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8/5/2019 arquitextos 224.

03 arquitetura moderna: Programa, lugar, construção | vitruvius

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224.03 arquitetura moderna ano 19, jan. 2019

Programa, lugar, construção


Discussão a partir da Casa McCormick
Maria Isabel Imbronito e Talita Pereira da Silva

224.03 arquitetura
moderna
sinopses
como citar

idiomas
original: português

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224

224.00 história
Zenon Lotufo
Da tradição clássica a
produção moderna
Eduardo Modenese Filho

224.01 desenho
O croqui como
instrumento de
conhecimento
Registro de uma
experiência
internacional em
arquitetura e urbanismo
Haroldo Gallo
224.02 arquitetura
comercial
Espaços de consumo e a
arquitetura de Morris
Lapidus
Casa McCormick, Elmhurst, próximo a Chicago,1951, arquiteto Mies van Heliana Comin Vargas
der Rohe
Foto das autoras

Segundo Solà-Morales, a arquitetura de Mies van der Rohe tem, ao longo do


tempo, suscitado interpretações que ora privilegiam os aspectos
conceituais (que envolvem a discussão sobre o espaço), ora abordam a sua
constituição material (1). O próprio autor opta pela linha construtiva, e
justifica esta escolha pela ênfase dada por Mies van der Rohe aos
aspectos materiais em seu legado escrito.

O conflito indicado por Ignasi Solà-Morales e as diferentes abordagens


possíveis são indícios da complexidade presente na obra de Mies, e das
limitações decorrentes de análises que optam por uma leitura monotônica.
Instiga, ainda, a interpretações capazes de articular e relacionar os
aspectos espacial e material em uma leitura coesa. Nossa posição para
este trabalho parte do princípio de que, para o arquiteto, o modo como
são considerados a técnica, o lugar e o programa corroboram com certa
concepção de espaço, assim como o faz a própria representação do espaço,
através de seus desenhos e colagens.

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8/5/2019 arquitextos 224.03 arquitetura moderna: Programa, lugar, construção | vitruvius
Evita-se o ponto comum de que ocorre, na arquitetura de Mies van der
Rohe, uma simplificação do problema ou submissão a formas pré-
determinadas, conforme sustenta Robert Venturi, apoiando-se em comentário
de Paul Rudolph (2). O próprio Mies van der Rohe postulava que a forma é
decorrente de um processo investigativo que envolve, dentre outras
motivações internas, a tectônica. Ela pressupõe, contudo, determinadas
“qualidades apriorísticas” a serem atingidas: é forma legível, obtida com
novos materiais e desenvolvimento tecnológico, que atende a princípios de
finalidade compreendidos de modo não específico-funcionalista mas
genérico-racionalista; é, ainda, capaz de assumir uma dimensão artística
que expresse a cultura e o modo de vida de seu tempo. Estes valores,
comuns ao período de formação e consolidação do Movimento Moderno, são
reforçados e modificados por uma busca pessoal pela “essência da
arquitetura” (3), que leva Mies van der Rohe a depurar o papel de seus
elementos constitutivos, tanto no aspecto construtivo como na relação com
o espaço.

Segundo Neuemeyer, Mies se recusava a

“colocar a arquitetura nas mãos da invenção técnica, [...] e


tampouco se inclinava a entregar a arquitetura à ‘especulação
intelectual’. [...]. Não concedia direito especial nem ao poder
anônimo da técnica, nem ao ato individual de uma exegese livre
através do indivíduo-artista” (4).

O autor segue citando ao próprio Mies, para quem “a arquitetura é sempre


a expressão espacial de uma decisão intelectual” (5). E aprofunda que:

“decisão, assim se pode completar, exige critérios e fundamentos:


uma lógica de ordem baseada em princípios espirituais que permita
estabelecer uma relação entre o feito e o significado, entre
objeto e sujeito, e que conceda à vida seu sentido” (6).

Está presente assim a convicção de que a obra deve atingir status


artístico enquanto expressão espiritual do homem que segue, para Mies van
der Rohe, associada a uma ideia subjacente de ordem.

“Meu ataque não é contra a forma, mas contra a forma como um fim
em si mesmo. […] A forma como fim inevitavelmente resulta em mero
formalismo. Esse esforço é direcionado apenas para o exterior.
Mas apenas o que tem vida interiormente tem um exterior vivo. Só
o que tem intensidade de vida pode ter intensidade de forma. Cada
‘como’ é baseado em um ‘o quê’. O que não tem forma não é pior
que o que tem forma exagerada. O primeiro não é nada; o último é
mera aparência” (7).

"O longo caminho do material fundado na função para o trabalho


criativo tem apenas um único objetivo: criar ordem a partir da
desesperada confusão do nosso tempo" (8).

A ênfase dada por Mies van der Rohe ao termo “espiritual” considera o
filtro intelectual necessário para que a arte alcance condição universal
e absoluta. Sem prescindir da constituição material e da aparência para
atingir tal condição, do mesmo modo como não despreza Hegel da aparência
das coisas que se referem à esfera do espírito, fica claro que a
arquitetura para Mies adquire significados que vão além do aspecto
superficial de seus elementos. Ao mesmo tempo em que rejeita qualquer
engano formal, suas obras seriam concebidas a partir de e para um
questionamento ontológico das partes, o que inclui afirmar e subverter a
essência dos materiais e dos espaços.

Casa McCormick

A Casa McCormick foi inicialmente erguida na Prospect Avenue, 299, em


Elmhurst, nas proximidades de Chicago, no ano de 1951, por encomenda de
Robert Hall McCormick, “um dos promotores da torre de apartamentos no
860-880 Lake Shore Drive” (9). Em 1994, foi transportada para o Wilder
Park, a algumas quadras do terreno original, onde atualmente compõe parte
do Museu de Arte de Elmhurst.

A construção da Casa McCormick está relacionada a outras obras


habitacionais de Mies van der Rohe deste período. Segundo Barry Bergdoll
(10), Robert Hall McCormick teria sido um empreendedor associado a
Herbert Greenwald, o grande promotor das obras de Mies como o Promontory
Apartments (1946-49), 860-880 Lake Shore Drive (1948-1951) e o 900-910
Lake Shore Drive (Esplanade Apartments, 1953-56), todos em Chicago, e o
Lafayette Park (1955-63), em Detroit. Além destas, levadas a termo, houve
outras iniciativas não concluídas por conta do falecimento precoce de
Greenwald, como o projeto para casas em série em Melrose Park e
Benseville, e o projeto para um conjunto aos moldes de Lafayette Park, a
ser feito em Newark, NY. Concentradas na primeira metade dos anos 1950,
estas obras, pensadas para produção habitacional em escala, foram
acompanhadas pela construção de duas casas que recapitulam as propostas
sobre tecnologia e modo de morar que resultaram da associação entre o

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arquiteto e os empreendedores: a Casa McCormick (1951), em Elmhurst, e a
Casa para Morris Greenwald (1955), irmão de Herbert Greenwald, em
Westport, Connecticut.

A Casa McCormick, contextualizada frente às demais obras de Mies van der


Rohe, assume um papel experimental. As informações sobre esta casa,
obtidas através da publicação 2G – Mies van der Rohe Houses, e durante a
exposição Mies´s McCormick House Revealed: New Views, realizada no Museu
de Arte de Elmhurst, fornecem elementos para os três aspectos analisados
a seguir: lugar, técnica e programa.

Programa

Segundo Bergdoll (11), a residência McCormick foi construída para atender


ao casal Robert McCormick e Isabelle Gardner Seymour, que permaneceram na
casa por sete anos, até o final de seu casamento. Ambos traziam filhos de
outros casamentos. A casa serviria ainda apenas ao final de semana (12).
Estes dois fatores parecem ter sido decisivos para a solução adotada na
distribuição do programa da casa.

O partido da casa em dois volumes correspondentes e defasados absorve o


programa sem permitir qualquer distorção da forma para acomodar
especificidades de uso. O programa, complexo quando comparado às
propostas mononucleadas da Casa Farnsworth e M. Greenwald, ou aos
apartamentos compactos do edifício 860-880 Lake Shore Drive, é atendido
através da duplicação do prisma elementar, com a estratégia,
possibilitada pelo uso esporádico, de constituir uma parte reservada ao
casal no primeiro volume – quarto com banho, escritório, espaço de estar
– enquanto que, no segundo volume, é acomodada a parte coletiva da
família: cozinha, funcionários, filhos e serviço.

A justaposição dos volumes prevê a medida de um único módulo estrutural


no interior da casa para a conexão direta entre ambos os blocos. Cada
pavilhão é pensado com as duas faces transversais cegas em tijolo, que
contem as duas únicas portas de acesso à casa, e a face longitudinal
inteiramente envidraçada. Apesar da relação direta com o exterior devido
às faces envidraçadas, a defasagem dos dois volumes entre si preserva
visualmente o bloco do casal com relação ao bloco dos filhos. A única
relação possível entre ambos ocorre na transparência entre a
cozinha/espaço das crianças e o abrigo de carros, que amplia a área de
interseção dos volumes no acesso à casa.

Apesar da constância e presença da modulação estrutural tanto no interior


como no exterior da casa, a separação dos espaços internos, feita em
divisória de madeira, foi ensaiada diversas vezes, conforme pode-se
perceber na sequência de desenhos com layouts diferentes feita por Mies
van der Rohe e apresentada na exposição Mies´s McCormick House Revealed.
Isso poderia significar que as divisões internas do projeto original,
apesar de terem assumido uma determinada conformação final, não têm, ao
contrário da estrutura da casa, a pretensão de portarem-se de modo
definitivo. Existe alguma clareza no esquema de distribuição geral do
programa, que se repete pelas variações desenhadas pelo arquiteto:
separação volumétrica e espacial entre os usos do casal e dos filhos, e
núcleos de banheiros/equipamentos soltos no centro de cada volume, com
planos verticais que se prolongam e cuja proeminência desmonta a
percepção cúbica do tal núcleo interno.

Apesar de justificável pelas necessidades de dividir o programa familiar


em duas partes, ou pela clareza de ter todos os quartos voltados para a
parte posterior do terreno, o layout obtido parece rebaixado de sua
condição definidora do caráter da casa, como se a casa não partisse do
layout, mas da solução geral da estrutura. Apesar de pautados pela
modulação geral da estrutura, os espaços obtidos não afetam a modulação
estrutural; também não interferem na forma externa da casa ou nas
aberturas. Tudo aponta para uma condição circunstancial de ocupação do
espaço frente à constituição perene da estrutura: o espaço obtido poderia
ser compreendido como flexível ao extremo, enquanto o invólucro permanece
estável, o que vem de encontro às transformações de uso que a casa sofreu
ao longo do tempo.

Por sua vez, a configuração interna não segue uma lógica tradicional: não
há corredores, apenas uma sequência de espaços interconectados. Uma vez
que a sucessão de ambientes fluidos, ensaiada por Mies van der Rohe em
algumas casas como a expositiva de 1931, não seria apropriada ao programa
complexo da Casa McCormick, a hierarquia de uso é radicalmente definida
pela separação entre o bloco que compete ao casal e o bloco que cabe aos
filhos, como se o primeiro resolvesse o programa idealizado de um casal
sem filhos – resquício da casa proposta para “família alguma”, conforme
analisa Iñaki Ábalos (13), relegando ao segundo volume a parte
compartimentada e transtornada da casa.

Após ter sido incorporada ao Museu de Arte de Elmhurst, a casa foi


transportada para outro endereço. Atualmente, em processo de recuperação,
a casa comporta-se tanto como um objeto exposto como um espaço

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expositivo, constituindo um pavilhão de exposições autônomo e sendo, ela
mesma, obra artística. Para os usos citados (espaço expositivo e obra
exposta), os espaços domésticos foram descaracterizados: uma vez
desmontada na mudança, seu layout original, bem como as instalações
hidrossanitárias, nunca foram recompostos. O layout original está
mostrado em um desenho feito no chão, na parte nova do museu, como parte
da exposição sobre a casa já mencionada. Contudo, o pavilhão miesiano,
mostrado vazio como está atualmente, é tão potente como seria sua total
reconstituição como ambiente doméstico, pois que não está esvaziado do
sentido da obra, que segue, em essência, como possibilidade de espaço.

Segundo Colomina, as casas de Mies van der Rohe apresentam um caráter


expositivo ou modelar. Tendo sido uma constância nos anos europeus, o
hábito de projetar para exposições contaminou toda sua obra. Grande
número de casas ou apartamentos foram, nos anos 1920, concebidos pelo
arquiteto para serem expostos, a partir do Werkbund Alemão, da exposição
De Stijl ou da exposição Deutsche Bauausstellung. Segundo a autora,

“Mies começou a projetar diretamente para as exposições e, ao


fazê-lo, revolucionou seu trabalho. Os concursos, as exposições e
as publicações de princípios da década de 1920 não só ofereceram
a Mies a oportunidade de apresentar seus primeiros projetos
modernos, mas que estes foram modernos precisamente porque se
produziram para tais contextos. O lugar da exposição se converteu
em seu laboratório” (14).

A autora faz ainda considerações sobre a transparência das casas e em que


medida isso contribui para a casa expositiva. As casas de Mies van der
Rohe cumpririam duplamente este papel na medida em que seu fechamento
transparente permite visualizar, a uma só vez, tanto o interior da casa,
exposto como em uma vitrine para o lado de fora, como o mundo exterior
para quem está dentro. À vida interior e à paisagem, quando observadas
através do filtro representado pela caixa de vidro, fica associado um
recorte que se distancia da observação aleatória dos fenômenos.

A Casa McCormick é, de certo modo, um ensaio para as obras em série que


Mies van der Rohe pretendia desenvolver com Greenwald e McCormick para
Chicago, Detroit e Newark, em especial, para algumas casas de um
pavimento que o arquiteto estava projetando para Melrose Park (1951) e
variantes de casas em fileira para Benseville (1955) (15). Assim, a Casa
McCormick pode ser entendida um exemplar demonstrativo de um modo de
vida, o que por si só justificaria sua permanência como ambiente
doméstico enquanto espaço expositivo. A recuperação da casa proposta em
etapas pelo Museu de Arte de Elmhurst não descarta, no futuro, sua
reconstituição total.

Contudo, mostrar a casa enquanto habitação que retoma sua condição


original assume um valor equivalente a exibi-la enquanto espaço
expositivo flexível, passível de receber qualquer intervenção. As duas
possibilidades (habitação e espaço expositivo) estão relacionadas e não
se excluem, conforme o entendimento fornecido a nós por Colomina. A
exposição exibida em 2017-18 pelo Museu de Arte de Elmhurst, contendo
fotos e informações sobre a casa original e sua trajetória, mas mostrando
a casa vazia sob a instalação de filmes vermelhos nos vidros proposta
pelo artista Iñigo Manglano-Ovalle, dão conta de mostrar a complexidade e
a potência da situação atual da casa.

Sobretudo, a mudança de circunstância da casa ao longo do tempo tende a


reforçar sua condição de pavilhão modelar, cuja constituição tectônica
salienta a proposta original de flexibilidade dos espaços e dos usos,
mantendo a essência da obra mesmo quando o uso doméstico não se faz
presente.

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Casa McCormick sob intervenção de Iñigo Manglano-Ovalle


Foto das autoras

Casa McCormick sob intervenção de Iñigo Manglano-Ovalle


Foto das autoras

Lugar

A Casa McCormick foi inicialmente implantada em um lote da Prospect


Avenue, na cidade de Elmhurst. A implantação da casa seguia as
características do bairro de subúrbio americano. Sua tipologia, porém,
ainda hoje representaria um enorme contraste para com o entorno.

A primeira consideração a fazer sobre a implantação da casa seria afirmar


a relação abstrata que estabelece com o lote e com a cidade: casa de
perímetro geométrico e retangular, implantada em um lote retangular, que
é parte de um traçado urbano extensivo em tabuleiro. Com grande recuo
frontal, a casa, contudo, ficava disposta na metade do comprimento do
terreno, sobrando na parte posterior um jardim equivalente ao jardim
frontal. Para os fundos do lote, correspondendo à face leste, ficavam
voltados os quartos. No jardim da frente havia apenas a pavimentação da
entrada de carros dando diretamente ao abrigo, com um pequeno alargamento
lateral para manobra ou estacionamento.

Ao analisarmos o desenho da implantação original da Casa McCormick (16)


feito por Mies van der Rohe, nota-se ainda que cada tronco de árvore
existente no terreno está cuidadosamente representado segundo sua posição
e diâmetro. Fotos da casa no seu local original evidenciam o contraponto
inusitado da verticalidade dos perfis de aço com a confusão de galhos
secos no inverno.

Estas informações dão conta de nos dizer sobre como a implantação desta
casa era precisa.

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Segundo Montaner, “na arquitetura moderna, [...] todo objeto
arquitetônico surge sobre uma indiscutível autonomia” (17), com relação
ao espaço isotrópico circundante. Esta autonomia poderá ser compreendida
como a capacidade deste objeto em constituir-se como uma integridade não
submetida ao lugar. No caso da Casa McCormick, a autonomia a que Montaner
se refere é acentuada pela forma pura do volume da casa, com quinas bem
marcadas e materialidade (aço pintado de branco e vidro) contrastante com
o entorno. Entretanto, a autonomia não pode ser erroneamente confundida
com indiferença ao lugar. Podemos considerar que o objeto estabelece uma
relação com o lugar em que se implanta, de modo a potencializar as
características de objeto autônomo e enfatizar sua inserção enquanto
elemento artificial no meio, já não natural, mas artificialmente
demarcado. O cuidado revelado no desenho de implantação da casa, na
simetria entre frente e fundo do terreno e desviando das árvores
presentes, mostra a construção de uma implantação que considera o lugar,
não através de parâmetros miméticos, mas por operação geométrica.

Poderíamos considerar, contudo, que obras canônicas teriam a capacidade


de reverter um ‘lugar’ indeterminado em um lugar irrepetível e singular,
isto é, de vincular-se ao lugar de modo icônico, uma vez que o local e a
obra icônica tornam-se indissociáveis? Por este ponto de vista, apesar da
“indiscutível autonomia” do objeto moderno, seria impensável transportar
ou elevar a Casa Farnsworth, a despeito dos episódios de transbordo do
Fox River, e da necessidade de ser inteiramente refeita internamente a
cada enchente. Contudo, a Casa McCormick foi transportada, o que a coloca
sob uma nova categoria, também peculiar, por demonstrar a capacidade de
um edifício prototípico em adaptar-se a outro contexto. Se a situação de
sua nova implantação foi conveniente ou não tornou-se em debate polêmico.
Contudo, não coube a Mies van der Rohe decidir sobre sua nova
implantação.

Segundo Bergdoll (18), no ano de 1991, o Elmhurst Fine Arts and Civic
Center adquiriu a Casa McCormick, que foi transportada para o Wilder
Park, parque da cidade destinado a receber um museu, e que hoje abriga
também a Biblioteca Pública da cidade.

Em 1951, a Casa McCormick teve as peças fabricadas em oficina que foram,


durante dois dias de obra, montadas no lote original. No transporte de
1994, a estrutura de cada um dos volumes da casa foi transportada
inteira, erguida sobre um chassi e rebocada por caminhão por algumas
quadras pela Prospect Avenue até o Wilder Park. O registro fotográfico
desta operação reforça a ideia de que a casa simplesmente saiu andando,
de modo certamente mais enfático do que teria sido sua completa
desmontagem e remontagem no terreno do museu. Evidentemente que todas as
partes complementares – alvenarias de fechamento transversal, caixilhos,
partes internas – tiveram que ser desmontadas e refeitas. As divisões
internas presentes hoje na casa nunca corresponderam ao layout original.
Mas a ideia de que se trata da mesma casa é sensivelmente reforçada
justamente pelo modo como ela foi levada até o novo terreno.

Na nova implantação, a casa mudou de orientação e perdeu o contexto de


lote, a relação com a rua e a escala dos vizinhos. Foi conectada a um
novo edifício do Museu, projetado a posteriori pelo escritório DeStefano
+ Partners, através de uma passagem junto ao abrigo de carros, em
intervenção depois considerada um equívoco e recentemente revertida (19).
A recente fase de recuperação da casa apenas desprendeu o volume da casa
do edifício do museu, retomando a autonomia do edifício original.
Contudo, a proximidade entre a casa e o edifício do museu e a tentativa
de estabelecer um diálogo por analogia entre o edifício e a casa
comprometem sua apreciação como objeto isolado. O mesmo ocorre devido ao
paisagismo, disposto para evitar que se adentre o museu pela área
externa. Por sua vez, sua conturbada condição da nova implantação mantém
vivo um debate acerca da trajetória da casa e das possibilidades por vir.

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Situação original da Casa McCormick com árvores existentes [Redesenho das


autoras a partir de 2G. Mies van der Rohe. Houses, p.199]

Situação atual da Casa McCormick junto ao edifício de DeStefano+Partners


Foto das autoras

Situação atual da casa McCormick junto ao edifício de DeStefano+Partners


Foto das autoras

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Casa McCormick atualmente


Foto das autoras

Construção

A Casa McCormick não foi apenas transferida do ponto de vista do dono e


do uso. Foi, como dito, efetivamente transportada a outro lugar,
entendendo-se a relação com a técnica, para tal feito, como uma exigência
e uma oportunidade. Dentre as qualidades perseguidas nesta obra, a
universalidade do espaço e a expressão da técnica permaneceram fiéis ao
conceito original, mesmo após a transformação de todas as demais
prerrogativas circunstanciais iniciais que conduziram o processo de
projeto.

A casa foi desenvolvida para um dos incorporadores do 860-880 Lake Shore


Drive, no mesmo ano em que estes edifícios de apartamentos foram
construídos (20). Dentre as obras de aço projetadas por Mies van der Rohe
nos Estados Unidos, o 860-880 Lake Shore Drive, de 1951, antecipa-se,
juntamente com a Casa Farnsworth do mesmo ano, a outras importantes obras
como o Seagram Building (1955), o Federal Center (1959-74), e alguns
edifícios do IIT que, devido à escala, tiveram um processo mais longo de
projeto e obra. Neste sentido, o 860-880 Lake Shore Drive é uma obra
importantíssima no processo de desenvolvimento e execução dos detalhes em
aço, com a marcação externa dos montantes dos caixilhos, panos de vidro
preenchendo todo o fechamento externo, e divisórias internas não
estruturais subdividindo o ambiente doméstico com uma fluidez que
relembra o Pavilhão Alemão na Feira de Barcelona de 1929.

É importante notar que a mesma técnica construtiva e expressão


arquitetônica presente em programas residenciais foram aplicadas em
edifícios institucionais e de escritórios, sendo o 860-880 Lake Shore
Drive reconhecido, justamente, tanto por introduzir a linguagem do aço e
vidro para o edifício vertical de apartamentos, como por contribuir para
o desenvolvimento dos detalhes de estrutura e fechamento que seriam, de
modo semelhante, aplicados a outras obras de Mies van der Rohe.

Devemos lembrar que a Casa McCormick data do mesmo ano do conjunto do


Lake Shore Drive, e deve ser lida nesse contexto de experimentação tanto
do modo de morar como do sistema construtivo em aço. A Casa McCormick é
descrita como se “um dos apartamentos das torres (do Lake Shore Drive)
tivesse pousado em um solar nos subúrbios” (21).

Segundo Bergdoll (22), há evidências de que o sistema construtivo


pesquisado por Mies van der Rohe e aplicado na Casa McCormick seria
utilizado para casas em série, o que situa a casa como uma espécie de
protótipo para casas pré-fabricadas em estrutura de aço que seriam feitas
em Melrose Park e Benseville para o mesmo grupo de investidores, mas que
não seguiram adiante. Folhetos promocionais das Casas Benseville
utilizavam, inclusive, fotos da Casa McCormick como ilustração (23).

O período após a Segunda Guerra Mundial foi marcado por pesquisas e


debates sobre habitação massiva e pré-fabricação, no qual Mies van der
Rohe e os empreendedores Greenwald e McCormick estão inseridos. Diversos
arquitetos pensam, neste momento, na ideia de fabricar a casa na oficina
e montá-la no site, transportando desde componentes e peças separadas até
casas prontas. Assim sendo, a ideia de preservar a casa, transportando a
estrutura para outro terreno nos anos 1990, condiz perfeitamente com a
técnica em aço empregada para fabricar e montar a casa original, pois uma
construção estereotômica ou feita com técnicas in loco jamais poderia ter
sido removida. Tendo o terreno sido vendido e hoje havendo outra

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construção no lugar, podemos dizer que o sistema construtivo salvou a
casa de desaparecer.

Casa McCormick, planta original


Redesenho das autoras

Considerações

Consideramos que a Casa McCormick tem interesse menos por uma condição
exemplar ou inquestionável, enquanto uma obra emblemática de Mies van der
Rohe, mas justamente pelas questões que desperta e pela discussão que
possibilita sobre o arquiteto e o conjunto de sua obra.

A Casa McCormick se tornou objeto de contemplação da arte de Mies, e a


maior obra do acervo do Museu de Arte de Elmhurst. Sabemos que é também
espaço para exposição, intervenção artística e tem servido como tema para
pesquisa, debate, palestras, etc. Assim, estendemos o termo contemplação
não apenas a apreciação de sua materialidade, mas a todos os demais
aspectos envolvidos em sua concepção e sua existência.

A casa, em sua origem e trajetória, reforça a importância da tectônica,


racionalizada e produzida industrialmente, como requisito para a
persistência da casa em sua essência: do atendimento a um programa
flexível, e do desprendimento do objeto arquitetônico autônomo moderno
com relação ao lugar. Torna-se, quando devidamente acompanhada de suas
motivações e de seu contexto histórico (informações sobre sua origem,
construção, transformação e condição atual), indício exemplar dos
conceitos empregados pelo arquiteto Mies van der Rohe em sua fase
americana. Possibilita também importantes discussões sobre o percurso e o
destino das obras modernas, com a possibilidade de ressignificá-las no
passado, no presente e no futuro.

notas

1
SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Mies van der Rohe y el Minimalismo. In Diferencias.
Topografia de la arquitectura contemporânea. Barcelona, Editorial Gustavo Gili,
2003, p.34.

2
O comentário de Paul Rudolph foi publicado no número 6 da revista Perspecta e é
citado por Venturi. VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura.
São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 4.

3
“Devíamos distinguir o núcleo da verdade. Só as perguntas que se referem à
essência das coisas têm sentido”. Mies van der Rohe, 1961. In NEUMEYER, Fritz.
Mies van der Rohe. La palabra sin artificio. Reflexiones sobre arquitectura
1922/1968. Madri, El Croquis, 1995, p.69.

4
NEUMEYER, Fritz. Op. cit., p. 15.

5
Idem, ibidem, p. 15.

6
Idem, ibidem, p. 15.

7
“My attack is not against form, but against form as an end in itself. […] Form

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as an end inevitably results in mere formalism. This effort is directed only to
the exterior. But only what has life on the inside has a living exterior. Only
what has intensity of life can have intensity of form. Every ‘how’ is based on
a ‘what’. The un-formed is no worse than the over-formed. The former is
nothing; the latter is mere appearance”. ROHE, Mies van der. A letter on form,
1927. In JOHNSON, Philip. Mies van der Rohe. New York, The Museum of Modern
Art, 1947, p. 187.

8
“The long path from material through function to creative work has only a
single goal: to create order out of the desperate confusion of our time”. ROHE,
Mies van der. Inaugural address as director of architecture at Armour Institute
of Technology, 1938. In JOHNSON, Philip. Op. cit., p.191.

9
2G. Mies van der Rohe Houses. Barcelona, Gustavo Gili, n. 48/49, 2009, p. 198.

10
BERGDOLL, Barry. Mies van der Rohe McCormick House. Elmhurst, Elmhurst Art
Museum, 2018, p. 18.

11
Idem, ibidem, p. 34.

12
2G. Op. cit., p. 198.

13
ÁBALOS, Iñaki. A casa de Zaratustra. In A Boa Vida. Visita guiada às casas da
modernidade. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2003, p. 24.

14
COLOMINA, B. La casa de Mies: exhibicionismo y coleccionismo. In 2G. Mies van
der Rohe. Houses. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, n.48/49, 2009, p.6.

15
BERGDOLL, B. Mies van der Rohe McCormick House. Elmhurst, Elmhurst Art Museum,
2018, p.25.

16
2G. Mies van der Rohe. Houses. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, n.48/49,
2009, p.199.

17
MONTANER, Josep Maria. A modernidade superada. Arquitetura, arte e pensamento
do século 20. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2001, p.31.

18
BERGDOLL, Barry. Op. cit., p. 36.

19
Idem, ibidem, p. 5.

20
Idem, ibidem, p. 22.

21
2G. Op. cit., p. 198.

22
BERGDOLL, Barry. Op. cit., p. 25.

23
Idem, ibidem, p. 10.

sobre as autoras

Maria Isabel Imbronito é arquiteta e urbanista, com graduação, mestrado e


doutorado pela FAU USP. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da
Universidade São Judas Tadeu.

Talita Pereira da Silva realizou pesquisa de Iniciação Científica sobre a Casa


McCormick, durante a graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São
Judas Tadeu, sob orientação da Professora Maria Isabel Imbronito.

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