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179.00 vitalidade urbana ano 15, abr. 2015

Considerações sobre a boa cidade


Justiça ambiental urbana e sustentabilidade
Rafael Koury

179.00 vitalidade
urbana
sinopses
como citar

idiomas
original: português

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179
179.01 design
Modernidade e tradição
no design de interiores
North End, Boston, 2004 A casa de Ernesto
Foto Sfoskett [Wikimedia Commons] Korrodi (1870-1944)
Mónica Romãozinho
179.02 patrimônio
O conceito de vitalidade urbana O sumo bem contra a
ruína da sociedade
"O que faz uma boa cidade?" Ilustração católica e
Kevin Lynch, A boa forma da cidade (1) mística feminina na
fundação do
Os fatores que determinam a afinidade por determinados lugares são tantos Recolhimento da Luz em
que seria impossível identificar todos. No entanto, alguns autores 1774
apontaram correlações entre aspectos da forma urbana e fenômenos sociais Amilcar Torrão Filho
como a insegurança, a prática de esportes e outras atividades ao ar
livre, o envolvimento com a política local (2). A proporção entre janelas 179.03 meio ambiente
e muros cegos em uma rua, por exemplo, poderia influenciar na dinâmica Questões estruturais da
social, econômica e ambiental da mesma rua. Neste sentido, a cidade
administração da cidade deve utilizar critérios de avaliação que definam Leituras possíveis
o melhor ou pior desempenho, de modo a favorecer a criação de espaços Liliane Alves Benatti e
públicos de boa qualidade. Apesar da dificuldade de avaliar objetivamente Manoel Lemes da Silva
as correlações entre a forma urbana e a apropriação dos espaços, devido a Neto
multiplicidade dos elementos e fatores envolvidos, alguns estudos, 179.04 patrimônio
auxiliados por recursos da informática, vêm obtendo bons resultados na A dimensão urbana do
avaliação quantitativa destas correlações (3). patrimônio na Carta de
Atenas de 1931
A idéia de vitalidade urbana procura sintetizar o conjunto de qualidades As contribuições da
de um assentamento no qual as pessoas apreciem estar, geralmente, delegação italiana
concentrador de múltiplas atividades e relações econômica. Jane Jacobs Renata Campello Cabral
assume uma interpretação de “vitalidade” voltada para a interação social,
a diversidade de usos e a "qualidade vibrante dos lugares". A autora faz 179.05 cultura popular
referência a uma “atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas Modos de expor no
ruas”, quando descreve o North End, bairro de baixa renda em Boston, como comércio popular
fica representado no trecho: Do barroco ao mestiço
Ludmila Brandão
“Quando visitei o North End novamente em 1959, fiquei espantada 179.06 patrimônio
com a mudança. [...] No lugar de colchões encostados às janelas, A preservação do “saber
havia venezianas e a aparência de tinta fresca. [...] Misturadas fazer”
aos prédios residenciais havia uma quantidade incrível de A taipa-de-mão do
excelentes mercearias, assim como casas de estofamento, “Canto do Sabiá”
serralheria, carpintaria, e processamento de alimentos. As ruas Ronaldo Marques de
tinham vida com crianças brincando, gente fazendo compras, gente Carvalho, Cybelle
passeando, gente falando. Não fosse um frio dia de Janeiro, Salvador Miranda, José
certamente haveria pessoas sentadas às portas” (4). Antonio da Silva Souza,
Alcebíades Negrão
Segundo Jacobs, incentivar a diversidade de usos seria a melhor forma de Macêdo e Brena Tavares
combater a “grande praga da monotonia” – resultante do planejamento Bessa
setorizado e monofuncional –, promovendo segurança, atratividade e
179.07 restauro
interação entre as pessoas. Assim, os principais fundamentos da
Do restauro à recriação
revitalização de áreas urbanas de baixa vitalidade e integração de
Juliana Cardoso Nery e
franjas e bordas seriam os mesmos: promoção da diversidade através de um
Rodrigo Espinha Baeta
diagnóstico das carências de usos principais, tamanho das quadras,
distribuição etária e tipos de edifícios (5).

Já Kevin Lynch associa a vitalidade de um ambiente à sua capacidade de


suportar a saúde (inclusive mental) e o bom funcionamento biológico dos
indivíduos, assim como a sobrevivência da espécie. A noção de que a
qualidade do espaço (no sentido da forma) pode influenciar diretamente a
saúde física e mental das pessoas exige uma definição do que consiste a
qualidade desta saúde, tema que não será aprofundado neste trabalho,
limitando-se às interpretações de saúde e bem estar apontados pelo
conjunto de autores estudados. Lynch sugere cinco “dimensões de
performance” para a avaliação de espaços urbanos, no sentido do melhor
atendimento às necessidades humanas:

a) vitalidade, o grau no qual a forma do assentamento suporta suas


funções vitais, necessidades biológicas e, sobretudo, garante a
sobrevivência da espécie. Este é um critério antropocêntrico, ainda que
se possa admitir que o ambiente oferece suporte para outras espécies e
que o bem estar humano muitas vezes depende desta relação e da presença
de uma diversidade de espécies animais e vegetais.

b) sentido, a medida na qual um assentamento pode ser claramente


percebido e mentalmente diferenciado e estruturado no tempo e espaço por
seus residentes. A medida na qual esta estrutura mental se conecta com
seus valores e conceitos – adequação entre o ambiente, as capacidades
sensoriais e mentais da população e sua construção cultural.

c) adequação à escala, a compatibilidade das formas e capacidades dos


espaços, canais e equipamentos, com o padrão e quantidade de ações que as
pessoas usualmente realizam.

d) acesso, a capacidade de acessar outras pessoas, atividades, recursos,


serviços, informação ou lugares, incluindo a quantidade e diversidade de
elementos que podem ser acessados.

e) controle, o grau no qual o uso e o acesso aos espaços e atividades, e


a sua criação, reparo, modificação e administração é controlado por
aqueles que usam, trabalham ou residem no local (6).

As definições apontadas por Lynch estabelecem parâmetros gerais para


interpretação e julgamento da qualidade dos espaços urbanos do ponto de
vista de sua apropriação e uso. Por outro lado, a complexidade crescente
dos assentamentos contemporâneos, muitas vezes faz emergir necessidades e
interesses contraditórios, assim como interpretações destoantes em
relação ao mesmo espaço. Bernardo Secchi afirma que, em relação à cidade
contemporânea, questiona-se todo conhecimento – dedutivo – sobre o seu
funcionamento, o que a torna resistente à sistematização, codificação e
generalização (7). Secchi identifica, na raiz desta dificuldade, o que
ele chama de “um sistema de múltiplas racionalidades”, que dialogam, se
enfrentam e se complementam no projeto da cidade.

“muitas vezes interpretada como dispersão caótica de coisas e


pessoas, de práticas e de economias, a cidade contemporânea, nas
diversas escalas do espaço físico, social, econômico,
institucional, político, cultural, caracteriza-se por um mesmo
grau de fragmentação, produto de racionalidades múltiplas e
legítimas, mas muitas vezes sobrepostas umas às outras, com
limites invisíveis e difíceis de superar” (8).

Ainda segundo Secchi, grande parte da heterogeneidade das cidades de hoje


teve origem no processo de identificação, separação e distanciamento, que
teria sua raiz na emergência de um “sistema de intolerâncias”, ligado
tanto à exigências higienistas e infraestruturais por parte da sociedade
e da economia modernas, quanto à necessidade de maior privacidade
individual e familiar. No início do século 20, esse paradigma consolidou
na cidade o que Secchi chamou de um sistema de “valores posicionais”,
indicando que o valor de um bem ou de um serviço pode depender não só de
sua raridade ou de seu custo de produção, mas também de sua posição na
sociedade ou na cidade. A cidade contemporânea poderia ser representada
pela fragmentação, heterogeneidade e dispersão, devido à sua natureza
instável, à velocidade dos acontecimentos e à mistura de interesses, o
que é a causa de sua resistentência à simplificações. A dispersão e a
fragmentação foram representados por Secchi como respostas parciais a um
fenômeno metaforicamente traduzido como o enfrentado pelos porcos-espinho
de Schopenhauer (9), ou seja, o da busca de uma distância ótima em um
novo sistema de solidariedades e tolerâncias, de compatibilidades
físicas, sociais e simbólicas.

A visão da cidade grande como espaço de desordem social, degeneração


moral e criminalidade aparece também como parte do sentido metafórico que
se atribui à urbanidade – expresso desde a antiga Babilônia até a Los
Angeles contemporânea. Este aspecto do urbano foi apresentado por Mike
Davis como uma conjugação de elementos utópicos e distópicos, geralmente
caracterizados pela segregação espacial, produção de cenários
diversificados e repressão policial (o termo “polícia” vem do grego
polis, que significa “cidade”) (10). A experiência urbana expôe o melhor
e o pior das capacidades humanas, a maior concentração de riquezas e o
maior número de pobres. Em cidades como o Rio de Janeiro, onde a
desigualdade econômica ainda constitui um "abismo social" (11), com
frequencia emergem conflitos pelo uso do espaço urbano. A ação do Estado
como regulador e legislador garante, entre outras coisas, a pregorrativa
do uso da violência para o cumprimento das determinações legais.

A produção do espaço urbano decorre de processos variados e, muitas


vezes, contraditórios. A rejeição de um modelo único de “boa cidade”, o
reconhecimento dos diferentes olhares e da necessidade de um espaço
urbano diversificado conduzem à maior flexibilização na produção deste
espaço. Para Rodrigo Lopes a inserção das cidades em um mercado global,
mediante a adoção de planos estratégicos, formulados por atores variados
de dentro e de fora da cidade, seria a melhor resposta à suposta
ineficiência do planejamento centralizador e burocrático (12). Segundo
esta visão, a parceria dos governos com o capital privado cria
oportunidades para a cidade, tanto quanto oportunidades de lucro para os
investidores; o desenvolvimento em termos econômicos (atração de capitais
externos, promoção da imagem da cidade no cenário internacional,
instalação de novas indústrias, por exemplo), constituiria uma condição
para a melhoria das condições de vida na cidade. Os Planos Estratégicos
se popularizaram a partir da experiência de Barcelona nas Olimpíadas de
1994, quando a cidade passou por diversas transformações em sua forma,
resultando suposta melhoria em suas funções econômicas e sociais.

Já David Harvey (13) questiona a submissão que o Estado parece assumir


diante dos interesses de grandes empresas, afirmando que este modelo de
desenvolvimento contribui para o aumento das desigualdades e a
fragmentação do tecido urbano. O exemplo do Rio de Janeiro parece assumir
diversos aspectos e tendências deste processo, que Harvey identifica como
“empresariamento urbano”. Marcado por um discurso desenvolvimentista
baseado na intensa divulgação da cidade como marca. O Rio vem sendo
promovido sistematicamente como espaço de oportunidades para
investimentos. Diversas intervenções do poder público, com intensa
participação de setores privados, reforçam este posicionamento. A
expectativa da Copa do Mundo e das Olimpíadas legitima grandes
transformações, que pretendem consolidar a imagem do Rio de Janeiro como
metrópole global. Entretanto, uma observação cuidadosa de alguns fatos
referentes à distribuição dos benefícios (e potenciais impactos
negativos) destas transformações, revela assimetrias sociais e
ambientais, que se projetam no espaço urbano.

Sustentabilidade e equidade

"As economias que ignoram considerações morais e sentimentais são


como bonecos de cera que, mesmo tendo aparência de vida, ainda
carecemde vida real"
Mahatma Gandhi, Young India (14)

Porque combater desigualdades econômicas, sociais e ambientais? Ou ainda,


em que consistem estas desigualdades? A abordagem da questão emergiu do
debate sobre a justiça ou injustiça da desigualdade. Em um conjunto de
palestras de referencia em 1979, Amartya Sen propôs que se pensasse sobre
a igualdade em termos de capacidades. A igualdade não é necessária nem
suficiente para a equidade. Diferentes capacidades e preferencias
individuais conduzem a diferentes resultados, mesmo com oportunidades e
acesso a recursos idênticos. Apesar de diferenças conceituais, a
iniquidade e a desigualdade de rendimentos estão estreitamente ligadas na
pratica – porque as desigualdades de rendimentos são em larga medida o
resultado de um acesso desigual às capacidades. Buscando superar os
problemas originados por um desenvolvimento unicamente orientado para a
expansão econômica, Amartya K. Sen (15) sugere uma reaproximação entre a
ética, da economia e da política.

As preocupações com a sustentabilidade e a equidade são semelhantes num


sentido fundamental: ambas se relacionam com a justiça distributiva. Os
processos não equitativos são injustos, tanto entre grupos como entre
gerações. As desigualdades são especialmente injustas quando desfavorecem
sistematicamente grupos específicos de pessoas, quer devido a gênero,
etnia, origem social ou modo de vida. Enquanto a sustentabilidade volta-
se para o futuro, com a justiça intergerações e a possibilidade de
manutenção de um determinado sistema, a equidade se volta para os
problemas dos mais pobres e para as desigualdades do presente. Uma das
importâncias sociais da sustentabilidade e da equidade enquanto condições
desejáveis para a construção de cidades é sua capacidade de reintegrar
indivíduos e comunidades, através da inclusão e do trabalho digno.

Uma outra concepção, a "Teoria da Equidade", formulada por John Stacy


Adams (16), refere-se à motivação de um indivíduo a partir do
reconhecimento de suas contribuições para determinada coletividade (seja
uma empresa, bairro, cidade ou nação). O autor parte do princípio de que
a motivação depende do equilíbrio entre o que a pessoa oferece à
organização através do sistema produtivo (o seu desempenho) e aquilo que
recebe através do sistema retributivo (a sua compensação). Assim, uma
sociedade sustentável seria aquela na qual todos os indivíduos sentem-se
devidamente recompensados por suas atividades produtivas. Estas
atividades podem ou não ser realizadas dentro do mercado.
Nos debates sobre o desenvolvimento humano fomentados pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), questões de equidade dizem
respeito a “problemas de imparcialidade e justiça social e de um maior
acesso a melhor qualidade de vida” (17). Desde os anos 1970, a atenção
dada à problemática ambiental contribuíu para uma ampla reconceituação do
desenvolvimento, em termos de sua relação com a base material de onde
extrai recursos, as condições de vida da sociedade e o modo de disposição
dos resíduos. Esta reconceituação conduziu à formulação dos termos
"ecodesenvolvimento" (18) e, porteriormente, "desenvolvimento
sustentável" (19).

Em oposição ao desenvolvimento considerado "excludente" (do mercado de


consumo) e "concentrador" (de renda e riqueza), marcado pela segmentação
dos mercados de trabalho, elevada informalidade, acesso precário à
proteção social e fraca participação na vida política, Ignacy Sachs
propõe uma modalidade de desenvolvimento "includente", que teria como
pontos fundamentais:

a) a Democracia, garantia de transparência e responsabilização pelas


ações individuais, coletivas e institucionais.

b) o acesso, em igualdade de condições, a Programas de Assistência para


deficientes, mães e filhos, idosos, enfim, voltados para a compensação
das desigualdades naturais ou físicas. Além disso, Políticas sociais
compensatórias financiadas pela redistribuição de renda poderiam incluir
subsídios ao desemprego ou sub-emprego.

c) a igualdade de oportunidades no acesso aos Serviços Públicos, tais


como educação, proteção à saúde e moradia (20).

A Educação é considerada essencial para o desenvolvimento, na medida em


que contribúi para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão
dos direitos humanos, aumentando a adaptabilidade e o sentido de
autonomia, assim como a auto-confiança e a auto-estima. Apesar da
importância dos serviços de saúde, o objetivo de uma política includente
deve ser a melhoria da saúde das pessoas, o que depende, entre outras
coisas, de alimentação adequada, acesso à água limpa e esgotamento
sanitário, condições adequadas de moradia e trabalho, de boa educação e
medidas preventivas, como vacinação. A inclusão ou não da Moradia entre
os Serviços Públicos movimenta um debate ainda sem solução. A história
dos conjuntos habitacionais promovidos em larga escala pelo poder público
revelou resultados pouco satisfatórios (a conversão de certos conjuntos
em favelas, por exemplo), no entanto, a provisão de moradia decente para
todos constitúi um enorme desafio para um desenvolvimento que se pretenda
includente e sustentável.

Sem adentrar o campo de debate sobre os limites entre as esferas pública


e privada, assim como a definição dos bens públicos, é importante fazer
uma distinção entre as políticas conpensatórias (que poderiam ser
financiadas pela redistribuição de renda mediante o sistema fiscal) e as
políticas de emprego, que mudam a distribuição de renda primária (21).
Embora ambas sejam necessárias, segundo Sachs, as primeiras são de
natureza puramente social e requerem despesas contínuas, enquanto as
segundas, mediante a criação de oportunidades de trabalho decente, geram
renda e proporcionam uma solução duradoura ao problema do desemprego.

Medidas de equidade urbana se relacionam à distribuição, no território,


de equipamentos e redes de infra-estrutura, possibilitando melhor
qualidade de vida para maior número de habitantes da cidade. Entretanto,
a complexidade das relações entre as periferias e as centralidades locais
e, destas com os grandes núcleos metropolitanos dificulta a averiguação
deste atributo. As divisões administrativas nem sempre refletem a
diversidade de apropriações e grupos sociais que dividem (e, muitas
vezes, disputam) o uso do espaço.

Demolição da perimetral, zona portuária na área central do Rio de Janeiro


Foto Tânia Rêgo [Agência Brasi]
Diversos conflitos emergem da desigual distribuição dos benefícios
urbanos e da difícil condição da propriedade da terra enquanto
mercadoria. No caso do Rio de Janeiro, as remoções e demolições
decorrentes dos projetos da Cidade Olímpica são um bom exemplo destas
tensões, a partir do qual é possível avaliar possíveis beneficiados com
as transformações, assim como aqueles prejudicados pelas mesmas. Outros
conflitos comuns aos grandes centros dizem respeito ao uso da água (casos
de racionamento e falta d'água), ao usufruto da paisagem (construções que
obstruem a vista ou reduzem a privacidade), ao acesso aos serviços
públicos (vagas em hospitais e escolas, por exemplo), à locomoção e
acessibilidade. A natureza participa destes conflitos tanto no sentido
dos bens e serviços por ela proporcionados quanto do respeito à
existência de outras espécies e ecossistemas. Estes dois aspectos são
colocados em risco com a expansão urbana desenfreada, o que reforça
importância da consideração pela ecologia urbana nos debates sobre
sustentabilidade e equidade.

Conflitos distributivos e justiça ambiental urbana

A avaliação dos custos de construção e manutenção dos assentamentos


humanos e seus artigos de consumo deveria levar em consideração
interdependências (ou “externalidades”) locais, regionais e até
internacionais para apontar com maior precisão os custos monetários e
ecológicos destes sistemas. No início do século 20, o biólogo e
planejador urbano Patrick Geddes pretendeu promover uma visão biofísica
da economia, como um subsistema incorporado a um sistema mais amplo de
relações entre a ecologia, a geografia e o urbanismo. Em tempos de
globalização, quando se distanciam as relações de causa e efeito entre a
produção e o consumo de bens, muitas vezes, como evidencia Alier:

“os cidadãos ricos buscam satisfazer suas necessidades ou desejos


por intermédio de novas formas de consumo que são, em si mesmas,
altamente intensivas na utilização de recursos. Esse é o caso,
por exemplo, da moda de degustar camarões importados dos países
tropicais ao custo da destruição dos mangues, ou da aquisição de
ouro ou diamantes” (22).

Apesar da crescente reivindicação por medidas compensatórias para


impactos ambientais e, secundariamente, para os sociais, deve-se
considerar os limites da valoração de determinadas transformações
ocasionadas pela exploração de recursos humanos e naturais. Os gregos
faziam distinção entre os termos oikonomia (arte do aprovisionamento
material da casa familiar) e crematística (estudo da formação dos preços
de mercado, para ganhar dinheiro) (23). O primeiro representava a riqueza
verdadeira e os valores de uso, o segundo representava os valores de
troca e algo próximo do que hoje seria entendido como oferta e procura.
Esta distinção parece hoje irrelevante porque o aprovisionamento material
se dá, predominantemente, através de transações comerciais. Ainda assim,
muitas atividades são realizadas no interior do núcleo familiar e muitos
serviços da natureza ocorrem fora do mercado – basta contabilizar as
horas dedicadas às atividades domésticas ou a pescaria amadora nas
cidades costeiras.

As externalidades, por sua vez, são custos não contabilizados de uma


determinada operação, gerando consequencias para terceiros. Segundo
Luciana Togeiro, "as externalidades ocorrem porque o bem em questão (meio
ambiente/recursos naturais) não é propriedade de ninguém, ou melhor, é de
domínio universal” (24). Este é o caso do lançamento de afluentes
industriais em corpos d'água, ou da destruição de certos ecossistemas
para a produção pecuária extensiva. Nestes dois casos, o exercíco da
propriedade sobre os corpos d'água e a biodiversidade é praticado, ainda
que seus custos não sejam assimilados pelas industrias e proprietários de
terras. Entretanto, a consequente escassez da pesca em comunidades
ribeirinhas, assim como a perda de espécies animais e vegetais pode ser
considerada externalidade do processo, gerando prejuízos econômicos e
imateriais difíceis de contabilizar. A proposta do economista inglês
Arthur Cecil Pigou, ainda em 1920, sugeriu o estabelecimento de taxas e
impostos para neutralizar os danos dos custos externos (ou
externalidades), entre eles, os danos ambientais de variadas origens –
princípio do poluidor pagador.

Alier ressalta a importância das questões distributivas social e


ecologicamente, para a decisão produtiva de qualquer atividade econômica
que seja (25). Em termos econômicos, existem fortes interesses de que as
externalidades permaneçam como tal – fora da contabilidade dos resultados
e do balanço da empresa. As decisões seriam diferentes caso tais passivos
ambientais e sociais fossem incorporados na sua conta (na forma de algum
valor econômico). Além disso, os aspectos distributivos ambientais não
recaem unicamente sobre os produtores, podendo influenciar uma área
indeterminada (no caso de agrotóxicos, por exemplo, ou da poluição
ocasionada pelos automóveis). Isto possui, ainda segundo o autor,
influência nas formas assumidas pelos conflitos ecológicos, que podem
variar de acordo com o modo pelo qual se da a mobilização popular, os
atores envolvidos e os métodos de valoração utilizados (26).

Existe uma hipótese de que a economia passaria por uma transição para uma
fase "pós-materialista", centrada nos serviços e no turismo, reduzindo as
indústrias nos países mais desenvolvidos e, assim, reduzindo impactos
sobre o meio ambiente. Isto, no entanto, desconsidera que o dinheiro
obtido nesta economia irá destinar-se à aquisição de bens cuja produção
requer utilização de recursos naturais e energia. No Rio de Janeiro, por
exemplo, a utilização residencial de energia elétrica aumentou mais de
30% entre 2002 e 2010. a geração per capta de resíduos também aumentou de
240 para 270 kg por ano, segundo dados do Institudo Pereira Passos e da
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (27). Isto contribúi para que
hajam progressivamente mais conflitos locais e globais relacionados com a
partilha geográfica e social da contaminação (inclusive decorrente da
falta de saneamento, erosão, congestionamento, etc.) e sobre o acesso aos
recursos naturais (inclusive as paisagens e outros bens de difícil
mensuração e valoração).

Para Swyngedouw e Heynen, a questão da sustentabilidade urbana trata,


essencialmente, da distribuição das amenidades ambientais, tanto quanto
dos riscos (28). Embora a noção de risco ambiental incorpore certa
imprevisibilidade na distribuição de seus efeitos, é possível estabelecer
correlações entre o padrão sócio-econômico dos assentamentos e a
exposição aos efeitos negativos da urbanização e da exploração dos
recursos naturais. Isto porque as atividades que causam maior impacto
negativo (aterros sanitários, indústrias químicas, plantações que
utilizam agrotóxicos) tendem a se instalar em áreas desvalorizadas do
território. Da mesma forma, muitas aglomerações irregulares não contam
com saneamento básico, o que multiplica riscos ambientais. Esta
distribuição assimétrica de riscos e amenidades ambientais também parece
responder ao que Bernardo Secchi chamou de "valores posicionais".

São inúmeras as exposições dos mais pobres aos efeitos nocivos do


desenvolvimento sobre o ambiente urbano, desde o tempo perdido no
trânsito em transportes coletivos, até o risco de deslizamento da casa,
construída em encosta; o risco de ser despejado do terreno, do qual não
possui título de propriedade; risco de doenças decorrentes do saneamento
inadequado; risco de ficar desempregado, de não poder sustentar a
família. Percebe-se que a distribuição desigual da propriedade urbana,
dos equipamentos de uso público, dos serviços de infra-estrutura e da
renda levam à produção de espaços de maior fragilidade ambiental e
social, fragmentados em relação à cidade, nos quais mais se percebe os
fatores de insustentabilidade.

No Rio de Janeiro, se observa, por outro lado, uma convergência de


recursos públicos e privados, na forma de grandes transformações na
infra-estrutura e acelerada dinâmica imobiliária, promovendo a
remodelação de antigos bairros e a expansão dos limites (e da importância
econômica) de outros. Neste processo, além das mudanças na paisagem e da
incorporação de espaços naturais, também são observados conflitos de
interesse quanto ao uso dos espaços urbanos - o que se manifesta nas
remoções (nem sempre pacificas) promovidas pelo poder público, em ações
contrárias às mudanças (a ocupação do Museu do Índio, por exemplo) e na
política de ocupação armada de favelas.

A popularização dos conceitos de "sustentabilidade" e "desenvolvimento


sustentável" parece decorrer da imprecisão destes termos. Se as cidades
atuais revelam-se insustentáveis, torna-se necessário estabelecer
critérios que definam uma cidade sustentável, segundo as dimensões
social, econômica, ambiental, territorial e política. Assim, a produção
de indicadores torna-se uma importante ferramenta do planejamento urbano,
inclusive, tirando grande proveito de outros instrumentos contemporâneos,
como a internet e softwares de geoprocessamento.

Apesar do relativo avanço na produção de estudos e interpretações sobre a


(in)sustentabilidae das cidades, a definição dos objetivos e, sobretudo,
das etapas de uma "transição para a sustentabilidade" (29) ainda são
pouco claros ou, quando definidos, muitas vezes, não são aplicados. Além
disso, são frequentes os enfrentamentos entre a proteção do meio ambiente
e os recursos naturais, a qualidade de vida urbana e a produtividade da
economia. Estes enfrentamentos tomam forma em conflitos pelo uso do solo
e demais recursos urbanos, que podem ser bem definidos, como a
resistência às remoções no Rio, ou difusos, como congestionamentos na
hora do rush e doenças endêmicas provocadas pela poluição.

Pode-se ponderar que a experiência urbana é conflituosa em si, posto que


envolve o tolhimento de liberdades em benefício da coexistência
organizada. No entanto, a extrema desigualdade de condições sociais e
territoriais observada nas grandes cidades brasileiras leva a crer que
estes enfrentamentos não ocorrem em igualdade de condições. Os mais
pobres, via de regra, são mais expostos aos riscos e impactos ambientais
decorrentes da insustentabilidade urbana, ainda que pouco contribuam para
os fatores de maior degradação. Isto ocorre porque seu poder de escolha
(mobilidade e consumo de bens e serviços) é limitado pela renda, o que
também acarreta fraco poder de negociação diante dos conflitos
territoriais e fraca representatividade política.

notas

1
LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. Lisboa, Edições 70, 1981. p. 4.

2
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos Rocha. São
Paulo, Martins Fontes, 1961; ROSSI, Aldo (1966). A arquitetura da cidade. 2ª
edição, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2001; LYNCH, Kevin (1960). A imagem da
cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997;
LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade (op. cit.).

3
Por exemplo, o simpósio temático coordenado por Vinícius Neto, apresentado no
II Enanparq, intitulado “Forma e vitalidade urbana: Impactos de padrões de
urbanização e arquitetura sobre as dinâmicas da cidade”, no qual foi discutida
a relação entre a forma urbana, suas qualidades ambientais e vitalidade, a
partir de metodologias predominantemente quantitativas.

4
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 8.

5
Idem, ibidem, p. 437.

6
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 118.

7
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2006.

8
Idem, ibidem, p. 56.

9
“Pode ser que os homens estejam ficando como os porcos-espinho de Schopenhauer:
quando o inverno é frio os porcos-espinho, procurando um pouco de calor,
comprimem-se entre si, mas os espinhos de um espetam a carne do outro. Os
porcos-espinho, então, afastam-se e sentem frio. [...] ao fim, eles encontram
uma distância adequada, na qual não sentem nem muito frio, nem muita dor. A
cidade contemporânea, cidade ainda instável, talvez esteja à procura da
distancia adequada”. SECCHI, Bernardo. Op. cit., p. 60.

10
DAVIS, Mike, Cidade de quartzo, escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo,
Página Aberta, 1993, p. 17-89.

11
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre
exclusão, pobreza e classessociais. Petrópolis, Vozes, 2002.

12
LOPES, Rodrigo, A cidade intencional – o planejamento estratégico de cidades.
Rio de Janeiro, Muad, 1998.

13
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da
administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, n. 39,
NERU, 1996, p. 48-64.

14
GANDHI, Mahatma. Young India. 1923.

15
SEN, Amartya (1987). Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras,
1999.

16
ADAMS, John Stacy. Teoria da equidade: para uma teoria geral da interação
social. Nova York, Academic Press, 1976.

17
PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório do
Desenvolvimento Humano 2011. Sustentabilidade e Equidade. Um futuro melhor para
todos. Nova York, 2011, p. 4.

18
SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Tradução E. Araujo.
São Paulo, Vértice, 1981, p. 14.

19
WCED (World Commission on Environment and Development). Our Common Future.
Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 23.

20
SACHS, Ignacy, Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de
Janeiro, Garamond, 2004, p. 39.

21
Idem, ibidem, p. 42.

22
ALIER, Joan M. Ecologismo dos pobres. Conflitos ambientais e linguagens de
valoração. Tradução Maurício Waldman. São Paulo, Contexto, 2011, p. 44.

23
Esta distinção aparece na Política de Aristóteles.
24
TOGEIRO de A., Luciana. Política ambiental: uma análise econômica. São Paulo,
Unesp, 1998, p. 28.

25
ALIER, Joan M. Op. cit., p. 51.

26
Idem, ibidem, p. 52.

27
Armazém de Dados. Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos
<www.armazemdedados.rio.rj.gov.br> Acessado em Janeiro de 2013.

28
SWYNGEDOUW, Erik; HEYNEN, Nikolas. Urban Political Ecology. Justice and the
Politics of Scale. Antipode, vol. 35, n, 5, 2003, p. 899-918.

29
Como referiu-se o documento de criação da Macrozona de Especial Interesse
Econômico MACROZEE da Amazônia Legal. Ver: COMISSÃO COORDENADORA DO ZEE DO
TERRITÓRIO NACIONAL. Estratégias de transição para a sustentabilidade.
Brasília, Ministério do Meio Ambiente, s/d.
<www.mma.gov.br/estruturas/ascom_boletins/_arquivos/24_03_macrozee_08_83.pdf>.
Acessado em Janeiro de 2013.

sobre o autor

Rafael Koury, graduado em Arquitetura e Urbanismo (2010), mestre em


Planejamento Urbano, Espaço Construído, Sustentabilidade e Ambiente pela
Universidade Federal Fluminense e professor de Projeto Arquitetônico na
Universidade Salgado de Oliveira.

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