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REVISTA ZUM 10 Sob a luz tropical: racismo e padroes de cor da industria fotografica no Brasil Suzana Velasco Publicado em: 13 de julho de 2016 A indistria fotografica pode ser racista no Brasil? Partindo da matéria “Questao de pele“, de Lorna Roth (publicada na ZUM #10), a jornalista Suzana Velasco entrevistou fotégrafos, cineastas, laboratoristas e pesquisadores como EustAquio Neves, Rogério Reis, Fernando Meirelles, Walter Carvalho, Lilia Schwarez e outros para tracar um breve panorama da recep¢ao por aqui dos padroes da industria fotografica estrangeira — como os cartées Shirley, produzidos e distribuidos pela Kodak a partir dos anos 1940, que eram usados pelos laboratérios na padronizagio de cores e tons de pele de impressées fotograficas. Eustaquio Neves, da série “A boa aparéncia", 1999-2000 Quando as impressoras automaticas chegaram ao Brasil, na década de 1970, os laboratérios da Kodak no pais receberam cartes com a imagem de mulheres brancas ao lado de escalas de cinza e de cor, usados para padronizar os tons de pele das impressdes fotogréficas. Produzidos desde os anos 1940 nos Estados Unidos, os cartées Shirley sé incluiram negras e asidticas — eram sempre mulheres, como as Color Girls da televisfo ¢ as China Girls do cinema — na segunda metade dos anos 1990, quando os americanos negros ja eram um piblico consumidor que podia pressionar por representago. No Brasil dependente das técnicas do exterior, os padrdes delimitados pela Kodak nao passaram despercebidos. Enquanto os profissionais sempre criaram técnicas para driblar as limitagGes dos filmes e das maquinas automiticas de fotoprocessamento, os proprios laboratoristas da empresa no Brasil alteravam as cores na impressio — no em fungao da populacao negra, mas sobretudo devido a luz tropical. 0 fotégrafo Eustdquio Neves, que desde o inicio da carreira tematiza sua descendéncia africana, vendeu o carro no fim dos anos 1980 para montar um laboratério colorido. $é ent&o comegou a ficar satisfeito com a revelacao de suas fotos. “Os parametros nao foram feitos para a pele escura, mas para a tez caucasiana. Este sempre foi um grande problema. Fotografar uma negra com vestido de casamento branco, por exemplo, era muito dificil. Acabava-se clareando o negro, em vez de retraté-lo. Eu achava que nao sabia fotografar, até perceber que o padrao nao foi criado para a pele negra”, diz. Assim como Neves, fotégrafos profissionais nunca puderam depender apenas da qualidade dos filmes para fotografar, valendo-se de técnicas de iluminagao e revelago para encontrar os tons adequados a sua estética. “O profissional, eu me arrisco dizer, nfo obedece ao cartdo Shirley. A autoria nunca passa pelo padrao”, diz o cineasta e fotdgrafo Walter Carvalho. “O fotdgrafo é incapaz de dominar a realidade, até porque ver é sempre uma intepretacao. Além disso, a obscuridade é um fato também, ela existe. Sempre haveré dificuldade de registrar altas e baixas luzes, ou seja, brancos e pretos, Se eu fotografo o mar, superexponho o céu em relagao a Terra, sempre. Esse problema permanecers, seja na paisagem em Nova York ou no sertao da Paraiba. Mesmo os fotgrafos de digital vao conviver sempre com essa questo”. No Brasil, os filmes que privilegiavam os tons de pele mais claros representavam ainda outro problema de safda: eram mais adequadas ao Hemisfério Norte, ¢ nao luz tropical. Supervisor de controle de qualidade da Kodak no Brasil, Carlos Nascimento conta que os quatro laboratérios da empresa no pais faziam um ajuste eletrdnico nas impresoras, j4 que os filmes fotogrdficos ¢ o método de revelagao nao podiam ser modificados: “O padrao vindo dos Estados Unidos era frio, tendia & cor ciano. Nés alterévamos esse ponto de partida das impressoras, que eram totalmente manuais, para que a impressao valorizasse mais a luz brasileira. No Norte do pais, por exemplo, o magenta sempre era reforcado para retratar o indio. A cor tinha que ser mais quente, mais saturada. Sempre driblamos o padrao, mas a Kodak sabia. Os quatro laboratérios faziam isso, e eu continuei adaptando a impre: > quando sai da empresa.” Eustaquio Neves, da série “A boa aparéncia", 1999-2000, ‘A temperatura de cor mais quente foi favorecida com a entrada dos filmes Fuji no mercado brasileiro, pois eles privilegiavam o magenta, enquanto os da Kodak tendiam para o azul, clareando os tons. “Com o advento da cor, todos os jornais largaram a Kodak e passaram a usar Fuji. Os filmes combinavam mais com nossa paisagem”, conta o fotégrafo Rogério Reis, que foi fotojornalista em diferentes meios ¢ editor de fotografia do Jornal do Brasil na década de 1990. Nos Estados Unidos, nao foram os negros os primeiros a provocar mudangas nas emulsdes fotograficas Kodak, e sim 0 comércio, Nos anos 1960, fabricantes de chocolate e de méveis reclamaram que os tons de marrom de seus produtos nao eram bem representados na publicidade, explica Lorna Roth no artigo “Questo de pele”, publicado na ZUM #10. Para o fotdgrafo e antropélogo Milton Guran, mais que racismo, o padrdo de tom de pele branco atendia ao piiblico consumidor da Kodak, que teve de se adaptar A medida que negros passaram a consumir fotografia. “Nao ha davida de que a sociedade americana é etnocéntrica e racista. Mas os cartdes Shirley tiveram uma razio mercadolégica, pois o que interessava para a Kodak era ganhar dinheiro”, diz Guran. “Os Estados Unidos depois passaram por uma mudanga radical com relago a inclusio dos afrodescendentes no mercado da moda e da publicidade, algo que estd acontecendo debaixo dos nossos olhos aqui, mas que nos Estados Unidos aconteceu hé 30 anos. Hoje poderia haver uma pressao no Brasil por outros cartes Shirley, mas a ascenso dos negros ja se dé em meio 4 fotografia digital, que avangou nessa questo técnica.” Se o Brasil nao viu surgir a discussao sobre a influéncia cultural especificamente na quimica das emulsées, o uso de técnicas fotograficas tem implicagdes nas formas de representacaio na industria visual. 0 dleo usado nos atores negros do curta-metragem Palace II, de Fernando Meirelles e Katia Lund, por exemplo, foi criticado por estetizar os personagens. Meirelles conta que 0 éleo serviu como alternativa para refletir a luz, em vez de criar marcas de iluminag&o que tirassem a naturalidade de atores sem experiéncia: “Funcionou do ponto de vista da fotografia. Porém, apesar de o filme ter ganho o Festival de Brasilia, fomos vaiados ao receber o prémio. A acusacio era que tratava-se de um filme maneirista e publicitério para abordar um tema tao urgente, e a questo era justamente o brilho das peles.” O curta serviu de teste de fotografia para o elenco de Cidade de Deus, mas a técnica foi usada com mais parciménia no longa-metragem. O diretor de fotografia do filme, César Charlone, conta que teve a ideia ao ver, numa tela de Di Cavalcanti, uma mulher negra com a pele suada refletindo o entorno. Para Charlone, hé mistificagdo em torno da ideia de racismo por trés da tecnologia. “O filme fotogréfico reflete o branco como branco e o preto como preto. Tem lugar para todas as peles na escala de cinza. Acho que essa questo é um mito”, afirma. Para a antropéloga Lilia Moritz Schwarcz, nao ha neutralidade na técnica, que é sempre desenvolvida em encontro com elementos da cultura. Assim como o Brasil dependia de filmes fotogrAficos desenvolvidos no exterior, a historia de representagio dos brasileiros também comegou pelo olhar estrangeiro, preocupado com a individuagao do homem branco, 0 colonizador. Autora de livros sobre a questo racial no Brasil, Schwarcz ressalta que na obra dos grandes pintores holandeses e franceses que retrataram o Brasil entre os séculos XVII e XIX, como Frans Post e Nicolas-Antoine Taunay, o negro era sempre um borrio. “Em suas telas, os brancos so discerniveis, enquanto os negros nao sio identificados. Mesmo Taunay, que é um craque da miniatura, nao tem a mesma aptidao ao retratar os escravos. E como se eles nao precisassem ser treinados para o marrom. Nao é que nao era possivel, nao era desejavel”, afirma Lilia, citando a tela Mercado de escravos em Pernambuco, de Zacharias Wagener (1641), como exemplar dessa diferenca técnica. Somente com o desejo de retratar o negro ha um desenvolvimento da técnica do marrom, evidente no pintor Modesto Brocos, que em Engenho de mandioca (1892) pinta diferentes cores de pele negra reunidas num espaco marrom, de madeira. Em Redengdo de Cam (1895), a av6 negra louva o branqueamento da familia em duas geragées, com o nascimento do neto de pele clara. Brocos produz num momento em que a fotografia de negros praticamente desaparecera no Brasil, para voltar apenas no século XX. “Nao era bom ao Império representar a partir da escravidao”, diz Lilia. Eustaquio Neves, da série “A boa aparéncia", 1999-2000, Mais de um século depois, a representatividade do olhar negro sobre si mesmo ainda é muito baixa. Para Lilia, a presenga de mais fotdgrafos negros pode aos poucos mostrar uma outra histéria da arte, na medida em que ele vé mundos que o branco nao vé. Eustéquio Neves 6 um exemplo disso. Grande parte de sua obra lida com a propria heranca africana e com a meméria afrodescendente no Brasil. Em A boa aparéncia, que até 7 de agosto integra a exposigao Arquivo Ex Machina — Identidade e Conflito na América Latina, no Itai Cultural de Sao Paulo, ele une imagens de negros a textos do periodo colonial, em que a “boa aparéncia” é usada para qualificar escravos, ao lado de textos contempordneos de ofertas de emprego, que exigem “boa aparéncia”. “Quero pensar sobre o padrao que usamos para classificar os outros. Fica claro que a boa aparéncia de um escravo nao serve para o emprego dos classificados”, reflete. “A fotografia veio como uma paixao para mim, e descobri que com ela podia discutir questdes minhas, das minhas origens. O negro ainda é muito estereotipado, mas hoje pelo menos discutimos mais a fotografia conceitualmente. Isso ja 6 um avango.”/// Suzana Velasco é jornalista. Trabalhou por 12 anos no jornal O Globo. E autora do livro A imigragao na Unido Europeia: Uma leitura critica a partir do nexo entre securitizagao, cidadania e identidade transnacional (EDUEPB, 2014). Tags: cor, kodak, pele, raga, racismo

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