Você está na página 1de 148

DIRETO AO PONTO

Ensaios sobre Deus e a Vida


Ricardo Gondim

DIRETO AO PONTO
Ensaios sobre Deus e a Vida
Direto ao Ponto
Ensaios sobre Deus e a Vida

Copyright 2009 por Ricardo Gondim

Primeira edição: Maio 2009


Primeira reimpressão: Setembro 2009
Segunda reimpressão: Janeiro 2011
Coordenação Editorial: Villy Fomin
Revisão: Silvia Geruza Rodrigues, Célia Bonilha e Eliel Batista
Projeto gráfico, diagramação e capa: Doxa Produções
Impressão: Redijo Gráfica e Editora Ltda
Todas as citações bíblicas foram extraídas da
Nova Versão Internacional (NVI) publicada por Editora Vida.

Gondim, Ricardo.
Direto ao Ponto. Ensaios sobre Deus e a Vida.
São Paulo: Doxa Produções, 2009.

ISBN 9 788562562006

1. Espiritualidade - Cristianismo 2. Vida Cristã I. Título. II Título: Ensaios


sobre Deus e a Vida.

CDD 248.4

Av. Eng. Alberto de Zagottis, 1000


Jd Marajoara - São Paulo - SP 04675-230
(11) 55480500 r.213 - www.editoradoxa.com.br
01 proposta 09
02 abrindo o jogo 15
03 metamorfose 21
04 creio 29
05 história 37
06 Deus 45
07 vida 51
08 responsabilidade 59
09 pecado 67
10 salvação 77
11 dúvida 85
12 oração 91
13 fé 97
14 bíblia 107
15 culpa 115
16 liberdade 121
17 esperança 129
18 anseios 133
19 utopia 139

Referências bibliográficas 147


A todos os pais e mães de crianças
com síndromes e deficiências genéticas;
que amam a Deus por quem é e não pelo que dá.
1 proposta

“Quero provocar a
pesquisa, sem pretender
responder todas as
perguntas. Deixei de
acreditar que seja possível
sistematizar a verdade.
Longe de mim propor uma
nova teologia”.
proposta

Direto ao Ponto é um convite ao debate, não à polêmica.


Quero provocar a pesquisa, sem pretender responder
todas as perguntas. Deixei de acreditar que seja possível
sistematizar a verdade. Longe de mim propor uma nova
teologia. Entretanto, torna-se crescentemente necessário
colocar em xeque alguns pressupostos tidos como
inamovíveis.

Há alguns anos, por vários motivos, comecei a fazer


algumas perguntas sobre a vida. Queria encontrar o elo que
poderia conectar a minha teoria sobre Deus e sobre a
eternidade com a vida das pessoas que me rodeavam. A
miséria do mundo me perturbou. Esbarrei no dilema que a
teodicéia tentava responder: “Deus é bom e onipotente,
enquanto existe um sofrimento atroz no mundo. Portanto,
as duas primeiras afirmações carregam uma contradição
interna. Se Deus é bom, não é onipotente; se for onipotente,
não é bom”.

Diante do paradoxo, inquietações brotaram em minha alma


sobre o controle de Deus no desenrolar da história. Será
que Deus queria, ou permitia com algo em vista, que tantos
morressem? Era ele que havia disposto a existência
daquela maneira. Tudo estava sob controle mesmo? Os
jargões repetidos nas igrejas de que tudo caminha sob um
rigoroso domínio de Deus significa o quê? Dei um passo
além. Será que não seria hora de repensar se não estamos
repetindo conceitos medievais, em que o príncipe controla
a vida de todos os seus súditos? Como um novelo, ousei
continuar puxando a linha. Novas indagações brotaram.

11
proposta

Perguntei-me se teria coragem de levar aqueles


questionamentos até às últimas consequências. Não fui
ingênuo. Sabia que o evangélico, herdeiro do funda-
mentalismo estadunidense, vigia as suas doutrinas como
um cão de guarda; diferente de Jesus que mostrou pouca,
ou nenhuma, preocupação com uma “reta doutrina. Eu
mexia com dogmas. Sou pastor desde os 23 anos, mas
jamais cogitei a virulência da oposição que fui obrigado a
enfrentar.

Aos que se consideram guardiões do templo, insisto, não


pretendo criar uma nova teologia. Quero valer-me de todo o
legado histórico, de todas as tensões acadêmicas e de
todas as tradições de fé para responder aos anseios de
minha geração. Sim, já paguei um alto preço. Perdi amigos,
fui parar em fóruns de debate da Internet, onde pessoas
com um mínimo de leitura e a partir de preconceitos,
enxovalharam o meu nome.

Mas não temo o debate das idéias. Pelo contrário,


reconheço que ninguém deve se arvorar de ser o dono da
verdade. Eu só me recuso a discutir com quem não fez o
dever de casa e gosta de criticar a partir do que ouviu dizer
de terceiros. Também acho detestável a defesa que alguns
querem fazer de Deus com ataques pessoais. Alguns
agridem porque se sentem aviltados por alguém que
procura entender o significado e as consequências de
premissas como a onisciência divina. Explico: como não
aceito a ideia de que o futuro esteja pronto, rejeito tudo o
que se refere a fatalismo, destino, predestinação ou lei
cármica.

12
proposta

Não me acho capaz de redefinir Deus, mas considero que


o futuro seja encarado com outra ótica.

Não desejo ser leviano em minhas considerações. Estes


ensaios teológicos são responsáveis e tementes à Deus.
Estendo esta responsabilidade às pessoas. Eu lido com
gente que vive situações difíceis e enfrenta um mundo
pleno de possibilidades e perigos. Em minha comunidade,
mães trazem filhas em cadeira de roda para a escola
dominical; pais, aflitos com os filhos que sucumbiram ao
vício das drogas, anseiam por respostas. Já enterrei
rapazes. Já vi o câncer maltratar amigos até à morte. Não
me resigno a responder a tantos dilemas da vida com
frases prontas e chavões idealizados. Reservo-me ao
direito de não estreitar-me à bitola das teologias prontas.

Por mais que tenha tentado explicar, muitos ainda não


entenderam que não quero aparecer. Não me imagino
capitaneando escolas de pensamento, sequer me auto
proclamando apóstolo de uma nova Reforma. Eu só busco
respostas consistentes para o problema do sofrimento
universal. Luto para não tornar-me cínico no púlpito,
papagaiando pensamentos alheios, que algum órgão
religioso sancionou. Como Lutero, proponho que leiamos a
Bíblia com liberdade, seguindo à nossa consciência sem
que precisemos bater continência às elites teológicas.

Reconheço que toda a Bíblia é a Palavra de Deus revelada


à humanidade. Quando lemos as suas páginas,
crescemos em graça e conhecimento de Jesus Cristo.

13
proposta

Aceito que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para


o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e
plenamente preparado para toda boa obra” (1Tm 3.16-17).

Nos próximos capítulos, proponho igualmente que


repensemos a espiritualidade evangélica. Considero que a
oração se apequenou em nossos dias. Hoje não passa de
uma técnica religiosa que faz “Deus operar”. Jejum serve
de moeda de troca ou tônico que fortalece a oração, e que
“move o braço de Deus”. Temo que, caso os evangélicos
não recobrem o significado da graça, todo o exercício da
espiritualidade se condenará à função de conseguir
bênçãos. Ou Deus ama a partir de uma decisão unilateral
ou ele precisa ser tratado como um ídolo, que cobra
sacrifício de seus adoradores.

Espero que os capítulos deste livro despertem seu


interesse por outros temas e gere pesquisa, estudo e
meditação. Ainda há muito a ser feito. Consagro a Deus
cada página que escrevi para que gere sede pelo eterno,
paixão por Jesus e gana de viver.

Ricardo Gondim.

Soli Deo Gloria.

14
2 abrindo o jogo

“Não estou me
desviando do
Evangelho, nem
deixando de ser um
discípulo de Jesus. Eu
só não quero mais
participar dessa igreja
mercantilizada”.
abrindoojogo

Meu ritual de escrever acontece assim: sento na frente do


computador e primeiramente apago da memória todas,
absolutamente todas, as pessoas que eu possa imaginar
como possíveis leitores. Portanto, tento escrever como se
ninguém fosse ler. Por isso, muitas vezes, me exponho e
alardeio coisas que deveriam ficar no privado. É que,
realmente, eu estava na solidão literária.
Hoje, entretanto, estou escrevendo e pensando em você,
que me lê com regularidade. Hoje vou dirigir-me tanto às
pessoas que abrem este livro para criticá-lo como para
serem enriquecidas por ele. Tenho plena consciência de
que, se faço mal a alguns, abençoo a outros, sem procurar
distinguir quem é quem.
Preciso elucidar algumas questões que insistem em
permanecer abertas.
Tentarei juntar algumas pontas de um confuso novelo de
linhas soltas.
Meu azedume, meu pessimismo, minha tristeza.
Sim, muitas vezes, tenho um gosto acre na boca; meu
pessimismo é real, minha tristeza existe. Mas não é
necessário que se decrete luto de três dias. Não vou morrer
disso.
Estou felicíssimo com a vida, em paz com minha família e
adoro brincar. Não ando arredio com a “igreja” (com letra
minúscula, pois não me refiro à Igreja institucional, mas ao
povo que ama a Deus). Não desdenho da fé simples e
empolgada dos pentecostais e nem olho de soslaio para as
iniciativas solidárias dos crentes.

17
abrindoojogo

Meu afastamento.
Calma, amigo. Não estou me desviando do Evangelho,
nem deixando de ser um discípulo de Jesus. Eu só não
quero mais participar dessa igreja mercantilizada. Recuso-
me a encenar no picadeiro desse circo religioso que impera
na mídia; não transitarei em ambientes que eu suspeite de
sua integridade ética. Só isso. Muitos me chamam de
arrogante e presunçoso por não aceitar gastar meu
precioso tempo para dar e receber tapinhas nas costas de
gente que não merece meu respeito. Não considero
arrogância, apenas uma constatação de que o tempo é
uma riqueza não renovável e estou ficando velho para
desperdiçar minha vida na companhia de quem não me
sinto à vontade.
Meus conteúdos teológicos.
Embora eu já seja considerado um apóstata por alguns,
sinceramente, não me vejo assim. Aliás, ninguém se vê
como um herege, não é mesmo? Considero muito
complicado ter que explicar para desconhecidos no que
creio, nas doutrinas que abraço, na maneira como enxergo
a Bíblia. Contudo, de uma maneira bem sintética, tentarei
dizer o que passa na minha cabeça. Primeiro, sou um
homem em fluxo. Segundo, não tenho uma “doutrina”.
Terceiro, não pretendo desencadear movimento algum.
Creio que Deus é soberano. Vou além: quem não crê na
onipotência de Deus, nega por princípio a existência do
próprio Deus. O que venho discutindo não é a onipotência
divina, mas a maneira como Deus onipotentemente,
decidiu estabelecer o universo e como ele, de uma maneira
unilateral, decidiu organizar a vida.

18
abrindoojogo

Discuto a extensão da liberdade que Deus soberana-


mente decidiu dar aos seus filhos e como o Senhor decidiu,
soberanamente, o jeito como a história se desenrolaria.
Discuto como devemos nos comportar em relação à sua
vontade e o que significa afirmar que sua graça é estendida
a todas as pessoas.
Não sou um liberal teologicamente falando, não porque
condene o liberalismo teológico alemão, mas porque o
situo numa outra época, numa outra realidade histórica e
numa outra cultura. Reservo-me o direito de dialogar com
várias correntes teológicas, inclusive as que se encontram
proscritas do cânon dos fundamentalistas (Paulo estava
certo quando disse: “Examinai tudo para reter o que é
bom”).
Tenho verdadeira aversão por quem só pensa com rótulos:
“Ah, você é arminiano!”; “Não acredito que você aceite o
teísmo aberto!”; “Você é um neo-ortodoxo da escola de
Karl Barth!”. Os rótulos servem como mecanismo torpe
para quem quer demarcar o pensamento alheio dentro de
uma fronteira, para depois ser pichado. Considero isso
mediocridade.
Há coisas sim no teísmo aberto que eu simpatizo, mas
também me identifico com o pensamento de Gustavo
Gutierrez, Stanlei Jones, Henry Nouwen, Frei Betto,
Jonathan Sacks e outros que também admiro. Contudo
quem tiver dúvidas sobre o teismo aberto, que pergunte a
John Sanders, Clarck Pinnock e não a mim. Eles é que
estão comprometidos com essa escola.
Não gosto da lógica que o teismo aberto usa, a meu ver, é a
mesma do fundamentalismo.

19
abrindoojogo

Se gosto de alguns teólogos católicos, não serei, necessa-


riamente, católico; se leio os judeus, não serei,
necessariamente, um judaizante sionista; se aprecio
algumas coisas do teísmo aberto, não serei, necessaria-
mente, um teísta aberto.
Minha vida espiritual
Vivo meus melhores momentos. Ando crescentemente
apaixonado pela mensagem do Reino de Deus. Sinto uma
nova unção de Deus em minhas pregações. Tenho um
olhar mais solidário para com os pobres, as prostitutas, os
familiares que sobreviveram aos suicídios, os alcoólatras e
os índios que morrem de fome na Amazônia. Se não
pareço bem alinhado com o que andam pregando, por
favor, não atribua esse desalinhamento a um “desvio”, mas
a opções mais saudáveis. Precisei, sim, distanciar-me das
neuroses religiosas dos evangélicos para manter um
mínimo de lucidez.
Amigo, não se assuste quando eu encarnar algumas
dores. Na maioria das vezes, elas não são só minhas, mas
nossas. Se parecer meio decepcionado, saiba que estou
mesmo, mas não conjeture que agora eu seja um
humanista ateu.
O meio evangélico precisa de um choque de pessimismo
para pensar uma pregação menos triunfalista e mais
realista. E quando eu cutucar com palavras ásperas, é
porque procuro suscitar vergonha das muitas bobagens
que parecem santas, mas que são, na verdade, ridículas.
Bem é isso. Vamos virar a página e passar a construir belos
pensamentos, bons sonhos e ótimas expectativas? Farei
isso.

20
3 metamorfose

“Mais do que saber os


detalhes exegéticos ou
técnicos, ansiei que a
Palavra me levasse a
uma relação mais
íntima com Deus”.
metamorfose

É curioso como, com o passar dos anos e o aproximar da


velhice, nossos valores mudam. Posições que ambicio-
návamos, conquistas que valorizávamos e pessoas que
nos impressionavam, perdem seus encantos. Vamos
fechando portas atrás de nós, para euforias juvenis e
idealismos inconsequentes. Já não invejamos o triunfo dos
insolentes ou o sucesso dos ufanistas. Hoje, ainda sem ser
velho, já consigo sentir indiferença para os sonhos
mirabolantes dos messiânicos. Confesso que perdi,
inclusive, a vontade de ter a última palavra sobre qualquer
assunto e não me empolgo com debates que só dão uma
falsa sensação de prestígio.
Esse processo começou quando enfrentei uma crise, lá por
volta dos meus quarenta anos. A própria consciência de
que estava na meia idade me fez desistir de querer ser
herói, conquistador, eleito especial ou semi-deus. E de lá
para cá, caminho cada vez mais consciente que, muito dos
meus esforços, seja lendo, estudando, trabalhando,
madrugando e virando noites, para “não perder tempo”,
eram vaidade e correr atrás do vento. Olho para trás e
percebo que não foram de minhas poucas conquistas ou
dos reconhecimentos humanos, que obtive meus melhores
contentamentos. Vieram do amor de minha família e de
amigos verdadeiros; gente que não temia partilhar o
mesmo jugo que eu.
Fiz alguns ajustes. Redirecionei minha leitura bíblica. Mais
do que saber os detalhes exegéticos ou técnicos, ansiei
que a Palavra me levasse a uma relação mais íntima com
Deus. Reli a Bíblia de capa a capa, procurando o coração
paterno de Deus. Dialoguei com pessoas que tratam da
Espiritualidade Clássica. Recompus minha vida devo-
cional.
23
metamorfose

Aprendi sobre oração contemplativa e redescobri a


meditação bíblica. Devorei alguns clássicos como “A
Imitação de Cristo” de Tomás de Kempis, “A Volta do Filho
Pródigo” de Henri Nonwen, “A Montanha dos Sete
Patamares” de Thomas Merton e o “Schabat” de Abraham
Joshua Heschel. Eles e outros tornaram-se meus mentores
nessa nova busca interior.
A maior descoberta que faço nesse tempo que antecede o
outono de minha vida, talvez seja que minha maior vocação
é tornar-me mais humano. Desejo aprender a ser generoso
e sereno. Almejo dar risos contagiantes. Quero amar
coisas simples e contemplar mais a natureza; saber me
deliciar com as artes; brincar com crianças, ler poemas e
ouvir a melhor música. Preciso ser mais empático com o
pobre, acolher o perdido e estender minha mão ao
abandonado.
Nessa jornada espiritual, perdi o medo de me desnudar e
mostrar vulnerabilidade. Outrora, eu temia a censura
daqueles que poderiam se escandalizar com minha
fragilidade. Muitas vezes tentei impressionar as pessoas
com discursos valentes, quando, inseguro, pedia que Deus
segurasse minha mão. Receava que algum psicólogo
detectasse disfuncionalidades em mim e na minha família.
Acreditava que, se alguém diagnosticasse meu envolvi-
mento no evangelho como uma fuga, perderia toda
credibilidade. Evitava relacionamentos, para que as
pessoas não notassem que eu não era tão “resolvido”,
como demonstrava.
Na mitologia grega as sereias eram criaturas de
extraordinária beleza e de uma sensualidade irresistível.

24
metamorfose

Quando cantavam, atraíam os navegantes que não


conseguiam escapar do seu poder de sedução.
Obcecados por aquela melodia sobrenatural, os capitães
arremessavam seus navios contra as rochas de uma ilha,
naufragavam, e as sereias devoravam os tripulantes. Os
gregos relatam que apenas dois conseguiram vencer o
encanto de inimigas tão terríveis: Orfeu e Ulisses.
Orfeu, o deus mitológico da música e da poesia, encontrou
um recurso. Quando sua embarcação aproximou-se de
onde estavam as sereias, ele salvou seus parceiros,
tocando uma música ainda mais doce e envolvente do que
aquela que vinha da ilha. Já Ulisses, o herói da Odisséia,
não possuía talentos artísticos. Sem dons, sabia que não
venceria as sereias. Reconhecido de sua fraqueza e
falibilidade, concebeu outro plano. No momento em que
sua embarcação se aproximasse da ilha sinistra, mandaria
que todos os homens tapassem os ouvidos com cêra e que
o amarrassem ao mastro do navio. Depois que encarou sua
fraqueza e incapacidade de enfrentar as armadilhas das
sereias, rumou para a ilha conforme o plano. Do mesmo
modo, deu ordem aos tripulantes: mesmo que implorasse
para que o soltassem, as cordas deveriam ser apertadas
ainda mais.
Quando chegou a hora, Ulisses foi seduzido pelas sereias
como previra, mas seus marinheiros não o libertaram.
Quase louco, pedindo para ser solto, passou incólume pelo
perigo. O relato mitológico termina afirmando que as
sereias, decepcionadas por haverem sido derrotadas por
um simples mortal, afogaram-se no mar. O que salvou
Ulisses não foi a percepção de sua superioridade, mas a
consciência de sua fragilidade.

25
metamorfose

Ele não tentou enganar a si mesmo. Também não desejo


me iludir com os meus dotes órficos. Dependerei de meus
amigos para me amarrarem aos mastros para não ceder
aos cantos sirênicos.
Assim, descanso. Sinto-me livre para afirmar que ainda
estou em construção. Sou um projeto inacabado e não
escamotearei minhas ambiguidades. Porém, quando me
sentir cansado, terei liberdade de desabafar como Jesus:
“Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei com
vocês? Até quando terei que suportá-los?”(Mateus 17.17).
Quando precisar lamentar, lamentarei, como Ele, quando,
triste e angustiado, disse: “A minha alma está cheia de
tristeza até a morte” (Mateus 26.37). Quando tiver vontade
de rir, rirei e dançarei de alegria.
Hoje, já não me importo de parecer incoerente ou politica-
mente incorreto. Dizem que os pensamentos dos anciões
tendem ao enrijecimento e que os velhos resistem mudar
de opinião. Busco não me engessar, apegado às minhas
velhas ideias e indiferente às novas. Quero seguir o
exemplo de Jesus que, em nome da vida, não temeu
contradizer as rígidas normas religiosas – Mateus 12.2-7;
não respeitou os preconceitos sociais, quando conversou
com prostitutas e acolheu gentios – Marcos 7.24-30; não
teve receios de voltar atrás em sua palavra, para atender
uma mulher siro-fenícia – Marcos 7.24-30.
Permanecerei alerta para não me tornar dogmático e
faccioso; cego por minha obstinação. Recuso encarnar o
personagem de Álvaro de Campos (heterônimo de
Fernando Pessoa) no poema “Tabacaria”. A experiência
do poeta foi acordar do próprio passado, como de um
pesadelo, e perceber que perdeu contato com a sua própria
alma.
26
metamorfose

Viveu uma mentira da qual não pôde escapar. Perdido de si


mesmo, não se encontrou mais.
“Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser
eu(...)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
Perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido”.1
Anseio por uma humanidade não fingida, que não tenta
transformar a mensagem do evangelho em um espelho
mágico, que fala o que desejo ouvir. Lerei a Bíblia também
contra mim. Permitirei que, como espada, ela penetre no
mais profundo de meu ser, discernindo, inclusive, as
intenções nebulosas do meu coração.
Atenderei a admoestação do profeta Miqueias (6.8): “Ele
mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor
exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humilde-
mente com o seu Deus”.
Acredito que vem dele, minha teimosia de acreditar que não
precisamos esperar morrer para começar a viver. E como
passamos rapidamente, sugiro que comecemos já.
27
4 creio

“Crer em Deus significa


viver com a certeza de
que nele encontramos
o colo maternal, o
derradeiro seio, o
braço paterno e a
companhia fraterna do
amigo mais chegado
que um irmão”.
creio

Noto que os Credos estão em desuso. Percebo que as


listas com os pontos fundamentais do que cremos vêm se
tornando exageradamente resumidas. Compreendo que
há um clamor, cada vez maior para que aprofundemos os
nossos conteúdos doutrinários e teológicos. Acredito que
precisamos pontuar algumas dimensões de nossa fé e
como fruto desse trabalho, escrever Credos mais densos,
que contenham mais detalhadamente o que pensamos
sobre Deus e sua revelação. Ousei então, rabiscar algumas
idéias.
Creio na Trindade. Pai, Filho e Espírito Santo que, numa
comunidade transcendental convivem numa mutualidade
tão perfeita, que não se pode falar em três Deuses, mas
num só. Creio que essa comunidade responde às
indagações filosóficas sobre o porquê do Universo. No
princípio Deus não estava só e não criou porque carecesse
de companhia. Ele não era triste e isolado, pelo contrário,
convivia numa harmonia amorosa e em felicidade plena.
Creio que Deus criou seres semelhantes a si mesmo com o
intuito de convidá-los para desfrutarem de sua plenitude.
Crer em Deus significa viver com a certeza de que nele
encontramos o colo maternal, o derradeiro seio, o braço
paterno e a companhia fraterna do amigo mais chegado
que um irmão. Na Trindade, cremos que Deus é amor e que
o universo gravita em torno do altruísmo e não do egoísmo.
Por causa da Trindade, cremos que os sistemas que
promovem ganância, indiferença e desprezo pelo próximo
não resistirão ao desgaste do tempo.
O Deus trino convida outros para o baile eterno em que Pai,
Filho e Espírito Santo preferem um ao outro em honra.

31
creio

Com Ele, aprendemos que a companhia do nosso seme-


lhante não é um estorvo. Inferno é solidão e não vida
comunitária.
Creio em Deus Pai, o Todo-Poderoso criador de tudo o que
existe. Creio que Deus soberanamente decidiu abrir mão
de parte de sua onipotência quando criou seres à sua
imagem e semelhança. Ele se tornou fraco porque quis
abrir espaço para se relacionar conosco em amor. Decidiu
não se impor por coerção ou suborno. Creio que o livro de
Jó encontra-se na Bíblia para que soubéssemos que o
governo moral de Deus não se alicerça em utilitarismos.
Satanás compareceu perante o Senhor que lhe perguntou
se já atentara para Jó, homem íntegro, justo e que fugia do
mal. O anjo das trevas aproveitou-se para levantar uma
acusação medonha contra Deus: Ele só conseguia o amor
de seus filhos, porque os comprava com bênçãos: “Será
que Jó não tem razões para temer a Deus?”, indagou
Satanás. “Acaso não puseste uma cerca em volta dele, da
família e de tudo o que ele possui?” Depois de perder tudo,
inclusive sua saúde, Jó testemunha que Deus é amado não
pelo que dá, mas por quem é. Assim, a força mais
contundente de Deus não vem de sua capacidade de se
impor ou de barganhar a fidelidade de seus filhos, mas de
permitir que, livres, eles queiram ou não a sua companhia.
Deus prefere ser conhecido como pai e não como um
déspota celestial.
Creio em Jesus Cristo, não criado, mas eternamente
gerado no seio do Pai e nascido da virgem Maria pelo poder
do Espírito Santo. Creio que Deus não se contentaria de
nos contemplar à distância, por isso enviou seu Filho para
que fosse nosso Emanuel – Deus conosco.
32
creio

Creio que sua vinda ao mundo não foi um pensamento


posterior ao pecado, desde sempre Deus quis construir sua
morada entre os humanos. Creio que Jesus, sendo em
forma de Deus não se encantou com o poder; assim,
aceitou se esvaziar e tornar-se homem como todos nós.
Mesmo nunca deixando de ser totalmente Deus, foi
tentado, sofreu, aprendeu e morreu. Em sua missão,
caminhou ao lado dos pobres, restabeleceu a dignidade
dos excluídos, saqueou os lugares escuros e para resgatar
escravos, enfrentou os processos geradores da morte.
Creio que Jesus não buscava reconciliar Deus com os
homens, mas como o último Adão, nos reconciliar com o
Pai.
Creio no Espírito Santo, não feito, nem criado, nem gerado
pelo Pai ou pelo Filho, mas que procede d’Eles. Creio no
Espírito de Deus que operou, primariamente, na vida de
Jesus, ungindo-o para que fosse o Cristo. Sua missão na
vida de Jesus não era capacitá-lo para que se tornasse
mais eficaz em suas ações, mas para que andasse em
maior dependência de Deus. Creio que o Espírito desceu
sobre Jesus no dia do seu batismo para conscientizá-lo de
que jamais deveria tentar realizar seu ministério separado
de Deus. O Espírito o impeliu para o deserto e lá Ele foi
tentado pelo diabo por três vezes. Se Ele se lançasse do
alto do templo sem sofrer mal algum, seria a prática do
milagre pelo milagre.Tentado pelo poder sobrenatural,
sucumbiria à sedução pura e simples de valer-se de
atributos divinos para se proteger. Na tentação de
transformar as pedras em pães, mostraria que não
precisaria se valer da providência, quando lhe faltasse
alguma coisa, agiria com autonomia e por sua própria
decisão.
33
creio

Todas as vezes que a divindade fosse frustrada, bastaria


um milagre para cumprir seus propósitos. Quando sofreu a
terceira tentação, não devemos nos esquecer que Ele
sabia de sua missão de buscar a criação perdida. O diabo
lhe ofereceu ser dono do mundo, mas, Ele não aceitou, pois
não lhe interessava ter vidas ou riquezas que lhe
chegassem por manipulação, logro ou coerção.
Simone Weil, filósofa judia que se converteu ao
cristianismo durante a II Guerra mundial, acertou ao
afirmar:
Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a
possibilidade de nos negar por Ele... As religiões que
conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse
apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e
sua presença secreta aqui em baixo, essas religiões são a
verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da
grande Revelação. As religiões que representam a
divindade como comandando em toda parte onde tenha o
poder de fazê-lo, são falsas. Mesmo que monoteístas, são
idólatras.1
Ele tornou-se o que todos deveríamos ser: pessoas cientes
de nossa fragilidade e em íntima comunhão com Deus.
Creio na humanidade e que homens e mulheres,
independente da cor da pele, estética física ou cultura,
ainda carregam a Imago Dei – imagem de Deus. Mesmo
manchados pelo pecado, são capazes de ações dignas.
Creio que forças malignas controlam estruturas econô-
micas, políticas e militares, aprisionando pessoas,
produzindo sofrimento e morte. Admito também, que a
ganância e o ódio são meramente humanos.

34
creio

Aceito que, ao recebermos de Deus o mandato para


conduzir a história, produzimos mais sofrimento que
felicidade. Entretanto, creio que podemos ter esperança: a
Imago Dei não foi totalmente perdida. Ainda há ONGs
lutando pela preservação dos santuários ecológicos; ainda
existem médicos e dentistas enfronhados em favelas e
campos de refugiados de guerra; ainda há missionários
cuidando da saúde de índios. Os poetas ainda falam em
versos e prosas sobre a beleza da vida e os seresteiros
ainda dedilham suas violas, celebrando o amor. Cientistas
ainda lutam para encontrar terapias contra o câncer,
vacinas contra o vírus HIV; terapeutas ainda se dedicam
aos doentes mentais; ainda existem voluntários cuidando
de crianças em orfanatos, pais adotando filhos
abandonados, mulheres visitando indigentes em hospitais
públicos. Estes nos inspiram a acreditar no futuro.
Creio na Igreja que antecipa a chegada do Reino de Deus.
Creio em sua missão de continuar o que Jesus iniciou:
amar os desvalidos, abrigar os abandonados, estender
misericórdia para os mal sucedidos e brindar a todos com a
graça que reconduz toda a criação de volta para Deus. Não
creio que o ícone da igreja deva ser um Cristo conquistador,
mas o Cordeiro crucificado, que não veio para ser servido e
sim dar sua vida em resgate de todos.
Creio que a Igreja não foi chamada para almejar os
primeiros lugares entre os poderosos, mas a simplicidade
das pombas. Creio que na Igreja encontramos o melhor
lugar para nos esvaziar de nossa falsa divindade e nos
conscientizar de que toda ambição do poder pelo poder é
diabólica.

35
creio

Sei que essa proposta de Credo é um mero esboço e que


necessita ser aprofundada por mais pessoas.
Contudo, espero haver dado uma primeira contribuição
para que possamos alicerçar melhor a nossa fé. Hoje,
algumas de nossas convicções são fruto do trabalho
teológico das primeiras gerações que não se conformavam
com superficialidades.
Ajamos para que no futuro a próxima geração não se
ressinta de termos nos acomodado repetindo meros
chavões religiosos.

36
5 história

“O significado mais
profundo da narrativa
bíblica é que Deus, na
verdade, apostou na
construção da história
com a participação
humana. Essa aposta,
mesmo sabendo da
fragilidade e das
contingências do
humano, foi verdadeira,
nunca um jogo”.
história

A história está pronta? Sim ou não? Há três maneiras de


responder esta pergunta; três cosmovisões que tentam
explicar o mundo, o desenrolar da vida e a esperança
futura. Para entender essas cosmovisões, comparemos a
criação do universo com a produção de um filme .
Possibilidades:
O universo não é um filme. Não há sequência de eventos.
Nessa visão o mundo não é uma construção; toda história
e realidade surgiram prontas em um único ato criador;
Deus contempla presente, passado e futuro num Eterno
Agora. O conceito de liberdade é ilusório, porque não há
construção nenhuma ainda por acontecer– tudo já está
definido, o futuro é algo já “acontecido”, portanto, imutável
e plenamente conhecido.
O universo é um filme, porém já criado e produzido.
Podemos nos lamentar sobre as partes ruins, rir das partes
engraçadas, mas podemos apenas partilhar a experiência;
nada do que fazemos pode mudar o que vemos. Deus criou
a terra no tempo, mas ligou o futuro daquela criação à sua
mente que tudo sabe; assim o futuro está fixado e é
imutável. Essa visão difere da primeira apenas porque
permite que o tempo seja um elemento distinto e real em
um processo que, se não fosse por isso, seria
determinístico.1
O universo é o cenário de um filme em andamento. O
diretor sabe muito do que acontecerá no filme, mas os
detalhes concernentes às cenas e aos eventos menores
são opções dos atores. Esse é o modelo do mundo no qual
o tempo é real, e o futuro tem opções dentro de certos
limites definidos divinamente.2

39
história

No primeiro modelo existe fatalismo e a vida acontece


agrilhoada às rodas do destino sem ir a lugar algum;
simplesmente gira sem qualquer propósito. Muitas
religiões orientais, o budismo por exemplo, se aproximam
mais desse modelo.
No segundo modelo, o desenrolar da história segue trilhos
fixos e, igual à primeira, nada ou ninguém pode alterar seu
curso previamente fixado por Deus. Mulheres e homens
podem gozar do privilégio de participar do filme, mas a
história chegará ao seu destino com ou sem a participação
humana.
No terceiro modelo, Deus ainda não construiu tudo e
convida os seres humanos para serem seus
“cooperadores” da história. Não foi uma farsa de Deus
dar ao primeiro casal o privilégio de nomear animais e
cuidar do jardim.
Nesse modelo, Deus criou o universo, e livremente decidiu
(porque não havia necessidade) que a história seria
construída, digamos, “a quatro mãos” – as nossas e as
dele.
Algumas culturas acreditaram – a grega foi uma delas – que
o mundo existia e fluía a partir de forças impessoais, mas a
narrativa judaica da criação demonstra que o universo
aconteceu como resultado de um projeto amoroso. Por
detrás do primeiro “fiat” havia um Deus amoroso.
Concordo com Juan Luis Segundo quando afirma:
Cada ser humano está estruturado para inventar seu
próprio caminho num universo incompleto e colocado nas
mãos humanas. Pelo menos em relação a seu sentido.

40
história

Em outras palavras – em princípio – àquilo que o homem


decida fazer com ele e dele.3
O significado mais profundo da narrativa bíblica é que
Deus, na verdade, apostou na construção da história com a
participação humana. Esta aposta, mesmo sabendo da
fragilidade e das contingências do humano (ele se lembra
que somos pó), foi verdadeira, nunca um jogo.
Alguém poderia negar e dizer que tal parceria seria
impossível já que toda a raça humana se corrompeu e só
um louco confiaria nela. Mas, na outra face da mesma
moeda, torna-se absolutamente fantástico saber que o
Todo-Poderoso, amorosa e livremente, decidiu dividir com
gente infinitamente menor do que ele, a concretização da
história, que aqui chamamos metaforicamente de “filme”.
As Escrituras repetem que Deus fielmente, pede que seus
filhos não rivalizem com Ele na construção da história, mas
que se mantenham parceiros. Os profetas choraram
lágrimas divinas, porque a história não seguia os rumos
antecipados pelo Senhor.
4
Para Hannah Arendt, a sublime condição humana reside
em sua capacidade de construir a história através de três
atividades fundamentais: labor, trabalho e ação.
O labor corresponde ao processo biológico do corpo
humano que sustenta a vida. O coração bate, os rins filtram
e o cérebro comanda: gasta-se energia para viver.
O trabalho é o “artificialismo da existência humana”,
porque transforma a realidade do mundo natural. O ser
humano entra no mundo, o transforma e é por ele
transformado. Como no poema de Vinicius de Moares, “O
operário em construção”:
41
história

"Cresceu no seu coração


E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção".
A ação, porém, é “a única atividade que se exerce
diretamente entre os homens sem a mediação das coisas
ou da matéria e corresponde à condição humana da
pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem
5
na Terra e habitam o mundo”.
No que Arendt chama de ação, somos autores, criadores
(logicamente finitos, mortais e falhos) arquitetos, poetas,
romancistas, teólogos, médicos, inventores, atletas. Na
ação, transcendemos e damos à nossa existência um valor
para além do temporal. Nossa vida tem surpresa,
"maravilhamento" - num gesto de gratuidade do Criador,
podemos fazê-la bela.
“Deus creator” criou o “Homo Faber”, para que ele não só
sobreviva biologicamente (labor) , não só realize (trabalho);
mas, acima de tudo, crie o inédito (ação).
Voltemos a Arendt e com ela, celebremos a fantástica
possibilidade de poder fazer história:
É da natureza do início que se comece algo novo, algo que
não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha
ocorrido antes. Este cunho de surpreendente
imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem.
42
história

O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força


das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins
práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo
sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o
homem é capaz de agir, significa que se pode esperar dele
o inesperado e que ele é capaz de realizar o infinitamente
improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada
homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem
ao mundo algo singularmente novo. Desse alguém que é
singular, pode-se dizer com certeza, que antes dele não
havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato
do nascimento, se é a efetivação da condição humana da
natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é
a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do
viver como ser distinto e singular entre iguais.6
Numa história inacabada, Deus continua convidando
homens e mulheres para fazerem fluir a justiça como um rio
caudaloso num reino da paz.

43
onipotência e milagre
6 Deus

“Deus pode fazer


qualquer coisa e tem a
liberdade de agir
como, quando e onde
quiser”.
onipotência e milagre

Deus é onipotente. Aliás, não crer na onipotência divina


seria igual a desacreditar da própria existência de uma
divindade – um deus sem poder não é Deus.
Milagres acontecem. Não crer em milagres seria igual a
desacreditar na possibilidade das ações divinas. Um deus
imóvel é um absurdo conceitual.
Deus não só possui todo o poder como nele se origina tudo
o que se entende como poder, capacidade, criatividade.
Deus pode fazer qualquer coisa e tem a liberdade de agir
como, quando e onde quiser.
Antecipo essas verdades porque procuro discutir a
plausibilidade do milagre no cotidiano; quero saber se é
possível ter um chão existencial presumindo as
intervenções divinas. A partir desses questionamentos,
desejo perceber se é função do sacerdote ensinar que se
organize a vida esperando livramentos divinos.
Realmente não há como negar que a Bíblia contém
numerosos exemplos de livramentos, salvações, resgates
espetaculares e curas divinas. Para evitá-los seria
necessário um enorme exercício de relativização das
Escrituras. Porém, algumas perguntas insistem: o sujeito
religioso deve conceber a sua existência com expectativa
de intervenções sobrenaturais? Deve-se procurar reverter
o diagnóstico de uma doença terminal pela oração? Um fiel
deve apelar para Deus se quiser ganhar um litígio judicial?
Um pastor deve ensinar que a vida só será possível com
constantes intervenções de Deus? As pessoas que expe-
rimentam “upgrades” levam vantagem sobre os demais
quando obedecem aos mandamentos?

47
onipotência e milagre

Essas inquietações não negam que Deus tem toda força e


pode realizar o impossível. Elas buscam, tão somente,
repensar a cosmovisão religiosa que contempla a vida com
ingerências do alto; confrontam as lógicas de que homens
e mulheres carecem de socorros emergenciais de Deus
para que a existência seja minimamente possível.
Creio ser função do pastor ajudar as pessoas a viverem
com fé, mesmo quando não existe a possibilidade de
milagre. Diferente do paganismo, a cosmovisão cristã
convoca que se confie em Deus para enfrentar as
contingências da vida com coragem. Neste conceito, fé não
antecipa prodígios sobrenaturais. Os cristãos parecem,
entretanto, carminhar noutra direção; urge que se
resignifique a fé.
Fé não se limita a acreditar em acontecimentos extra-
ordinários. Partindo-se da aceitação de que existe um
Criador e Controlador do universo, esta verdade é evidente
e consta em todas as tradições religiosas monoteístas,
inclusive as judaicas e islâmicas
Sempre que se reflete sobre milagre, as reações são
emotivas. “Deus não pode intervir na vida das pessoas,
principalmente, as mais necessitadas?” Lógico que pode;
isto já ficou estabelecido nos dois primeiros parágrafos
acima. Deus pode tudo; Ele é o Todo-Poderoso.
A questão é se Deus quer que a vida humana se organize
com ocasionais intervenções suas. Proponho que não.
Ninguém deve viver ou preparar-se para enfrentar o “dia
mau” (Efésios 6.13) com expectativa de que virão auxílios
sobre-humanos para aliviar o sofrimento.

48
onipotência e milagre

Dois conceitos também precisam constar nessas


elaborações: graça e justiça.
Graça, muito mais que um jargão teológico é uma
descrição do jeito como Deus lida com a humanidade.
O amor de Deus é gratuito, universal e unilateralmente
derramado sobre todos. Ele abençoa sem exigir méritos;
seus afetos independem da qualidade moral ou de práticas
religiosas das pessoas. Deus não ama como reação:
também não faz acepção e não discrimina; não premia uns
para abandonar outros ao léu; não “elege” uns poucos para
voltar as costas para a maioria que nasce como “filhos da
ira”. Portanto, se e quando acontece algum milagre, não
vem como resposta de oração – qualquer mérito anula a
graça e as suas intervenções não visam abençoar os
“eleitos” já que não faz acepção de pessoas.
As intervenções divinas, se e quando acontecem, estão
ligadas a a um propósito eterno do coração de Deus e as
pessoas não têm qualquer ingerência sobre elas. Milagres
são mistérios.
Fé pode ser compreendida como coragem existencial. No
reconhecimento de que a vida é imprevisível, fé aposta nos
valores do Evangelho. Suas verdades e princípios são
suficientes para enfrentar a vida com tudo o que acontecer
de bom ou de ruim. Fé é um convite a confiar no propósito
eterno de Deus - Ele quer ter uma família com filhos
parecidos com Jesus de Nazaré.
A religiosidade que promove a expectativa de livramentos,
tem sido responsável por processos de infantilização;
homens e mulheres, acreditando que a história ficará
diferente com milagres, são impedidos de iniciativas
transformadoras.
49
tragédia, fé e milagre
7 vida

“A mensagem do
Evangelho não promete
imunidade ou alívio das
tribulações, mas bom
ânimo; o frágil
Carpinteiro venceu na
hora mais desolada”.
vida

Minha vida se organizou, também, com tragédias. O


primeiro grande drama aconteceu na breve existência de
minha irmã caçula, que viveu apenas dois dias. Ela se
chamava Gelsa, em homenagem a uma tia muito querida;
era gêmea do Sergio, que sobreviveu. Recordo,
nitidamente, o desespero que nos sobreveio naquela
época. Era véspera do Natal e meu pai estava preso.
Morríamos de medo da polícia política dos ditadores e
convivíamos com vergonha social - a vizinhança parava na
frente da casa do “subversivo” - rótulo dado aos
delinquentes ideológicos que mereciam tortura.
Gelsa nasceu sem intestino e com uma hérnia umbilical
estrangulada. Veio ao mundo, portanto, já condenada a
morrer de fome. Em 48 horas, como os médicos
prenunciaram, minha irmã se desidratou; sem conseguir
digerir o leite materno, sucumbiu à inanição. Eu a segurei
nos braços por apenas 30 segundos. Quando mirei seus
olhos fechados, chorei lágrimas pré-adolescentes e provei
um sal amargo, que ainda reconheço.
Devolvi a minha irmã para um adulto e saí para fazer a
primeira oração consciente que me lembro. Desesperado,
clamei a Deus - não recordo as palavras exatas: “Meu
Deus, por favor, não deixe a minha irmã morrer; não
permita que a mamãe sofra mais, na cadeia o papai não vai
aguentar”.
Não fui atendido. Deus não respondeu. Os céus se
blindaram à voz de uma criança. Dois dias depois, nossa
família aflita chorou ao lado da sepultura.
Desde essa primeira tragédia até hoje, meados dos
cinquenta anos de idade, já testemunhei angústias
semelhantes.
53
vida

Nunca esquecerei aquela tarde. Meia hora antes de pregar,


fui chamado para orar por uma criança de nove anos de
idade que agonizava com leucemia. Logo que entrei no
jardim da casa, seu pai me abraçou. O desespero daquele
homem arranhou o meu coração: “Pastor, peça a Deus
para tirar o câncer da Beatriz e colocar em mim. Não
suporto o sofrimento da minha filha”. Quando me aproximei
da menininha, deitada em posição fetal, magérrima e
sussurrando uma dor atroz, joguei-me de joelhos ao lado
da cama.
Pela segunda vez, clamei desesperado por uma menina.
Eu via a irmã que perdera. “Deus, tenha misericórdia desta
criança; por meio de teu filho, cura a Beatriz”. Novamente
as palavras bateram contra portas de aço. Poucos dias
depois, acompanhei a família ao mesmo cemitério onde
minha irmã jazia.
Recordo-me de uma família de missionários que,
inutilmente, pediu, jejuou, convocou uma multidão de
“intercessores”, para que a filha de 17 anos não morresse –
a jovem havia caído de uma motocicleta, bateu a cabeça no
asfalto e teve morte cerebral.
Quando vi o Ângelo, que era líder dos adolescentes de
nossa igreja, contorcendo-se após um acidente
automobilístico, perguntei ao médico o que as convulsões
indicavam. Com lágrimas nos olhos por ver um rapaz de 19
anos naquele estado, respondeu-me: “Ele está ‘des-
cerebrando’”. Ajoelhei-me na UTI do Hospital São Paulo
como se implorasse por meu próprio filho. O Ângelo morreu
10 dias depois.
Paradoxalmente, acredito em milagres.

54
vida

Respeito-as e não duvido de nenhuma experiência


fantástica de livramento, provisão, resgate e cura. Entendo,
inclusive, o desatino de procurar invalidar as narrativas de
milagre; não me proponho a esta tarefa que considero
perniciosa.
Quero, tão somente, dar esperança aos que, como eu,
amargaram o silêncio divino. Multidões não receberam
resposta quando imploraram por milagre na hora mais
terrível: “Meu Deus, meu Deus, por que me
desamparaste?”.1 Procuro ajudar pessoas a não perderem
a fé porque tiveram expectativa de cura e acabaram se
frustrando. Alguns apelaram desde o abismo da aflição,
mas não obtiveram resposta. Pretendo mostrar que os
silêncios divinos não são descaso ou desamparo, mas a
condição, a maneira, como Deus organizou o mundo.
Considero, inclusive, que nossas inquietações possam ser
respondidas na tentação de Jesus no deserto. Trato o
episódio como chave de compreensão de como podemos
lidar com a vida.
O Espírito levou Cristo até o deserto para ser tentado. Ali o
diabo ofereceu três vantagens para que Jesus enfrentasse
o desafio de viver: provisão, livramento e prosperidade.
Caso aceitasse transformar pedras em pães, todos os
famintos do mundo poderiam reivindicar a mesma coisa; se
pedisse o socorro dos anjos, todos os acidentes seriam
“evitáveis”; ao receber os reinos do mundo por decreto, o
livre arbítrio humano ficaria anulado. Jesus rejeitou ter a
fome satisfeita por magia; não permitiu que se criassem
expectativas falsas de um mundo sem percalços; e
rechaçou conquistar os reinos deste mundo pelo poder.

55
vida

Preferiu mostrar em sua própria vida que liberdade era a


maior dádiva que Deus nos concedera!
Em minha caminhada como pastor e estudioso da Bíblia,
constato que as comunidades religiosas interpretam os
milagres dentro de “zonas de plausibilidade”, isto é, faz-se
do sinal e da maravilha a prova que legitima a pregação.
Como os milagres mais complicados de se concretizarem
poderiam invalidar a mensagem, os líderes se concentram
nos que têm boas chances de “realmente” acontecerem.
Assim, evitam-se as doenças "mais complicadas" e
perdem-se de vista, infelizmente, os que mais sofrem.
Olho para minha trajetória e reconheço: nos momentos
mais cruciais da vida, na hora em que mais se precisava de
um "enorme" milagre, ele simplesmente não aconteceu.
Sinto que a antiga dor de ver a minha irmã morrer de fome,
somada às inúmeras tragédias que já presenciei, me
despertaram a repensar o conceito de fé. Desejo advertir as
pessoas que organizam a vida esperando possíveis
milagres, explicando que terão enormes chances de se
frustrarem. Temo que se decepcionem com Deus, com o
que se entende por fé e com a vida.
Fé pode sair do estágio infantil como força que “consegue
mover o braço de Deus” ou de “abrir as janelas do céu” para
ser uma coragem. Fé é uma aposta de que a sabedoria
divina, com seus princípios e verdades, basta para que se
enfrente os percalços e tragédias da vida.
Convido, assim, os que já sofreram, para que olhem a vida
como uma maratona. Para vencê-la, socorros sobrenatu-
rais não são essenciais.

56
vida

Jesus de Nazaré encarou a história sem pedir a ajuda de


anjos. Ele não evitou a cruz e, por isso, triunfou. A
mensagem do Evangelho não promete imunidade ou alívio
das tribulações, mas bom ânimo; o frágil Carpinteiro
venceu na hora mais desolada. Em seu clamor, “Eloí, Eloí,
lamá sabactâni”,3 encontramos uma certeza: é possível
triunfar mesmo sem sermos poupados da morte.

57
8 responsabilidade

“Ninguém deve
orientar seus valores
porque está sendo
monitorado pelo
grande olho divino,
mas porque existe
virtude intrínseca nos
comportamentos que
exigem obrigação de
todos”.
responsabilidade

Não há maior dificuldade existencial do que os silêncios


divinos. O “Deus abscondito” representa o mais gigantesco
enigma filosófico e teológico. Um nó górdio que ninguém
desata.
O relato bíblico não é homogêneo. Tanto a narrativa
judaica, como as propostas mais conceituais e doutrinárias
das epístolas cristãs revelam que Deus elege tempos e
hierarquiza anos. Há períodos da história em que sua
presença é mais marcante. Em outros, exuberante.
Contudo, os hiatos de sua ausência se alongam por
períodos que parecem não ter mais fim. Deus é mais
ausente que presente.
É duro pensar, pior afirmar, mas algumas pessoas não
representarão absolutamente nada na trama humana;
sequer serão conhecidas. Milhões morrem anônimos. Para
a enorme maioria, o papel mais importante que
desempenharão consistirá em sobreviver e cuidar dos que
os sucederem; e estes repetirão o mesmo roteiro.
A vida da maioria se desenrolará sem milagres, sem
intervenções sobrenaturais e sem a presença transcen-
dente de Deus. Terão que trabalhar de sol a sol para comer,
viverão à mercê das pestes e pragas, precisarão lutar
contra as inclemências do clima. Sujeitos, inclusive aos
acidentes naturais como ciclones, tufões e terre-
motos.Cada um deve viver seu dia a dia com a certeza da
existência de Deus, porém sabendo que Ele não alterará,
indiscriminadamente, a ordem que Ele mesmo
estabeleceu. Cada um deve fazer o que é reto não porque
existe um Deus que fiscaliza do alto do céu, mas porque a
virtude conspira a favor da vida e do bom convívio entre os
humanos.
61
responsabilidade

Ninguém deve orientar seus valores porque está sendo,


por assim dizer, monitorado pelo grande olho divino, mas
porque existe virtude intrínseca nos comportamentos que
exigem obrigação de todos.
Cada um deve encarar os silêncios divinos não como
descaso, mas como espaço para a liberdade. Viver,
portanto, é uma aventura sem garantias. Não é possível
uma existência bonita e criativa sem abrir mão de uma
obsessiva necessidade de segurança. É pobre buscar
construir diques que represem as águas das tempestades;
erguer fossos para que possíveis inimigos não invadam os
castelos; esterilizar todos os ambientes para que doenças
não se alastrem. Como é fútil acreditar que existe um futuro
sem ameaças!
Resta aprender a viver sem a pretensão de engomar o
mundo e retirar dele seus percalços.
Resta recusar a religião que tenta transformar Deus numa
divindade que premia os que merecem com “algo mais” que
ajuda a contornar os perigos da vida com suas vicissitudes.
Resta abrir mão de querer salvar a vida, pois os que
tentaram se condenaram a perambular, sem jamais
conseguir viver. A propósito, lembro-me de uma história
extraordinária, que descreve o diálogo entre uma freira
americana cuidando de leprosos no Pacífico e um
milionário texano. O milionário, vendo-a tratar daqueles
enfermos miseráveis, disse: "Irmã, eu não faria isso por
dinheiro nenhum do mundo”. E ela respondeu: "Eu também
não, meu filho".

62
responsabilidade

Verdade versus Alucinação


O culto “pegava fogo”. O frenesi do povo crescia, esti-
mulado por um pastor quase grisalho, engravatado e com
bastante brilhantina nos cabelos. Mesmo acostumado a
ambientes pentecostais, estranhei o exagero dos gestos e
das palavras. Concentrei-me para entender o que o pastor
dizia em meio a tantos gritos. Percebi que ele literalmente
dava ordens a Deus. Exigia que honrasse a sua Palavra e
que não deixasse "nenhuma pessoa ali sem a bênção".
Enquanto os decibéis subiam, estranhei o tamanho da sua
arrogância. A ousadia do líder contagiou os participantes.
Todos pareciam valentes, cheios de coragem. Assombrei-
me quando ouvi uma ordem vinda do púlpito: "chegou a
hora de colocarmos Deus no canto da parede; vamos
receber nosso milagre e exigir os nossos direitos". Foi a
gota d'água. Levantei-me e fui embora.
Os ambientes religiosos neopentecostais se tornaram
alucinatórios porque geram fascínio por poder e pela
capacidade de criar um mundo protegido e previsível. Por
se sentirem onipotentes, buscam produzir uma realidade
fictícia. Para terem esse mundo hipotético, os sujeitos
religiosos chegam ao cúmulo de se acharem gabaritados
para comandar Deus. É próprio da religião oferecer
segurança, mas os neopentecostais buscam produzir
garantia existencial com avidez.
Em seus cultos, procuram eliminar as contingências, com a
imprevisibilidade dos acidentes e os contratempos do mal.
Acreditam-se capazes de domesticar a vida para acabar
com a possibilidade dos seus filhos adoecerem, das
empresas que dirigem falirem e de se safarem, caso
estejam no ônibus que despenca no barranco.
63
responsabilidade

Almejam uma religião preventiva, que se antecipa aos


solavancos da vida. Imaginam-se aptos para transformar a
aventura de viver em um mar de almirante ou um céu de
brigadeiro.
Acontece que essa idéia de um mundo sem percalços não
passa de alucinação. Por mais que se ore, por mais que se
bata o pé dando ordens a Deus, o Eclesiastes adverte: "o
que acontece com o homem bom, acontece com o pecador;
o que acontece com quem faz juramentos acontece com
quem teme fazê-lo" (9.2).
Mas a pergunta insiste: por que os cultos neopentecostais
lotam auditórios e ganham força na mídia? Repito, pelo
simples fato de prometerem aos fiéis o poder de controlar o
amanhã; de eliminar os infortúnios e canalizar as bênçãos
de Deus para o presente. Quando oram, pretendem gerar
ambientes pretensiosamente capazes de antever
quaisquer problemas para convertê-los em fortuna e
felicidade.
Esta premissa deve ser contestada, pois pedir a Deus para
nunca se contrariar, ou para ser poupado de acidentes,
significa exigir que Ele coloque seus filhos em uma bolha de
aço. A vida é contingente. Tudo pode ocorrer de bom e de
ruim. Uma existência sem imprevisibilidade seria maçante.
O perigo da tempestade, a ameaça da doença, a eminência
da morte fazem, inclusive, o dia a dia interessante.
A verdade não produz necessariamente felicidade.
Verdade conduz à lucidez. O delírio, porém, tranquiliza e
gera um contentamento falso. Muitos recorrem à religião
porque desejam fugir da verdade existencial e se arrasam
porque a paz que a alucinação produz não se sustenta
diante dos fatos.
64
responsabilidade

Cedo ou tarde, a tempestade chega, o "dia mau" se impõe e


o arrazoamento deste tipo de religioso cai por terra.
Interessante observar que Jesus nunca fez promessas
mirabolantes. Como não se alinhou aos processos
alienantes da religião, Jesus não garantiu um mundo
seguro para os seus seguidores. Ao contrário, avisou que
os enviaria como ovelhas para o meio dos lobos e advertiu
que muitos seriam entregues à morte por seus familiares.
Sem qualquer rodeio, afirmou: "no mundo vocês terão
aflições".
Quando o Espírito conduziu Jesus para o deserto, o diabo
lhe ofereceu uma vida segura, sem imprevistos. As três
tentações foram ofertas de provisão, prevenção e poder.
Cristo, porém, as rechaçou porque eram mentiras. O
mundo que o Diabo prometeu não existe.
Acontece que as pessoas preferem acreditar nas suas
ilusões. Fugir da crueza da vida é uma enorme tentação.
Em um primeiro momento, parece cômodo refugiar-se da
realidade, negando-a. É bom acreditar que a riqueza, a
saúde e a felicidade estão pertinho dos que conseguirem
manipular Deus. O neopentecostal se desconectou da
realidade. Seus seguidores vivem em negação. Não
aceitam partilhar a sorte de todos os mortais. Confundem
esperança com deslumbre, virtude com onipotência
mágica, culto com manipulação de forças esotéricas e
espiritualidade com narcisismo religioso.
Os sociólogos têm razão, o crescimento numérico dos
evangélicos não arrefecerá nos próximos anos. O
problema, entretanto, é qualitativo. Assim, o rastro de
feridos e decepcionados que embarcaram nessas
promessas irreais já é maior do que se imagina.

65
responsabilidade

A demanda por cuidado pastoral aumentará. Os egressos


do "avivamento evangélico" baterão na porta dos pastores
perguntando: "por que Deus não me ouviu?" ou "o que fiz
de errado?". Será preciso responder carinhosamente: "não
houve nada de errado; Deus não lhe tratou com
indiferença; você apenas alucinou sobre o mundo e
misturou fé com fantasia".

66
9 pecado

“Deus não
requer vidas
perfeitinhas, pois
ele sabe que a
estrutura
humana é pó”.
pecado

Desde a adolescência, organizei minha vida com valores


religiosos. Freqüentei e lecionei em escolas dominicais.
Militei em grupos de jovens cristãos. Estudei em um
instituto bíblico. Conheci bem os bastidores do mundo
religioso, tanto no Brasil como nos Estados Unidos
Sincero e zeloso, sempre procurei cumprir as exigências
de todas as instituições que participei. Se a igreja não
permitia às mulheres cortarem o cabelo, briguei com a
minha por aparar as franjas; se era pecado ir ao cinema,
eu, que não aceitava essa proibição absurda, para evitar
mau testemunho, viajava para longe se queria ver algum
filme.
Relevei disparates, incoerências e hipocrisias eclesiásti-
cas, porque considerava a causa de Cristo mais importante
que as pessoas. Para não “escandalizar”, fazia vista
grossa para comportamentos incompatíveis com a
mensagem cristã.
Abraçado às instituições, acabei conivente de merce-
nários, alguns intencionalmente cobiçosos. Justifiquei
tolices argumentando que as pessoas eram minimamente
sinceras. Nem sei como me iludi a ponto de dizer: “fulano
faz bobagem, muita bobagem, mas é sincero”.
Cheguei a um tempo de vida, que algumas reivindicações
da religião perderam o apelo. Com tantas decepções,
deixei de acreditar na pretensa santidade dos religiosos.
Considero piegas as pregações de que Deus exige uma
santidade perfeita. Lembro imediatamente dos malaba-
rismos que testemunhei que tentavam falsear tantas
inadequações, dos jogos de esconde-esconde para não
expor demagogias.

69
pecado

Jesus não conviveu com gente muito certinha. Ao


contrário, ele os evitava e criticava; chamou os austeros
sacerdotes de sepulcros caiados, de cegos que guiam
outros cegos, de hipócritas e, o mais grave, de
condenarem os prosélitos a um duplo inferno. Cristo
gostava da companhia dos pecadores, que lhe pareciam
mais humanos.
Jesus alistou pessoas bem difíceis para serem apóstolos;
Pedro era tempestivo; Tomé, hesitante; João, vingativo;
Filipe, lento em compreender; Judas, ladrão. Acostumado
com os frequentadores de sinagoga e com os doutores da
Lei, por que ele não buscou seguidores nesses círculos?
Talvez, não entendesse santidade e perfeição como
muitos.
Jesus aceitou que uma mulher de reputação duvidosa lhe
derramasse perfume; elogiou a fé de um centurião romano,
adorador de ídolos; não permitiu que apedrejassem uma
adúltera para perdoá-la; mostrou-se surpreso com a
determinação de uma Cananeia; prometeu o paraíso para
um ladrão nos estertores da morte. Sabedor das
exigências da lei, por que Jesus não mediu esforços ou
palavras para enaltecer gente assim? Talvez, não
entendesse santidade e perfeição como muitos.
Para Jesus, santidade não significava uma simples
obediência às normas. Para ele, os atos não valem o
mesmo que as intenções. Adultério não se restringe a
sexo, mas tem a ver com valores que podem ou não gerar
uma traição.
O ódio que explode em ânsias de matar é mais grave do
que o próprio homicídio.

70
pecado

Para ele, portanto, pecado e santidade fazem parte das


dimensões mais profundas do ser humano. Lá, naquele
nascedouro, de onde brotam os primeiros filetes do que se
transformará em um rio, forma-se o caráter. E santidade
depende da estrutura do ser, com índole que gera as
decisões.
Para Jesus, santidade se confunde com integridade; que
deve ser compreendida como inteireza. As sombras, as
faltas, as inadequações, os defeitos, bem como as luzes,
as bondades, as grandezas, as virtudes, de cada um
precisam ser encaradas sem medos, sem panacéias, sem
eufemismos.
Deus não requer vidas perfeitinhas, pois ele sabe que a
estrutura humana é pó; não exige correção absoluta, pois
para isso, teria que nos converter em anjos.
As prostitutas, que souberem lidar com faltas e defeitos
com inteireza, precederão os sacerdotes bem compostos,
mas que vivem de varrer as faltas para debaixo dos tapetes
eclesiásticos. O samaritano, que traduziu humanidade em
um gesto de solidariedade, é herói de uma parábola que
descreve como herdar o céu. O tempestivo Pedro, que
transpirava sinceridade, recebeu as chaves do Reino de
Deus. A mulher, que fora possessa de sete demônios,
anuncia a alvissareira notícia da ressurreição.
Os mandamentos e a lei só serviram para mostrar que para
produzir humanidade não servem os legalismos.
Integridade e santidade nascem do exercício constante de
confrontar suas luzes e sombras trazendo-as diante de
Deus e mesmo assim saber-se amado por Ele.

71
pecado

Pessimismo Antropológico
Desejo trabalhar um tema “imexível” da teologia cristã.
Embora nem sempre explicitada, a "Queda" é quase que
ponto pacífico na maioria das teologias sistemáticas. Este
termo é um pressuposto antropológico na teologia,
também chamado de “Pecado Original”.
Considerado essencial para explicar a universalização do
mal, o Pecado Original também serve de base para a
teologia sacrificial - "Cristo foi crucificado para aplacar a
maldição de Deus que repousa sobre a raça humana
desde o pecado de Adão".
Tal conceito é quase unanimidade entre os cristãos
ocidentais. Questioná-lo não é tarefa fácil, admito.
Considera-se que o Pecado Original tenha nascido da
pena do gigante Santo Agostinho. Ele cunhou o termo.
Quando Pelágio o enfrentou nessa questão, Agostinho
ganhou o duelo. Os debates que envolviam liberdade e
depravação definiram a teologia desde então. Já ouvi
alguém afirmar que depois de Santo Agostinho, tudo o que
se escreveu sobre a antropologia cristã não passa de nota
de rodapé. Não é preciso dizer que Pelágio desceu no ralo
da história como herege e Agostinho virou santo.
Santo Anselmo, alguns anos mais tarde, aprofundou ainda
mais o pessimismo antropológico agostiniano. Depois
dele, o “Pecado Original” foi considerado uma verdade
expli- citada nos escritos de Paulo - principalmente na
Epístola aos Romanos. Lutero o tornou o carro chefe de
sua doutrina sobre a graça. E como você sabe, os
calvinistas ingleses, os puritanos, levaram o “Pecado
Original” até às últimas consequências.

72
pecado

Deles e dos calvinistas holandeses, nasceu a predesti-


nação dupla que afirma que muitos foram criados por Deus
para sofrerem no inferno e poucos para se deliciarem no
céu.
Leia o que escreveram os teólogos latino-americanos Juan
Luis Segundo, Gustavo Gutierrez, Jose Comblin. Conheça
os livros do historiador Jean Delumeau. Sugiro toda a obra
do espanhol Andrés Torres Queiruga. Reconheço que
entre os protestantes, não acreditar no Pecado Original é
uma apostasia digna de fogueira. Quem não se
fundamentar no Pecado Original, além de herege, será
rotulado de relativista ou liberal.
Contudo, não estou preocupado com rótulos ou com
exílios. Então, deixe-me fazer algumas colocações antes
de entrar no debate bíblico:
O mundo não está desgraçadamente caído. Este
planeta não é um espetáculo de horrores. Não vivemos na
ante-sala do inferno. Vicissitudes, doenças, acidentes e
mortes não são o resultado de vivermos em um mundo
torto e maldito. Não, mil vezes não! Nosso mundo é
contingencial, espaço onde coexiste a possibilidade da
saúde e da doença, dos acidentes e dos livramentos, dos
absurdos e da felicidade. Alegrias, risos, festas e beleza se
concretizam com as mesmas chances que as balas
perdidas, o câncer e os desastres automobilísticos.Não
esqueça que, como nos organizamos, pode acontecer
mais felicidade ou mais infortúnio. A probabilidade de ser
assassinado no Brasil é muito maior que na Inglaterra.
Mais crianças morrem antes do primeiro ano de vida na
Índia do que na Bélgica.

73
pecado

Se acontecerem dois terremotos com a mesma


intensidade nos Estados Unidos e no Afeganistão, sugira
onde será a pior devastação? Você não se pergunta por
que os desastres naturais arrasam primeiro os pobres?
Contudo, onde impera a injustiça o direito também pode
triunfar. Em meio ao ódio, a paz pode florescer. O acaso
que produz morte também junta os amantes. Existe
estatística que prevê o percentual de crianças nascidas
com síndromes graves. Considerar deformidades
genéticas como resultado da "Queda" e ainda ter
estatística para as ocorrências é loucura. Não dá para
pensar em castigo que obedece as leis da probabilidade!
A morte física não aconteceu devido a uma dentada no
fruto proibido. Morrer está em todo o universo. Sim, a
narrativa do Gênesis descreve a morte. Entendo, porém,
que aquela descrição se refere ao preço de assumirmos
nossa humanidade, não a uma maldição. A consciência da
nossa finitude foi o preço que pagamos quando saímos da
irracionalidade. Os animais também sofrem e morrem. Só
que eles não se angustiam com a dor ou com a brevidade
da vida.
A termodinâmica preconiza que todo sistema (vivo ou
inanimado) tende a se desintegrar. Tudo se esfacela, tudo
morre. A natureza efêmera não é desdobramento de um
pecado. Morrer faz parte da constituição intrínseca da
criação. Só Deus é eterno. Se nascemos, vamos morrer.
Com os conhecimentos modernos da astronomia, fica
difícil imaginar que o colapso de uma estrela que
aconteceu há dez bilhões de anos, seja conseqüência do
pecado de Adão. Precisamos repensar o pessimismo
antropológico do movimento evangélico.

74
pecado

Em qualquer época da história foi e será possível achar


religiosos, engenheiros, médicos, músicos, lavadeiras e
militares praticando tanto o bem quanto o mal. O mal ainda
não suplantou o bem. Os diques contra a maldade, embora
rachados, não foram devassados completamente.
Sugiro repensar o pressuposto do Pecado Original, ler
extensivamente alguns autores judeus e lembre-se, Jesus
foi judeu. Nenhum teólogo ou rabino considerou o Pecado
Original parte da natureza humana devido a Adão. Vale
ressaltar, os Evangelhos não registram Cristo ensinando
sobre o Pecado Original. Pesquise os teólogos
protestantes contemporâneos. Os que se preocupam com
uma práxis transformadora da história, teólogos da
libertação, por exemplo, já abandonaram essa premissa,
faz tempo.
Você sabia que Agostinho e Lutero tentaram explicar como
o Pecado Original passa de geração em geração? Certa
vez, questionaram Agostinho: o sangue de Cristo purifica
as pessoas de todo o pecado? Logicamente o bispo
africano respondeu que sim - “Está escrito, o sangue de
Cristo não só perdoa como erradica todo pecado”.
Replicaram - “se um casal cristão, lavado e remido pelo
sangue do Cordeiro gerar um filho, de onde viria o pecado
de Adão?”. Agostinho respondeu que o “pecado é
transmitido pela relação sexual”. Segundo ele, “não é
possível acontecer relação sexual sem concupiscência”.
Lutero também repetiu esta mesma teoria.
Amigo, não considere as pessoas como “cães ou porcos”.
Todos são filhos e filhas queridos de Deus. Evangelize
valorizando a dignidade divina impregnada em todos. Trate
o seu semelhante da mesma maneira que Jesus.

75
pecado

Ele lidou com gentios, prostitutas, soldados e judeus com


extremo carinho. Para ele, todos eram preciosos demais
para se perderem. E Deus prova o seu amor, ao enviar
Cristo para viver e até morrer, mesmo quando as pessoas
se mostravam inimigas. Sabe por quê? Mesmo quando
soterrada pela maldade, cada pessoa carrega a Imago
Dei - a Imagem de Deus. Essa dádiva não pode se perder.
Cristo veio buscar e salvar os esmagados pelo mal para
fazer ressurgir a sua glória, impressa nos corações.

76
10 salvação

“Eu já peço mais para


as pessoas
levantarem a mão,
concordando com a
minha pregação;
como também não
lhes asseguro que,
daquela hora em
diante, receberão um
selo que lhes
garantirá o céu”.
salvação

Por volta dos meus quarenta e poucos anos, perguntei-me


o que fazia da vida. Cansei dos esquemas dos evangelistas
itinerantes. Eles me entediavam com suas pregações
repetitivas. Caíram algumas vendas dos olhos e vi os
interesses escusos dos missionários estrangeiros que
tiravam foto- grafias de eventos brasileiros para fazerem
propaganda nos Estados Unidos. Chorei amargamente
quando notei que os “caciques” das grandes denomina-
ções eram mais grosseiros que os políticos que eu
desdenhava.
Acordei também para os meus pecados sutis. Vi que não só
partilhava de um mundo religioso doente, mas o reforçava
com uma vaidade sedenta de prestígio. Eu sabia, mas não
queria abrir mão, da minha vontade louca de aparecer. Eu
queria construir um nome e tornar-me notório pela “unção”,
“autoridade”, “loquacidade”. Ah, como eu já quis despontar
como um “pastor bem sucedido”! Queria ser igual aos
famosos que conhecia, principalmente os estrangeiros,
que arrebatavam multidões.
Esses messianismos, essas falsas onipotências, come-
çaram a desmoronar depois de um culto quando uma jovem
fez algumas perguntas desconcertantes. Marli (nome
fictício) era graduada em filosofia na Universidade de São
Paulo e, devido ao seu senso crítico, me confrontou com
serenidade.
“Ricardo, cadê a vida abundante prometida por Jesus”?.
Pego assim de supetão, eu não soube o que responder.
Tentei me safar com outra pergunta. “O que você quer
saber?”, na verdade eu só queria ganhar tempo com minha
réplica. Ela não cedeu: “Pastor, quero entender se o que
Jesus prometeu tem conexão com a realidade da vida ou

79
salvação

a vida abundante que Ele falava era apenas um desejo


utópico dos apóstolos?”. Nervoso, insisti em perguntar
ainda procurando ganhar tempo: “Como assim?”. “Se
Jesus prometeu que seus seguidores experimentariam
vida abundante, quero saber por que não vejo acontecer
concretamente”. Nessa hora tive que dar a mão à
palmatória. “Marli, você tem razão, a vida abundante
prometida por Jesus aparece muito mais nos discursos do
que na concretude da vida. Entretanto, o problema não é
dele ou dos apóstolos, mas nosso”.
O discurso religioso promete muito mais do que cumpre.
Dificilmente constatam-se evangélicos com qualidade de
vida melhor do que as pessoas não convertidas. Problemas
conjugais, instabilidade emocional, patologias psíquicas,
permanecem intocados na grande maioria das igrejas que
alardeiam que seus fiéis terão uma “vida abundante”.
Enquanto os auditórios se maravilham com discursos
triunfalistas que asseguram o melhor casamento, felicidade
total no trabalho e paz duradoura, enormes problemas são
varridos para debaixo dos tapetes ou justificados como
“falta de fé”, “desobediência”; ou resultado de “ataques do
diabo”. Por que isso acontece?
Priorizou-se a “salvação” como uma esperança a ser alcan-
çada depois da morte. E as igrejas, cada uma se acredi-
tando mais legítima, se especializam em oferecer o bilhete
para a vida eterna que só vai começar quando o coração
parar de bater. Assim, meticulosas em “dar certeza da
salvação” aos seus convertidos, não se preocupam em
ensinar como viver do lado de cá. Com esse modelo,
comumente se vê gente segura de que vai para o céu, mas
sem saber lidar com os momentos triviais da existência.

80
salvação

Em minha experiência pastoral, já tive o desprazer de


aconselhar mulheres super espirituais, que se gabam do
nome estar “escrito no livro da vida”, mas intoleráveis, mal-
resolvidas e tristes. Recentemente precisei gastar três
horas com um pastor que há anos prometia o céu para
quem “levantasse a mão para aceitar Jesus”; só que ele
não sabia resolver seus dilemas sexuais. No meio de nossa
conversa, abatido ele me confidenciou: “Ricardo, estou
vivendo num inferno”.
Nossa missão é ajudar às pessoas a tratarem a vida eterna
como uma possibilidade para aqui, para a terra. Aliás, a
dimensão transcendental da salvação não compete a nós;
não depende de nossos esforços e não acontecerá como
resultado de nossa confiabilidade ou unção. Salvação, vida
eterna, foi conquista da cruz. Ela é obra vicária de Cristo, o
mérito será sempre dele. Vida eterna é distribuída
indistintamente a todos pela graça; e só o Espírito Santo
convence do pecado, da justiça e do juízo.
O reino de Deus é chegado, está entre nós. Livre das
condenações da lei, sem precisar compensar os pecados
com penitências e, sem ter que ganhar o favor divino com
obras, a humanidade pode dar início ao projeto de
humanizar-se. Neste propósito divino, crescemos com
maturidade, nos solidarizamos com os carentes,
exercitamos misericórdia e sempre defendemos a justiça.
Precisamos nos desvencilhar do antigo modelo de
evangelização, que promete uma salvação para depois do
último fôlego. Comecemos a pregar a chegada do Reino, só
assim as pessoas se sentirão estimuladas a mudar e essa
tarefa é extraordinária. Mudemos o mote de nossas
pregações.

81
salvação

Abordemos questões práticas sobre matrimônio, polidez,


cordialidade, cidadania, vulnerabilidade, altruísmo,
compaixão, preocupação ecológica, dignidade da mulher,
educação infantil. Acredito que o cristianismo verdadeiro
deveria preocupar-se muito mais com o jeito como as
pessoas guiam seus automóveis do que em dar-lhes
“garantias” de que irão para o céu.
Não, não pense que desconsidero o céu; essa é nossa
esperança eterna, nossa maior riqueza. Contudo, eu
realmente creio que o destino eterno de cada indivíduo foi
garantido pelo sacrifício de Cristo na cruz e que, não
precisando mais nos preocupar com esse importantíssimo
assunto, podemos nos concentrar nos demais. Alguns são,
sim, menos importantes diante da eternidade, mas fazem
uma enorme diferença para a felicidade das mulheres,
maridos e filhos.
Minha sugestão é relermos os Evangelhos; procuremos as
mensagens em que Jesus ensinou a ganharmos a vida no
presente. Lembra daquela passagem de Mateus 16.26?
“Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e
perder a sua alma? Ou, o que o homem poderá dar em troca
de sua alma?”. Antigamente eu entendia esse texto como
uma advertência para que não me tornasse um grande
conquistador ou um milionário e acabar no inferno. Hoje eu
o leio numa dimensão existencial. Acredito que Jesus
advertia seus discípulos para que não tentassem nenhuma
conquista, se no processo perdessem a alma existencial-
mente.
Para Jesus não adianta querer ter tudo (inclusive o céu) se
nessa busca nos tornarmos amargos, calculistas e torpes.

82
salvação

As religiões, o cristianismo inclusive, já garantiu que muita


gente inclemente, perversa e promotora da morte iria para o
céu.
Eu não peço mais para as pessoas levantarem a mão,
concordando com a minha pregação; como também não
lhes asseguro que, daquela hora em diante, receberão um
selo que lhes garantirá o céu.
Hoje convido as pessoas a começarem uma peregrinação.
Cientes do amor de Deus, todos podem tomar o caminho
proposto por Jesus de Nazaré.
Nesta trilha, na companhia do Espírito Santo, todos se
tornarão novas criaturas.

83
11 dúvida

“Fico abismado com a


insinceridade de quem
jura não ter dúvida
alguma”.
dúvida

Fico abismado com a insinceridade de quem jura não ter


dúvida alguma. Senti um alívio quando espalharam que
Madre Teresa de Calcutá conviveu com várias suspeitas
1
sobre Deus e sobre o mundo espiritual.
Que privilégio perceber-me seu companheiro! Eu também
hesito quando encaro o mistério da Divindade, os porquês
do sofrimento humano, a morte, e tantas outras questões.
Aliás, sem pretensões vaidosas, Madre Teresa e eu não
estamos sozinhos em nossas inquietações.
Davi balançou em diversas ocasiões. Quando assediado
pela dor, clamou: “Senhor, por que estás tão longe? Por que
te escondes em tempos de angústia?” (Salmos 10.1).
Isaías titubeou por não conseguir entender o jeito como
Deus tratava seu povo: “Senhor, por que nos fazes andar
longe dos teus caminhos e endureces o nosso coração para
não termos temor de ti? Volta, por amor dos teus servos, por
amor das tribos que são a tua herança!" (Isaías 63.17).
Elias foi o mais ousado profeta da Bíblia hebraica.
Desgastado pelo confronto com os profetas de Baal,
escondeu-se numa caverna e passou a vitimar-se: “Tenho
sido muito zeloso pelo SENHOR, o Deus dos Exércitos. Os
israelitas rejeitaram a tua aliança, quebraram os teus
altares, e mataram os teus profetas à espada. Sou o único
que sobrou, e agora também estão procurando matar-me”
(I Reis 19.10).
João Batista balançou sobre sua própria mensagem,
mesmo depois de ter anunciado que Jesus era “O cordeiro
de Deus”: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos
esperar algum outro?” (Lucas 7.20).

87
dúvida

Depois da ressurreição, os discípulos conviveram com


Jesus por quarenta dias. Aparentemente, esse tempo não
bastou para dar-lhes uma fé inabalável. Na hora
derradeira, antes de Jesus subir ao céu, eles ainda não
estavam persuadidos de sua mensagem e de seu projeto.
“Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram”
(Mateus 28.17).
Cismar, portanto, não é estranho aos crentes. Madre
Teresa não sofre nenhum descrédito por expressar sua
fragilidade espiritual, ao contrário, suas inquietações só lhe
engrandecem.
Madre Teresa foi uma mulher que lidou com a indigência
mais absurda, com a miséria mais absoluta. Como fitar
seres humanos numa situação de extrema penúria e não
se abalar?
A aflição humana continua um mistério sem resposta. Por
que Deus permite que em Calcutá pessoas vivam em
condições mais degradantes do que os porcos de uma
favela? Caso Madre Teresa tratasse sua missão
profissionalmente, bastaria responder com um chavão
fundamentalista.
Madre Teresa era frágil. Embora fosse uma batalhadora
incansável, totalmente dedicada ao que fazia, agoniava-se
como qualquer mortal; jamais tentou passar por imbatível.
É triste constatar que o mundo atual tenta fabricar super-
heróis, pretensos semideuses, todos falsos e forjados pela
cultura do narcisismo.
Madre Teresa foi apenas uma mulher que persistiu em sua
obstinação de servir a Deus, mesmo assaltada por perple-
xidades.
88
dúvida

Isso só a torna mais digna. Caso trabalhasse movida por


certezas, sua determinação seria menos honrosa.
Ao continuar debilitada pela dúvida, ela alcançou a bem-
aventurança que só pertece aos sinceros. Jesus ensinou a
Tomé que quem vê e crê é feliz, mas completou: “muito
mais ditosos são os que não vêem e crêem” (João 20.29).
Madre Teresa creu sem ver.
Graças a Deus porque, mesmo depois de morta, o
testemunho dessa mulher ainda fala.
Ninguém precisa esconder suas inquietações, somos
amados de Deus mesmo com falta de fé - “Senhor, ajuda-
me em minha incredulidade” (Marcos 9.24).

89
12 oração

“Quem desejar o divino


ofício de orar deve
fazer a sua própria
peregrinação. Eu só
posso dizer que a trilha
será íngreme, às vezes
confusa, solitária, mas
sempre
recompensadora”.
oração

Orar poderia ser definido como arte? A arte de convencer?


Seria, então, a mais nobre de todas as artes, pois persuade
a Deus. Será que uma reza tem força para alterar o curso
previamente definido pela Providência? Mas, como o
desfiar de um rosário pode mudar o curso da história?
Morro de medo de começar a fazer esse tipo de pergunta;
parece um fio solto que a gente vai puxando, puxando, até
que não sobra mais nada de uma blusa. Na verdade,
sabemos quase nada sobre as ladainhas, sobre as
intercessões, sobre os rogos, sobre as súplicas, sobre as
petições, sobre as correntes e as campanhas de oração.
Além de pastor e conferencista, sinto-me responsável,
como pai e avô, de ensinar valores espirituais
(transcendentais) à minha prole.
Os tempos são difíceis, nunca se trivializou tanto o assunto
da oração nessas "igrejas-empresas" que propagandeiam
suas “orações fortes”; nunca tantos charlatões apregoaram
a capacidade de saber como “mover o braço de Deus".
Mesmo assim, teimo em crer. Até contra as racionalizações
positivistas, os ceticismos humanistas e as dúvidas cruéis,
uma voz insiste em gritar dentro de meu peito: Creia, é
possível falar com Deus!
Confesso que sou um noviço nos protocolos de frequentar
o Santo dos Santos. Minhas certezas são frágeis e
carregadas de imprecisão. Identifico-me com os primeiros
seguidores de Jesus de Nazaré e repito: “Senhor, ensina-
me a orar”.
Não ofereço respostas, não indico caminhos rumo ao trono
de Deus.

93
oração

Continuo como um daqueles discípulos, mais perdido do


que centrado. Nas vezes em que precisei falar com o Todo-
Poderoso, fui um fiasco. Consigo despejar palavras, gritar
ou cantar louvores, manter minhas preces dentro da
ortodoxia protestante, mas continuo inapto, sem grandes
tratados de como me dirigir a Deus.
Contudo, às apalpadelas, faço minhas invocações ao
Senhor, e nutro algumas intuições como balizas que me
orientam nos exercícios espirituais.
Procuro fazer da graça o chão da minha devocional. Muito
de minha adoração consiste em procurar escapar da
armadilha de repetir esta palavra (graça) como um simples
conceito teológico.
A graça precisa manter-se como minha premissa
relacional: Deus é sempre simpático a mim. Em todo culto,
procuro trazer à lembrança que antes de qualquer
manifestação piedosa, de arrependimentos com oblações,
de flagelações e de rasgar de vestes, Deus me quer bem.

Sua graça me poupa de implorar-lhe que troque de


semblante; Deus não é antipático. Minha incapacidade de
cumprir a lei não provoca sua ira. Não existe nada em
minha conduta anterior que predisponha Deus contra mim.
A graça me ajuda a dialogar com o Eterno sem depender
da minha pureza.
Procuro manter em mente que Jesus de Nazaré revelou
Deus como um Pai bom e misericordioso. Não oro como se
Ele fosse uma energia ou um princípio metafísico. Porque
procuro perceber que Deus me trata como um pai, não
preciso bater o pé para ganhar o seu favor.

94
oração

As circunstâncias da vida, com suas contingências,


incidentes, sofrimentos, desditas, fadigas, fascínios,
benevolências e alegrias, não possuem uma conexão
direta com o desprezo ou amor de Deus. Ele não prometeu
redomas; não sugeriu que vivêssemos sem percalços.
Há muito parei de pedir livramentos divinos.
Pedir que Deus não deixe que o pneu do meu carro fure ou
que meu neto não fira a boca ou que eu jamais tenha
enxaqueca, não faz parte, por assim dizer, do jeito como
Deus decidiu (soberanamente) lidar com suas filhas e
filhos. Ele não criou um mundo onde as pessoas estejam
isentas de percalços e não atrelou bênçãos à
impecabilidade (faz o sol e a chuva virem sobre todos, bons
e maus).1
O casuísmo da Escritura não pode criar a expectativa de
que é possível viver sem tribulação.
Procuro lembrar a mim mesmo que pedir favores especiais
para Deus representaria uma indignidade existencial. Por
que eu deveria acreditar que, servindo-O, terei maiores
benefícios neste mundo? Deus não odeia as balanças
2
enganosas? Por que então abraçar a ilusão de que Deus
“faz passar no vestibular”, “ajuda os jogadores de futebol
crentes marcarem mais gols”, “resolve causas na justiça”
ou “traz a pessoa amada"?
Não seria muito mais nobre se os crentes abrissem mão
das possíveis regalias por ter um relacionamento com
Deus? Não seria este, precisamente, o mandato cristão:
irmanar-se ao drama de milhões que sofrem e morrem sem
salvamentos espetaculares? Cristianismo não aponta para
o exemplo Jesus de Nazaré, que morreu numa cruz?

95
oração

Quem desejar o divino ofício de orar deve fazer a sua


própria peregrinação. Eu só posso dizer que a trilha será
íngreme, às vezes confusa, solitária, mas sempre
recompensadora.
Minhas preces, muitas vezes, são sem palavras. Em
absoluto silêncio, contemplo o “misterium tremendum”
que fica para muito além dos contornos da razão. Procuro
absorver os vazios infinitos; intuir as verdades inapren-
díveis; familiarizar-me com as escuridões cósmicas;
envolver-me de nostalgias doloridas; conviver com os
paradoxos incontornáveis. Minhas preces se parecem com
meditações quando regurgito textos sagrados, imagens e
símbolos do fascínio eterno.
Meus solilóquios também servem de incenso. Converso
com minha alma como uma disciplina espiritual. Falo
sozinho. Já me flagrei perguntando: Por que estás abatida,
ó minha alma?
Não, não sou nenhum prior no sacramento da oração.
Posso ensinar pouca coisa. Percebo, porém, que Deus não
escuta quando se fala muito. Entendo, também, que todo
aquele que conhece o amor do Pai pára de suplicar por
bens materiais, como comida ou vestido.
Compreendo que existe uma dimensão secreta da oração,
um lugar onde só entra uma pessoa por vez e que jamais
poderia ser revelado publicamente.
Quando eu me tranco nele, converso com Deus sobre
realidades que guardo debaixo de sete chaves.

96
13 fé

“Fé já não significa para


mim, uma força
projetada na direção de
Deus que o induz a agir”.

Rogério era um evangelista que pregava em praça pública.


Após o sermão, ele prometia curar todos os presentes,
impondo as mãos sobre os que fossem à frente.
Na noite em que o ajudei, oitenta pessoas, aproxi-
madamente, responderam ao apelo. Entre elas, uma
senhora carregava um menino com graves disfuncio-
nalidades motoras; percebia-se que nascera com alguma
Síndrome genética rara.
Como pastor pentecostal, compreensivelmente, desejava
que milagres acontecessem. Quando vi os rostos ávidos
por um socorro celestial, percebi que eu também seria
capaz de ficar a noite inteira de joelhos clamando aos céus,
se necessário, para que todos ali fossem curados. E não
desgrudei os olhos, um minuto sequer, daquele menino nos
braços de sua mãe.
Mas nada aconteceu! As nuvens que escondiam a lua
permaneceram imóveis e sequer um fiapo de luz nos
alcançou.
O menino, como um boneco de pano sem músculos,
continuava flácido no colo materno. O culto acabou e, com
certeza, os dois voltaram tristes para o barraco onde
viviam.
Depois que o povo foi embora, continuei ao lado de
Rogério, mas tive pena de vê-lo suado de gritar feito um
náufrago desesperado pela indiferença do navio que
passa.
Ele me olhou tristemente, de soslaio. Talvez não quisesse
encarar-me, pois sabia o que eu pensava sobre o que
acabara de acontecer.

99

Aquela noite marcou-me a ferro. Fiquei devastado. Não


consegui sequer indagar onde errávamos. Também, não
achei certo confrontar a sinceridade do Rogério, que dava
seus primeiros passos como evangelista. Eu não tinha o
direito de azedar ainda mais seu insucesso em produzir
milagres para a glória de Deus - não lhe faltava integridade.
Passados vinte e cinco anos daquela noite, nunca
conversei com ninguém sobre os traumas provocados pela
nossa incapacidade de produzir aquele único milagre, que
poderia ter mudado a miséria de uma criança.
Não sei se Rogério ainda prega em praças. Eu, porém,
continuo cuidando de uma igreja. Entre os membros de
nossa comunidade temos crianças portadoras de
síndromes igualmente complicadas, amputados, idosos
com doenças crônicas, surdos (nossos cultos já são
traduzidos para LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais) e
deficientes visuais.
Como não consigo varrer para debaixo dos tapetes
misteriosos da teologia, as respostas que preciso dar a mim
mesmo, iniciei uma nova jornada para entender o
significado da fé.
Fé já não significa, para mim, uma força projetada na
direção de Deus que o induz a agir. Não entendo que Deus
esteja inerte, esperando pela habilidade das mulheres e
dos homens de mexerem com seu braço. Inclusive, parei
de dizer que fé move o braço de Deus.
Fé já não significa, para mim, uma senha que escancara as
janelas das bênçãos celestiais. Rejeito a noção de que
Deus oculte suas maravilhas ou dificulte nosso acesso a
elas.

100

Não precisamos nos comportar como crianças que caçam


ovos de chocolate na Páscoa. Aliás, considero a expressão
“conquistar uma graça” uma contradição tão horrorosa, que
me arrepio todas as vezes que a ouço.
Para mim, fé significa acreditar que os valores, os
princípios e as virtudes do Evangelho bastam para que eu
enfrente a vida com todas as suas vicissitudes. Vejo que
personagens bíblicos não arredondaram a vida, não se
anteciparam aos acidentes futuros e nem se blindaram
contra as maldades humanas. Igual a eles também não
quero viver em redomas protegidas.
Fé significa, para mim, que o Espírito de Cristo dá gana de
olhar para história com coragem, sem precisar apelar para
o mágico, para o feitiço e para o sobrenatural. Por causa da
fé não pedimos para ser poupados da dor.
A fé bíblica convoca que andemos nas pegadas de Jesus e
não encolhamos diante do patrulhamento religioso, da
perseguição e da morte, impostos pelos regimes
imperialistas.
Fé significa, para mim, a possibilidade de rebelião contra o
“status quo” porque ele não reflete a vontade de Deus. O
sofrimento humano não faz parte de uma Providência
remota, as catástrofes não são dores de parto que
prenunciam o alvorecer de um futuro glorioso.
O colonialismo, que condenou centenas de milhões de
negros a horrores indescritíveis, as guerras inúteis que
dizimaram jovens ingênuos e os horrores da prostituição
infantil, não foram planejados por Deus. Convivemos com
um sistema em aberta rebelião contra o Criador e contra o
qual devemos nos insurgir.

101

Existe uma fé profética, visceral, que me convoca a gritar


NÃO! Ela me deixa irrequieto. Minhas zonas de conforto
acenam na minha própria cara, pois vivo atrelado ao
sistema pequeno-burguês que legitima a deterioração
ambiental; calo diante do capitalismo neoliberal que produz
excluídos; acovardo-me diante das ameaças de ser um
exilado social.
Já que abandonei o paradigma de uma fé funcional,
utilitária, de causa e efeito, quero, tão somente, ter peito
para aceitar o risco de viver a liberdade prometida por
Cristo e de almejar uma única segurança: saber-me
gratuitamente amado por Deus.

102

Perdi a fé.
Sem qualquer constrangimento, sem medo, saio do
armário e confesso publicamente: Perdi a minha fé. Estou
consciente que hei de constar no fichário condenatório do
Santo Ofício. Corro o risco de ser torturado no garrote
evangélico. Receberei inúmeras advertências. Minha caixa
postal vai se entupir com mensagens de gente
decepcionada. Serei aconselhado a não destruir o meu
“futuro promissor”; vão lembrar-me do fogo do inferno,
reservado para quem retrocede. Mas não há muito o que
fazer, não planejei perder a fé.
Caminhei pelos porões escuros da humanidade. Conversei
com pessoas carbonizadas no fogo do sofrimento. Vi
crianças subnutridas, sem força sequer de sugar o peito
mirrado da mãe. Li uma tonelada de tratados teológicos
que tentavam explicar o sofrimento universal. Ouvi um
sem-número de sermões sobre a condição humana. Temi
os castigos eternos e aprendi sobre os meios que
conduzem ao perdão divino. Entretanto, pouco a pouco, vi-
me desgostoso com explanações, que julgava simplórias -
a princípio, apenas antipatias. Depois, passei a rejeitar o
que as pessoas chamavam de fé. Por fim, conscientizei-me
que simplesmente não era mais condômino do edifício
onde residem muitos religiosos.
Perdi a fé em um Deus que precisa de pilha para mover o
braço. Deixei de acreditar que a “Duracell” que faz Deus
“funcionar” seja a fé. No passado, eu procurei mostrar à
Deus toda a minha sinceridade. Eu acreditei, piamente,
que, caso conseguisse acabar com a dúvida ou hesitação,
seria testemunha ocular de grandes prodígios. Jejuei para
mortificar a mente; eu precisava calar estas minhas
inquietações.
103

Certa vez, ao lado do leito de morte de um amigo, chorei


desesperadamente; não pelo amigo que agonizava, mas
por mim. Eu sabia que, por mais que tentasse, nunca
conseguiria demonstrar uma fé inabalável. Meu amigo
morreu e eu carreguei por muito tempo, a culpa dele não ter
sido curado.
Perdi a fé em um Deus que recusa atender qualquer
petição enquanto não houver santidade total. Diziam-me
que Deus só ouve os “vasos” puros. Um pensamento furtivo
era suficiente para eu me sentir um lixo humano. Imaginava
os difíceis graus de devoção e pureza necessários para eu
poder “reivindicar” uma bênção. Vi que jamais teria acesso
à bondade divina porque as minhas penitências nunca
foram suficientes. Como nunca fui devidamente alvo,
minha imperfeição me condenava; um pastor sem
milagres, portanto, desqualificado.
Perdi a fé em um Deus que só opera nas micro-realidades.
Eu acreditava que Deus intervinha pontualmente, isto é,
focado e restrito às complicações e necessidades de
pessoas. Mas eu não me sentia inquieto. Sequer
perguntava: por que esta mesma fé intervencionista não
serve para resolver, por milagre, as desgraças que assolam
nações e continentes? Ora, se Deus abre uma porta de
emprego para um indivíduo, porque não reverte com uma
simples ordem, a crise econômica que desemprega
milhões?
Perdi a fé em um Deus discriminatório. Já não consigo
acreditar em um Deus que pinça alguns para premiar com
milagre, mas deixa muitos outros a ver navios. Não faz
sentido aplicar a lógica dos bingos e das loterias nos
espaços religiosos - para cada sortudoque recebe a
benção, sobram milhões de azarados.
104

Se há razões misteriosas para Deus agir assim, e ninguém


pode questionar; se ele trabalha no escuro e a vida é um
tapete trançado que só faz sentido do lado da eternidade,
então só resta à humanidade seguir os trilhos do destino.
Fé não passa de uma submissão à bitola do que já foi
providencialmente traçado por Deus
Perdi a fé, mas não sou incrédulo.
Ganhei uma nova fé que celebra a imanência de Deus.
Agora percebo que Deus não está longe, mas vive em nós e
entre nós. Seu nome é Emanuel, o Deus conosco. Ele está
mais próximo que nosso hálito, mais entranhado que nossa
medula e mais íntimo que nossos pensamentos. E fez o seu
tabernáculo no coração dos homens e das mulheres.
Ganhei uma fé que bendiz a compreensibilidade de Deus.
Ele não mede nossa inadequação com critérios tão
rigorosos que precisaríamos nos transformar em anjos.
Como pai, Deus não leva em conta as nossas
transgressões, pois se lembra que somos pó. Deus não
rejeita, mas perdoa. Sua pedagogia é libertadora.
Ganhei uma fé que não espera por intervenções divinas.
Minha fé virou uma aposta: Creio que os valores do Reino
são suficientes para que eu atravesse a vida sem perder a
alma. Minha fé possui uma convicção: Jesus é o modelo
digno de ser imitado. Estou certo que seguindo as suas
pegadas serei justo, solidário e realizado.
Ganhei uma fé que não tem a expectativa de favoritismo.
Busco a mesma atitude de Moisés que, diante da
possibilidade do povo não entrar na terra prometida, disse:
“Se eles não entrarem, risca o também o meu nome do livro
da vida”.

105

Antes de ser brindado por qualquer dádiva, espero que as


crianças famintas do Congo, Darfur e sertão cearense,
tenham água, comida, roupa, educação e muitos
brinquedos.
Estou feliz pela fé que perdi, mas esfuziante com a nova fé
que ganhei.

106
14 bíblia

“A singularidade da
Bíblia vem da
encarnação de Jesus.
O filho de Maria fez
Deus conhecido da
humanidade”.
bíblia

Aconteceu num feriado. O sol já caminhava na metade do


seu percurso quando preguiçosamente resolvi sair da
cama. Sem coragem de tomar um ônibus para ir à praia,
optei ficar em casa e ler. Fui até a estante, sempre
abarrotada e sempre empoeirada, querendo um livro que
me servisse de companhia naquele dia, que eu supunha
sem importância. A Bíblia de capa preta se sobressaiu;
parecia pedir-me que a escolhesse.

Eu já tentara ler a Bíblia, mas nunca conseguira atravessar


seu quarto livro, Números. Aquelas estatísticas intermi-
náveis me faziam cochilar. Hesitei, mas parecia que duas
mãos se estendiam do dorso, suplicando que eu a pegasse.
Aquiesci e elegi o tomo negro. Adolescente, eu não
cogitava grandes mudanças de vida. Ledo engano: depois
daquele dia jamais seria o mesmo.

Deitei-me e comecei a folheá-la; lembrei que meus amigos


crentes haviam me aconselhado a ler o Novo Testamento.
Abri em Mateus e em poucos minutos cheguei ao Sermão
do Monte. Cada versículo alongava-se das páginas como
um punhal, lacerando minha alma. As verdades proferidas
pelos lábios de Jesus me encurralaram.

Mateus 7.13-14 levou-me a nocaute: “Entrem pela porta


estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho que leva à
perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é
estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São
poucos os que a encontram”. Assim, no começo da tarde,
com a porta trancada, ajoelhado e resoluto, assumi um
compromisso de seguir a Jesus Cristo por essa vereda
estreita.
109
bíblia

Desde aqueles verdes anos procurei referenciar minha vida


neste livro magnífico. Tentei estudá-la; meditei em seus
versículos em minhas horas tranquilas; fiz palestras e
sermões em suas verdades. Porém, sinto que ainda não
consegui chegar às margens da profundidade do
conhecimento e sabedoria da Palavra de Deus. Quanto
mais me detenho em seus ensinos, maior é meu espanto e
meu maravilhamento.

A Bíblia é uma coletânea de livros com a história de


pessoas, famílias, nações e, sobretudo, a linhagem do
Messias. Fascinam-me os relatos milenares do compor-
tamento humano nas crônicas, a sabedoria popular dos
provérbios, a indignação dos profetas, as orações dos
Salmos e a sistematização de verdades eternas das
epístolas.

Alguns detalhes da Bíblia me deixam admirado. Ela nunca


foi homogeneizada pelo poder eclesiástico. As histórias de
seus heróis não foram retocadas. Assim, sabe-se que o
patriarca Abraão mentiu e agiu impensadamente em
diversas ocasiões; que Moisés, o homem mais manso que
o mundo conheceu, irou-se; que Davi, o mais amado rei em
Israel, adulterou e ainda tramou o assassinato de um
soldado leal. A Bíblia não mascara que a igreja primitiva
teve de aprender a conviver com pontos de vista distintos,
Pedro e Paulo travaram debates ríspidos sobre usos e
costumes; as igrejas plantadas no primeiro esforço
missionário tinham idiossincrasias seríssimas e a igreja de
Corinto chegou a vulgarizar o sacramento da Eucaristia. Ao
contrário de outros livros sagrados, a Bíblia não alega ter
sido ditada ou psicografada.
110
bíblia

Em 2 Pedro 1.21, o apóstolo reconhece que sua origem é


divina, mas respeita a singularidade dos autores: “Pois
jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas
homens santos falaram da parte de Deus, impelidos pelo
Espírito Santo”. O conceito teológico para sua “inspiração”
significa que Deus respeitou a liberdade e as ambigüi-
dades humanas, permitindo até possíveis contradições
dos relatos históricos. Diante de circunstâncias diversas,
os autores demonstraram que a revelação das verdades
eternas podia se dar dentro de contextos geográficos,
sociais e culturais distintos.

A maior grandeza da Bíblia, contudo, vem da encarnação.


A chegada do Messias, seu breve tempo de vida na terra,
seu curtíssimo ministério fazendo o bem e anunciando a
chegada do reino de Deus, sua morte e ressurreição,
constituem-se na mais alvissareira notícia já impressa. Até
Jesus Cristo vir, Deus resumia-se a uma especulação
filosófica ou religiosa. Os gregos afirmavam que, assim
como um pássaro não pode voar até o infinito, os seres
humanos, mortais, jamais poderiam alcançar a divindade
eterna. No cristianismo, Deus fez o caminho inverso:
“Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai,
cheio de graça e de verdade” (João 1.14).

A singularidade da Bíblia vem da encarnação de Jesus. O


filho de Maria fez Deus conhecido da humanidade. Paulo
ressalta essa verdade em sua carta aos colossenses: “Pois
em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da
divindade.” (Cl 2.9).

111
bíblia

Em João 14.8-9, Felipe pediu a Jesus o que toda a


humanidade mais deseja; a saber, uma revelação
completa de Deus: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos
basta'. Jesus respondeu: 'Você não me conhece, Filipe,
mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto
tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer:
Mostra-nos o Pai'?”

Todas as vezes que ouço a Bíblia sendo exposta, sei que


suas verdades brilharão como feixes de luz, guiando o
viajante pelas tortuosas estradas da vida, pois o Salmo
119.105 afirma: “A tua palavra é lâmpada que ilumina os
meus passos e luz que clareia o meu caminho”. Quando
encontro alguém arqueado de culpa, gosto de recomendar
o Evangelho de João. Qualquer um pode se colocar no
diálogo entre Jesus e uma mulher prestes a ser
apedrejada: “Mulher, onde estão eles [os seus
acusadores]? Ninguém a condenou? Ninguém, Senhor”,
disse ela. Declarou Jesus: “Eu também não a condeno.
Agora vá e abandone sua vida de pecado”.(João 8.10-11).

Passados milênios desde que a Bíblia Sagrada foi escrita,


estudiosos se revezam tentando analisá-la, mas ela
permanece um mistério. E diante do mistério reconhece-se
a limitação humana. Razão e método não abrangem todo o
“conselho de Deus”. Por isso, Paulo afirmou em Romanos
11.33-36: “Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do
conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus
juízos e inescrutáveis os seus caminhos! Quem conheceu
a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Quem
primeiro lhe deu, para que ele o recompense? Pois dele,
por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a Glória
para sempre! Amém”.
112
bíblia

Neste mundo sedento de esperança, a Bíblia pode tornar-


se um manancial de vida, desde que volte a ser o livro de
cabeceira que alimenta a vida devocional e o alicerce dos
princípios que nortearão as decisões do dia-a-dia.

113
15 culpa

“Hoje não acredito


que precise ser salvo
de mim mesmo. Pelo
contrário, minha
salvação acontece
quando aprendo a
conviver com o meu
interior”.
culpa
Culpa é um dos ingredientes mais nocivos da religião.
Aliás, muita falação eclesiástica se esgota quando se
desmascara a instrumentalização da culpa. Os auditórios
religiosos lotam porque as pessoas são imperfeitas,
carregadas de mazelas, incapazes de lidar com as
sequelas da adolescência. É preciso ser corrigido,
aperfeiçoado, purgado. Mas, inadequados diante de uma
divindade absolutamente correta e exigente, todos se
sentem devedores e ninguém tem o direito de esboçar
qualquer defesa.
Recordo-me que nas brigas com o Renato Jorge, meu
irmão um ano mais novo, eu usava uma arma infalível para
vencê-lo: “Vou contar para o papai”, dizia. Para depois
acrescentar: “Você pensa que eu não sei de tudo?”. Na
verdade, não sabia de nada. Mas meu pobre irmão sempre
tinha culpa no cartório. Rapidamente se rendia diante das
minhas ameaças.
O senso comum dos religiosos é que todos estão
degradados porque são inerentemente maus, promíscuos
e ímpios. Daí o apelo recorrente dos púlpitos de que
precisamos ser salvos de nós mesmos. Por toda a vida,
aceitei esta lógica e acabei tornando-me o meu maior
inimigo. Detestei-me por achar-me uma fonte perene de
ruindade. Eu me fustigava esperando não apanhar de
Deus.
Acreditava que antecipando-me às penas, conseguiria
sensibilizá-lo. Imaginava que o Todo-Misericordioso
contemplaria a minha autoflagelação e me trataria com
leniência diante dos vergões.
Hoje não acredito que precise ser salvo de mim mesmo.
Pelo contrário, minha salvação acontece quando aprendo
a conviver com o meu interior. Quando faço as pazes com
meu ser.
117
culpa

Quando me aproximo de quem está mais próximo de mim:


eu.
Minhas pulsões de vida e de morte estão para além do bem
e do mal. Não as considero pecado ou virtude, apenas
forças poderosíssimas que compõem a minha huma-
nidade. Dentro de mim habitam sombras e luzes. Não
preciso exorcizar as sombras, demonizando-as, agora
reconheço-as como partes de minha constituição.
Meus tropeções foram necessários na construção de
minha história. Todo o processo pedagógico precisa deixar
espaço para que se desafine, pise na bola, dê trombada,
erre. Sem odiar, não se aprende o valor da doçura; sem
invejar, não se aprende o valor da reverência; sem cobiçar,
não se aprende o valor do contentamento. Ódio, inveja e
cobiça, portanto, também me moldaram.
Não me detesto e não suspeito do meu corpo. Não me sinto
podre. Contudo, não sou ingênuo. Reconheço que de
dentro do meu coração brotam águas amargas. Minhas
uvas são azedas. Sei que tenho um potencial destrutivo de
mil bombas atômicas. Carrego ressentimentos. Meu
espírito se encanta com o que não presta.
Lido com essas idiossincrasias, dando outro sentido para
responsabilidade. Responsabilidade passou a ser definida
como iniciativa e capacidade de responder às demandas
éticas da vida. Pretendo tornar-me responsável não por
culpa ou medo, mas por reverência à vida, ao meu próximo
e à mim. Para ser íntegro, não preciso amputar narcos do
coração e vilipendiar-me como um bandido ordinário.
Para crescer, posso me valer, inclusive, de meu passado
suspeitosíssimo.

118
culpa

Depois de noites insones, depois de me angústiar com


tantas falhas, afirmo: as minhas maiores decepções e mais
profundos fracassos me empurraram para frente.
Com eles, ganhei coragem de encarar-me.
Todo novo degrau de maturidade é uma travessia. Toda
mudança, morte e ressurreição. Nasci de novo desde que
alcei bandeira branca na guerra que travava comigo
mesmo. Hoje aceito que se Deus quis tabernacular em
mim, não tenho o direito de implodir-me.

119
16 liberdade

“A liberdade humana
só é possível porque
Deus concede espaço.
Eis a maior de todas as
manifestações da
Graça”.
liberdade

Na teologia, o principal enigma a ser decifrado, tem a ver


com a relação entre Deus, felicidade e liberdade.
Os questionamentos da teodicéia (definida como conjunto
de doutrinas que procuram justificar a bondade divina,
contra os argumentos da existência do mal no mundo)
principiam qualquer debate. Por que sofremos? Por que
Deus, sendo simultaneamente bom e onipotente, permite
tanta maldade? Não poderia o Todo-Poderoso ter criado
um mundo isento de dor?
Para piorar a angústia humana, o sofrimento não só existe,
como é percebido. Quando animais irracionais sofrem, a
dor não é antecipada, não é analisada e não lhes causa
ansiedade. Homens e mulheres, porém, padecem para
além da dor física.
A dor humana é fonte inesgotável de questionamento, tanto
pela sua concretude (dói mesmo) como pela sua
subjetividade (existem dores que não sabemos explicar,
como a saudade).
Todos sofrem e se angustiam ao mesmo tempo – corpo e
mente padecem. Portanto, não bastam as aspirinas, as
morfinas, os ansiolíticos. Também não adianta questionar
se é possível um mundo sem dor.
O sofrimento é universal, esmurra nossa cara todos os
dias. Mesmo quando o dente não dói e o rim não provoca
urros, existe a percepção de que agora mesmo, em algum
lugar, alguém está chorando.
Os gregos enxergavam o sofrimento como uma tragédia,
na qual os seres humanos eram reduzidos a fantoches.

123
liberdade

A história seguia por trilhos que eles chamavam de destino


e ninguém conseguia se libertar dessa cadeia inexorável. O
fatalismo grego provocava passividade (estoicismo),
negação (cinismo), permissividade (hedonismo) ou um
salto transcendental (platonismo). O mal, contudo,
permanecia absoluto, já que nada e ninguém, poderiam
anulá-lo. Nesse sentido, as forças que governavam o
mundo permaneciam essencialmente cegas.
O nó da filosofia, e, posteriormente, da teologia, se
expressava nos paradoxos: “Se existe um Deus oni-
potente, ele não pode eliminar o mal e o sofrimento? Se
existe um Deus bom, por que ele não deseja acabar com a
dor? Se pode e não faz, não é bondoso. Se quer e não faz,
não é onipontente. Se ele não for onipotente, não é Deus.
Se não for bondoso, não merece ser servido”.
Reconheço minha limitação. Não tenho a pretensão de dar
uma resposta definitiva que desalinhe o novelo que intrigou
Heráclito, Sócrates, Agostinho, Tomás de Aquino, João
Calvino, Soren Kierkegaard e tantos outros.
Meu conhecimento é bem intuitivo e minha contribuição,
mínima. Mas como bom cearense, vou ser atrevido.
Para começar a arranhar a superfície do assunto, falemos
de liberdade. Tanto divina como humana. Até que ponto
existe liberdade no universo? No raciocínio grego, Deus
era preso a si mesmo. Compreendido a partir de conceitos
absolutos (convém lembrar que no universo semítico não
se falava em absolutos), o deus grego era impassivo, já que
nada poderia ser tão forte que o afetasse; era inerte, porque
o perfeito jamais poderia mudar.

124
liberdade

Os gregos restringiam, portanto, a liberdade a uma mera


inserção harmônica do indivíduo na polis e da polis no
cosmos divino. As bitolas do destino, ou do cosmos, é que
conduziam cada indivíduo, cada sociedade e toda a
história.
O ser humano não tinha como reverter, adiar ou antecipar o
que estivesse determinado pelas engrenagens do
fatalismo. Sua liberdade era bem pequena. Ele podia até
fazer micro-ações que lhe dariam um pouco de satisfação,
mas jamais concretizar macro-ações, aquelas capazes de
alterar o que “já estava escrito e determinado”.
A revelação judaico-cristã nunca concordou com essa
compreensão grega do “motor imóvel” (Deus como um
motor que põe tudo em movimento, mas Ele mesmo, por
nada é movido). Nem aceitava que o futuro não pudesse
ser alterado por estar determinado à priori.
Se os gregos não acreditavam na possibilidade de alterar o
curso da história, os profetas judeus, e mais tarde os
evangelistas cristãos, convocaram o povo a mudar o futuro.
Aceito o argumento de José Comblin de que a compre-
ensão da liberdade não evolui porque se manteve restrista
ao conceito grego. A propalada democracia ateniense
“somente valia para uma minoria de privilegiados”; a rigor,
só havia aristocracia na Grega. Poucos, muito poucos,
conheciam a liberdade. Portanto, proponho que o debate
sobre o sofrimento humano considere a liberdade dentro do
campo de compreensão judaica. Deus é livre e os seres
humanos, criados à sua imagem, também possuem
liberdade de arbítrio.

125
liberdade

O esvaziamento de Deus em Cristo, acaba com o paradoxo


da onipotência versus liberdade humana.
Cito Andrés Torres Queiruga:
Talvez não exista mal-entendido mais terrível e mais
urgente a ser erradicado do que aquele que Feuerbach pôs
– ou melhor, detectou – na raiz do ateísmo moderno: o
Deus que em Cristo, “sendo rico, se fez pobre por vós, para
vos enriquecer com sua pobreza” (2Co 8,9), é rechaçado
como o vampiro que vive à custa do empobrecimento do
homem: Para enriquecer a Deus, deve-se empobrecer o
homem; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada.1
A liberdade humana, portanto, só é possível porque Deus
concede espaço.
Eis a maior de todas as manifestações da Graça. Deus se
esvaziou, entrou na hístória "manso e humilde de coração",
voluntariou-se a viver todas as contingências às quais
estamos submetidos, sofreu e morreu como qualquer um.
O ser humano participa da divindade no sentido de que é
feito livre como Deus é livre. Para que a pessoa seja livre,
Deus renuncia seu poder. Entrega o poder ao ser humano –
juntamente com toda a criação – para que ele construa a
sua vida com toda liberdade. Deus se retira para não se
impor. A sua presença no mundo manifesta-se na vida e na
morte de Jesus. Deus fez-se um crucificado para que o ser
humano fosse inteiramente livre. Esta liberdade pode ser
para o bem e para o mal. Não há liberdade se não houver
possibilidade de escolha.2

126
liberdade

Segundo Jürgen Moltmann, a fé cristã “liberta para a


liberdade”. A reação moderna e atéia, segundo ele, foi na
direção oposta:
No mundo moderno, ao contrário, os homens entendem
liberdade como o fato do sujeito dispor livremente de sua
própria vida e de sua propriedade e liberdade coletiva como
o fato de corporações políticas, povos ou estados disporem
soberanamente sobre seus próprios interesses. Aqui a
liberdade é entendida como o ‘direito de autodeterminação’
do indivíduos ou dos povos. Liberdade aqui é domínio
sobre si mesmo.3
A fé cristã, porém, segue outra lógica. Deus sobera-
namente decide valorizar as pessoas como cooperadoras
com Ele na construção da história.
Para a fé cristã a verdadeira liberdade não consiste nem na
compreensão de uma necessidade cósmica ou histórica,
nem no dispor com autonomia sobre si próprio e sobre sua
propriedade, mas sim no ser tocado pela energia da vida
divina e no ter parte nela. Na confiança no Deus do Êxodo e
da Ressurreição o crente experimenta esta força de Deus
que liberta e desperta, e dela se torna participante.4
Portanto, o mal, inerente à liberdade que Deus sobera-
namente decidiu conceder aos humanos, existe simultâneo
ao bem. No espaço dessa contingência, o bem e o mal não
são apenas possíveis, como podem ser potencializados e
anulados pelo arbítrio dos filhos de Deus.
A trama das Escrituras consiste em mostrar que essa
liberdade foi usada perniciosamente, mas que Deus nunca
desistiu da sua criação.

127
Ele revela seu pesar pelo mal; fielmente fornece princípios
e verdades que podem tornar a vida bonita; chama seus
filhos para que se arrependam das suas más escolhas e os
convoca a serem artesãos de uma nova história.

128
17 esperança

“Não aceito o
sofrimento. Ele me
aflige e espero nunca
acostumar-me à sua
ação indiscriminada e
aleatória”.
esperança

Envergonhado, confesso que cheguei ao discernimento


tardio de que nada sei sobre Deus. Aliás, cada dia mais me
desconheço, vejo-me terrivelmente enigmático. Hoje, não
passo de um mapa rasgado; visto, muitas vezes, de
cabeça para baixo. Como uma pessoa que nada sabe
sobre si poderia gabar-se de haver solucionado as
indagações milenares sobre Deus?
Dou-me, entretanto, o direito de questionar e desafiar o que
se acumulou na história, arte, teologia, filosofia e ciência
sobre a vida. Argumento com a vida pelo bem da vida.
Não aceito o sofrimento. Ele me aflige e espero nunca
acostumar-me à sua ação indiscriminada e aleatória.
Resisto afirmar que a morte de inocentes no Iraque, a
epidemia de AIDS na África, a gula do sistema bancário
internacional pelo lucro, a lógica da exploração desen-
freada dos recursos não renováveis do planeta ou que os
ódios religiosos neofundamentalistas sejam da “vontade
de Deus”.
Ambiciono engrossar fileiras com aqueles que lutam para
que vivamos com mais sabedoria. Debaixo da graça,
procuro dar minha parcela de contribuição para o resgate,
cura e construção da vida.
Aceito a premissa de que Deus não está nas perguntas
sobre o sofrimento, mas nas respostas. Dentro de todas as
categorias de pensamento humano não há resposta para a
pergunta: “Por que inocentes sofrem?”. Cabe-nos somente
responder: “Temos que agir”. Como? Lutemos para que
nasça um futuro sem tanta injustiça. Semelhantes a
pescadores numa praia, puxemos a grande rede que trará
melhor distribuição da riqueza mundial.

131
esperança

Ajamos como ganhadores do Prêmio Nobel da Paz,


reconciliando os diferentes, ensinando-os a viver em
ambientes tolerantes e compreensivos. Deus não exigiria
aceitarmos o futuro como inevitável. Nenhuma maldade no
tempo que virá é irreversível.
A cosmovisão judaico-cristã, neste ponto, difere radical-
mente do mundo helênico. Na Grécia, as tragédias foram
escritas com a idéia de que há um destino inexorável
(moira). Em sua literatura, quem tentava sair do padrão dos
deuses, fracassava. Esta maneira de enxergar o futuro não
encontra correspondência na narrativa judaica. Tanto para
o judaísmo como, posteriormente o cristianismo, não
existem fatos inevitáveis.
As profecias bíblicas carregavam um “se” condicional.
Caso o povo corrigisse suas ações, desse as costas ao
mal, e promovesse o bem, o porvir predito deixaria de
acontecer.
O equivalente grego dos profetas eram os oráculos. Os
oráculos previam o futuro, enquanto os profetas advertiam
contra ele. Quando o futuro vaticinado acontecia, o oráculo
estava certo. Se o futuro se concretizava conforme as
previsões do profeta, ele havia falhado em sua missão.
Tanto judaísmo como cristianismo rejeitam a noção de
destino. Ambos aceitam as intervenções misericordiosas
de Deus na história de indivíduos e nações. Males previstos
são anulados em nome do amor. O Deus bíblico revelou-se
mais amoroso do que consistente, sua ira é por pouco
tempo, sua misericórdia para sempre. Por causa d’Ele não
tememos a tragédia, podemos viver com esperança.

132
18 anseios

“Anseio por outra


igreja, pois à
semelhança da
geração que saiu do
Egito, sinto que esta já
não cumprirá o
propósito de Deus”.
anseios

Anseio por outra igreja, pois à semelhança da geração que


saiu do Egito, sinto que esta não cumprirá o propósito de
Deus.
Anseio ver emergir uma nova comunidade cristã sem
ufanismos. Desejo testemunhar os crentes vivendo de
forma singela, procurando vestir os nus, visitando os
enfermos, alimentando os famintos e anunciando aos
pobres que chegou o Reino de Deus.
Espero pelo dia em que as afirmações mercadológicas que
prometem “explosão de milagres” se tornarão ridículas .
Anseio por uma espiritualidade com menos espetáculo.
Desejo que o culto perca o “glamour” de show e que não
precisemos de holofotes com produções mirabolantes para
adorar a Jesus de Nazaré.
O cristianismo não necessita que seus pastores sejam
artistas e seus adoradores, estrelas do entretenimento.
Jesus iniciou seu ministério com pescadores e donas de
casa. Quanto mais bem produzidos comercialmente se
tornarem nossos cultos, mais distantes nos encontraremos
das raízes judaicas de nossa fé.
Anseio por uma espiritualidade comunitária onde nossas
igrejas deixam de ser balcões de serviços religiosos e
voltem a ser espaços de relacionamentos verdadeiros.
Os crentes não podem continuar tratados como clientes e
nem as igrejas como meras provedoras de ajuda espiritual.
A fé cristã não se alicerça em funcionalidade, mas em
intimidade. Pastores e líderes deveriam parar de ensinar
técnicas de como conseguir bênçãos e passar a falar do
amor de Deus.

135
anseios

Anseio por comportamentos menos infantis dos crentes. A


maioria quer se relacionar com Deus com o intuito de levar
vantagem na vida. Rapazes e moças querem ingressar na
universidade através da oração; ambicionam promoções
no emprego reivindicando promessas de que “são cabeças
e não caudas”; acham que anulando maldições,
conquistarão grande sucesso.
Precisamos de cristãos que apelam menos para o favor
divino, e que se disponham como cooperadores de Deus.
Precisamos de menos prece por consolo e mais busca do
Espírito para que nos transformemos em resposta de
oração.
Precisamos de mais gente espelhando a vida de Cristo.
Não basta a repetição de palavras e credos; o mundo
precisa testemunhar nossas boas obras para glorificar o
Pai que está nos céus.
Chega de chavões, frases de efeito e dos lugares comuns.
Não, não precisamos que eruditos tomem conta dos
nossos cultos, basta que pregadores íntegros se derramem
com verdade em seus sermões.
Ouço contínuas reclamações de pessoas que se sentiram
agredidas com reflexões superficiais da Bíblia. Portanto,
que voltem os pregadores que falam com autoridade.
Anseio por uma fé menos idealista. Os evangélicos
precisam parar de dourar a pílula existencial. Cristãos
também sofrem, também são destratados em ambulatórios
pobres e também precisam esperar em longas filas para
matricular seus filhos nas escolas públicas.

136
anseios

Vivemos uma realidade perversa e não podemos prometer,


irresponsavelmente, que os evangélicos serão protegidos
por redomas espirituais.
Anseio por um genuíno avivamento cristão em minha
geração. E que ele venha com novos paradigmas, novos
pressupostos e novas atitudes.

137
19 utopia

“Estou consciente que


minhas propostas não
têm muita chance de se
realizarem, mas vou
mantê-las como um
horizonte utópico e
vocação”.
utopia

Não é preciso muita perspicácia para perceber que o


movimento evangélico ocidental passa por uma grande
crise. As incursões do neo-fundamentalismo da direita
religiosa na política estadunidense não ajudaram muito.
Os reclames de que a sociedade preservasse "valores
morais" caíram por terra porque não encontraram respaldo
nas próprias igrejas, que se revezaram em escândalos.
Para agravar a crise, grandes segmentos evangélicos se
apressaram em legitimar a invasão do Iraque,
argumentando que a Bíblia respaldava uma "guerra justa".
Na América Latina, principalmente no Brasil, a rápida
expansão do pentecostalismo produziu um grave desvio
ético na compreensão do Evangelho. Apareceu um novo
fenômeno religioso, mais comumente identificado como
"teologia da prosperidade". O que se ouve como
"pregação", pelos tele-evangelistas e nas mega-igrejas
dificilmente poderia ser associado ao protestantismo
histórico ou ao pentecostalismo clássico.
Como não há mais nenhuma novidade em afirmar que
mudanças radicais precisam acontecer no movimento
evangélico, a questão agora é perguntar: O que deve
mudar? Eis algumas propostas:
Proponho uma espiritualidade menos eficiente.
Que os pastores desistam de associar a aprovação de
Deus para seus ministérios com projetos bem sucedidos. A
fé cristã não se propõe a refletir o mundo corporativo em
que competência se prova com resultados.
Na espiritualidade de Jesus, os atos de alguns servos de
Deus podem ser anônimos, despercebidos e pequenos.

141
utopia

A urgência das comunidades crescerem, de pastores


mostrarem como Deus os abençoou com "ministérios
aprovados", acabou produzindo essa excrescência: igrejas
que mais se parecem com balcões de serviços religiosos
do que com comunidades de fé.
Proponho uma espiritualidade menos teórica e mais
vivenciada.
A priorização da "reta doutrina" sobre a experiência da fé,
acabou produzindo crentes argutos em "provar" a sua fé,
mas bem frágeis no testemunho.
A obsessão pela verdade como uma construção racional,
faz com que os catecismos se tornem belas elaborações
conceituais, enquanto os testemunhos pessoais se
mantém questionáveis. O evangelho precisa ser escrito em
tábuas de carne; mostrar-se nos atos daqueles que se
propõem a brilhar como luz do mundo.
Proponho uma espiritualidade menos mágica e mais
responsável.
A idéia de um Deus intervencionista que invade a todo
instante a história para resgatar seus filhos, dando-lhes
alívio, abrindo “portas de emprego” e resolvendo querelas
jurídicas, acabou produzindo crentes alienados, sem
responsabilidade histórica e sem iniciativa profética.
Com esse comodismo, as igrejas se distanciaram da arena
da vida. Acreditaram que bastaria amarrar os demônios
territoriais para acabar com a violência e com a miséria. O
Evangelho não propõe que a história seja transformada por
encanto, mas com ações políticas que defendem a justiça.

142
utopia

Proponho uma espiritualidade menos intolerante.


A ideia de um mundo perdidamente hostil a Deus, gera
igrejas intransigentes, que se enxergam privilegiadas. A
radicalização da doutrina da queda faz com que se perceba
o mundo condenado, irremediavelmente perdido. Com
essa visão, a igreja se fecha, só encara o mundo como um
campo de batalha, e é incapaz de acolher os moribundos
que jazem nas margens das estradas
A espiritualidade evangélica precisa resgatar doutrinas
conhecidas nos primeiros anos da Reforma, como a Imago
Dei (a imagem de Deus em todos) e a Graça Comum (o
favor de Deus capacitando a todos).
Proponho uma espiritualidade que promova a vida.
Os evangélicos pregaram por anos a fio a salvação da alma
e, muitas vezes, esqueceram que Deus deseja que
experimentemos vida abundante antes da morte. Aliás, o
céu deveria ser uma conseqüência das escolhas que as
pessoas fizeram na terra e não uma promessa distante.
Com essa ênfase exagerada na salvação da alma, alguns
se contentam com uma existência sofrível, mal resolvida,
acreditando que um dia, no além, tudo ficará bem.
Proponho uma espiritualidade que não contemple a
santidade como apuro legal, mas como integridade.
Com cobranças legalistas, os ambientes se tornam
exigentes. É inócuo estabelecer o alvo da vida cristã como
uma perfeição exagerada, que para alcançá-la seria
necessário transformar as pessoas em anjos.
Hipocrisia nasce com esse tipo de exigência.

143
utopia

É preciso dialogar com as imperfeições, com as sombras e


luzes da alma; sem culpas e sem fobias. Só em ambientes
assim, existe liberdade para amadurecer.
Proponho uma espiritualidade que estabeleça como
objetivo, gerar homens e mulheres gentis, leais e
misericordiosos.
Antes de almejar aparecer como a instituição religiosa
detentora da melhor compreensão da verdade, que
procure amar com singeleza; antes de se tornar uma força
política, que saiba caminhar entre os mais necessitados;
antes de alcançar o mundo inteiro, que trabalhe ao lado dos
que constroem um mundo melhor.
Estou consciente que minhas propostas não têm muita
chance de se realizarem, mas vou mantê-las como um
horizonte utópico e vocação.

144
Descarte
Qualquer lógica que não se conecte com a vida.
Qualquer pressuposto que gere o fatalismo.
Qualquer censura que obture a criatividade.
Qualquer pessimismo que negue a esperança.
Qualquer otimismo que afirme a prepotência.
Recicle
Sua expectativa de viver sem percalços.
Seu desejo de ser alvo da intervenção divina.
Seu pavor de não ter segurança.
Sua angústia de saber-se mortal.
Sua expectativa da experimentar a felicidade plena.
Acolha
O desafio de peregrinar, só peregrinar.
A tarefa de reinventar-se diariamente.
A responsabilidade de ser co-autor da história.
O dever de esperar e cuidar dos frágeis.
A felicidade de ser chamado filho de Deus.

Soli Deo Gloria


Direto ao Ponto

Referências bibliográficas

Metamorfose
1. Pessoa, Fernando. O Eu profundo e os outros eus:
seleção poética; seleção e nota editorial [de] Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001. Pág.
256

Creio
1. Comte-Sponville, André, Pequeno tratado das grandes
virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Capítulo 18:
Amor.

História
1. Pratney, W.A. A natureza e o caráter de Deus: a
magnífica doutrina de Deus ao alcance de todos. São
Paulo: Ed. Vida, 2004.

2. Pratney, W.A. A natureza e o caráter de Deus: a


magnífica doutrina de Deus ao alcance de todos. São
Paulo: Ed. Vida, 2004.

3. Segundo, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que


Deus?. São Paulo: Paulinas, 1995.

4. Arendt, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2007.

5. Arendt, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2007.

147
Direto ao Ponto

6. Arendt, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Vida
1. Mateus 27: 46
2. Lucas 4:1-12
3. Mateus 27:46

Dúvida
1.http://noticias.uol.com.br/ultnot/reuters/2007/08/24/ult7
29u69856.jhtm
Acessado dia 18/12/2008

Oração
1.Mateus. 5: 45
2.Provérbios 11:32

Liberdade
1. Torres Queiruga, Andrés. Do terror de Isaac ao Abbá de
Jesus: por uma nova imagem de Deus. São Paulo:
Paulinas, 2001.

2. Comblin, José. A vida: em busca da liberdade. São


Paulo: Paulus, 2007.

3. Moltmann, Jürgen. O espírito da vida: uma


pneumatologia integral. São Paulo: Vozes, 1999.

4. Moltmann, Jürgen. O espírito da vida: uma


pneumatologia integral. São Paulo: Vozes, 1999.

148

Você também pode gostar