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Universidade do Minho

Escola de Direito

A exposição da imagem da criança nas redes sociais – o problema do


“Sharenting”
No âmbito do exercício das responsabilidades parentais, podem os pais
expor a imagem dos seus filhos nas redes sociais? É aqui tido em
consideração o superior interesse da criança?

Trabalho realizado no âmbito da Unidade Curricular “A Criança e a Família”


Mestrado em Direito das Crianças, Família e Sucessões
Catarina da Silva Arteiro Serra (PG52406)

Novembro de 2023
ÍNDICE

1 Introdução.................................................................................................................. 2

2 As responsabilidades parentais .................................................................................. 2

3 Direitos de personalidade da criança ......................................................................... 4

3.1 Direito à imagem................................................................................................ 4

4 Exposição do menor na internet: principais perigos.................................................. 6

5 O problema do “Sharenting” ..................................................................................... 8

5.1 Primeiros Reflexos na Jurisprudência.............................................................. 10

6 Conclusão ................................................................................................................ 11

7 Bibliografia .............................................................................................................. 12

1
1 INTRODUÇÃO
As crianças são sujeitos de direitos tal como o são os adultos, no entanto, durante a
menoridade estas são representadas pelos seus progenitores, por forma a suprir a sua
incapacidade. Não obstante, os pais têm de se reger, obrigatoriamente, pelo Princípio
basilar do superior interesse da criança. Acontece que, atualmente, com o
desenvolvimento das Novas Tecnologias e, consequentemente, com o surgimento das
Redes Sociais, os pais têm vindo a expor publicamente a imagem dos seus filhos. Desta
forma, é urgente e necessário falarmos e refletirmos acerca das consequências que daí
advêm para estes menores. Assim, é necessário apreciar o impacto desta precoce criação
da pegada digital das crianças. Posto isto, propomo-nos à análise do regime das
responsabilidades parentais e do regime dos direitos de personalidade da criança,
nomeadamente do direito à imagem. Assim, vamos aprofundar o modo como a exposição
da imagem da criança nas redes sociais pelos próprios progenitores pode ter influência no
futuro desta e quais os perigos daí provenientes. Neste seguimento, iremos aprofundar o
problema do “Sharenting”, no sentido de perceber de que forma é que os pais podem
expor as suas próprias “crias” nestas plataformas. No âmbito do Direito da Família, um
dos princípios fundamentais é o Princípio do Superior Interesse da criança e, por isso
mesmo, propomo-nos a aferir se este princípio basilar está ou não a ser tido em conta
pelos progenitores. Por fim, terminaremos fazendo referência aos aspetos mais
importantes de um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, acórdão pioneiro, relativo
a esta temática do “Sharenting”.

2 AS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
As responsabilidades parentais 1 não se circunscrevem a um meio de suprimento da
incapacidade dos menores, uma vez que não se limitam ao poder de representação e ao
poder-dever de administração dos bens2 . Vão muito para além disto. Elas consistem no

1 Outrora designadas por “poder paternal”. Antes de 2008 a lei falava em “poder paternal”, no entanto, esta
denominação levava a cabo uma ideia de autoridade, no sentido em que os pais detinham um poder
totalitário sobre os filhos, havendo a necessidade de alterar este conceito para “responsabilidades
parentais”.
2 CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes sociais, in Direito na

Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Braga: Escola

2
“conjunto de situações jurídicas que, normalmente, emergem do vínculo de filiação, e
incumbem aos pais com vista à proteção e promoção do desenvolvimento integral do filho
menor não emancipado (Art.1877º e 1878º do Código Civil - CC)”3 .
A criança, enquanto detentora de direitos, está sob a responsabilidade e cuidado
dos pais, que têm a obrigação de agir sempre no interesse dos filhos. E são os pais, que
em princípio, exercem estas responsabilidades parentais de forma exímia, protegendo os
seus filhos. 4 No entanto, a criança não deve ser colocada de lado relativamente às
decisões importantes da sua vida, devendo esta intervir mediante o seu nível de
maturidade, uma vez que esta é a principal interveniente e protagonista das
responsabilidades parentais. Ademais, o direito à audição da criança está legalmente
previsto, nomeadamente, na Convenção Europeia sobre os Direitos da Criança. De notar
que as responsabilidades parentais são um poder-dever dos pais em relação aos filhos não
tendo estes liberdade para atuar, não vigorando nesta matéria o princípio da autonomia
privada, pois as responsabilidades parentais estão previstas na lei, tendo os progenitores
de atuar em conformação com o tipificado na lei, sob pena de serem-lhes aplicadas
sanções, nomeadamente a inibição do exercício das responsabilidades parentais, nos
termos do art.1915º do CC. Conforme estabelece o art. 1887º do CC as responsabilidades
parentais são da competência dos progenitores até que os filhos atinjam a maioridade ou
a emancipação. Desta forma, compete-lhes cuidar da saúde, segurança, sustento,
educação e representação dos filhos, sem nunca desconsiderar a sua opinião nos temas de
especial relevo para a sua vida, tendo em conta a sua maturidade5 .
Quanto ao exercício das responsabilidades parentais o legislador fez uma
distinção: quando os progenitores vivam em plena comunhão de vida; ou quando estes
vivam vidas em separado. Ademais, este regime vai incidir num conceito muito
importante, no entanto, trata-se de um conceito indeterminado - “questões de particular
importância”. A doutrina e a jurisprudência têm seguido o entendimento de que este
conceito indeterminado se consubstancia em situações que impliquem uma mudança na
vida do menor, necessitando de uma maior consideração por parte dos progenitores,

de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018, P


452.
3 PINHEIRO, Jorge Duarte, O Direito de Família Contemporâneo. 4ª ed. Lisboa: AAFDL. P 279.
4 CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes sociais, in Direito na

Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018, P
452.
5 Em respeito pelo art.12º da Convenção sobre os Direitos da Criança.

3
nomeadamente quanto a questões de saúde, de representação e de educação do menor. 6
Por seu turno, os atos da vida corrente são aqueles que o menor pratica no seu
quotidiano. 7 Quanto ao exercício das responsabilidades parentais na constância do
matrimónio (ou na convivência análoga a este: união de facto8 ) temos de recorrer ao
art.1901º/nº1 do CC, sendo que, em regra, “Na constância do matrimónio, o exercício das
responsabilidades parentais pertence a ambos os pais”, ou seja, estas são realizadas de
comum acordo (art.1901º/nº2 do CC). Por outro lado, nas situações de rutura,
nomeadamente, em caso de divórcio, separação de facto ou invalidade do casamento, as
responsabilidades parentais regem-se por um exercício conjunto mitigado, tal como refere
Jorge Duarte Pinheiro (art.1906º do CC)9 . Desta forma, quanto às questões de particular
importância os progenitores devem decidir de comum acordo, salvo nos casos de urgência
manifesta, em que qualquer um deles pode agir sozinho, sob pena de informar o outro
logo que possível (art.1906º/nº1 do CC). Por seu turno, quanto aos atos da vida corrente,
estes são deixados a cabo daquele que reside habitualmente com o menor ou com aquele
que se encontrar temporariamente com este.10 Assim, concluímos que qualquer um dos
progenitores tem aqui um papel interventivo no quotidiano da criança,
independentemente de os progenitores já não fazerem uma vida em comum.

3 DIREITOS DE PERSONALIDADE DA CRIANÇA

3.1 DIREITO À IMAGEM


Nos dias que correm as crianças são vistas como verdadeiros sujeitos de direitos,
dotadas de personalidade jurídica. No entanto, esta autonomia plena do exercício de
direitos e capacidade da criança apenas ocorre com a maioridade (art.129º e 130º do CC).
Deste modo, em princípio, até esse momento, o menor padece de uma incapacidade, isto
é, é incapaz de exercer grande parte dos seus direitos. Como forma de suprir esta
incapacidade o legislador estabelece no art.124º do CC que serão os pais, enquanto
detentores do exercício das responsabilidades parentais, que irão representar os filhos.

6 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2017, Proc. nº 1123/10.3T2AMD-A.L1-6, disponível


em www.dgsi.pt..
7 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2017, Proc. nº 1123/10.3T2AMD-A.L1-6, disponível

em www.dgsi.pt.
8 Nesta matéria o legislador equiparou a união de facto e o casamento.
9 PINHEIRO, Jorge Duarte - O Direito de Família Contemporâneo. 4ª ed. Lisboa: AAFDL, P 338.
10 Este regime conforme previsto no art.1906º surge apenas com a Lei nº61/ 2008, de 31 de outubro.

4
Os direitos de personalidade estão regulados no art. 70º e seguintes do CC e são
direitos que emanam da própria pessoa tendo como principal objetivo a sua proteção. Ora,
o nosso Código Civil não nos dá uma definição do que são estes direitos, mas nas palavras
de Capelo de Sousa os direitos de personalidade são “direitos subjetivos privados,
absolutos, gerais, extrapatrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis e relativamente
indisponíveis, que visam proteger os bens e as manifestações interiores da pessoa
humana”11 . Neste seguimento, o legislador divide os direitos de personalidade, sendo que,
por um lado, temos o direito geral de personalidade, previsto no art.70º do CC, cabendo
nele todos os direitos de personalidade, e, por outro lado, temos os direitos de
personalidade especiais previstos no art.72º do CC até ao art.80º do CC.
Em particular, o direito à imagem trata-se de um direito de personalidade especial
uma vez que tem tipificação no Código Civil, especificamente, no art.79º do CC e ainda
tem um lugar reservado na nossa Constituição da República Portuguesa enquanto direito
fundamental (art.26º), dada a sua tamanha importância.
Regra geral, nos termos do art.79º/nº1 do CC “O retrato12 de uma pessoa não pode ser
exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela (…)”. Ora, este
consentimento apenas não será exigido quando “assim o justifiquem a sua notoriedade, o
cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas,
didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares
públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”
(nº2). No entanto, jamais o retrato poderá ser “reproduzido, exposto ou lançado no
comércio se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa
retratada” (nº3).
No caso dos menores, este consentimento será prestado pelos seus representantes
legais, devido à incapacidade que padecem, já mencionada supra13 . 14 Ora, quando os
progenitores dão autorização à exposição da imagem dos seus filhos surge a questão de

11 SOUSA, R. Capelo de - O Direito Geral de Personalidade, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, P 195.
12 Abrange as diversas formas de identificação pessoal de uma pessoa, como a sua reprodução “num desenho
ou pintura, captada numa fotografia, editada num filme, representada em esculturas, bonecos, animação,
caricaturas, máscaras, representada em representações cénicas, na televisão, cinema e difundida na
internet”. ANTUNES, Ana Filipa Morais - Comentário aos artigos 70º a 81º do Código Civil (Direitos de
Personalidade), Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2012, PP 180-181.
13 Neste caso não podemos dizer que será bem um consentimento, uma vez que este só pode ser exercido

pelo titular do direito, por isso, estamos aqui perante uma autorização dos pais na limitação do direito à
imagem dos filhos menores.
14 MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filho s, in Atas

das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade nas Relações Familiares”, Braga: Escola de
Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020, PP 16-17.

5
saber se esta disposição do direito à imagem da criança é lícita. Assim, quando esta
passividade em relação à exposição do menor for contrária ao interesse deste, a
autorização é inválida, consubstanciando uma violação ao direito à imagem da criança. O
mesmo raciocínio se aplica quando são os próprios pais a expor os filhos, nomeadamente
nas redes sociais. Será que este ato (publicação de fotografias nas redes sociais) beneficia
a criança e visa o seu superior interesse? Aqui seguimos o entendimento da professora
Rossana Cruz, sendo que, em abstrato, não vemos aqui qualquer interesse relevante para
o menor em ter o seu retrato exposto nas redes sociais, podendo este ser partilhado
infinitas vezes, mesmo depois da publicação ser eliminada. 15 Lembremo-nos de que a
partir do momento em que uma imagem é partilhada na internet a mesma permanece na
rede infinitamente, uma vez que é impossível saber quem a guardou e o que fez com
ela. 16 Desta forma, nestas situações são os próprios progenitores que estão a violar o
direito à imagem dos filhos.
Em suma, o superior interesse da criança não poderá deixar de constituir um limite
intransponível ao exercício das responsabilidades parentais. 17 Quando esse limite é
transposto quais são os meios de proteção que esta criança tem ao seu dispor? É imperioso
que o legislador e a jurisprudência olhem para esta temática e definam soluções.

4 EXPOSIÇÃO DO MENOR NA INTERNET: PRINCIPAIS PERIGOS


A constante e permanente evolução tecnológica tem marcado o quotidiano das
pessoas. Vivemos no século XXI onde as Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação (NTIC) desempenham um papel cada vez mais importante na vida das
famílias, envolvendo estas num mundo digital. Ora, as sociedades contemporâneas foram
profundamente impactadas com o aparecimento da internet.
Por conseguinte, houve lugar à popularização da utilização das redes sociais, tendo
estas influenciado significativamente o modo como os Homens se relacionam entre si18 .

15
CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o superior
interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e Informação, Direito e Informação na
Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto , PP 287-290.
16 CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes sociais e o superior

interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e Informação, Direito e Informação na


Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto , PP 287-290, P 289.
17
MOREIRA, Sónia - A responsabilidade dos pais pela violação do direito à imagem dos filho s, in Atas
das Jornadas Internacionais “Igualdade e Responsabilidade nas Relações Familiares”, Braga: Escola de
Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação, 2020 , PP 12 e 13.
18 Segundo estatísticas do Eurostat, datadas de 2020, em Portugal cerca de 62.74% da população participa

em redes sociais, estando acima da média da União Europeia (57.26%). Disponível em Estatísticas |
Eurostat (europa.eu).

6
As redes sociais vieram para ficar e podem ser definidas como “ferramentas informáticas
onde, através da criação de um perfil, com informação pessoal disponibilizada pelo
próprio utilizador, e do estabelecimento de uma rede de contactos com os outros
utilizadores, é possível a interação social entre utilizadores e a partilha de conteúdos”.19
Tal como menciona Andreia Carvalho é inegável que a internet consiste numa porta
aberta a ameaças aos direitos dos menores, sendo o elenco destes perigos muito vasto,
incluindo nele a pedofilia, o sexting, o assédio sexual, o bullying e o cyberbullying, a
exposição das crianças a pornografia, violência e a práticas comerciais abusivas, bem
como a fóruns que incentivam o suicídio, a autoflagelação/automutilação, a anorexia e a
bulimia2021 . A par deste tema temos um outro, o da exposição de informações privadas
sobre as crianças nas redes sociais, geralmente relacionada com a divulgação e exposição
de imagem através de fotografias e/ou vídeos. Desta forma, a comparência dos menores
nestas plataformas online coloca-os numa posição ainda mais frágil e vulnerável. Por
conseguinte, a excessiva exposição pública da imagem e da vida privada, incluindo
detalhes íntimos, além de colocar as crianças num enorme risco perante crimes
cibernéticos, representa uma forma inovadora de violar os direitos de personalidade
destas crianças. Esta exposição pode ter impactos duradouros no futuro, visto que esta
tende a perdurar infinitamente, já que o que é postado na internet permanece lá por tempo
indeterminado.22
Assim, a ofensa ao direito à imagem e reserva da vida privada dos menores, pelos
próprios progenitores, constituiu um grande desafio deste século, não tendo tido ainda um
grande relevo por parte da doutrina e da jurisprudência, pese embora comece a surgir o
debate jurídico e uma crescente preocupação com o presente tema em análise.

19
CECÍLIO, Tiago; MOREIRA Teresa Coelho; SANTOS, Alexandre - A protecção dos menores na
sociedade de informação: desafios criados pelas redes sociais, in Scientia Ivridica, tomo LXV, Braga:
Revista Escola de Direito da Universidade do Minho, n.º 341, 2016, P 3.
20 É relevante a pesquisa EU Kids Online Portugal realizada entre março e junho de 2018 a crianças e jovens

portugueses entre os 9 e os 17 anos. Cf. Cristina PONTE e Susana BATISTA, EU Kids Online Portugal -
Usos, competências, riscos e mediações da internet reportados p or crianças e jovens (9-17 anos), EU Kids
Online e NOVA FCSH, 2019, PP. 7 a 9.
21 CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e

Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 60-61.
22 CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e

Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 60-61.

7
5 O PROBLEMA DO “SHARENTING ”
As nossas crianças são a primeira geração nascida com a internet. Estas, desde tenra
idade, observam os seus pais a utilizar as redes sociais e a partilhar as suas vidas nestas
plataformas. Ora, esta partilha engloba também a exposição dos próprios filhos através
da partilha de fotografia e/ou vídeos nos perfis das redes sociais. 23 Não raras vezes esta
exposição começa até muito antes do próprio nascimento destes, através da partilha de
ecografias ou até mesmo do próprio parto da criança 24 . Concluímos que este
comportamento já se consubstancia um hábito enraizado pela população em geral 25 ,
adquirindo o nome de “Sharenting”. A palavra Sharenting consiste na junção dos
vocábulos “share” (partilhar) e “parenting” (parentalidade), traduzindo a prática por via
da qual certos progenitores partilham e expõem detalhes íntimos e privados da vida dos
seus filhos nas redes sociais. O aparecimento deste novo fenómeno permitiu deslocar a
atenção para o facto de esta exposição nas redes sociais poder colidir com os próprios
direitos das crianças, nomeadamente o seu direito à imagem e reserva da vida privada26 .

Segundo os autores Kumar e Schoenebeck 27 , as publicações dos pais nas redes


sociais incidem maioritariamente sobre bons momentos da vida dos filhos. Retira-se
daqui que as publicações apenas dizem respeito a situações escolhidas a dedo dando a
entender que os pais querem passar uma imagem de “bons pais” e de que têm uma vida
perfeita, invejável perante os expectadores. No entanto, acontece precisamente o
contrário, pois esta necessidade de afirmação e de partilha constante da vida dos filhos
conduz à violação de direitos por parte dos próprios progenitores, sendo que estes

23 CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e


Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, PP 62-63.
24 A título de curiosidade, uma influencer portuguesa chamada Sandra Silva partilhou diversas fotografias

na rede social Instagram que relatam todo o procedimento do parto começando com a publicação intitulada
de “Relato de Parto I” e terminando com a publicação intitulada de “Relato de Parto X | (o encontro)”.
Disponível em acesso aberto através do link: 𝐒𝐚𝐧𝐝𝐫𝐚 𝐒𝐢𝐥𝐯𝐚 (@sandrasilva.oficial) • fotos e vídeos do
Instagram.
25 Este hábito tem-se intensificado ainda mais com o surgimento das influencers.
26
Um estudo realizado em 2018 pelo Office of the Children´s Commissioner for England apurou que os
pais publicam cerca de 1.300 fotos e/ou vídeos dos seus filhos até aos 13 anos. Children’s Commissioner’s
report calls on internet giants and toy manufacturers to be transparent about collection of children’s data |
Children's Commissioner for England (childrenscommissioner.gov.uk)
27
KUMAR, P.; SHOENEBECKS, S. - The modern day baby book: Enacting good mothering and
stewarding privacy on Facebook, in Proceedings of the 18th ACM Conference on Computer Supported
Cooperative Work & Social Computing.

8
deveriam zelar pelo bem-estar e superior interesse da criança 28 . Acreditamos que a
maioria destes pais não tem noção de que esta exposição implica todos estes perigos já
mencionados supra, fazendo-o de forma bem-intencionada. Cremos que estes não
ponderam sequer as consequências que daí podem advir com os posts feitos nas redes
sociais.

No entanto, a verdade é que já existem estudos que revelam que estas crianças
adquirem a sua pegada digital muito antes do que seria suposto - aos 6 meses de idade e
outros mesmo antes do seu nascimento.29 Esta pegada digital surge com a publicação de
posts nas redes sociais com a imagem dos menores, posts estes que podem, a maioria das
vezes, ser partilhados e comentados por todas as pessoas que tiverem acesso à publicação.
Tal como escreve Andreia Pereira, “Estes comportamentos levantam sérias questões, em
primeiro lugar porque frequentemente os posts contêm informação pessoal sobre a
criança, como o seu nome completo, data de nascimento, religião, localização, escola que
frequenta, entre outros. Por outro lado, a imagem da criança, mas também outros
conteúdos, podem eventualmente ser considerados inapropriados e/ou embaraçosos para
o menor, sobretudo no seu futuro. Ora ao partilharem a imagem e a vida privada do filho
nas redes sociais, os pais perdem a possibilidade de controlar o seu destino futuro e a
forma como essas imagens e informações serão interpretadas e utilizadas por terceiros,
tantas vezes para fins que não os pretendidos”30 . Não podíamos estar mais de acordo, na
medida em que após feita a partilha, o progenitor deixa, imediatamente, de ter o controlo
da situação e o menor acaba por ter a sua imagem difundida nestas plataformas estando
sujeito a diversos perigos. Noutra perspetiva, este fenómeno poderá ter também
implicações no futuro da criança, pois, como a sua identidade digital foi criada pelos seus
progenitores, podem existir implicações futuras na utilização das redes sociais. Ou seja,
a criança vê a sua pegada digital criada sem poder escolher se o queria e em que termos.
Por outro lado, a longo prazo também podem existir implicações, uma vez que podem

28
BATISTA, Alexandra Maria Barradas; COSTA, Rosalina Pisco - Parentalidade Digital,
Desenvolvimento e Sociedade, in Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais, Évora: Centro
Interdisciplinar de Ciências Sociais, Pólo da Universidade de Évora, nº9, 2021 , PP 9-10.
29 Segundo o estudo realizado pela Faire Parterie, denominado “Sondage exclusif: La digitalisation de la
vie familiale - Parents, enfants, écrans”, conclui que 30% dos bebés têm uma identidade digital antes de
nascerem, disponível em https://www.faireparterie.fr/etude-enfants-rapport-digital/pdf/Etude-
digitalisation-vie-familiale-faireparterie.pdf.
30 CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e

Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, P 65.

9
existir informações de caracter embaraçoso que possam prejudicar a criança na sua vida
futura profissional ou pessoal.31

Pelo exposto ao longo de todo o texto perguntamos: há ou não violação à imagem e


à reserva da vida privada dos filhos por parte dos progenitores? Parece-nos que sim, no
entanto as respostas dadas pela jurisprudência são ainda muito escassas, como iremos ver
de seguida.

5.1 PRIMEIROS REFLEXOS NA JURISPRUDÊNCIA


A jurisprudência portuguesa ainda é muito parca no sentido de dar resposta ao
problema do Sharenting. Não obstante, existe um acórdão pioneiro nesta matéria –
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de junho de 2015 32 – abordando o tema,
sem, contudo, utilizar tal expressão ao longo do seu texto. Este acórdão identifica o
Sharenting como um “perigo sério e real” ao desenvolvimento da criança, posicionando-
se a favor da proteção da imagem, privacidade e segurança desta. Assim, o acórdão surgiu
no seguimento de um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais,
vindo confirmar a decisão proferida em 1.ª instância que impôs, aos progenitores, a
obrigação de não divulgarem imagens ou informações que expusessem a sua filha de 12
anos nas redes sociais. Este Tribunal considerou que a necessidade de salvaguarda do
direito à reserva da intimidade da vida privada e da segurança da menor no Ciberespaço
era maior do que o direito de liberdade de expressão da mãe.

Tendo sido interposto recurso, em segunda instância, o Tribunal da Relação de


Évora veio julgar o recurso improcedente considerando que a imposição feita pelo
Tribunal a quo “(…) é uma obrigação dos pais, tão natural quanto a de garantir o sustento,
a saúde e a educação dos filhos e o respeito pelos demais direitos designadamente o direito
à imagem e à reserva da vida privada”, uma vez que “os filhos não são coisas ou objetos
pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo prazer”. Explica que os pais
têm a obrigação de proteger os filhos e de garantir e respeitar os seus direitos, sendo este
o núcleo dos poderes/deveres intrínsecos às responsabilidades parentais. Ademais, o
exercício das responsabilidades parentais tem de ser sempre norteado pelo superior
interesse da criança. Por outro lado, neste acórdão são identificados vários perigos

31 CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da Personalidade e


Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição, Coimbra: Gestlegal, 2021, P 66.
32 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora , de 25 de junho de 2015, Processo nº 789/13.7TMSTB-B.E1,

disponível em www.dgsi.pt.

10
provenientes da exposição das crianças nas redes sociais, nomeadamente quando
menciona que “muitos predadores sexuais e pedófilos usam essas redes para melhor
atingirem os seus intentos”.

Em suma, este acórdão revela uma grande relevância, uma vez que, para além de
ser pioneiro na exposição do problema do Sharenting, traz consigo a novidade da
proibição dos pais publicarem e exporem os seus filhos nas redes sociais. Assim, através
das suas marcantes afirmações consubstancia um alarme para todos os progenitores
quanto à exposição que eles próprios fazem dos filhos na internet.

6 CONCLUSÃO
Chegados aqui podemos concluir dizendo que este trabalho trata-se de uma valiosa
oportunidade para refletirmos sobre a complexidade deste fenómeno contemporâneo,
sabendo que esta temática não é pacífica. Ora, a discussão sobre o direito à imagem da
criança e os potenciais perigos da internet leva-nos a ponderar sobre o equilíbrio delicado
entre a partilha afetuosa de momentos íntimos feita pelos progenitores e a necessidade de
proteção dos direitos fundamentais da criança, nomeadamente o direito à imagem. Assim,
ao abordar esta temática, torna-se evidente, na maior parte dos casos, que os pais, ao
partilharem momentos da vida dos seus filhos na internet, não o fazem com más
intenções. No entanto, parece-nos essencial reconhecer que essa exposição acarreta
inúmeros perigos, como a violação da privacidade e a eventual exposição da imagem do
menor por terceiros mal-intencionados. Sucede que o direito da criança à preservação da
sua imagem é inquestionável, sendo fundamental considerar o superior interesse da
criança ao decidir o que partilhar ou não partilhar nas redes sociais. Ou seja, parece-nos
que os pais têm de ter mais em consideração o superior interesse dos filhos,
implementando práticas mais seguras. Cremos que é imperativo existir um equilíbrio
entre a celebração da vida familiar e a proteção da imagem e privacidade da criança.
Assim, os pais podem explorar novas alternativas, mais prudentes e reservadas, como por
exemplo, não expondo o rosto dos filhos e não compartilharem informações de extrema
intimidade. Há a possibilidade de editar as configurações de privacidade destas
plataformas no sentido de serem mais rigorosas, ou até mesmo optarem por plataformas
mais restritas como os grupos do WhatsApp ou do Messenger. Concluímos dizendo que
a conscientização sobre os riscos associados ao Sharenting constitui o primeiro passo
nesta longa caminha que tem por objetivo chegar a uma participação online mais

11
responsável, assegurando o direito à imagem e privacidade da criança, sem, por outro
lado, comprometer as experiências familiares.

7 BIBLIOGRAFIA
ANTUNES, Ana Filipa Morais - Comentário aos artigos 70º a 81º do Código
Civil (Direitos de Personalidade), Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2012.

BATISTA, Alexandra Maria Barradas; COSTA, Rosalina Pisco - Parentalidade


Digital, Desenvolvimento e Sociedade, in Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais,
Évora: Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Pólo da Universidade de Évora, nº9,
2021.

CARVALHO, Andreia F. Pereira de - A Criança nas Redes Sociais: Tutela da


Personalidade e Responsabilidade Parental na Divulgação da Imagem, 1.ª edição,
Coimbra: Gestlegal, 2021.

CRUZ, Rossana Martingo - A criança no (admirável?) mundo novo das redes


sociais, in Direito na Lusofonia. Direito e novas tecnologias, 5.a Congresso Internacional
de Direito na Lusofonia, Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho, Centro de
Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018.

CRUZ, Rossana Martingo - A divulgação da imagem do filho menor nas redes


sociais e o superior interesse da criança, in IV Colóquio Luso Brasileiro Direito e
Informação, Direito e Informação na Sociedade em rede: Atas, Porto: Faculdade de
Direito da Universidade do Porto.

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