. Perda de memória recente. Nenhuma outra reação.

Discutiu com médico estagiário acusando-o de traição depois de ela ter


raspado a cabeça e cortado os braços com lâminas de barbear.

Paciente inscrita em programa comunitário desobrigado de pagamento deu


entrada em estado psicótico gravíssimo no pronto-socorro necessitando com
urgência de leito hospitalar.

Citalopram, 20 mg. Tremores pela manhã. Nenhuma outra reação.


21

Lofepramine e Citalopram interrompidos depois de a paciente ter urinado


devido aos efeitos colaterais e ausência óbvia de melhora. Sintomas após a
interrupção: Tonturas e confusão. Paciente continua caindo, desmaiando e se
atirando na frente de carros. Ideias desarranjadas – acredita que o especialista
é o anti-Cristo.

Fluoxetine hydrochloride, nome fantasia Prozac, 20mg, dobrada para 40mg.


Insônia, apetite irregular, (perda de 14 kilos) forte ansiedade, incapaz de
atingir orgasmo, ideias homicidas em relação a vários médicos e fabricantes
de drogas. Interrompidos.

Humor:

Raivoso pra caralho.

Comportamento:

Muito raivoso.

Thorazine, 100mg. Sonolência. Mais calma.

Venlafaxine, 75 mg, dobrado para 150 mg, depois para 225mg. Tontura,
queda de pressão sanguínea, dores de cabeça. Nenhuma outra reação.
Interrompido.

Paciente recusa Seroxat. Hipocondria – espasmos de piscar de olhos e forte


perda de memória como evidência de discinesia tardia e demência coréica.

Recusa todos os demais tratamentos.

Aspirina 100 e uma garrafa de Cabernet Sauvignon búlgaro, 1986. Paciente


acordou numa piscina de vômito e disse “Durma com o cachorro e acorde
cheio de moscas.” Fortes dores estomacais. Nenhuma outra reação.

Escotilha se abre
Luz opaca
a televisão fala
cheia de olhos
os espíritos da visão
e agora estou com tanto medo
22

estou vendo coisas


estou ouvindo coisas
não sei quem sou

língua para fora


pensamento truncado
os colapsos inconstantes da minha mente

Onde começo?
Onde paro?
Como começo?
(Como se eu quisesse ir em frente)

Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro?
Como eu paro? Um tranco1 de dor
Como eu paro? Apunhalando meus pulmões
Como eu paro? Uma parada2 de morte
Como eu paro? Espremendo meu coração

Vou morrer
ainda não
mas está lá

1
Gíria para uma medida de droga (ex: uma parada de cocaína – um tranco de maconha)
2
Gíria para uma medida de droga também.
23

Por favor...
Dinheiro...
Esposa...

Todo ato é um símbolo


do peso daquilo que me esmaga

Uma linha pontilhada na garganta


CORTE AQUI

NÃO DEIXE ISSO ME MATAR


ISSO VAI ME MATAR E ME ESMAGAR E
ME MANDAR PARA O INFERNO

Te imploro para me salvar dessa loucura que me come


uma morte sub-intencional

Achei que nunca deveria falar de novo


mas agora sei que há algo mais obscuro do que o desejo

que talvez me salve


que talvez me mate

um assobio melancólico como um choro de um coração partido ao redor de


uma vasilha infernal no teto da minha mente

um cobertor de baratas

pare essa guerra

Minhas pernas estão vazias


Nada a dizer
E esse é o ritmo da loucura

-----
24

- Eu asfixiei os judeus, matei os curdos, bombardeei os árabes, fodi


criancinhas enquanto imploravam por misericórdia, os campos de extermínio
são meus, todos deixaram a festa por minha causa, vou sugar esses seus olhos
de merda e mandá-los numa caixa para sua mãe e quando eu morrer vou
reencarnar como uma criança só que cinqüenta vezes pior e tão louca quanto
toda sua vida de merda que vou fazer ser uma porra de um inferno EU ME
RECUSO EU ME RECUSO EU ME RECUSO NÃO ME OLHE

- Está Tudo bem.

- NÃO ME OLHE

- Está tudo bem. Eu estou aqui.

- Não me olhe

-----

Somos condenados
a párias da razão

Por que é que estou ferida?


tive visões de Deus

acontecerá
mesmo preparados,
ainda assim serão destruídos
é o que acontecerá

Contemplem a luz do desespero


o fulgor da angústia
e serão atirados em densas trevas
Se há destruição
(deve haver destruição)
os nomes daqueles que ofendem devem ser proclamados dos telhados

Temam a Deus

e a seu chamado perverso


25

uma pústula sobre minha pele, um fervilhar no meu coração


um cobertor de baratas onde dançamos esse infernal estado de sítio

Tudo deve se concretizar


todas essas palavras do meu respirar nocivo

Lembre da luz e acredite na luz

Cristo está morto


e os monges estão em êxtase

Somos os miseráveis
que destituímos nossos líderes
e ainda queimamos incenso para Baal

Venham agora, vamos refletir juntos


A sanidade é encontrada no monte do templo do Senhor no horizonte da alma
que recua eternamente
A cabeça está doente, o coração dilacerado
Pisem o chão onde caminha a sabedoria
Abracem mentiras lindas –
a insanidade crônica do são

as violentas torções têm início

-----

- Às 4h48
quando a sanidade vem me visitar
por uma hora e doze minutos fico em sã consciência.
Depois disso me vou outra vez,
uma boneca fragmentada, uma imbecil grotesca.
Aqui estou agora eu consigo me ver
mas quando estou encantada pela torpe ilusão da felicidade
da repugnante mágica dessa máquina de feitiçaria,
não consigo tocar na essência do meu eu.
26

Por que é que você acreditou em mim naquela hora e agora não?

Lembre da luz e acredite na luz.


Nada importa agora.
Pare de julgar pelas aparências e faça um julgamento correto.

- Está tudo bem. Você vai ficar melhor.

- A tua falta de fé não cura nada.

Não olhe para mim.

- ----

Escotilha se abre
Luz opaca

Uma mesa duas cadeiras e nada de janelas

Aqui estou
E lá está meu corpo

dançando sobre o vidro

Numa época de acidentes onde não há acidentes

Você não tem escolha


a escolha vem depois
27

Cortem minha língua


arranquem meus cabelos
cortem minhas pernas
mas me deixem meu amor
preferia ter perdido minhas pernas
ter meus dentes arrancados
meus olhos sugados
do que ter perdido meu amor

isso nunca vai passar

Nada é para sempre

(só o Nada)

Vítima. Perpetrador. Circunstante.

A manhã traz a derrota

Dor maravilhosa que diz que existo

E uma vida mais sã amanhã

brilha pisca corta queima torce aperta afaga corta


brilha pisca soca queima flutua pisca afaga pisca
soca pisca brilha queima afaga aperta torce aperta
soca pisca flutua queima brilha pisca queima

afaga pisca soca corta torce corta soca corta


flutua pisca brilha soca torce aperta brilha aperta
afaga pisca torce queima pisca afaga brilha afaga flutua
aperta corta flutua corta pisca queima afaga

corta torce soca queima brilha afaga flutua afaga


pisca queima soca queima brilha afaga aperta afaga
torce pisca flutua corta queima corta soca corta
aperta corta flutua corta pisca queima afaga
28

soca queima flutua pisca brilha pisca queima corta


torce aperta afaga corta brilha pisca afaga pisca
soca pisca brilha queima afaga aperta pisca torce
aperta soca brilha pisca queima pisca brilha

torce corta soca corta flutua pisca brilha soca


torce afaga pisca soca corta aperta brilha aperta
afaga pisca torce queima pisca afaga brilha afaga flutua
queima aperta queima brilha pisca corta

pisca soca corta afaga torce aperta queima corta


aperta corta soca pisca brilha aperta queima corta
afaga pisca flutua brilha pisca afaga aperta queima corta
aperta corta soca brilha pisca queima

-----

100
93
86
79
72
65
58
51
44
37
30
23
16
9
2

A sanidade é encontrada no centro da convulsão, onde a loucura é chamuscada


pela alma dividida.
29

eu me conheço.

me vejo.

Minha vida é pega pela teia da razão


tecida por um médico para aumentar a sanidade.

Às 4h48

vou dormir.

Vim te ver esperando ser curada.

Você é meu médico, meu salvador, meu juiz onipotente, meu padre, meu deus,
o cirurgião da minha alma.

E sou sua seguidora na sanidade.

-----
30

atingir objetivos e ambições

superar obstáculos e atingir alto padrão

aumentar auto-estima pelo sucesso do exercício do talento

superar a oposição

ter controle e influência sobre os outros

me defender

defender meu espaço psicológico

justificar o ego

receber atenção

ser vista e ouvida

excitar, surpreender, fascinar, chocar, intrigar, divertir, entreter ou atrair os


outros

estar livre de restrições sociais

resistir à coação e à constrição

ser independente e agir conforme o desejo

desafiar a convenção

evitar a dor

evitar a vergonha

eliminar humilhações passadas recapitulando ações

manter o auto-respeito
31

reprimir o medo

superar a fraqueza

pertencer

ser aceita

se aproximar e se relacionar reciprocamente com o próximo

conversar de maneira amigável, contar histórias, trocar sentimentos, idéias,


segredos

comunicar, conversar

rir e contar piadas

conquistar a afeição do Outro desejado

aderir e manter-se fiel ao Outro

gozar experiências sensuais com o Outro imaginado

ser alimentada, ajudada, protegida, confortada, consolada, apoiada, cuidada ou


curada

construir uma relação agradável, durável, cooperativa e recíproca com o outro,


com um semelhante

ser perdoada

ser amada

ser livre

-----

- Você viu o pior de mim.

- É?
32

- Não sei nada de você.

- Não?

- Mas gosto de você.

- Gosto de você.

(Silêncio.)

Você é minha última esperança.

(Um longo silêncio.)

- Você não precisa de um amigo, você precisa de um médico.

(Um longo silêncio.)

- Você está muito errado.

(Um silêncio muito longo.)

- Mas você tem amigos.

(Um longo silêncio.)

Você tem muitos amigos.


O que você dá ao seus amigos para que eles te apoiem tanto?

(Um longo silêncio.)

O que você dá aos seus amigos para que eles te apoiem tanto?

(Um longo silêncio.)

O que você dá?

(Silêncio.)
33

Temos um relacionamento profissional. Acho que temos um bom


relacionamento. Mas é profissional.

(Silêncio.)

Sinto sua dor mas não posso manter sua vida em minhas mãos.

(Silêncio.)

Você ficará bem. Você é forte. Sei que você ficará bem porque gosto de você
e não consigo gostar de pessoas que não gostem delas mesmas. Temo pelas
pessoas que eu não gosto porque elas se odeiam tanto que não deixam
ninguém gostar delas. Mas gosto mesmo de você. Vou sentir sua falta. E sei
que você ficará bem.

(Silêncio.)

A maioria dos meus clientes quer me matar. Quando saio daqui no fim do dia
preciso ir para casa para o meu amor e relaxar. Preciso ficar com meus amigos
e relaxar. Preciso mesmo estar junto de meus amigos.

(Silêncio.)

Odeio essa porra desse trabalho e preciso dos meus amigos para me manter
são.

(Silêncio.)

Desculpa.

- A culpa não é minha.

- Desculpe, isso foi um erro.

- A culpa não é minha.

- Não. A culpa não é sua. Desculpa.

(Silêncio.)
34

Eu estava tentando explicar –

- Eu sei. Estou com raiva porque eu entendo, não porque eu não entendo.

-----
Engordada
Dividida
Expulsa

meu corpo descompensado


meu corpo voa para longe
não há como alcançar
além de onde já alcancei

você sempre vai ter um pouco de mim


porque você teve minha vida em suas mãos
suas mãos brutas
isso vai acabar comigo

Achei que era silêncio


até se fazer silêncio

como você inspirou essa dor?


nunca entendi
o que é que eu não devia sentir

como um pássaro voando em um céu inchado


minha mente é rasgada por um relâmpago
enquanto voa por trás de um trovão

Escotilha se abre
Luz opaca

e Nada
Nada
não se vê Nada
35

Com o que me pareço?


com a filha da negação

de uma câmara de tortura para outra


uma sucessão de erros terríveis sem perdão
em cada passo do caminho que cai

Desespero me leva ao suicídio


Angústia que os médicos não encontram cura
Não tentam entender
Espero que você nunca entenda
Porque gosto de você

gosto de você
gosto de você
calma água preta
tão funda como o infinito
tão fria como o céu
tão calma quanto meu coração quando sua voz se foi
devo congelar no inferno

claro que te amo


você salvou minha vida

queria que você não tivesse


queria que você não tivesse
queria que você tivesse me deixado em paz

um filme preto e branco de sim ou não sim ou não sim ou não sim ou não sim
ou não sim ou não

Sempre te amei
mesmo quando te odiei

Com que me pareço?


com meu pai
36

ah não ah não ah não


37

Escotilha se abre
Luz opaca

a ruptura começa

não sei mais para onde olhar

Cansada de procurar na multidão


Telepatia
e esperança

Veja a estrela
preveja o passado
e mude o mundo com um eclipse de prata

a única coisa permanente é a destruição


vamos todos desaparecer
tentando deixar uma marca mais duradoura do que a minha

Não me matei antes então não procure por precedentes


O que veio antes foi só o começo

um medo cíclico
isso não é a lua é a terra
Uma revolução

Querido Deus, querido Deus, o que devo fazer?

Tudo que sei


é neve
e negro desespero

Nenhum lugar para me virar


38

um espasmo moral sem efeito


a única alternativa para assassinar

Por favor não me cortem para descobrir como morri


Eu lhe digo como morri

Cem de Lofepramine, quarenta e cinco de Zopiclone, vinte e cinco de


Temazepam, e vinte de Melleril
39

Tudo que eu tinha

Engolido

Rasgado

Pendurado

Está feito

cuidado com o Eunuco


de pensamento castrado

crânio
sem ferimento

a captura
o êxtase
a ruptura
de uma alma

um solo sinfônico

às 4h48
a hora feliz
quando a claridade visita
40

escuridão quente
que alaga meus olhos

não conheço pecado


essa é a doença por se tornar grande

essa necessidade vital pela qual eu morreria


ser amada
estou morrendo por aquele que não se importa
estou morrendo por aquele que não sabe

você está me destruindo

Fala
Fala
Fala

um círculo de fracasso de dez metros


fique longe de mim

Minha última declaração

Ninguém fala

Me torne legítima
Me torne presente
Me veja
Me ame

minha última submissão


minha derrota final

o covarde ainda dança


o covarde não vai parar

acho que você pensa em mim


41

do jeito que eu acho que você pensa em mim

o parágrafo final
o último ponto final

cuide de sua mãe agora


cuide de sua mãe

cai neve negra

você me abraça na morte

nunca livre

não desejo a morte


nenhum suicida deseja

me veja desaparecer
me veja

desaparecer

me veja

me veja

veja

Eu mesma é que nunca me encontrei,

Eu, aquela com a face colada na parte inferior da minha mente

por favor abram as cortinas

fim
42

Você também pode gostar