Você está na página 1de 1

vitruvius | pt|es|en

receive the newsletter | contact | facebook search in vitruvius ok

research magazines newspaper


bookshelf architexts | architectourism | drops | my city | interview | projects | reviews online news
newspaper arts & culture
magazines architexts ISSN 1809-6298 sketches
in vitruvius events
search in architexts ok competitions
archive | who we are | rules selections
123.00 year 11, aug. 2010

Arquitetura moderna, estilo campestre


Hotel, Parque São Clemente
Carlos Eduardo Comas

123.00
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

123
123.01
Arquitetura, a
historicidade de um
conceito
um breve estudo sobre a
mitologia da fundação
da arquitetura (1)
Adson Cristiano Bozzi
Ramatis Lima
123.02
Park Hotel. Lúcio Costa Centralidades
Foto Nelson Kon o simbólico, o
institucional e o
Nova Friburgo é município fluminense em região montanhosa, 136 km ao econômico na região
norte do Rio de Janeiro, fundado por colonos suíços em 1818. Antonio metropolitana de Belo
Clemente Pinto Neto, o 2º Conde de São Clemente tinha ali uma vasta Horizonte
propriedade incluindo uma casa projetada para seu avô pelo arquiteto Leandro de Aguiar e
alemão Gustav Waenheldt por volta dos 1860 e um parque projetado para seu Souza, Yara Landre
pai pelo botânico francês Auguste Glaziou por volta dos 1870 (1). Marques and Diego
Filipe Cordeiro Alves
Planejada com pátio central coberto e pátio de fundos aberto de um lado, 123.03
a casa de um andar e porão tem volume simétrico feito um A. É uma casa Poesia da democracia
pátio com telhado de pouco caimento prolongada por duas alas. Exemplifica Cultura e transformação
bem o ecletismo de estilo da segunda metade do século XIX, quando "formas social na obra de Fábio
evocativas de lugares e hábitos distantes se combinam com materiais Penteado
estruturais e decorativos de produção industrial ou semi-industrial", Ivo Renato Giroto
como diz del Brenna (2). A planta leva jeito de vila romana e antiga, mas
racionalizada. A alusão ao chalé alpino fica por conta da empena do corpo 123.04
avançado na fachada principal, protegida por beirais avançados e A divisão social do
ornamentados por lambrequins. Estes se repetem: primeiro na cobertura trabalho e as
quase plana da varanda de entrada, à frente do corpo avançado, apoiada em transformações da arte
colunas esbeltas de ferro fundido: segundo, nas marquises que protegem e da técnica na
entradas secundárias laterais. O pátio interno é fechado por clarabóia de produção arquitetônica
vidro e metal, mas tem conotações mouriscas: é circundado por galeria com Viviane Zerlotini da
colunas e arcos de ferro fundido revestidos com majólica, como a bacia do Silva
chafariz central. O salão nobre tem paredes suntuosamente pintadas com 123.05
representação de flores e folhagens. La resistencia estética
Eduardo Subirats
Romântico mas disciplinado, o parque se desenvolve à volta duma sucessão
de três plataformas escalonadas, onde as grandes atrações são os lagos e 123.06
cascatas obtidos modificando o leito de um arroio interno, tributário do Mario Palanti
rio Cônego que corre norte-sul por fora ao longo do limite urbano da Textos e ideas.
propriedade. O acesso é um túnel verde de bambus no sentido leste-oeste. Repercusiones e
O túnel termina junto a uma ponte de ferro sobre o rio. Daí se vê a historiografía
plataforma inferior, grande clareira oval. O passeio periférico foca no Virginia Bonicatto
anel d’água que circunda uma ilha artificial com coreto circular ao 123.07
centro. A casa se entrevê por trás da ilha, com a fachada principal Reflexões sobre a obra
voltada para nordeste e o eixo longitudinal passando pelo centro do de Hans Broos
coreto. Outro passeio, grosso modo retangular, conforma a plataforma Karine Daufenbach
intermediária, à volta da bacia d’água em forma de ampulheta. A
plataforma superior, mais comprida, tem limites sinuosos replicando as 123.08
bordas de outra bacia, mais estreita. Um quiosque com aberturas ogivais A participação das
anima a margem sul. Comportas regulam o fluxo de água entre as três novas mídias na
plataformas. Glaziou mistura espécies nativas e exóticas de diversas universalização do
procedências, entre as quais cerejeiras japonesas, papiros egípcios, conceito e dos
magnólias, bambus indianos, plátanos canadenses, cedros do Líbano e a instrumentos legais da
gincgo bilobada chinesa. O resultado é um jardim onde o jogo entre os diversidade cultural
tons de verde na luz ou na sombra é permanente, complementado pelos Eliane Lordello and
reflexos na água e contrastado com a plumagem de diversas espécies de Norma Lacerda
pássaros.

Em 1913, os herdeiros do Conde vendem a propriedade prestigiosa, batizada


de Parque São Clemente, para Eduardo Guinle, filho do bilionário fundador
da Companhia Docas de Santos. Em 1944, os herdeiros de Eduardo, liderados
pelo engenheiro César Guinle, pedem para Lucio Costa o projeto de um
pequeno hotel em empreendimento de alto padrão, batizado de Cidade Jardim
Parque São Clemente. Loteamento residencial de 93 ha para casas de fim de
semana ou veraneio, tem acesso próprio a 1 km do centro da cidade. A
sucessão de plataformas e seu entorno imediato integram o parque de 22 ha
preservado para usufruto dos moradores, depois incorporado como o Nova
Friburgo Country Club (1957). Três hotéis são previstos. O lote do Hotel
do Parque de Lucio é uma língua de terra dando para o parque a sul da
plataforma superior. Instrumento das vendas imobiliárias, o hotel deve
passar a imagem de lazer sofisticado mas informal. Dez apartamentos e dez
anos de operação parecem suficientes. Mais ao sul, 7,8 ha se destinam a
um Hotel de Montanha, até hoje não construído. Em 5,8 ha de um lado e
outro do túnel de bambu, se pensa em um Grande Hotel e praça de esportes.
Nenhum é levado adiante (3).

O folheto de lançamento insiste na proibição de construção de sanatórios,


hospitais, casas de saúde, cocheiras de aluguel e estabelecimentos
industriais, notando a reserva de 6200m2 para comércio de alimentos e a
presença, nas imediações, de granjas modelo para abastecimento e de
fornecedores de materiais de construção. A Cerâmica Parque São Clemente,
de propriedade dos loteadores, pode abastecer o bairro com toda sorte de
produtos cerâmicos, tijolos, telhas e manilhas. Uma pedreira atende as
demandas de pedra para fundações, pisos, paredes e revestimentos. As
matas, embora distantes, darão a madeira, completando a lista dos
materiais básicos de uma construção campestre (4).

O decreto-lei n.º 70 da Prefeitura de Nova Friburgo, de 16 de fevereiro


de 1944, descreve as exigências para loteamentos – como a obrigatoriedade
de caráter específico. No caso dos hotéis, reza o parágrafo único do
artigo 3, as dependências e seus chalés individuais obedecerão em seu
estilo ao tipo hotel de montanha. O artigo 10 reforça e amplia: todas as
construções deverão ter cunho marcadamente campestre, não se permitindo
construções de madeira desmontáveis. A busca de harmonia com a paisagem
leva à obrigatoriedade fechar os lotes com cercas vivas, artigo 15. Pelo
artigo 20, alamedas curvas e pista de rolamento terão respectivamente 20m
e 6m de largura; os passeios fundidos à vegetação não excederão 2m. O
artigo 23 abre exceção para as duas pistas da Alameda Imperial de bambus
nos dois lados do rio. O artigo 26 explica: “Tendo em vista o
aproveitamento das essências existentes nas alamedas, a arborização será
constituída, nesses casos, por conjuntos disseminados, assimétricos e em
harmonia com o aspecto do Parque.” Pelo artigo 27, os compradores não
poderão derrubar mais de um terço das árvores existentes em seus lotes
sem autorização especial do Conselho Florestal Municipal.

Lucio não se incomoda em absoluto com a obrigação de projetar o hotel


como uma composição pitoresca de estilo campestre. Duas são as decisões
fundamentais. A primeira é dispor os apartamentos num andar superior,
dada a exigüidade do terreno. A segunda é optar por estrutura mista de
alvenaria e madeira, à base de paus roliços constituindo esqueleto
independente. Não que a madeira fosse abundante no local. Como o folheto
diz, as matas eram distantes. Lucio e César vão buscar em São Paulo o
eucalipto seco da qualidade necessária. Construir com paredes de
alvenaria portantes seria mais fácil. Entretanto, o uso da madeira era o
modo mais contundente de obter caráter de cabana (com suas conotações de
moradia primitiva, efêmera, precária) e evidenciar a independência
moderna entre suporte e vedação. Lucio quer frisar que o hotel – que
chama de “pousada" – se destinava "apenas à hospedagem de eventuais
compradores de terrenos”, e, ao mesmo tempo, quer demonstrar que a
arquitetura moderna é coisa mental, não questão de material. Ainda mais
radical que Le Corbusier, não limita o uso da madeira à estrutura da
cobertura, como aquele no projeto da Casa Errázuris (1931). Sem deixar de
estabelecer um vínculo com a colonização local, que estaria ausente numa
solução restrita ao pau-a-pique modernizado. Aliás, convicto do interesse
eventual de um hibridismo de estrutura, Lucio já propusera, no projeto
das casas geminadas de Monlevade (1934), caixa de pau-a-pique sobre
pilotis de concreto, tampada por meia-água de cimento-amianto (5).

Park Hotel. Planta

O hotel – comprido de 42m – aparece por vez primeira em escorço, no alto


na subida da alameda, coroando um talude abrupto. Sob a meia-água do
telhado de barro, os balcões dos apartamentos a nordeste se voltam para o
parque de Glaziou. Em balanço de largura aparente variável sobre o andar
térreo, os balcões tem guarda-corpo de treliça azul, com peitoris presos
aos postes de eucalipto na borda do piso do primeiro pavimento. A
estrutura do pavimento e do telhado inclui outra sucessão de paus
roliços, aparentes em intervalos curtos sob o tabuado do piso e do forro.
Os postes rematam os tabiques de tábuas brancas entre os balcões; os
tabiques prolongam as paredes entre os apartamentos, de pau-a-pique como
as empenas caiadas. Excepcionalmente, os postes se soltam nos balcões
extremos e os guarda-corpos dobram, morrendo no topo das empenas. Acima,
os balanços dos telhados acentuam a leveza do conjunto. Esquadrias com
bandeiras superiores acentuam a sua horizontalidade, enchendo os vãos
entre as paredes divisórias, piso e forro. O andar superior se mostra
sereno, fino, alveolar, rendado, delicado.

Park Hotel
Foto Nelson Kon

O pragmatismo do empreendimento é, como visto, relativo, no que tange à


opção pelo eucalipto. A evocação de tempos distantes é parte da equação.
Pau roliço rima com o assentamento inicial do português na terra
americana e a morada índia que o precede. Pau-a-pique ou taipa de sopapo
ou taipa de mão, técnica ainda prevalente no país rural da época, foi,
parece, introduzida aqui pelo africano escravo. A treliça azul integra o
vernáculo colonial. Como Lucio nota na memória da Cidade Universitária
(1937), parafraseando Quatremère de Quincy, teórico da tradição acadêmica
em que Lucio se formou, "as particularidades de planta" e "a escolha dos
materiais a empregar e respectivo acabamento" podem dar "caráter local
inconfundível" a um projeto, implicando no primeiro caso as
particularidades de elevação e no segundo a definição de massas e tipos
de construção igualmente assinaladas pelo francês. (6)

Contudo, Lucio também nota que a arquitetura moderna se funda na


estrutura independente e na redução dos elementos técnico-construtivos
primários à sua geometria essencial, no despojamento das suas superfícies
de toda decoração. A proximidade entre os paus roliços garante a planeza
virtual do piso e do telhado, expandindo a experiência com a cobertura do
Grande Hotel de Ouro Preto, que Oscar Niemeyer projetara com Lucio de
consultor (1940). Não bastasse, o andar térreo mostra uma varanda entre
um volume de pedra, madeira e vidro à esquerda e uma caixa de madeira e
vidro à direita. A pedra do primeiro se recorta para acomodar a janela de
ângulo e os níveis diferentes do restaurante na esquina sobre a cave
semienterrada e do estar junto à varanda. A esquadria de forro a piso com
janelas guilhotina deixa entrever atrás a colunata periférica de madeira.
A esquadria se chanfra junto à varanda, intensificando a conexão desta
com o jardim. A colunata rompe a esquadria e se superpõe à lateral da
escada, ao guarda-corpo da varanda e à caixa de madeira e vidro usada
como sala de jogos.

A simplicidade repetitiva do andar superior se contrapõe ao drama térreo.


A extroversão do mecanismo da planta livre é aqui tão exuberante quanto
no Pavilhão Brasileiro na Feira de Nova York de 1939, ou no Grande Hotel
de Ouro Preto. Como em Ouro Preto, a planta celular do setor privado em
Nova Friburgo se superpõe à planta livre do setor social. À diferença de
Ouro Preto, a varanda tem toda a largura do bloco; a porosidade é plena,
sem intermediação de painel vazado. Variações sobre o tema do vazio total
entre dois sólidos, os dois hotéis integram uma série que inclui, além do
Pavilhão (feito por Lucio e Niemeyer) e da sede do Ministério de Educação
(de Lucio, Niemeyer, Reidy, Moreira, Leão e Vasconcelos), a sede da
Associação Brasileira de Imprensa, a colônia de férias do Instituto de
Resseguros do Brasil e o aeroporto Santos Dumont dos irmãos Roberto, o
Museu de Lucio para São Miguel das Missões, o projeto de Reidy para a
sede da Prefeitura do Rio de Janeiro e a maioria dos edifícios de
Niemeyer na Pampulha, a Capela, a Casa do Baile e o Iate Clube como o
Hotel não terminado. A série atualiza um esquema secular, empregando
elementos de arquitetura moderno cujas correspondências com a tradição
construtiva nacional e racional se fazem notar. Assim, por exemplo, a
janela horizontal e o pano de vidro se assimilam à janela corrida
fechando as galerias internas de casario colonial; o esqueleto
independente de madeira rústico, ao esqueleto de concreto ou aço
metropolitano (7).

A fachada oeste do Hotel do Parque São Clemente surge ao chegar-se à


esquina arredondada, quando o terreno se nivela com o passeio. Dois
planos verticais modulam um espaço raso. Um é balizado pelas duas colunas
externas apoiadas no chão e pelo piso inferior, elevado mas na mesma
prumada. O outro é definido pelo piso superior em balanço, sustentado por
duas toras amarradas às colunas. A empena branca em balanço avança em
relação às colunas e seu contraventamento, peças de madeira entrecruzadas
que evocam o enxaimel das casas do imigrante helvético tanto quanto uma
treliça colonial desmesurada. Atrás dela, placas verticais brancas sobre
um peitoril azul protegem a sala de jogos do sol da tarde. A composição
se desdobra. Outra meia-água mais baixa e de sentido inverso, de projeção
horizontal simétrica em forma de T, abriga o corredor superior e a caixa
saliente com a recepção e a escada. A caixa é de pedra e sai do chão
junto à varanda. O corredor é fechado por tábuas de madeira verticais e
em balanço, no mesmo plano das colunas. Envernizado escuro, o volume
contrasta com a empena branca e é equilibrado, no lado oposto, pelo
guarda-corpo em L ocupando a esquina e pelo plano da meia-água principal,
repousando em quatro toras de menor seção. A fachada lembra um zigurate
invertido, evocando o chalé suíço, e o lugar distante, com mais
verossimilhança que a casa de Wænheldt.

As faixas de janelas que iluminam galeria e escada correm junto ao forro,


reforçando a planeza da parede em que se assentam e a do telhado que as
protege. Os banheiros se iluminam por faixa mais alta de janelas entre as
duas meias-águas. A solução é afim à das casas Murondins (1940), cuja
estrutura de cobertura é em paus roliços ("rondins"), embora o telhado
mesmo seja de palha e as paredes em taipa de pilão. É coincidência,
porque o projeto corbusiano só se publica em 1947. Duas outras meias-
águas intervém. Junto da varanda, a marquise de entrada se engasta numa
ponta da caixa de pedra e se alça, no sentido inverso ao da cobertura da
caixa, sobre paus roliços que integram apoios em V, parodiando, na sua
materialidade deliberadamente canhestra, a marquise da vila Stein de Le
Corbusier em Garches (1929) ou o Cassino da Pampulha de Niemeyer (1942),
misturas de apoio metálico esbelto com laje pesada que remontam a
Viollet-le-Duc passando pelo "art nouveau". Engastado na outra ponta da
caixa e caindo no mesmo sentido da sua cobertura, um telheiro avança.
Abriga carros e entrada de serviço e logo se retrai, recortado para
tampar o banheiro e vestíbulo de serviço antes de morrer contra a parede
da cozinha. Esta compõe com a casa do ecônomo em esquadro uma ala térrea
que avança, iluminada por terraço rebaixado em relação à rua que sobe.

Numa visada desatenta, o arranjo parece casual. Contudo, o contraste


formal entre fachadas opostas de uma barra tinha sido explorado
plenamente no Pavilhão Brasileiro (como elevação estratificada para a rua
que vira vertical no jardim) e no Grande Hotel de Ouro Preto (como
elevação frontal endentada e rendada que ganha aos fundos textura de giz
e baixo-relevo). Aqui, a adição de volumes (ou decomposição volumétrica)
na fachada de entrada contradiz a contenção volumétrica na fachada
oposta, e não se pode evitar remetê-la também ao Pavilhão Suíço
corbusiano (1931), totalmente apropriada numa residência temporária em
colônia de suíços. De fato, outras correspondências ligam os dois
edifícios: a coexistência de planta celular e planta livre, a
transferência de cargas do telhado para colunas na borda do primeiro piso
em balanço, talvez mesmo a hibridação de sistemas estruturais, o aço e
concreto metropolitano em Paris substituído pela pedra e madeira rurais
em Nova Friburgo como na casa de veraneio de Le Corbusier em Mathes
(1934). Certo, é alusão sutil e parcial. Além das óbvias diferenças em
materialidade e, portanto, em ambiência, Lucio entra pelos fundos, por
assim dizer, e ocupa o pilotis. O contraste entre as duas fachadas é
menos incisivo e mais exacerbado em Nova Friburgo que em Paris, onde a
barra pura e sólida comanda o espetáculo nos dois lados. A alusão à
modernidade de ponta acompanha a extensão do vocabulário e da sintaxe
modernos e se funde com a referência a características ordinárias dos
edifícios chãos do Brasil rural. Lucio parece querer recapturar o jeito
esparramado que a construção rural adquire no tempo, a "simplicidade,
derramada e despretensiosa" tributária dos "bons princípios das velhas
construções que nos são familiares" (8).

Park Hotel
Foto Nelson Kon

Contudo, a simplicidade aqui é das mais elaboradas. A marquise de entrada


é a nota dissonante numa diretriz oblíqua que vincula a aresta do salão
de jogos à aresta da cozinha. A diretriz se demarca por uma sucessão de
planos que avançam progressivamente. O quebra-sol vertical superposto à
esquadria da sala de jogos dá lugar ao pára-vento quadriculado e
envidraçado na frente da varanda, preso no extremo do balanço acima. Em
contraponto que reitera a autonomia entre estrutura e vedação, às duas
colunas sobre o quebra-sol sucedem duas colunas atrás do pára-vento,
separado por uma fresta da caixa de pedra. À esta se segue o plano de
fechamento vertical virtual do telheiro da entrada de serviço e o recorte
que constitui outra fresta e destaca a alvenaria da ala da cozinha. Os
planos se sucedem com materialidade distinta. A ala da cozinha é
construída com tijolo chato de seção peculiar, com macho boleado e fêmea
côncava nos lados maiores opostos, feito lambris ou assoalho. A
materialidade distingue progressões ternárias: o pára-vento ladeado pelos
cheios do quebra-sol de madeira e da caixa de pedra áspera, o vazio do
telheiro entre a caixa de pedra e a superfície corrugada e estriada da
cozinha. A diagonalidade da apresentação se reitera no contraste entre a
leveza relativa de biombo e pára-vento numa ponta e a cascata fosca de
telhados ancorada por pedra e tijolo. Ressalta a condição de lote de
esquina e engaja a superfície da rua na composição. Ao mesmo tempo,
dificulta o reconhecimento de arranjos frontais quase simétricos
definindo um trecho de composição piramidal; reiterando a alusão à vila
de Garches, a marquise de entrada e o telheiro de serviço avançam de cada
lado da caixa de pedra e esta por sua vez avança sobre o volume de
madeira abrigando o corredor superior. Estilo campestre, mas
desestabilizado pela geometria complexa; composição pitoresca, mas
cerebral, de modo que até o toque açucarado dos canteiros de amor-
perfeito no jardim se neutraliza.

Ao entrar, a abertura quadrada na parede de pedra atrás do balcão da


recepção minúscula enquadra varanda, jardim e parque e se alinha com a
porta de entrada, reiterando-se a porosidade observada fora. Estrutural
enquanto resistência e agenciamento, a parede organiza o trajeto dilatado
e sinuoso. Registrado, o hóspede desce três degraus e mais um patamar,
num giro de 90º que o põe na frente de outra abertura para a varanda,
desta vez uma porta. Mais um giro e tem a opção de subir a escada ou
ingressar no salão, normalmente em movimento oblíquo. A caixa de escada
dissimula armários por trás da vedação cálida e barata em tábuas de pinho
de nó; balaustres planos compõem guarda-corpos que reproduzem a silhueta
de um modelo colonial brasileiro. A entrada no salão mostra o balcão do
bar com o tampo de bordos serpenteantes em latão e as superfícies cônicas
invertidas em madeira de sua parede. A esquadria facetada se abrindo
conduz o olhar para a plataforma mais alta das refeições, para acomodar a
adega abaixo e proporcionar um esplêndido mirante comandando interior e
exterior. O nível do bar é o mesmo das muretas que contém a plataforma e
os degraus que lhe dão acesso, perpendiculares à largura do salão. Ganhar
a área de refeições partindo do estar demanda dois giros de corpo, uma
curva reversa. No espaço relativamente pequeno de 120 m2 e cinco
intercolúnios, a coreografia do movimento engaja o visitante de maneira
surpreendente e visceral.

Lucio é responsável pelo projeto dos interiores junto com o decorador


Pierre Volko. Desenha as mesas e cadeiras de pé palito, a lâmpada de pé
de ferro forjado e abajur cilíndrico de pergaminho, os apliques de mesma
linha acima da lareira. Escolhe as cadeiras dobráveis tipo safári, as
poltronas e os sofás despretensiosos forrados de tecido azul com vivos
brancos ou de listas azul e branco com vivos azuis, a louça branca com
filete vermelho comprada junto com o proprietário, os talheres pesados e
os copos de cristal bojudos. Desaforado na rejeição de qualquer
ortodoxia, o ecletismo idiossincrático de Lucio tem a ver mais com o
apartamento Beistegui do Corbusier dos 1930 que com o Pavilhão de
L'Esprit Nouveau do Corbusier dos 1920, apesar da seriedade máscula da
cadeira safári, tradicional em acampamentos de caça. Os estofados
combinam o conforto britânico com o colorido luso-brasileiro. Luminárias
e balcão do bar adotam uma frivolidade francesa. Os globos de vidro
suspensos replicam um modelo da antiguidade romana.

Park Hotel
Foto Nelson Kon

A provocação, se não ironia, continua na varanda. Seus quatro


intercolúnios se subdividem em dois setores. Um tem sabor de passadiço,
comprimido entre a caixa de pedra e a escada que conduz ao jardim
cuidado. O outro se expande, entre o guarda-corpo e o pára-vento. Visto
de dentro, o pára-vento recua deixando isentas as duas colunas entre a
caixa de pedra e o salão de jogos pentagonal. O peitoril se superpõe a
três colunas frente ao jardim. Encostado à quina da parede de pedra, o
aviário em tela metálica tem o mesmo tipo de superfícies cônicas que o
balcão do bar. A estrutura é em ferro pintado branco, como o sofá de
volutas rococó ou as cadeiras de jardim parisiense, similares às que Le
Corbusier usava no terraço do apartamento na Porte Molitor. As
espreguiçadeiras contra o salão de jogos intimam comparações entre a
varanda e o convés de navio.

Após a sequencia de compressão e a expansão, a descida ao jardim requer


outro giro de corpo para ingressar na escada paralela à fachada. A
transição entre edifício e jardim se faz pelo patamar afilado que o
chanfro do salão limita e a laje de pedra irregular pavimenta. Uma nova
experiência de expansão se segue ao estreitamento dos degraus. O
movimento de penetração oblíqua se repete. Contudo, uma vez ao ar livre,
mesmo desfrutando da vista da plataforma do jardim superior de Glaziou,
não há descanso, por que, ao longo do edifício, o jardim plano se resume
a uma nesga, outro passadiço, mas de pedra. O remanso só se encontra nos
extremos, na ponta em proa do terreno observada na chegada e no pátio
traseiro, popa configurada pela empena do restaurante e pela ala do
ecônomo. O arranjo bi-nuclear do andar térreo se repete a céu aberto, a
metáfora do navio se reafirma, a viagem chega ao fim (9). Com direito à
expansão do panorama no quiosque, lagos, passeios, plataformas e chalé do
velho Império, a clareira antes do bosque.

Nos quartos, o apainelamento em pinho de nó na altura de porta dissimula


armários e gera um rebaixamento de forro virtual. As cortinas se mantém
na mesma altura, livrando a bandeira de venezianas móveis para
ventilação. O rebaixo traz intimidade sem prejuízo da integridade da
cobertura inclinada. As lâmpadas de pé e o aplique são do mesmo modelo do
salão. Lucio desenha as camas e mesas de cabeceira em madeira também
escura. Aquelas são plataformas elevadas, precursoras, recobertas de
grossos cobertores de padrão escocês de um lado e lisos do outro. As
mesas de cabeceira se engastam à parede e de outro lado se apóiam num só
pé palito inclinado, a formalização contemporânea evocando elemento
típico de mobiliário alpino. As bordas do tampo se desbastam e as quinas
se arredondam numa maneira que sugere Gaudí. Nos banheiros brancos,
"espessas toalhas brancas de banho-grandes, que disto fazia questão"
(10).

Park Hotel
Foto Nelson Kon

Sincretismo tecnológico, ecletismo de agenciamento, dualidade exacerbada


em planejamento, volumetria, composição e caráter, tudo se credita enfim
à inclusividade da arquitetura moderna de que Lucio já falara antes, na
mesma memória da Cidade Universitária já citada. Cabem nela a cabana e o
palácio. Pode-se nela justapor aspereza e doçura, amadorismo e
sofisticação, modéstia e luxo, improvisação e preparo, naturalidade e
mundanismo. E encenar, à base de fotogramas que se descobrem no “passeio
arquitetônico”, a transformação que leva dum termo a seu oposto.
Diferenciadas intrinsecamente, as faces do edifício denunciam as fases
dum processo. Mostradas sequencialmente, são o equivalente arquitetônico
da decomposição do movimento na escultura de Boccioni ou no quadro de
Duchamp. A própria transformação vira tema de representação privilegiado.
A pousada que “muito tocou o coração” do autor, “concebida e inaugurada
num prazo mínimo” e “fruto de uma comunhão de propósitos do arquiteto e
do proprietário”, é bem menos fácil e inocente que parece (11). Afinal,
sua linhagem inclui a pequena aldeia que Maria Antonieta havia construído
e povoado para brincar de pastora. Anunciando, na sua inconsciência, a
transformação da unidade produtiva em decoração, a futura encarnação do
parque aristocrático no subúrbio jardim industrial e burguês.

A evocação de lugares e tempos distantes de Wænheldt se faz com


ornamento, historicismo, folclore. O chalé exemplifica o ecletismo de
estilo, a expressão proposta por Henry-Russel Hitchcock (12) para
designar "traços de diferentes estilos usados juntos no mesmo edifício".
A composição inclui a cópia, feita com boa dose de estilização, de
fragmentos originários de distintos tempos, que permanecem formalmente
diferenciados. A heterocronia de origem corresponde à heterocronia de
aparência, mas a axialidade e a simetria rígidas unificam a composição e
minimizam a impressão de uma colagem. A modernidade se expressa no
elemento material de proporções específicas (a telha, a coluna de ferro).
A evocação de lugares e tempos distantes de Lucio aceita textura, admite
relevo, mas vem sem ornamento, sem molduras. Dispensa o historicismo e o
folclore (13). As alusões ao passado mais remoto não se equacionam
estilisticamente. A balaustrada da escadaria é a exceção conspícua, mas
planar, confirmando que a fonte de remissão privilegiada é a arquitetura
vernácula. Em qualquer caso, Lucio visa a fusão com a elaboração moderna,
a heterocronia (i.e., a temporalidade distinta) de origem submersa na
isocronia (i.e., a temporalidade idêntica) de aparência. Adota um
ecletismo filosófico, a expressão proposta por Richard Etlin para indicar
"a extração de princípios da arquitetura de culturas passadas sem tomar
de empréstimo rasgos estilísticos" (14). A modernidade do elemento
material é secundária, e mesmo, no caso, descartada. O ônus de
assinalação do presente se transfere à composição, em última instância à
planta livre.

Tudo isso posto, o hotel de Lucio frisa a artificialidade do bucolismo


republicano tanto quanto o chalé de Wænheldt e o parque de Glaziou frisam
a artificialidade do bucolismo aristocrático. Sua vizinhança realça a
comunidade de origem de hotel e loteamento, chalé e parque. Realizados em
tempos diversos, evocam a mesma Arcádia primitiva que a música do deus Pã
civilizou. A vizinhança não é deliberação do arquiteto. Mas a ênfase na
impermanência material do hotel sim, e uma comunidade de destino se
insinua, se não como ameaça, ao menos como constatação. Nenhuma Arcádia
dura; quando muito se transforma. Dadas as condições brutas da Arcádia
real, para muitos a transformação é sempre ganho, progresso acompanhado
de democratização, viagem da barbárie para a civilização. A idade de ouro
está à frente. Para outros, saudosos da suposta simplicidade e coerência
da vida tribal e pastoral, a transformação é perda, é a queda, o
distanciamento cada vez mais corrompido de uma idade de ouro mais
perfeita. Emblema do engajamento de Lucio na arquitetura moderna, a
planta livre ajuda a purgar de melancolia a referência à Arcádia
imaginária, implicada pela seleção de materiais e técnicas construtivas.
Enquanto, em plena Guerra Mundial, a seleção ajuda a purgar o engajamento
de uma exultação indevida e demasiado ingênua.

notas

1
Os Clemente Pinto foram uma das famílias mais ricas do II Império brasileiro.
Não há, que o autor saiba, monografia sobre o alemão Gustav, que veio para o
Brasil em 1852 tendo ganho concurso para o Theatro Lyrico do Rio, e fez para o
primeiro Antonio Clemente Pinto, Barão de Nova Friburgo, o Palácio do Catete no
Rio de Janeiro, exemplo de ecletismo de estilo como diz Henry-Russel Hitchcock,
e a sede da Fazenda Gavião além da casa em questão. Sobre Glaziou, a informação
é abundante. Ver Hugo Segawa. Ao amor do jardim (São Paulo: Nobel/Edusp, 1996)
e Carlos Gonçalves Terra, O Jardim no Brasil do Século XIX: Glaziou Revisitado
(Rio: UFRJ/EBA, 1993).

2
Giovanna Rosso del Brenna, "Chalets, quiosques etc.: o gosto pelo pitoresco no
último quartel do século XIX", in Annateresa Fabris (org), Ecletismo na
arquitetura brasileira (São Paulo: Nobel/ Edusp, 1984), pp 36

3
Folheto de lançamento, 1945, cópia cedida ao autor por Maria Helena Guinle,
filha de Cesar Guinle.

4
Idem.

5
Ver Lucio Costa, Sobre arquitetura (Porto Alegre: CEUA, 1962), pp 42- 55.

6
Ver Lucio Costa 1962 ( ver nota 2), p. 85 e Quatremère de Quincy, verbete
caractère, in Dictionnaire Historique (Paris: le Clère, 1832)

7
Para um tratamento completo, ver a tradução em português da minha tese de
doutorado, Carlos Eduardo Comas, Precisões brasileiras: arquitetura moderna
1936-45 (Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2002).

8
Ver Lucio Costa 1962 (ver nota 2), p. 85.

9
O Parque São Clemente, que foi por indicação dos proprietários, tombado como
área de interesse nacional em 28/11/1957.

10
Lucio Costa, Lucio Costa: registro de uma vivência (São Paulo: Empresa das
Artes, 1995), pp. 214-217. Parque Hotel, Friburgo, 1940.

11
Costa 1995 (ver nota 6).

12
Henry-Russel Hitchcock, Modern Architecture: Romanticism and Reintegration (New
York: Payson and Clarke,1929) p.6.

13
Como mostra o relatório das Museu das Missões, Lucio não é avesso à composição
de fragmentos originais de distintos tempos formalmente diferenciados, à
heterocronia de aparência e origem que equivale a uma assemblage de despojos.
Ironicamente, no caso das Missões, os fragmentos acabaram por ter de ser na
maioria réplicas. Ver Carlos Eduardo Comas (org.), Lucio Costa e as Missões: um
museu em São Miguel (Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2007).

14
Richard Etlin, Frank Lloyd Wright and Le Corbusier: the Romantic legacy
(Manchester and New York: Manchester University Press, 1994), pp. 150-151.

sobre o autor

Carlos Eduardo Dias Comas, arquiteto, professor titular da FAU UFRGS

comments

© 2000–2022 Vitruvius The sources are always responsible for the accuracy of the
All rights reserved information provided

Você também pode gostar