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Ensinar e Aprender com Paulo Freire Nilcéa Lemos F 40 horas 40 anos depois Nilcéa Lemos Pelandré RULO FRERE € ALGUMAS TEORAS PARTE II PAULO FREIRE E ALGUMAS TEORIAS EM TORNO DE LETRAMENTO, ESCRITA E ALFABETIZACAO PAULO FREE E ALGUNAS TEORAS 8 ‘A NOGAO DE “LETRAMENTO” EM PAULO FREIRE As fortes evidéncias da necessidade de letramento na vida didria, no trabalho, nas situagSes de locomogao de um lugar para 0 outro, no ir as compras, enfim, no exercicio pleno da cidadania, tornaram imperiosa a consideragéo das habilidades de leilura escrita em sua dimensao social, fazendo com que os conceitos de letramento, nessa dimensio, baseiem-se em seu valor pragméti- 0, isto 6, na necessidade de funcionar em sociedade para trans- formar relagdes sociais e suas conseqiientes praticas — objetivo de todo 0 processo educacional, na teoria de Freire. Por isso, quer se adote um conceito mais amplo de letramento ou um mais tes trito, as habilidades de leitura e escrita estardo sempre associa- das, ou pelo menos a elas se fard referéncia toda vez que se fizer mengao a cultura. Muitos tém sido os estudos desenvolvidos sobre o que, na ver- dade, corresponde ao letramento, dado que ele , inexoravelmente, parte constitutiva das sociedades contemporaneas, interferindo, a0 mesmo tempo, no set desenvolvimento. A preocupacio de paises desenvolvidos, bem como de paises em desenvolvimento, em me- dir os indices de letramento de seus cidadaos comprova que quali- ficagdes de desenvolvimento sio realizadas, levando em conta, en- te varios indicadores, 0 dominio da leitura e da escrita. Segundo Wagner (1990, p. 116), desde a Segunda Guerra Mundial, talvez 0 argumento mais forte para o desenvolvimento de recursos huma- 8 NSM E APRENDER COM PAULO FRERE nos seja o de que o letramento e a escolaridade favorecem o cresci- mento econémico dos paises que investem o suficiente em educa- sao. Dessa forma, os indices de letramento e de mortalidade infan- til se situam entre aqueles que podem refletir 0 grau de desenvolvi- mento socioeconémico na maioria dos paises, havendo, freqiiente- mente, uma alta correlagao com desenvolvimento econdmico e social. Adicionam-se, entao, 4 questao, os imperativos de ordem moral, que fazem com que politicos e governantes incluam sempre em suas plataformas de campanha a destinago de recursos para a educacao. Por esse motivo, em havendo sinceridade de propésitos, dado que sao desenvolvimentos cujos resultados sio de longo pra- 20 (educagao, satide, cultura), isto 6, ndo acontecem de uma hora para outra, especificamente em educacdo, uma melhor compreen- sao dos tipos e niveis de letramento pode contribuir para formular politicas de desenvolvimento mais adequadas. O termo letramento surgi nos Estados Unidos na década de 1930 e foi utilizado pelo exército norte-americano durante a Segun- da Guerra Mundial para indicar a capacidade de os soldados en- tenderem instrugdes necessérias a realizacao de tarefas militares. A partir de entdo, este termo tem sido empregado para designar a capacidade de utilizar a leitura ea escrita para fins especificos rela- cionados aq desenvolvimento de atividades de trabalho e na vida diaria, passando a ser referéncia para programas educativos, volta- dos notadamente 4 populagao adulta com niveis de escolaridade considerados insuficientes. Difundiu-se nos anos 1960, principal- mente devido a agao da Unesco para reafirmar a importancia da sso que Ihe conferira sua assembléia de fundacao — ampliar as bases de educagéo no mundo. No Brasil, segundo Soares (1998), ele foi introduzido na literatura da rea da Educagio e das Ciéncias Lingiifsticas, em 1986, por Mary Kato, no livro intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingiifstica Freire, no entanto, sem fazer uso do termo letramento, jé avan- gara nos debates sobre concepgdes de leitura e escrita, uma vez que o ler e o escrever, para ele, significavam nao apenas 0 dominio do processo de codificagao e decodificagio de palavras e frases, mas, Pau ERE €ALGUMAS TEORAS * sim, as possibilidades de o sujeito, consciente do ser produto e pro- dutor de cultura, fazer uso dessa tecnologia (ler e escrever) para agir no e sobre o mundo. Soares (1992), em estudo realizado para a Unesco, faz um | vantamento das mais diversas definigdes de letramento, procuran- do chegar a uma que possa ser utilizada como parametro de medi- da para as estatisticas, visando maior confiabilidade nos resulta- dos obtidos. Tratando-se de um dado cultural, a concepgao que dele se possa ter tende a mudar com o transcorrer do tempo e em espacos diferentes. Esta autora agrupa as definiges de letramento em toro de duas dimensdes da existéncia humana: a individual, referindo-se aos atributos de ordem pessoal, e a social, que com. preende os fenémenos de ordem cultural. A dimensdo individual do letramento compreende os proces- sos fundamentais de leitura e escrita, que, embora considerados em muitas pesquisas como processos tinicos, guardam diferenca bésicas entre as habilidades e os conhecimentos que séo emprega- dos na leitura e aqueles que so empregados na escrita. Sendo as- sim, a atividade de ler, na perspectiva dessa dimensao, ler como uma tecnologia, € um proceso de relacionar simbolos escritos com unidades sonoras (fonemas), associado a um processo de constru- Gio de sentido, o que chamamos de alfabetizacao, Inclui, portanto, uma grande variedade de habilidades, tais como decodificacao de simbolos escritos, obtengao de significadns, evoluindo para o que se denomina letramento com o desenvolvi- mento de habilidades mais complexas, como as de interpretacao de seqiiéncias de idéias ou eventos, estabelecimento de analogias, de comparagées, de inferéncias, de uso de linguagem figurada, de anaforas, e habilidades de raciocinio cognitivo, aplicéveis a uma di- versidade enorme de materiais que podem variar de tabelas de ho- ratios de Onibus ou de pregos de supermercados a textos literarios. O proceso de escrita também envolve uma multiplicidade de habilidades lingitisticas e psicolégicas. As habilidades de escrita vio desde a de transcrever unidades actisticas 3 canacidade de trans se % [ENSIAR E APRENDER COM PAULO FRERE mitir adequadamente, significado, a um leitor potencial. Escrever engloba desde a habilidade de transcrever discurso, via ditado, ao raciocinio metacognitivo. Inclui estabelecimento de objetivos para a escrita e decisao sobre a melhor forma de abordar a tarefa, identi- ficagéo da audiéncia pretendida e adequacao do estilo, organiza- a0 de idéias e estabelecimento de relagdes entre elas, expressan- do-as adequadamente, uso apropriado de pontuacao e habilidades motoras (manuscrever, digitar) e de soletracao. No decorrer do texto, acrescentar-se-fo outras habilidades envolvidas na competéncia para a escrita nao assinaladas por Soa- res (1992), tais como conhecimentos morfossintaticos e textuais de complexidade crescente que dizem respeito & recuperagao de refe- réncias e que aparecem nos pronomes relativos e interrogativos e nos que tém fungao anaf6rica; dominio das regras morfofonémicas, sintaticas, semanticas e pragmaticas e de disposicao grafica do tex- to no espaco. ‘As habilidades de escrita aplicam-se, portanto, & imensa va- riedade de materiais, desde escrever 0 prdprio nome, lista de su- permercados, até teses de doutorado, o que faz com que o processo de letramento constitua-se um continuum, endo possa ser analisa- do como uma varidvel dicotémica, iletrado/letrado. Embora dife- rentes, os processos de leitura e escrita so complementares e cen- trais compreensao do conceito de letramento. Na dimensao social sao consideradas as préticas de leitura e de escrita necessérias aos individuos em determinado contexto so- cial. Essas praticas estdo associadas ao que uma pessoa faz com as capacidades e as habilidades de leitura e escrita que tém desenvol- vidas nas muiltiplas situagdes em que o letramento é requerida, E nas situagdes sociais que vamos encontrar as definigdes nas quais o letramento é mais do que saber ler e escrever, haja vista que, nesta dimensio, as habilidades de leitura e escrita séo utiliza- das com funges especificas, determinadas pelo contexto, valores e praticas sociais, 0 que vem ao encontro dos principios tedricos de Freire: alfabetizar a partir dos conhecimentos de mundo dos edu- PAULO PERE € aLOUWAS TEORAS eet * , conscientizd-los da sua condigao de sujeitos de sua pratica, Possuidores de conhecimentos indispensaveis a construcao de vos conhecimentos e ao desenvolvimento de novas eae wie Pensamehto, neds Retomando a defini¢ao do que seja letra é aieete do uso das habilidades de leitura eas a ferme letramento funciona Gray 956, au Soares, 1992) defini o possibilidade de uso dos conheci mentos e habilidades de leitura e escrita em todas as ativi aren pelo grupo social numa determinada cultura’ eae envolvimento das praticas educativas voltadas para a alfabet zaga0, Freire pesquisava, entao, visando ao uso social dos conheci, mentos adquiridos, o universo vocabular (0 discurso da cotidiani, dade, repetindo suas palavras) de cada comunidade onde se cde, senvolveria o projeto de alfabetizacio de forma a organizar os con. tetidos a serem trabalhados com os educandos. ws Verifica-se, portan- to, uma grande aproximacao das concepsGes freirianas com as de- inigdes de letramento propostas por esses autores, Da mesma forma, Kirsch e Jungeblut (1990, p. 1-8), em estudo Para as Nagdes Unidas sobre o letramento de jovens norte-amet canos, definem letramento como sendo “o uso da informacio enc tae impressa para agir na sociedade, atingir objetivos ¢ deservol, ver o seu conhecimento e potencial” (trad. da autora). Acrescem-se as definigdes apresentadas a de Miller (1990), em que o letramento, € compreendido como uma forma de participagao cultural, ae polando as competéncias para a leitura e a e: scrita e admitindo to- das as demais formas de comunicagéo, mesmo que nio pela lin- guagem eer - eee : istitui polémica em se tratando de socie- __ Asestatisticas realizadas pelo IBGE no Brasil, no entanto, c tinuam utilizando uma definigao bastante restrita, limitando-: 7 considerar letrada a pessoa que sabe ler e escrever uma mensa cm simples na propria lingua, desconsiderando os avancos que se cca relizando nas eas da eucachoenoncina ds ieresene AL ENGIAR €APFENOER COM PALKO FRERE Freire, entio, numa visio progressista, contrapée-se as politi- cas de educacao da época (1960/70), compreendendo a alfabetiza- 40 como um proceso de conscientizacao, ou seja, de aprendiza- gem das habilidades de leitura e escrita como uma forma de apr. priagao e recriacéo consciente da cultura, por intermédio es oe 8 propria existéncia,Portant, su teria se mantém atualizada hoje, pode ser mais bem compreendida a partir de categorias as que se referem ao fenémeno do letramento. . ‘A Unesco, segundo Soares (1992), considera que: “uma pessoa é funcionalmente letrada quando consegue envolver-se em todas as atividades nas quais o letramento é requerido para 0 funciona- mento efetivo do grupo ou da comunidade e, também, quando é capaz de usar a leitura, a escrita e 0 raciocinio numérico para 0 ES desenvolvimento e 0 de sua comunidade” (trad. da autora). definigo se aproxima da de Kirsch e Jungeblut, citada anterior- mente e, com certeza, pesquisas realizadas nessa perspectiva pode- rio mostrar o grau em que esse direito de acesso a lingua escrita estd distribufdo e em que niveis ¢ alcangado. _ Conclui-se, portanto, que quaisquer que sejam as definigdes de letramento, elas extrapolam o simples dominio das habilidades de leitura e escrita. E por isso usamos essa nocao para avaliar, 37 anos depois, 0s efeitos da experiéncia de alfabetizagio em Angicos. DA PROFICIENCIA ESPONTANEA NA LINGUAGEM ORAL AO APRENDIZADO DA LINGUA ESCRITA Para se compreender por que sio necessérios programas a ensino e aprendizagem da lingua esrita e por que é mais di aprender a linguagem escrita do que a oral, & preciso ter clareza sobre as diferencas entre essas duas modalidades da lingua. Falar de leitura e escrita requer, necessariamente, que se fale de linguager. Nao hi aprendizado da leitra da escrita sem que antes tenha havido a aquisicao da linguagem falada, nos indivi duos normais. Embora a linguagem oral preceda a escrita, hé uma PAULO FAEIRE £ ALGUMAS TEORIAS Ye forte relagao entre elas e, a0 mesmo tempo, grandes diferencas Garton e Pratt (1989) apresentam as diferengas em trés categori as forma, fungio e modo de apresentacao. Quanto as diferengas fisicas de forma, a linguagem oral éefémera € tempordria. E, portanto, um processo mais rapido e mais sociavel. Ja linguagem escrita ¢ durdvel, permanente, espacial e visual. Por ser um processo que demanda deliberaco, torna-se mais demora- do, pois requer planejamento, seguido de edicao durante e depois do produto final. Freqiientemente é uma atividade solitaria Quanto as diferencas de funcao, a primeira é mais coloquial na forma e no estilo, enquanto a outra é mais formal, requerendo 0 uso correto da gramatica, ou seja, das convengdes ortograficas, sin- taticas, semanticas e pragmaticas. Porém, quanto a funcao, tanto paraa linguagem oral quanto para a escrita, 0s usos so determina dos socialmente. E, no que se refere ao modo de apresentacio, as diferencas dizem respeito coesdo do discurso, forma pela qual as idéias se interligam. Na linguagem oral, em que os interlocutores se fazem Presentes, hd a possibilidade do uso de recursos nao-lingtiisticos (gestos, expresses faciais, referéncias contextuais) e paralingiisticos (entoacao, pausas), enquanto a linguagem escrita precisa ser auto- teferenciada; os recursos paralingiifsticos devem ser codificados (sinais de pontuacio, letras maitisculas etc.), bem como 0 espaco ¢ 0 tempo — que sao distintos entre o momento da escrita ¢ o da leitura pelos futuros interlocutores — tém de ser referenciados. A esse respeito, Scliar-Cabral (1995a, p. 33) assim se manifesta “A cadeia escrita canénica de comunicacio ocorre na ausénci um futuro leitor, enquanto o redator esta produzindo sua mensa- gem. [..] 0s textos escritos precisam ser auto-referenciados, de modo a permitir a extracéo da informagao exclusivamente do meio im- reso; néo existe a possibilidade de informacao extra fornecida pelo redator, tais como retificacées, expressao facial e corporal, apontar Para os objetos (demonstratio ad oculos conforme menciona Biihler) ou quaisquer outras pistas entoacionais.” 12 ia de

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