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123.04 year 11, aug. 2010

A divisão social do trabalho e as transformações da arte e


da técnica na produção arquitetônica
Viviane Zerlotini da Silva

1. A divisão do trabalho na sociedade e no interior do processo de


produção

Karl Marx (1983), ao analisar a evolução social do modo capitalista de


produção, demonstra diversas formas e significados que o termo divisão do
trabalho assume nas sociedades primitivas e nas capitalistas. Conforme
aponta o autor, a divisão do trabalho na primeira difere em grau e
substância da divisão do trabalho nesta última. No primeiro caso, a
divisão do trabalho surge de forma espontânea no interior das comunidades
primitivas:

“A lei que regula a divisão do trabalho na comunidade opera com a


força irresistível de uma lei natural. Cada artesão particular, o
ferreiro, o oleiro etc. realiza todas as operações pertinentes a
seu ofício, de maneira tradicional, mas independente e sem
reconhecer autoridade acima dele em sua oficina” (1).

Portanto, a divisão do trabalho nas sociedades primitivas era, em geral,


fundada na diferenciação dos ofícios e não na divisão do trabalho dentro
da oficina.

Marx cita as corporações de ofício da Idade Média para esclarecer como “a


estrutura dos elementos econômicos fundamentais” (2) da organização
corporativa impediam “a transformação de um mestre artesão em
capitalista” (3). A limitação do número de aprendizes que o mestre
artesão tinha que empregar, a venda de mercadorias e não do trabalho como
mercadoria e, principalmente, a união indissolúvel entre o trabalhador e
os seus meios de produção contribuíram para a defesa da corporação contra
o capital mercantil.

Por sua vez, a divisão do trabalho na manufatura é contemporânea ao


Capitalismo. Braverman define divisão do trabalho como “o parcelamento
dos processos implicados na feitura do produto em numerosas operações
executadas por diferentes trabalhadores” (4).

O autor entende que “a divisão do trabalho na produção começa com a


análise do processo de trabalho”, ou seja, a divisão do processo de
trabalho em seus elementos constituintes. Entretanto, esta primeira forma
de parcelamento de trabalho foi e será prática comum “em todos os ramos e
ofícios”. Ele esclarece que o mesmo trabalhador adota vários expedientes
e recursos para o parcelamento de operações que permitam produzir maiores
quantidades de mercadorias “com menos trabalho e maior economia de tempo”
(5).

Um segundo passo nesta divisão do trabalho ocorre quando é atribuído a


trabalhadores distintos, as diferentes operações. Braverman (1981) cita o
conhecido exemplo dado por Adam Smith em seu livro A Riqueza das Nações –
a organização parcelada do trabalho na fabricação de alfinetes.

“Um homem estica o arame, outro o retifica e um terceiro o corta;


um quarto faz a ponta e um quinto prepara o topo para receber a
cabeça; a cabeça exige duas ou três operações distintas: colocá-
la é uma função peculiar, branquear os alfinetes é outra e até
alinhá-los num papel é coisa separada; e o importante na
fabricação de um alfinete é deste modo dividido em cerca de
dezoito operações que, em algumas fábricas, são executadas por
mãos diferentes, embora em outras o mesmo homem às vezes execute
duas ou três delas” (6).

A divisão parcelada do trabalho representa várias vantagens para o


capitalista: economia de tempo e aumento de produtividade, bem como
aumento do controle gerencial. Entretanto, Braverman aponta outra
vantagem que segundo ele merece um destaque maior: a desvalorização da
força de trabalho. De acordo com o autor, Charles Babbage foi quem
primeiro formulou claramente este princípio. Braverman revela o seu
aspecto social:

“O princípio de Babbage é fundamental para a evolução da divisão


do trabalho na sociedade capitalista. Ele exprime não um aspecto
técnico da divisão do trabalho, mas seu aspecto social. Tanto
quanto o trabalho pode ser dissociado, pode ser separado qual
mais simples que o todo. Traduzido em termos de mercado, isto
significa que a força de trabalho capaz de executar o processo
pode ser comprada mais barato como elementos dissociados do que
como capacidade integrada num só trabalhador” (7).

Segundo Braverman, a divisão do trabalho capitalista, ao fracionar a


força de trabalho em “seus elementos mais simples” (pág. 80), desassocia-
se “do conhecimento e preparo especial”. Outro aspecto subjacente na
divisão horizontal do trabalho capitalista fica reforçado: a divisão
vertical do trabalho (separação entre trabalho intelectual e manual):

“Toda a fase do processo de trabalho é divorciada, tão longe


quanto possível, do conhecimento e preparo especial, e reduzida a
simples trabalho. Nesse ínterim, as relativamente poucas pessoas
para quem se reservam instrução e conhecimento são isentas tanto
quanto possível da obrigação de simples trabalho” (8).

Feita esta distinção entre a divisão do trabalho nas sociedades


primitivas e no interior do processo de produção capitalista, é
necessário voltar à Marx para ressaltar que estas duas formas da divisão
do trabalho – vertical e horizontal – se aperfeiçoaram nas sociedades
capitalistas, tornando um pressuposto para o desenvolvimento da outra:

“Sendo a produção e a circulação de mercadorias condições


fundamentais do modo de produção capitalista, a divisão
manufatureira do trabalho, pressupõe que a divisão do trabalho na
sociedade tenha atingido certo grau de desenvolvimento.
Reciprocamente, a divisão manufatureira do trabalho, reagindo,
desenvolve e multiplica a divisão social do trabalho” (9).

Pretende-se, neste trabalho, evidenciar as duas formas de inserção da


divisão do trabalho na produção arquitetônica situadas em dois momentos
distintos; o que a grosso modo corresponde ao que Marx denomina
sociedades econômicas pré-capitalistas e capitalistas. Não há aqui
nenhuma pretensão de traçar em detalhes a evolução da divisão do trabalho
ao longo das diversas formações históricas, mas sim analisar a produção
arquitetônica anterior ao modo capitalista de produção e no interior da
sociedade capitalista.

2. A produção arquitetônica anterior ao modo capitalista de produção

Christopher Alexander (1969), em seu livro Ensayo sobre la Syntese da


Forma recorre ao modo de produção de edificações de culturas primitivas
para exemplificar o que ele define de coerência entre forma e contexto.
Na busca pelas origens do “bom ajuste” entre estas duas entidades,
Alexander revela as peculiaridades do modo pelo qual as culturas
primitivas produzem arquitetura, sem arquiteto. Com relação à divisão do
trabalho, várias particularidades ficam evidentes, entre elas, a não
divisão do trabalho no interior da produção e, principalmente, o fato do
membro da comunidade ser, ao mesmo tempo, o idealizador da forma, o
construtor, o usuário e o mantenedor da construção.

Alexander (1969) realiza um exame detalhado da coerência formal das


rústicas cabanas erguidas pelos índios africanos Mousgoum. O autor revela
como os construtores destas cabanas modelam suas formas de acordo com as
exigências do contexto no qual a comunidade indígena vive:

“Seja ou não por coincidência, o fato é que a forma hemisférica


da choça proporciona a superfície mais eficaz para a passagem
mínima de calor e mantém a interior toleravelmente bem protegido
do calor do sol equatorial. Sua forma é mantida por uma série de
nervuras verticais de reforço. Além de contribuir para suspender
a estrutura principal, estas nervuras atuam também como canaletas
para a água das chuvas e ao mesmo tempo são usadas pelo
construtor da choça como degraus de acesso a parte superior do
exterior durante a construção. Em vez de utilizar um andaime
efêmero (a madeira é muito escassa), constrói o andaime como
parte da estrutura. Mais além: meses depois, este “andaime” segue
ali, quando o proprietário tem que subir para fazer reparações na
sua choça. Os Mousgoum não puderam, a diferença de nós, permitir-
se o luxo de considerar a manutenção como uma incomodidade que
mais vale esquecer até que chegue o momento de chamar o
construtor do lugar. Entre eles, a manutenção está nas mesmas
mãos do próprio trabalhador da edificação e suas exigências
contribuem tanto para modelar a forma como as da construção
inicial” (10).

O primeiro aspecto do modo de produção primitivo que se faz evidente é a


existência de “poderosas tradições” que resistem energicamente a
mudanças. A rigidez da tradição permite de um lado que os construtores
trabalhem “dentro de limitações categoricamente estabelecidas” (11). Suas
ações são regidas pelas normas implícitas da tradição. Por outro lado, a
tradição impede que alterações externas perturbem a integridade da forma
estabelecida ao longo de anos de experimentações.

Um segundo aspecto do modo de produção das comunidades primitivas é a


ação imediata do trabalhador frente a algum desajuste. O que permite isto
é o fato do construtor ser o próprio proprietário. Ele conhece como
ninguém suas necessidades e modela a forma para atender às exigências do
dia-a-dia.

Alexander (1969) afirma que a tradição rígida e a ação imediata não são
fatores contraditórios no interior do processo de produção, mas se
completam porque atuam em esferas diferentes. Os rígidos princípios da
tradição somente se afirmaram depois de um longo processo de paulatinas e
pequenas adaptações da forma às exigências do contexto.

No âmbito da divisão do trabalho, há uma unidade no processo produtivo,


pois cada membro da comunidade constrói sua própria morada, modelando a
forma de acordo com os princípios implícitos da tradição e suas
necessidades cotidianas.

O imediatismo do processo de produção – reação instantânea do


construtor/morador diante de problemas de ordem prática – revela a
natureza global do processo de trabalho. O membro da comunidade
compreende em si todas as atividades de produção: concebe, constrói, mora
e mantém sua própria morada. O conhecimento prático das particularidades
de cada uma destas atividades qualifica o indivíduo a produzir uma forma
mais ajustada ao contexto no qual habita.

A descrição realizada por Alexander (1969) do modo de ensino e apreensão


dos ofícios da construção revela a união direta entre a atividade de
construir e o ofício. Nas culturas primitivas a aprendizagem ocorre de
forma direta. O aprendiz adquire o conhecimento do ofício mediante a
experiência obtida durante o curso da ação, ou seja, construindo (12).

Portanto, a aprendizagem baseia-se em problemas que ocorrem no cotidiano


de trabalho e não em princípios gerais formulados previamente. Além
disto, o conhecimento é transmitido oralmente: “Não há relações escritas
nem desenhos arquitetônicos” (13); e a forma é apreendida “mediante pura
prática, através da imitação e da correção” (14).

O mesmo processo de aprendizagem observado nas culturas primitivas é


encontrado nas corporações de ofício da Idade Média. Nas corporações há
uma relação de hierarquia entre mestres e aprendizes que se desfaz quando
o processo de aprendizagem chega ao fim. No entanto esta divisão do
trabalho em nada se compara com a divisão entre conceber e executar que
encontramos nas sociedades capitalistas:

“Um artesão, para dominar o saber e as regras de seu ofício, deve


conviver com os mestres durante vários anos. Há divisão de
trabalho no início, mas, ao cabo do processo de aprendizagem,
eliminam-se as diferenças e a hierarquia. O saber, a forma de
realizar o trabalho, através da convivência duradoura com os
mestres, não se cristaliza numa hierarquia social fixa, mas é
interiorizada por cada um dos artesãos-trabalhadores. A
socialização no trabalho artesanal elimina as diferenças naturais
(só existentes devido à diferença de idade ou tempo de
aprendizagem), enquanto a divisão capitalista do trabalho
naturaliza a divisão social entre mandantes e mandados, entre
planejadores e executores” (15).

O trabalho de construção das catedrais góticas da Idade Média baseava-se


na cooperação de várias corporações de ofícios. As corporações
distinguiam-se entre si pela habilidade dos artesãos trabalharem um
material em particular: a pedra, ou a madeira ou o vidro, etc. Neste caso
a divisão do trabalho esta fundamentada no domínio do conhecimento
empírico de cada artesão ao trabalhar determinado material. As diferentes
denominações dos mestres artesãos evidenciam a divisão do trabalho
baseado na técnica desenvolvida pelas corporações a fim de trabalhar cada
material específico de uma construção: “o mestre-cavouqueiro, o mestre-
cortador de pedras, o mestre-escultor, o mestre-encorregado da argamassa,
o mestre-pedreiro, o mestre-capinteiro, o mestre-ferreiro, o mestre-
telhador e o mestre-videiro” (16).

Constata-se que a organização do trabalho nas culturas pré-capitalistas


baseia-se no artesanato e na unidade do processo de trabalho. Nilton
Vargas (1979) confia a este último ponto o controle que o artesão detém
de todo o processo de produção:

“A atividade do artesão pressupõe uma íntima união entre a


atividade intelectual e a manual. O artesão conduz todas as fases
de produção de um objeto, desde a concepção até sua execução
final. Indubitavelmente, o seu trabalho é altamente qualificado.
Toda a potencialidade e habilidade, tanto manual, quanto
intelectual, são traduzidas na produção de um bem” (17).

De fato esta união entre a atividade intelectual e manual é pressuposto


fundamental para o domínio do artesão sobre o processo de trabalho. E
após anos de aprendizagem o trabalho do artesão torna-se altamente
qualificado. No entanto, o exame cuidadoso do modo de trabalho empregado
pelos artesãos permite destacar outras condições sociais e técnicas que
contribuíram para a conservação da autonomia do trabalho. A propriedade
dos meios de produção, a relação direta do artesão com a atividade de
construir e as normas implícitas nas rígidas tradições ou nas corporações
de ofício permitiram que o trabalhador obtivesse, através do tempo,
controle total sobre o objeto a ser edificado.

Portanto, a prática arquitetônica anterior ao modo de produção


capitalista, como em qualquer outro setor produtivo, caracteriza-se pela
divisão do trabalho na sociedade em diferentes ofícios e pela união
indissolúvel do trabalhador aos meios de produção.

3. A produção arquitetônica no interior do modo capitalista de produção

As origens da divisão do trabalho no interior da produção remontam ao


período pré-capitalista de produção. A forma de organização particular
deste período é denominada por Marx (1983) de cooperação simples.
Pressuposto fundamental para origem do modo capitalista de produção, a
cooperação simples caracteriza-se pela “forma de trabalho em que muitos
trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção
ou em processos de produção diferentes mas conexos” (18). Na visão de
Marx, a cooperação simples distingue-se da cooperação nos moldes
capitalista de produção principalmente pela forma de trabalho cativo e
pela propriedade comum dos meios de produção:

“A cooperação no processo de trabalho que encontramos no início


da civilização humana, nos povos caçadores ou, por exemplo na
agricultura de comunidades indianas, fundamenta-se na propriedade
comum dos meios de produção e na circunstância de o indivíduo
isolado estar preso à tribo ou à comunidade como a abelha está
presa à colmeia. Distingue-se da cooperação capitalista, sob dois
aspectos. O emprego esporádico da cooperação em larga escala no
mundo antigo, na Idade Média e nas colônias modernas, baseia-se
em relações diretas de domínio e servidão, principalmente a
escravatura. A cooperação capitalista, entretanto, pressupõe, de
início, o assalariado livre que vende sua força de trabalho ao
capital” (19).

Braverman (1981) aponta outros aspectos que caracterizam o modo de


trabalho em cooperação simples, entre eles, o trabalho cativo, a mão de
obra excedente, a tecnologia estacionária e o predomínio do valor de uso
do artefato construído. O autor remete à atividade construtiva da
antiguidade, da Idade Média e de algumas comunidades primitivas para
ilustrar as origens da divisão do trabalho na produção, e acaba por
revelar o pioneirismo deste setor produtivo:

“Esses predecessores, todavia, empreendiam, sob condições


escravistas ou outras formas de trabalho cativo, tecnologia
estacionária e ausência de necessidade capitalista de expandir
cada unidade de capital empregado, e deste modo era marcadamente
diferente da administração capitalista. As Pirâmides foram
construídas com o trabalho excedente de uma população escrava,
sem outro objetivo a não ser a maior glória dos faraós daquela
época e seus sucessores. Estradas, aquedutos e canais foram
construídos por sua utilidade militar ou civil e não, em geral,
para obtenção de lucro” (20).

Algumas condições sociais são apontadas pelos autores para explicar o


surgimento precoce do trabalho cooperativo na construção civil.
Certamente o trabalho excedente da mão-de-obra escrava favoreceu a
construção das gigantescas obras realizadas no mundo antigo. A natureza
complexa de certas atividades produtivas, dentre elas a prática
construtiva, também exerceu grande influência na origem deste modo
produtivo.

“Se o processo de trabalho é complicado, a simples existência de


um certo número de cooperadores permite repartir as diferentes
operações entre os diferentes trabalhadores, de modo a serem
executados simultaneamente, encurtando assim o tempo de trabalho
necessário para a conclusão de todas as tarefas” (21).

No que se refere ao mundo antigo, o próprio Marx (22) já havia se


encarregado de identificar “a poderosa força da cooperação simples” nas
“obras gigantescas realizadas pelos antigos povos asiáticos, pelos
egípcios, pelos etruscos etc.”:

“Ocorria antigamente que os estados orientais depois de custearem


suas despesas civis e militares dispunham de um excedente de
meios de subsistência que podiam utilizar para empreender obras
magnificentes ou úteis. Seu comando sobre os braços de quase toda
a população não agrícola e o domínio exclusivo do monarca e da
classe sacerdotal sobre esse excedente proporcionavam-lhes os
meios para construírem aqueles monumentos portentosos com que
encheram o país... Para movimentar estátuas colossais e massa
enormes cujo transporte causa espanto empregou-se de maneira
pródiga e quase exclusivamente trabalho humano. Bastavam o número
dos trabalhadores e a concentração de seus esforços. Também vemos
possantes recifes de coral surgirem das profundezas do oceano e
se ampliarem em ilhas formando terra firme, embora cada indivíduo
que concorreu para a formação deles seja ínfimo, frágil e
desprezível. Os trabalhadores não agrícolas de uma monarquia
asiática tem muito pouco a trazer para as obras além de seus
esforços físicos individuais, mas seu número é sua força e o
poder de dirigir massas deu origem àquelas obras colossais. Foi a
concentração das receitas de que vivem os trabalhadores, numa
única mão ou em poucas mãos, que possibilitou esses
empreendimentos” (23).

Segundo Marx (1983), a forma característica do processo de produção


capitalista surge na manufatura, espécie particular de cooperação. Marx
identifica duas formas de origem da manufatura:

"Nasce quando são concentrados numa oficina, sob o comando do


mesmo capitalista, trabalhadores de ofícios diversos e
independentes, por cujas mãos tem de passar um produto até seu
acabamento final. (...)

Mas, a manufatura pode ter origem oposta. O mesmo capital reúne


ao mesmo tempo na mesma oficina muitos trabalhadores que fazem a
mesma coisa ou a mesma espécie de trabalho” (24).

No âmbito da atividade construtiva, a organização do trabalho se


assemelha à primeira forma de manufatura. Ruy Gama (1986) afirma que a
construção naval foi a precursora desta primeira forma de manufatura:

“Os estaleiros, como se sabe, eram manufaturas: reuniam no mesmo


local numerosos artesãos de mesmo ou de diferentes ofícios, para
fazerem obra comum. Admitindo que as condições fossem semelhantes
às de outros estaleiros a que me referi, os artesãos nele
trabalhavam fora do controle das corporações; assim sendo, os
problemas técnicos podiam ser resolvidos em âmbito
supraprofissional, definidos e globalizados pelas necessidades da
empresa” (25).

O trabalhador livre, ou seja, fora do controle das corporações de ofício,


foi um dos pressupostos para a consolidação da manufatura. No entanto, o
desenvolvimento da ciência, e sua aplicação à produção, atuou de modo
decisivo para a abolição da cooperação simples. Ruy Gama (1986) esclarece
o papel da ciência, particularmente da Teoria da Resistência dos
Materiais, na resolução “supraprofissional” dos problemas técnicos da
produção de uma embarcação:

“Já o mesmo não ocorre com a Teoria da Resistência dos Materiais,


fundada por Galileu e apresentada nos Discorsi e Dimonstrazioni
Matematiche intorno a Due Nuorve Scienze, escrita na forma de
diálogo e publicada pela primeira vez em Paris (1639).

Galileu foi conselheiro naval do arsenal de Veneza, grande


estaleiro de construção naval e de máquinas, quando lecionava na
Universidade de Pádua. (...)

As investigações de Galileu tinham essa marca: não se referiam


aos materiais usados por cada uma das profissões envolvidas mas,
teoricamente formuladas, inclusive pelo uso da linguagem
matemática, ofereciam propostas de soluções genéricas, aplicáveis
aos materiais utilizados nos diversos ofícios: a madeira dos
carpinteiros, à pedra dos canteiros e pedreiros, às cordas dos
cordoeiros.

Num certo sentido, a teoria de Galileu era antigeométrica. A


geometria prática era, como vimos, parte do domínio secreto dos
carpinteiros e canteiros, chave para a estereotomia. Mesmo quando
a estereotomia se beneficia da teorização iniciada pela geometria
projetiva de Desargues, a questão dos materiais é ainda
essecialmente geométrica” (26).

Com a ajuda da ciência foi elaborado um conhecimento independente do


saber do artesão e a atividade construtiva foi pioneira no emprego dos
princípios da ciência voltados para a produção. Leonardo Benevolo (1976)
aponta o fato histórico que marcou a origem da denominada “ciência das
construções”:

“A ciência das construções, da maneira como é entendida hoje,


estuda algumas consequências particulares das leis da mecânica e
nasce, pode-se dizer, no momento em que essas leis são formuladas
pela primeira vez, no século XVII; Galileu, em 1638, dedica parte
de seus diálogos à discussão de problemas de estabilidade” (27).

Benevolo (1976) afirma que a aplicação dos princípios da ciência à


produção “produziu uma separação entre engajamento teórico e prático,
contribuindo para a desagregação da cultura tradicional...” (28). Bicca
recorre à Serge Moscovici para evidenciar a necessidade dos arquitetos
distinguirem o trabalho manual do intelectual, reivindicando a ruptura do
seu trabalho com o saber-fazer das corporações:

“Em outros termos, esta categoria deve se distinguir também por


um critério visível aos olhos da sociedade, critério que assegure
o reconhecimento de sua arte como maior ou mesmo superior às
outras artes. O único recurso que ela tem, para isto conseguir, é
de se colocar como “liberal”, isto é, como tendo integrado na sua
habilidade o pensamento teórico, fazer passar o seu trabalho por
intelectual” (29).

A necessidade de definir os novos princípios da arquitetura da época e de


opô-la às práticas adotadas pelos mestres-de-obras da Idade Média fez
surgir tratados que expressavam as ideologias renascentistas. Bicca cita
um trecho da obra de Alberti intitulada Tratado da Arquitetura,
provavelmente escrita entre os anos de 1443 e 1452, onde pode-se perceber
seu pensamento com relação ao trabalho manual:

“Antes de ir mais longe, creio que seria bastante útil dizer a


quem reservo o nome de arquiteto; não vos apresentaria,
certamente, um carpinteiro, pedindo-vos considerá-lo como igual a
um homem profundamente instruído em outras ciências, mesmo que na
verdade o homem que trabalhe com suas mãos seja o instrumento do
arquiteto. Chamarei arquiteto aquele que, com uma razão e um
método maravilhoso e preciso, sabe primeiramente dividir as
coisas com seu espírito e inteligência, e em segundo lugar como
associar com justeza, no curso do trabalho de construção, todos
os materiais que, pelos movimentos dos pesos, pela reunião e a
superposição dos corpos, podem servir eficaz e dignamente às
necessidades do homem. E na realização dessa tarefa, ele terá
necessidade do saber mais apurado e mais refinado” (30).

Sérgio Ferro (1982) destaca o papel do desenho no processo de abolição


das corporações de ofício. Uma vez separadas, o desenho técnico realiza a
mediação entre as atividades de conceber e executar e surge como
ferramenta de representação do objeto concebido. Ferro (1982) demonstra
como este recurso é empregado para a exteriorização do conhecimento
prático e para a monopolização da informação:

“Da regulamentação da produção à sua organização, da mensuração


externa à sistematização das operações – é nesta passagem que o
desenho faz-se adotar como instrumento capital, momento em que se
torna urgente definir as parcelas da produção com maior rigor.
Questão de organização, portanto, que o generaliza como documento
do trabalho. O objetivo de seu uso não é nem a qualidade do
produto (as normas da corporação eram muito mais rígidas e
detalhadas), nem sua constância (a ausência do desenho fazia, se
fosse o caso, da cópia direta um método mais fiel). O que
constrange a história do desenho é a divisão desigual do trabalho
que avança – e seu outro pólo, o acordo a ser imposto aos
componentes produzidos pelos trabalhos divididos” (31).

Tal como na Teoria da Resistência dos Materiais, a Geometria Descritiva e


o Sistema Métrico Decimal formulam princípios gerais que pretendem ser
aplicados em qualquer situação da atividade construtiva (Benévolo, 1976).
O caráter genérico dos princípios teóricos é próprio das novas
disciplinas. O avanço científico aliado às novas invenções tecnológicas
marcou a passagem do mundo tradicional para o moderno. O período da
Revolução Industrial correspondeu ao Iluminismo. A separação entre
conhecimento teórico e prático promoveu a separação entre Arquitetura e
Construção:

“Observa-se, com acuidade, que nesse período a arquitetura começa


a destacar-se dos problemas da prática da construção; estes
passam às mãos de uma categoria especial de pessoas, os
engenheiros, enquanto que os arquitetos, perdido o contato com as
exigências concretas da sociedade, refugiam-se em mundo de formas
abstratas. Os dois fenômenos, portanto, seguem-se paralelamente,
porém sem que se encontrem; pelo contrário, divergem cada vez
mais entre si; produz-se, como diz Giedion, ‘a cisão entre a
ciência e sua técnica, de um lado, e a arte, do outro, isto é,
entre arquitetura e construção’” (32).

Esta divisão do trabalho perpetua até hoje “nas diversas formas


econômicas da sociedade” (33). No entanto, ela não está baseada nas
diferentes técnicas de se trabalhar os materiais como ocorre nas
corporações de ofícios, e sim nas diferentes tecnologias que surgiram da
associação da produção à ciência.

Portanto, ao contrário da divisão do trabalho nas sociedades primitivas,


a divisão do trabalho nas sociedades capitalistas baseia-se na
diferenciação das tecnologias. Ruy Gama (1986) esclarece que a passagem
da técnica para a tecnologia não é uma questão de gradação. O autor, ao
referir-se a Teoria da Resistência dos Materiais de Galileu, evidencia
porque a tecnologia é contemporânea ao Capitalismo:

“Por tudo isso, pelo seu caráter teórico (e portanto


generalizante), pelo seu conteúdo supradisciplinar (no sentido
das disciplinas dos ofícios) e por sua vinculação histórica com a
problemática da produção manufatureira, a Teoria da Resistência
dos Materiais de Galileu inaugura, mesmo antes do batizado, uma
das faces da tecnologia. Isso não acontece por acaso e nem
simples consequência das ideias científicas que vieram do
conjunto de acontecimentos chamados de Revolução Científica mas
começa a nascer quando a teoria se une à prática em condições
muito especiais dessa prática: o trabalho em cooperação nas
manufaturas” (34).

Com o advento do modo capitalista de produção, novas práticas de


organização do trabalho foram elaboradas. Os princípios das Teorias da
Organização do Trabalho, mais especificamente a Teoria Clássica, tiveram
como precursores Frederick W. Taylor e Henri Fayol. Os dois fundaram a
Escola da Administração Científica que exprime as tentativas de aplicação
sistemática da ciência aos problemas crescentes da gestão da produção.
Apesar das falsas pretensões da Escola Científica (35) é interessante
notar como os seus fundamentos reforçaram a divisão social.

Um dos fundamentos da Escola da Administração Científica é a divisão de


trabalho entre a gerência e os trabalhadores. Taylor estabelece como
princípio geral que:

“Em quase todas as artes mecânicas, a ciência que estuda a ação


dos trabalhadores é tão vasta e complicada que o operário, ainda
mais competente, é incapaz de compreender esta ciência, sem a
orientação e auxílio de colaboradores e chefes, quer por falta de
instrução, quer por capacidade mental insuficiente” (36).

A separação entre trabalho intelectual e trabalho manual já era prática


comum no ambiente da organização industrial da época. Atualmente, é fácil
verificar a difusão da divisão vertical do trabalho no meio de diversos
grupos profissionais: quem concebe a ideia, não é aquele quem executa, ou
quem dela se serve.

A consequência deste princípio para o processo de produção arquitetônico


reside justamente nesta separação. O arquiteto enquanto a pessoa que
concebe o desenho é destituído do conhecimento da prática. Ao contrário
dos mestres-artesãos da Idade Média, o arquiteto não mais possui domínio
sobre o seu objeto de concepção.

Outro princípio da Administração Científica é a especialização das


tarefas, resultado da divisão horizontal do trabalho:

“Ao verificar que o trabalho pode ser melhor executado e de


maneira mais econômica através da subdivisão de tarefas, chegou-
se à conclusão de que o trabalho de cada pessoa deveria, tanto
quanto possível, limitar-se à execução de uma única e simples
tarefa predominante” (37).

E sua ideia básica é de que a eficiência do processo produtivo aumenta


com a especialização: "quanto mais especializado for um operário, tanto
maior será sua eficiência" (38).

Desde sua divulgação, a especialização vem sendo difundida e, sem


dúvidas, ela têm suas vantagens: é permitido ao homem se aprofundar no
problema. No entanto, quanto mais especializado se torna, menor o
controle sobre o seu objeto de trabalho. Os efeitos da divisão do
conhecimento somente podem ser amenizados pelo trabalhador coletivo.

Naturalmente, no processo de produção, a especialização resulta em


conflitos de valores, consequência das diferentes maneiras que os
profissionais relacionam com o objeto de interesse, cada um com seu
próprio ponto de vista: "Diferentes participantes podem ter prioridades
bastante diversas em qualquer ponto do processo" (39).

Outro princípio ordenado por Taylor é o pré-planejamento do processo de


trabalho e têm como objetivo substituir "a improvisação e a atuação
empírico-prática (dos operários), pelos métodos baseados em procedimentos
científicos. Substitui a improvisação pela ciência, através do
planejamento do método" (40).

“O trabalho do operário é completamente planejado pela direção,


pelo menos, com um dia de antecedência, e cada homem recebe, na
maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam
a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para
realizá-la. Na tarefa é especificado o que deve ser feito e
também como fazê-lo, além do tempo exato concebido para a
execução” (41).

“O tempo exato concebido para a execução”, ou as tentativas de impor uma


nova disciplina para o trabalho, de modo a adaptá-lo às necessidades do
capital, é amplamente abordada por Thompson (42). O historiador relata
inúmeras situações de resistência e aceitação do conceito de tempo que
prevaleceu na sociedade capitalista industrial nascente; e acaba por
revelar que a transição da noção de “tempo orientado pelas tarefas” para
a noção de “uso-econômico-do-tempo” não é uma simples exigência das
mudanças na técnica de manufatura no processo de trabalho.

A exploração dos trabalhadores pelo capitalista é imposta não somente


pelos mecanismos de organização e controle do ritmo de trabalho, mas
também é, antes, internalizada pela retórica moral “tempo é dinheiro”
proveniente da ética puritana, que desta forma reduz o conceito de ócio a
tempo não produtivo.

“Por meio de tudo isso – pela divisão de trabalho, supervisão de


trabalho, multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro,
pregações e ensino, supressão das feiras e dos esportes –
formaram-se novos hábitos de trabalho e impôs-se uma nova
disciplina de tempo. A mudança levou às vezes várias gerações
para se concretizar [...], sendo possível duvidar até que ponto
foi plenamente realizada: ritmos de trabalho irregulares foram
perpetuados (e até institucionalizados) no século atual,
especialmente em Londres e nos grandes portos” (43).

Veremos na próxima seção, que no âmbito da produção arquitetônica, o


controle do ritmo de tempo de execução das atividades se mantém em bases
manufatureiras. Ao contrário do que concebeu Ford para a linha de
produção da indústria automobilística, a máquina não determina a
disciplina do trabalho, o que confere particularidades a “indústria” da
construção civil.

3.1. O estágio atual de evolução técnica e organizacional da construção


civil

Segundo Marx (1983), a maquinaria é o próximo estágio da evolução


histórica do modo de produção capitalista após a manufatura. A
transformação da ferramenta manual em máquina tem como objetivo final
produzir mais-valia relativa.

No início da revolução industrial a máquina toma o lugar somente da


ferramenta manual, enquanto o homem, ou uma força natural que o
substitui, continua exercendo a função de simples força motriz. No
entanto, a produção mecanizada esbarra nas imperfeições de uma força
motriz caracterizada por produzir movimentos não uniformes e
descontínuos. Torna-se necessário, portanto, uma revolução técnica para
que se possa obter uma produção independente dos limites da força humana
ou natural. Uma força motriz, o motor, é então incorporada à máquina. E
esta força motriz permite o funcionamento simultâneo de várias máquinas-
ferramenta. Marx (1983) identifica duas formas distintas da máquina
trabalhar em conjunto – a cooperação de muitas máquinas da mesma espécie
e o sistema de máquinas. O sistema automático é uma forma mais
desenvolvida da produção mecanizada, onde a tarefa do homem é apenas a de
vigiar o funcionamento de todo o sistema.

Neste processo de substituição do instrumental de trabalho pela


maquinaria, a técnica aliada à ciência desempenha papel fundamental e
determinante na implantação de um novo modo de organização do trabalho –
o trabalho cooperativo com máquinas.

No âmbito da atividade construtiva, Nilton Vargas (1979), ao realizar um


estudo sobre a organização do trabalho na indústria da construção
habitacional, vai demonstrar porque subsistem formas tão antigas de
organização do trabalho nesse subsetor da indústria da construção a
partir de uma reflexão sobre a estrutura econômica da sociedade e do
nível de consciência e organização da classe trabalhadora. Aqui, nos
interessa constatar o caráter manufatureiro da indústria da construção
habitacional brasileira:

“Na construção, como vimos anteriormente, a separação entre a


concepção e a execução é por demais antiga. Particularmente na
construção habitacional, já se encontra também bastante marcada
essa separação. Não existe nem a figura do artífice, como
outrora, que se incumbia de alguns elementos decorativos ou de
trabalhos delicados de cantaria e carpintaria. Pelo contrário, na
construção habitacional o trabalho se encontra bastante
parcelado. Os trabalhadores são executores de projetos que não
sabem ler e onde a tradução é feita na sequência engenheiro-
mestre-encarregado; a cada elo de transmissão de ordens o
conhecimento vai se restringindo a partes menores da construção.
A figura do “oficial” guarda somente uma semelhança terminológica
com relação ao uso desta palavra na antiguidade. O seu trabalho
encontra-se bastante desqualificado e parcelado, restando-lhe
somente o conhecimento de uma pequena parte da obra. As
instruções são-lhe dadas para que execute o trabalho exatamente
como é determinado pelos seus superiores” (44).

O autor nega o argumento bastante comum de que a construção habitacional


permanece em bases artesanais. Apesar de detectar alguns fatores que
pertencem ao modo de produção artesanal como a forte presença do trabalho
manual (presença marginal da máquina), a transmissão oral do conhecimento
e a posse dos instrumentos de trabalho pelos operários. Vargas (1979)
destaca outros que revelam a base manufatureira que estrutura o processo
de trabalho na construção civil brasileira: separação entre concepção e
execução, incorporação de um conhecimento técnico e científico
independente do saber operário e especialização das tarefas.

Vargas (1979) finaliza seu raciocínio apontando a especificidade da forma


moderna deste tipo de manufatura:

“Realmente, não obstante a ciência se faça presente na atividade


de projeto e indícios de produtos industrializados marquem os
meios de produção, o trabalho é ainda sedimentado sobre uma base
estrutural da manufatura. A máquina ainda não incorporou a
ferramenta do oficial de forma a desvencilhar-se das barreiras
orgânicas que o trabalho manual impõe. A maioria do equipamento
utilizado (guindaste e gruas) substituem a força muscular do
operário, mas não suas habilidades” (45).

A não repetitividade do trabalho do operário é fruto de uma outra


particularidade da construção civil. Vargas (1979) já havia apontado que
“a construção habitacional (e a construção civil de maneira geral)
depende da disponibilidade e das características dos terrenos
disponíveis” (46). A “situação geográfica” do terreno aliado ao
“tratamento que será dado ao solo” dificulta a padronização do trabalho
do operário, bem como dos procedimentos de outros atores sociais
envolvidos como o processo produtivo. O trabalho dos projetistas é
típico: a cada terreno e cliente um novo projeto deve ser desenvolvido.

Em maior ou menor grau, a alta rotatividade de mão de obra não é


exclusiva do trabalho do operário. Toda a equipe de produção, formada por
engenheiros, mestre-de-obras, encarregados e operários, é renovada
durante a obra e desfeita ao final desta. O registro de experiências
anteriores fica comprometido e consequentemente os mesmos erros são
cometidos na construção civil (47).

4. Consequências da separação entre concepção e execução para a produção


arquitetônica atual

As consequências da divisão do trabalho para a produção arquitetônica


atual residem justamente na separação: quem concebe a edificação, não é
aquele quem executa e muito menos aquele quem usufrui e/ou mantém o
artefato produzido. Outros aspectos da divisão do trabalho nas sociedades
capitalistas ficam evidentes na produção arquitetônica:

a) Separação entre conhecimento teórico e saber prático.

A associação dos princípios da ciência à produção nos moldes capitalista


promoveu o distanciamento entre o conhecimento teórico e o saber prático.
No âmbito da produção arquitetônica esta separação se expressa pelo fato
do projetista, enquanto o idealizador do objeto, ser parcialmente
destituído do saber prático de execução, manutenção e uso do ambiente
construído.

b) Separação temporal entre concepção, execução, uso e manutenção.

A separação temporal entre estas fases do processo de produção implica em


uma restrição do conhecimento do projetista com relação aos
condicionantes de uma situação futura. A atividade de projetar, neste
sentido, é uma atividade de previsão. Os projetistas recorrem a várias
estratégias na tentativa de aproximarem desta situação futura. Os
projetistas de instalações, por exemplo, empregam coeficientes de
segurança para preverem demandas futuras no consumo de determinado
insumo. Os arquitetos simulam situações futuras no uso do espaço
construído, com ou sem os recursos da informática.

No entanto, iremos perceber que a antecipação de situações futuras é


necessidade primordial para o processo de projeto que se desenvolve em um
meio dinâmico e incerto. Aqui, nos interessa compreender como a forma
social distancia ainda mais as fases do processo de produção de um
artefato qualquer. Já foi dito que o modo capitalista de produção atribui
a indivíduos e grupos sociais distintos etapas diferentes do processo de
produção. Veremos que esta capacidade de antecipação do projeto fica
limitada frente às exigências e aos interesses de diferentes atores
sociais envolvidos com o processo de produção.

c) Distância espacial entre concepção e execução.

Já foi visto que a construção de uma catedral gótica é resultado de um


trabalho cooperativo, onde diferentes corporações de ofício trabalham
juntas em um mesmo lugar. Presume-se que o conhecimento limitado de uma
corporação com relação às particularidades das técnicas e materiais
empregados por outra era remediado pelo contato imediato entre elas no
canteiro de obras. Ou seja, verificado algum problema de
incompatibilidade entre materiais, por exemplo, a questão era resolvida
diretamente entre os artesãos.

Nas sociedades capitalistas e em alguns setores produtivos, onde


indivíduos ou grupos sociais desempenham etapas distintas do processo de
produção, a distância entre concepção e execução adquire uma nova
característica: a separação espacial. Os profissionais concebem o
artefato longe do local onde este é executado. Bicca (1984) esclarece as
diferenças entre os dois modos de organização do trabalho e revela a
distância espacial no âmbito da produção arquitetônica:

“A organização do trabalho corporativo, ligado à produção


arquitetônica, não criou, nem mesmo exigiu, um instrumento (o
projeto no caso) que pudesse substituir a presença direta do
mestre no canteiro de obras, razão pela qual esta se fazia
necessária e indispensável; o que explica, em muito, o fato de a
loggia (sala no próprio canteiro) ser o local de trabalho
privilegiado do mestre, sendo aí que muitas vezes ele desenhava e
discutia os problemas com os companheiros e aprendizes do mesmo
ofício, enquanto que mais tarde o arquiteto terá como seu local
de trabalho o ateliê ou escritório, invariavelmente fora do
canteiro. A uma nova organização/divisão do trabalho
correspondeu, como sempre ocorre, uma nova organização/divisão
dos espaços de trabalho” (48).

d) Distância temporal entre concepção e execução.

e) Especialização

Com relação à divisão horizontal do trabalho, sabe-se que a primeira


cisão ocorreu entre a arquitetura e a construção. O arquiteto e o
engenheiro foram as duas primeiras profissões que surgiram desta divisão.
Atualmente verifica-se uma grande quantidade de especialistas atuando no
processo de produção arquitetônico: arquitetos projetistas, arquitetos
urbanistas, engenheiro calculista, engenheiro hidráulico, engenheiro
elétrico, etc. Essa contínua divisão horizontal do trabalho permitiu o
desenvolvimento do conhecimento especializado em determinadas
tecnologias. Mas, por outro lado, este conhecimento limitou a visão de
todo o processo de produção. Essa “desqualificação” do trabalho aqui deve
ser entendida como uma perda de compreensão do todo. Na produção
arquitetônica, o conhecimento especializado é revelado principalmente
pela necessidade de se realizar a denominada “compatibilização” de
projetos.

f) Desqualificação do trabalho.

A desqualificação do trabalhador no sentido vertical advém da separação


entre trabalho intelectual e manual. No âmbito da atividade construtiva,
Paulo Bicca (1984) afirma que concepção (“construir” na cabeça) e
construção (mudança de formas nas matérias naturais) são dois momentos da
produção arquitetônica que têm como suporte “a prática de indivíduos
separados e distintos pelos trabalhos que realizam: o arquiteto se dedica
à concepção e o trabalhador à construção” (49). O autor recorre ao
canteiro de obras para validar sua afirmação, evidenciando assim a
divisão vertical entre trabalho intelectual e manual no interior da
produção arquitetônica.

Incapacidade de prever situações futuras:

Desconhecimento das particularidades de novas tecnologias:

f) Perda do controle sobre o processo de produção.

Antes da separação social do trabalho, o artesão detinha um controle


total sobre o processo de produção. Já foi demonstrado que este controle
era obtido através do saber prático adquirido em anos de aprendizagem nas
corporações de ofício. Além disto, o artesão desempenhava todas as
funções necessárias para a produção de uma edificação: concepção,
execução, uso e manutenção.

Com o advento do capitalismo, o trabalhador perde este controle sobre o


processo de trabalho. As funções atribuídas a diferentes trabalhadores e
a consequente especialização advinda desta separação contribuíram para a
perda de autonomia sobre o processo de trabalho.

Uma vez dividido, o trabalho torna-se necessariamente coletivo. Braverman


(1981), ao discutir as origens da gerência, afirma que o trabalho
cooperativo forneceu as condições necessárias para o surgimento de
práticas administrativas, tais como a coordenação e a direção. Segundo o
autor, o trabalho coletivo e a sua complexidade exigiram a implantação da
função de gerência. O autor lembra que a prática do controle de numerosos
trabalhadores antecede o modo capitalista de gerência. Entretanto, as
relações de trabalho diferem em muito no modo primitivo e capitalista. No
modo primitivo, a relação de subordinação era determinada pelo trabalho
cativo. No modo capitalista, o “contrato de trabalho livre” possibilitou
uma nova relação social entre o comprador e o vendedor da força de
trabalho.

No início do capitalismo industrial prevaleciam os sistemas de


subcontratação e produção domiciliar. Em pouco tempo esses sistemas não
se mostraram apropriados devido aos constantes problemas de
irregularidade da produção. Eles foram substituídos pelo trabalho
assalariado e, assim, o modo especificamente capitalista de gerência
tornou-se mais difundido. Esta nova relação de trabalho pressupõe
“trabalhadores reunidos sob o mesmo teto” com o objetivo primeiro de
impor-lhes “horas regulares de trabalho” (50). A forma de trabalho
assalariado aliada à centralização do emprego, possibilitou que a
gerência primitiva assumisse formas mais rígidas de controle:

“O capitalista, porém, lidando com o trabalho assalariado, que


representa um custo para toda hora não produtiva, numa sequência
de tecnologia rapidamente revolucionadora, para a qual seus
próprios esforços necessariamente, contribuíram, e espicaçado
pela necessidade de exibir um excedente e acumular capital,
ensejou uma arte inteiramente nova de administrar, que mesmo em
suas primitivas manifestações era muito mais completa,
autoconsciente, esmerada e calculista do que a anterior” (51).

No âmbito da produção arquitetônica Sérgio Ferro (1979) relata os métodos


coercitivos empregados no processo de habituação do trabalhador às novas
condições de trabalho no setor da construção civil. O autor relata os
recursos utilizados por Brunelleschi na construção da cúpula de Santa
Maria dei Fiori, na Florença do séc. XV:

“Assim, diante de uma greve por aumento de salários (já


extremamente diversificados), (Brunelleschi) importa operários
não florentinos, conseguindo quebrá-la. E só aceita novamente os
primeiros por salários inferiores aos que ocasionaram a greve (em
outros termos, é feroz no zelo pela mais-valia absoluta). Ou
ainda; preocupado com a perda de tempo e energia, instala no alto
da cúpula uma cantina (“fordizada”, na concepção de Gramsci)
evitando que os operários desçam para comer, beber, se reunir e
conversar (reconhecemos a meta: a mais-valia relativa)” (52).

Paulo Bicca (1984) relaciona a origem da “arquitetura com arquiteto” com


a divisão social do trabalho no interior do processo de produção
arquitetônica. Para o autor, este grupo particular de assalariados,
representantes das classes dominantes, isentam seus superiores, já
liberados do trabalho manual, também das tarefas de controle direto da
produção. No âmbito da produção arquitetônica, “Brunelleschi é um exemplo
marcante deste tipo de intelectual criado pelo capitalismo nascente”
(53). O controle da produção arquitetônica será confiado exclusivamente
ao arquiteto. Este, separado socialmente dos trabalhadores manuais, faz
emergir um novo processo de trabalho no canteiro de obras:

“Ele (o arquiteto) racionaliza as técnicas e os meios de produção


da construção, quebra a continuidade da organização coletiva do
canteiro tradicional e faz emergir impiedosamente o modelo atual
da divisão do trabalho social” (54).

Os aspectos relacionados anteriormente são inerentes ao processo de


produção arquitetônico socialmente dividido. Este tipo peculiar de
manufatura, encontrada na organização da produção construtiva, promove o
surgimento de peculiaridades que, obviamente, distinguem a atividade
construtiva atual de outros setores produtivos. Os recursos
organizacionais e técnicos empregados na prática ou propostos pela teoria
reduzem as incompatibilidades, diferenças e conflitos advindos da
separação social do trabalho, mas são incapazes de anulá-las.

notas

[Texto adaptado da dissertação de mestrado O processo de produção de um


empreendimento imobiliário: uma discussão sobre a regulação da distância entre
concepção e execução, sob orientação do professor Francisco de Paula Antunes
Lima (Escola de Engenharia, UFMG, 2000)]

1
MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Vol. I/1 e I/2, p. 410.

2
Idem

3
Idem, p.411.

4
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1981,
p. 72.

5
Idem, p. 74.

6
SMITH, Adam. Apud BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 75.

7
BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 79.

8
Idem, p. 80.

9
MARX, Karl. Op. cit., p. 404-405.

10
ALEXANDER, Christopher. Ensayo sobre la síntesis de la forma. Buenos Aires,
Ediciones Infinito, 1969, p. 36-37.

11
Idem, p. 43.

12
Idem, p. 38.

13
Idem

14
Idem, p. 41

15
LIMA, Francisco P. A. “Noções de organização do trabalho” In: OLIVEIRA,
Chrysóstomo Rocha de (org.). Manual Prático de LER. Belo Horizonte, Editora
Health, 1998. p. 174.

16
MACAULAY, David. Construção de uma Catedral. São Paulo, Martins Fontes, 1988,
p. 13,

17
VARGAS, Nilton. Organização do trabalho e capital: um estudo da construção
habitacional. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, COPPE, 1979. p. 35.

18
MARX, Karl. Op. cit., p. 374.

19
Idem, p. 383.

20
BRAVERMAN, Ha

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